Belo Horizonte 110 anos: memória, história e transformações da capital mineira
1. REVISTA
DO
Ano XLIII • Nº 2 • Julho - Dezembro de 2007
2. REVISTA
DO
Ano XLIII • Nº 2 • Julho - Dezembro de 2007
3. Revista do Arquivo Público Mineiro
História e arquivística
Ano XLIII • Nº 2 • julho-dezembro de 2007
Av. João Pinheiro, 372 Belo Horizonte MG Brasil
CEP 30.130-180 Tel. +55 (31) 3269-1167
apm@cultura.mg.gov.br
Governador do Estado de Minas Gerais
Aécio Neves da Cunha
Vice-governador do Estado de Minas Gerais
Antônio Augusto Anastasia
Secretária de Estado de Cultura
Eleonora Santa Rosa
Secretário Adjunto de Estado de Cultura
Marcelo Braga de Freitas
Superintendente do Arquivo Público Mineiro
Renato Pinto Venâncio
Diretora de Acesso à Informação e Pesquisa
Alice Oliveira de Siqueira
Coordenação editorial
Renato Pinto Venâncio
Editor de texto
Regis Gonçalves
Projeto gráfico e direção de arte
Márcia Larica
Produção executiva
Roseli Raquel de Aguiar
Pesquisa e seleção iconográfica
Luís Augusto de Lima
Revisão e normalização de texto
Lílian de Oliveira
Fotografia
Daniel Mansur
Editoração eletrônica
Túlio Linhares
Conselho Editorial
Affonso Ávila | Affonso Romano de Sant'Anna
Caio César Boschi | Heloísa Maria Murgel Starling
Jaime Antunes da Silva | Júlio Castañon Guimarães
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo | Maria
Efigênia Lage de Resende | Paulo Augusto Castagna
Edição, distribuição e vendas: Arquivo Público Mineiro
Tiragem: 1.000 exemplares. Impressão: Rona Editora Ltda.
Revista do Arquivo Público Mineiro.
ano 1, n.1 (jan./mar.1896 ) - . Ouro Preto:
Imprensa Official de Minas Gerais,
1896 - . v. : il.; 26 cm.
Semestral
Irregular entre 1896 – 2005.
De 1896 a 1898 editada em Ouro Preto.
De 1930 em diante: Revista do Arquivo Público Mineiro.
ISSN 0104-8368
1. História – Periódicos. 2. Arquivologia – Periódicos.
3. Memória – Periódicos. 4. Minas Gerais – Periódicos.
5. Belo Horizonte - História. I. Secretaria de Estado de Cultura de
Minas Gerais. II. Arquivo Público Mineiro.
CDD 905
4. suMÁRIO
APRESENTAÇÃO | Belo Horizonte, matéria | Eleonora Santa Rosa 7 singularidade e igualdade nos espaços públicos | Luciana Teixeira de Andrade 112
de memória Usos e apropriações do espaço público
transportam para as praças a vida cidadã
EDITORIAL | Celebração de uma cidade | Renato Pinto Venâncio 8 A cidade refletida em seus museus | Betânia Gonçalves Figueiredo 128
Mais do que simples depósitos de coleções,
também em Belo Horizonte os museus adquirem
funções e significados múltiplos
ENTREVISTA | A casa da memória brasileira | 10
Jaime Antunes, diretor do Arquivo Nacional, A dialética do aggiornamento | Sérgio da Mata 144
fala sobre sua experiência à frente da instituição
Conflitos inter-religiosos fizeram da capital mineira
emblema da crise ideológica do catolicismo
Memória, história e representações literárias | Lucilia de Almeida Neves Delgado 158
DOSSIê | Belo Horizonte 110 anos depois
Escritores traduzem no texto literário reminiscências
afetivas de uma cidade guardada na lembrança
Em busca de uma polifonia urbana | Lucilia de Almeida Neves Delgado 24
A RAPM lança um olhar multifacetado sobre Belo Horizonte,
de seus primórdios à condição de metrópole
ARQUIVÍSTICA |
A capital controversa | Cláudia Maria Ribeiro Viscardi 28
Lutas internas dividiram a elite mineira quanto uma experiência interinstitucional | Maria do Carmo Andrade Gomes 176
à proposta de mudança e de localização da capital Instituições do Estado e do Município Edilane Maria de Almeida Carneiro
se articulam para a recuperação dos acervos Thaïs Velloso Cougo Pimentel
Da natureza ao construído | Heliana Angotti-Salgueiro 44 documentais de Belo Horizonte
O projeto da nova cidade incluiu também a construção
de uma imagem positiva do empreendimento
Metamorfoses da metrópole | Cláudio Listher Marques Bahia 60 ESTANTE | Amplitude e variedade de temas 190
Processo de expansão metropolitana evidenciou o caráter
Novos títulos atestam a vitalidade da
contraditório do planejamento urbano original
historiografia sobre Minas Gerais
uma visão da capital cinqüentenária | Maria Eliza Linhares Borges 76
Cinqüenta anos depois da inauguração, a elite reiterava
a idealização de uma cidade nascida na prancheta ESTANTE ANTIGA |
uma centralidade belo-horizontina | Celina Borges Lemos 92 um documento fundador | Marta Melgaço Neves 192
A emergência da Savassi registra a criação Alice Oliveira de Siqueira
Relatório sobre os sítios indicados para abrigar a capital
de um novo espaço típico de convivência urbana de Minas é documento esclarecedor da história da cidade
5. > Belo Horizonte, matéria de memória
O presente volume da Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM) consolida a nova série da mais antiga
publicação cultural de Minas Gerais, renascida graças ao apoio do Programa Cemig Cultural.
A atual série reafirma o mérito da RAPM como documento indispensável à compreensão da memória histórica
nacional, mais especificamente a de Minas Gerais. E, sempre preservando seus objetivos, inova a concepção
do que deva ser a ação educativa na área cultural. A linguagem ágil, a forma contemporânea de apresentação,
o apuro das ilustrações, tudo, enfim, conduz tanto o pesquisador quanto o leitor casual à satisfação de
encontrar referências a outras fontes, a outros canais de informação que enriquecem o trabalho.
Inúmeros registros na imprensa especializada, ou voltada ao grande público, tratam a RAPM como um
dos mais importantes lançamentos editoriais deste início de século. O elogio é mais que justo, não só pelo
magnífico conteúdo dos artigos apresentados, como também pela pesquisa de imagens que revela tesouros
iconográficos pouco conhecidos até mesmo entre especialistas.
O presente volume comemora os 110 anos de Belo Horizonte e divulga amplamente o importante projeto
de Digitalização do Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital, fruto de uma parceria entre o Arquivo
Público Mineiro, o Museu Histórico Abílio Barreto e o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, que
contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).
Por meio da Revista do Arquivo Público Mineiro, a Secretaria de Estado de Cultura reafirma um de seus mais
valorizados princípios: o constante esforço em tornar acessível, a todos cidadãos, o inestimável patrimônio
cultural de Minas Gerais.
Eleonora Santa Rosa
Secretária de Estado de Cultura
Revista do Arquivo Público Mineiro | Apresentação | 7
6. > Celebração de uma cidade
Para uma cidade especial, uma revista especial. O presente volume da Revista do Arquivo Público Mineiro é unificando digitalmente o conjunto da documentação da Comissão Construtora da Nova Capital. Cada
dedicado à história de Belo Horizonte, comemorando de forma entusiástica os 110 anos da capital mineira. instituição passou a contar com uma versão digital da totalidade do acervo, permitindo o acesso e subordinando
Excepcionalmente, esta edição – devido ao elevado número de textos do Dossiê – não inclui a seção Ensaios, sua reprodução à autorização do arquivo detentor do documento original. Em vez de conflitos e disputas pela
ao passo que as seções Arquivística e Estante Antiga também elegem temas belo-horizontinos. guarda da documentação, confluência e ampliação das formas de acesso. Eis o que ensina o projeto da
Digitalização do Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital.
Nas páginas iniciais, entrevista-se Jaime Antunes, diretor-geral do Arquivo Nacional e especialista de renome
internacional no campo da arquivística. Como nos volumes anteriores, o atual registra um projeto desenvolvido Para o Arquivo Público Mineiro, essa iniciativa também teve importância por seu pioneirismo, inspirador de
pelo Arquivo Público Mineiro: o da Digitalização do Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital, iniciativa novos projetos de digitalização, firmemente apoiados pela atual gestão da Secretaria de Estado de Cultura
interinstitucional financiada pela Fapemig, no âmbito do Programa Especial Uso da Tecnologia Digital no – modelo de democratização do acesso ao patrimônio cultural mineiro.
Resgate da Identidade Histórico-Cultural de Minas Gerais, edital de 2001.
Por fim, mas não menos importante, cabe registrar que a revista que o leitor tem em mãos não existiria sem o
Trata-se de um empreendimento de enorme importância. O principal de seus méritos relaciona-se à criação aval da Associação Cultural do Arquivo Público Mineiro (ACAPM) e o patrocínio do Programa Cemig Cultural,
de uma forma a mais de preservação, para as futuras gerações, do valioso acervo relativo ao processo de motivo de orgulho para Minas Gerais.
formação da capital mineira.
Também de grande importância foram os procedimentos adotados neste projeto. O Arquivo Público Mineiro, Renato Pinto Venâncio
o Museu Histórico Abílio Barreto e o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte congregaram esforços, Superintendente do Arquivo Público Mineiro
7. Revista do Arquivo Público Mineiro Entrevista Revista do Arquivo Público Mineiro 11
Jaime Antunes Há 12 anos à frente da mais veneranda instituição arquivística brasileira,
A casa da o historiador Jaime Antunes relata a trajetória do Arquivo Nacional, com
destaque para seu processo de modernização, e oferece indicações preciosas
memória brasileira para os arquivos estaduais e municipais
8. > No começo eram dois modestos gestão dos arquivos espalhados pelo País. “fizemos o besouro Biblioteca Nacional, ou
armários, hoje 55 quilômetros lineares de Para ele os arquivos estaduais e municipais voar”, referindo-se para o Arquivo Nacional,
documentos, com cerca de 385 milhões de merecem hoje especial atenção, e a respeito ao importante papel a fim de levantar as fontes
páginas, abrigados em sete andares de um aproveitou para fazer recomendações do que vem prestando o referentes à concessão
grande edifício de depósitos e dois prédios alto de sua larga experiência à frente de Conselho Nacional de de mercês – desde a
anexos no Rio de Janeiro, onde está sua sede, um arquivo com compromissos nacionais. Arquivos (Conarq) que Gazeta de Lisboa à
além de oito depósitos de sua unidade regional Tudo isso sem perder a visão sensível para preside desde 1994, Gazeta do Rio de Janeiro
em Brasília. A enorme massa de acervo que o os desafios que o futuro aguarda diante dos quando se instalou.
Dentre os mais de e outros periódicos que
Arquivo Nacional reuniu a partir de sua criação, novos tipos de acervos documentais. cinco mil municípios publicizavam os atos
em 1838, está sob a tutela de Jaime Antunes, RAPM - Quando brasileiros, nem 5% oficiais do governo
historiador e arquivista que dirige a instituição Mostra-se satisfeito com seu papel na pisou pela primeira imperial, no Brasil
desde 1992. consolidação de muitas linhas de trabalho e vez no Arquivo Nacional dispõem de arquivos independente – e
na criação de novas fronteiras de atuação. E o senhor imaginou públicos estabelecidos. sistematizar esses dados.
Diante de amplas janelas que descortinam o não poderia ser de outra maneira, já que ele se que um dia seria o Durante muito tempo
belo cenário do Campo de Santana, no Rio de destacou à frente da Associação dos Arquivistas seu diretor? atuei na área da pesquisa
Janeiro, Jaime recebeu a Revista do Arquivo Brasileiros (AAB) e consegue combinar em sua do Arquivo. Formei-me
Público Mineiro para esta entrevista. Mas ele trajetória seriedade e dedicação. Às vezes seu Jaime Antunes - primeiro em arquivologia.
não parecia se importar com a paisagem que entusiasmo ameaça a própria elegância. Diante Não, eu comecei Depois, por necessidade,
tem ao seu dispor, tamanhas são as exigências de dúvidas a respeito de pilhas de documentos ainda muito jovem, fiz o curso de história no
de sua função e o entusiasmo com que se desorganizados em órgãos públicos, Jaime estava concluindo o Instituto de Filosofia e
entrega ao ofício. Ao longo da conversa isso Antunes – como fez recentemente durante uma segundo grau, quando Ciências Sociais (IFCS),
ficou visível. reunião técnica em Brasília – não vacilou em fui chamado por um dos professores da na Universidade Federal do Rio de Janeiro
pedir um jaleco e a seguir se debruçou sobre os área de história, em 1963, para um projeto (UFRJ). Terminado esse curso, eu me senti
Poucos podem tratar a história da instituição papéis para descobrir a filiação administrativa capitaneado por José Gabriel Calmon da Costa mais bem instrumentalizado.
com tamanha intimidade como ele, que ali que permitiria organizá-los. Pinto que o Arquivo Nacional desenvolvia,
começou a trabalhar quando era ainda estudante na área de pesquisa, para o mapeamento de RAPM - Quais são os grandes
do segundo grau. Desde as primeiras pesquisas A entrevista, duramente acertada diante da graças honoríficas concedidas no Brasil. Eu marcos da história do Arquivo Nacional?
instrumentais, percorreu os escalões técnicos agenda compacta do diretor, se passou às estudava na Ilha do Governador e, como havia
das principais áreas de acervo até poder se vésperas de uma reunião com dezenas de passado para o turno da noite, ficava mais fácil JA - O Arquivo Nacional foi criado
sentar na ampla sala que hoje ocupa no prédio representantes de arquivos estaduais e ao participar. E assim trabalhei parte de 1963, por um regulamento de 2 de janeiro de
neoclássico, há pouco restaurado. Jaime Antunes mesmo tempo em que, logo abaixo da sala, depois todo o ano de 1964, efetivamente por 1838. Ele adquiriu uma certa autonomia
não teme a longevidade do cargo, pois para ele no pátio da instituição, se montava o telão altruísmo, não recebia bolsa nenhuma como pelo regulamento de 1840. Durante o Império,
instituições como a que dirige ganham com a para a apresentação do Festival Internacional estagiário. Até que em 1965 se viabilizou o Arquivo teve um comportamento muito
continuidade administrativa. de Cinema de Arquivo (Recine), celebrada minha contratação por serviços de terceiros. tímido. Tinha áreas muito pequenas, o
mostra que se oferece ao público. O momento Então, passei a receber, esporadicamente, acervo era guardado em dois armários,
Ao longo da conversa pôde rememorar a não poderia ser mais sugestivo do padrão algum tipo de remuneração. Tinha uma pouquíssimos servidores. Mas, nos anos
tradição da guarda dos documentos oficiais consolidado por Jaime Antunes. Ou, como equipe, não era só eu, havia também outros 1870 e 1880, o Arquivo teve um diretor
do Brasil e percorrer os grandes dilemas da ele resumiu a certa altura da nossa conversa, estudantes. Íamos para a chamado Machado Portela, que eu reputo
12 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Entrevista: Jaime Antunes | A casa da memória brasileira | 13
9. como o primeiro Internacional de Arquivos. Conselho Nacional de RAPM - Além de
diretor que pensa Aí tem origem a Lei de Arquivos (Conarq), normatizar, o Arquivo
cientificamente a Arquivos, que é uma um colegiado, com Nacional tem conseguido
instituição. Ele é o lei importante para o 16 membros, em que estimular os municípios a
grande sistematizador O Arquivo Nacional País. Depois da minha há representação dos aderirem a esse plano?
Foi promulgada pelo
técnico do Arquivo. estabeleceu um assunção como dirigente, arquivos estaduais, dos
começou-se a trabalhar, arquivos municipais Ministério da Cultura JA - Há três anos o Conarq
protocolo de
RAPM - O que ou revisitar questões e há um segmento portaria criando produziu uma cartilha
aconteceu com o cooperação que de ordem técnica, voltado para a que se chamava Por uma
Comitê Nacional do
Arquivo Nacional deu origem à de reestruturação, a comunidade usuária, Política Municipal de
com o advento da intensificar o programa no qual é sempre Brasil do programa Arquivos, em que havia
República? Comissão Luso-Brasileira de informatização do possível envolver uma carta aos prefeitos e
Memória do Mundo da
para a Salvaguarda Arquivo Nacional, para entidades que cuidam presidentes das câmaras.
JA - O Arquivo e a que a instituição pudesse de arquivos privados Unesco, do qual sou o O Senado Federal
e Divulgação do
Biblioteca Nacional reiniciar o seu programa ou arquivos privados primeiro presidente. imprimiu esse material e
foram ligados ao Patrimônio Documental. de modernização (fase de interesse público. produziu 13 mil livretos,
Ministério da Justiça dois), um programa O Conselho vem dos quais uma parte foi
e Negócios Interiores que está em curso tentando empreender distribuída por correio com
durante muitos anos. e que tem levado o uma relação mais uma carta das direções
Depois, com o Decreto- Arquivo a uma projeção intensa com os arquivos dos arquivos estaduais.
lei n. 200, de 25 de tanto a nível nacional estaduais para que Nesse momento, está
fevereiro de 1967, que desmembrou esse quanto internacional. Na curta gestão de estes possam reproduzir essa ação com se elaborando uma resolução no Conselho
Ministério, o Arquivo ficou com o Ministério Maria Alice Barroso, nós tivemos a sanção os diversos municípios do seu Estado, ou mostrando a importância do apoio dos governos
da Justiça. Posteriormente, em junho de da Lei de Arquivos e a criação do Prêmio seja, estimular as prefeituras e os presidentes dos Estados à modernização dos arquivos
2000, a instituição passou à jurisdição da Arquivo Nacional de Pesquisa, que vem das câmaras de vereadores a criarem estaduais, dotando-os de autonomia, de
Casa Civil da Presidência da República. sendo conferido a cada dois anos. O Arquivo instituições arquivísticas municipais. Com um quadro de pessoal próprio, de
Nacional acaba de fechar o edital deste isso, se dá cumprimento a dispositivos da infra-estrutura adequada, e, ao mesmo
RAPM - Como ocorreu a modernização ano com 21 teses inscritas, o que é um lei geral de arquivos e, ao mesmo tempo, tempo, estimulando esses arquivos a serem
recente da instituição? reconhecimento da importância de um estimula-se que esse equipamento do cabeças de sistema, no âmbito do Estado,
prêmio que vem valorizando a pesquisa município seja um elemento de mediação, das instituições estaduais, envolvendo o
JA - A administração de Celina Vargas do e estimulando a publicação de teses e de informação entre o munícipe e as Ministério Público Estadual e os Tribunais
Amaral Peixoto é um grande marco. Por dissertações de mestrado. diversas entidades geradoras de arquivos de Contas para que cobrem dos municípios
outro lado, a transferência para a nova sede, no âmbito municipal. Dentre os mais de o pleno cumprimento da Lei n. 8.159,
que propiciou a renovação dos quadros RAPM - Qual é a relação do Arquivo Nacional cinco mil municípios brasileiros, nem de 1991 e da Lei de Responsabilidade
funcionais, deu oportunidade a que servidores com os outros arquivos brasileiros? 5% dispõem de arquivos públicos Fiscal. A lei é muito clara, determina
da casa participassem de diversas missões estabelecidos. Isso representa um risco que os municípios tenham arquivos
internacionais, além da vinda de diversas JA - O Arquivo Nacional promove a relação à destinação do patrimônio documental públicos instituídos. Nenhum documento
missões estrangeiras, apoiadas pelo Conselho com os outros arquivos brasileiros através do gerado nesse âmbito. público estadual, municipal, federal ou
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10. do Distrito Federal pode cumprimento ao parágrafo portuguesa, mas ia. e ciências sociais e
ser eliminado segundo do artigo 216 Então, essa relação veio que tem funcionado
sem que a instituição da Constituição Federal, amadurecendo, o que como um grande
arquivística pública, que determina que cabe possibilitou ao Arquivo, na programa de extensão
em seu âmbito, autorize. Hoje o risco está ao Poder Público a gestão gestão de Celina Vargas para os estudantes.
na utilização de da documentação pública, do Amaral Peixoto, ter Os arquivos
RAPM - Que conselhos para franquear a sua uma intensa relação com RAPM - E o programa
o senhor daria a quem
impressoras jato de consulta a quantos dela o Conselho Internacional
precisam de boa Memória do Mundo?
estivesse envolvido tinta, cujo registro necessitem para a defesa de Arquivos para a infra-estrutura física,
na organização de tende a esmaecer, de um interesse particular assessoria do programa depósitos bem JA - É uma experiência
um arquivo público ou coletivo. de modernização, além muito recente. Há
municipal? desaparecer, de outros contatos com resguardados, bem muitos anos, Lígia
dependendo da RAPM - O Arquivo organismos internacionais. sinalizados e bem Guimarães – uma
JA - A organização de Nacional tem O Arquivo, recentemente, técnica da área de
um arquivo público
incidência de raios estabelecido se filiou à Federação
fiscalizados. conservação do
municipal vai exigir ultravioletas. parcerias com Internacional de Arquivos Iphan que vinha
sempre da prefeitura arquivos estrangeiros, de Filmes (Fiaf), já que é representando o
uma articulação com especialmente com detentor de um conjunto de Brasil no Comitê
a câmara. É preciso os de Portugal? arquivos fílmicos bastante Regional para a
elaborar um projeto de expressivo. No que tange América Latina e
lei que seja compatível JA - É com Raul Lima, ao campo de cooperação Caribe do programa
com a realidade financeira e orgânica do nos anos 1970, que o Arquivo Nacional se com os arquivos portugueses, de há muito se Memória do Mundo da Unesco – pugnava
município. Ao mesmo tempo, o prefeito deve filia ao International Council on Archives vem trabalhando nisso. O Arquivo Nacional pela criação do comitê nacional. Finalmente,
compreender que está criando uma instância (ICA), uma Ong ligada à Unesco que surge estabeleceu um protocolo de cooperação com foi promulgada pelo Ministério da Cultura
do Estado para a publicização da informação depois da Segunda Guerra Mundial, com os arquivos portugueses que deu origem à portaria criando o Comitê Nacional do
pública gerada no âmbito do município e que o propósito de organizar as relações entre Comissão Luso-Brasileira para a Salvaguarda Brasil do programa Memória do Mundo,
preservará para o futuro a memória de sua instituições arquivísticas e salvaguardar as e Divulgação do Patrimônio Documental do qual sou o primeiro presidente. Esse
própria gestão. Portanto, um prefeito, quando fontes documentais. Um ano depois, se associa (Coluso). Desde as comemorações do comitê divulgou edital via Internet e
dá o passo de estimular a organização do à Associação Latino-Americana de Arquivos 5º centenário da descoberta do Brasil a recebemos 17 candidaturas para a
arquivo municipal, está contribuindo para que (ALA) e, com isso, passa a participar das Coluso vem empreendendo uma série de nominação como patrimônio da humanidade,
seja reconhecido como um político que ordena, reuniões anuais dessas entidades, e começa trabalhos de organização, tratamento, em nível nacional. Esse programa tem
organiza a massa informacional pública a a dar mais visibilidade ao Arquivo em termos intercâmbio de dados e de informação gradações: possui um nível regional que
serviço da visibilidade da sua administração, internacionais. Raul Lima cria uma publicação, entre os diversos arquivos portugueses e atende, no nosso caso, a América Latina
da transparência na sua administração. Acervos que era uma ousadia, chamada Mensário do brasileiros. No bojo disso tudo, eu destaco o e Caribe, e tem os diversos comitês
bem organizados, bem controlados, respondem Arquivo Nacional. Ela se manteve por anos papel bastante significativo da Universidade nacionais. Os países podem designar e
de forma mais adequada ou mais ágil à com pequenos artigos, e era enviada para do Estado do Rio de Janeiro, que há aprovar a nominação de um fundo
população e, ao mesmo tempo, uma política os arquivos estaduais, para as bibliotecas e muitos anos é mantenedora de 60 bolsas documental com documentos singulares
adequada de gestão da prefeitura dá pleno para os parceiros internacionais – em língua de estudo para estudantes de história de importância para a região ou para o país.
16 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Entrevista: Jaime Antunes | A casa da memória brasileira | 17
11. RAPM - O que muda preservação de acervos softwares gerenciadores ter investimento em
nos arquivos com a digitais. Se há riscos dessas informações, qual controles intelectuais,
era digital? Como os de perda do patrimônio será a relação do arquivo porque, se controlamos
arquivos atuais vão documental tradicional com os órgãos produtores e intelectualmente o
enfrentar os problemas que está sob um suporte de que forma, em Brasília, acervo, logicamente
do documento eletrônico Acho que foi uma extremamente frágil, que poderá se estabelecer um Eu tive alguns poderemos detectar
e assegurar a guarda é um papel de baixa arquivo contemporâneo, com mais rapidez se
permanente de
marca emblemática qualidade, hoje o risco um arquivo do século XXI.
percalços de dentro um documento foi,
documentos produzidos na política arquivística está na utilização de da instituição, mas porventura, subtraído
a partir desse suporte? brasileira a transferência impressoras jato de tinta, RAPM - Quais são os que a mim não em determinado tempo.
cujo registro tende a acervos documentais
JA - É uma questão [para o AN] do acervo esmaecer, desaparecer, brasileiros que estão mais serviram de obstáculos. RAPM - O Arquivo
bastante importante de um órgão a serviço dependendo da incidência ameaçados? O que tem Serviram para Nacional tem
que vem sendo objeto de raios ultravioletas sido feito para combater o colaborado com a
de discussão em
da repressão [SNI]. sobre esse registro. Essa roubo de documentos?
buscar saídas. repressão ao comércio
algumas das sessões câmara técnica, então, se ilegal de documentos
do Conselho Nacional debruçou para examinar o JA - Primeiro, os arquivos históricos?
de Arquivos, onde há que existe de modelos na precisam de boa infra-
uma câmara técnica de Comunidade Européia, na estrutura física, depósitos JA - Há um ano e meio,
documentos eletrônicos. experiência australiana, bem resguardados, mais ou menos, uma
Essa câmara, como que é a experiência bem sinalizados e bem pesquisadora entrou em
sinal de alerta aos governos, com base na moderna ou mais contemporânea, mais fiscalizados. Nesses depósitos de guarda contato comigo e disse que um leilão aconteceria
carta de preservação do patrimônio digital arrojada na área da arquivologia no mundo. os documentos têm que estar muito bem no dia seguinte, aqui na rua Frei Caneca, em
da Unesco, produziu um documento objetivo topografados. Os arquivos têm que ter um estabelecimento comercial muito próximo de
que se chama Carta para a Preservação do RAPM - É uma instrumentos descritivos que dêem conta nossa sede. Liguei para o setor especializado em
Patrimônio Arquivístico Digital Brasileiro, nova era, não? da massa documental. Eu acho que isso é meio ambiente e patrimônio da Polícia Federal e
que tem como base as diretrizes da carta difícil porque, embora durante muitos anos falei com o delegado que respondia pela seção.
da Unesco. Esse documento é considerado JA - É uma nova era. Nos Estados os arquivos não recolhessem material algum, Disse-lhe que mandara dois técnicos fazer
pela Unesco como extremamente importante, Unidos existe o Eletronical Record ainda assim detêm massas documentais uma inspeção prévia dizendo-se interessados
porque o Brasil foi o primeiro país a Archives. Nós ainda estamos discutindo acumulados necessitando de controle. E o na compra. Nós já tínhamos examinado,
projetar algo específico para a área dos que nome essa instituição teria no Brasil, Arquivo Nacional mesmo tem parte nisso. Mas previamente, uma lista de mil itens, mil lotes, e
arquivos digitais com base na carta daquela mas é de fundamental importância que nós estamos caminhando para buscar soluções, concluímos que alguns eram muito indefinidos,
organização. Esta se encarregou de verter o ela possa dar conta da armazenagem dos fizemos concurso público para ampliar o que não havia clareza, mas outros nos pareciam
texto para o espanhol, para o inglês e para o documentos, não importa onde esteja a espectro de agentes públicos dentro do órgão, públicos, provavelmente do Itamaraty. Eram
francês, e fez uma bela publicação difundindo- entidade geradora do arquivo. Então, nós já nossas equipes estão sendo treinadas e correspondências do barão do Rio Branco com
o para arquivos de todo o mundo e para temos uma fase do projeto definida. Estamos capacitadas. Portanto, tem que ter investimento ministros plenipotenciários sobre a discussão de
outros organismos da Unesco, alertando-os desenvolvendo, agora, a partir de estudos dos em equipamento, segurança. Tem que ter fronteiras. Isso, nitidamente, era um documento
para a necessidade de uma solução para a requisitos funcionais, o que queremos com os investimento em equipes técnicas, tem que público, que não deveria estar em mãos de
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12. particulares. Eu perguntei que providências ele tinha peça nenhuma ali. O Itamaraty levou as trabalho de desvendar partes, ainda nebulosas,
iria tomar, e ele me respondeu: “Eu não vou cartas do Rio Branco e, depois, a Polícia Federal da história contemporânea brasileira. A pior
mandar ninguém lá agora, só para fiscalizar, designou fiel depositária a Biblioteca Nacional e experiência... Eu tive alguns percalços dentro
nós vamos estourar o leilão. Mas o pessoal transferiu os documentos para lá. Duas semanas da instituição, mas que a mim não serviram
não vai entender o que é documento público depois, preventivamente, o leiloeiro entrou em de obstáculos. Serviram para buscar saídas,
ou privado. Então, você, por favor, acione as contato com o Arquivo Nacional e disse: “Estou buscar instrumentalização para melhor adequar
instituições que tiveram documentos subtraídos fazendo um leilão e gostaria muito que alguém a instituição. O Arquivo Nacional, nos anos
mais recentemente”. Contactei o Itamaraty do Arquivo Nacional examinasse, previamente, 1990, sofreu um incêndio em sua subestação
e a Biblioteca Nacional. O então diretor da as peças que eu estou leiloando para que não de distribuição de energia. Felizmente, o fogo
Biblioteca Nacional disse que não enviaria se repita o incidente”. Assim, uma funcionária não atingiu o prédio de guarda do acervo, mas
ninguém, mas a equipe do Itamaraty foi para do Arquivo esteve lá antes. Mas esse leilão, isso gerou, durante muito tempo, um enorme
lá e foram também quatro técnicos do Arquivo. efetivamente, não tinha peça que pudesse ser desconforto para a administração, que durou
Eu disse: “Delegado, como é que essa equipe caracterizada como pública. Achei um sinal até que o Arquivo pudesse recuperar o prédio,
vai saber quem são vocês?”. Ele disse: “Muito positivo ter uma ação educativa nesse sentido. a partir da subestação de força. Mas isso
simples, nós vamos chegar com o camburão, proporcionou à instituição a oportunidade de,
armados e com o jaleco da Polícia Federal. RAPM - Quais foram a sua melhor primeiro, modernizar toda a sua infra-estrutura,
A gente entra e sua equipe entra atrás”. Pelo e a pior experiência em arquivos? o que aumentou, enormemente, a segurança do
que me relataram depois, ele entrou no salão acervo. Ao mesmo tempo, tive que administrar
e disse: “Esse leilão está interrompido por uma JA - Eu acho que a melhor, e aí eu vou o Ministério Público no meu calcanhar, que me
denúncia de que estão sendo vendidos aqui trazer uma experiência mais recente, foi a cobrava não só as questões voltadas para o
documentos roubados de órgãos públicos”. possibilidade que se pleiteava há muitos prédio do depósito, mas também os caminhos
Criou-se uma confusão porque estava cheio de anos, por força de um decreto do presidente para a recuperação deste prédio, que é a nova
gente, advogados que representavam parte dos da República, de entrada na nossa unidade sede. Eu vi nessa situação delicada, que me
compradores. Nem sempre o comprador põe a regional dos acervos do Serviço Nacional causou certo desconforto, mas não esmoreceu
sua cara, não é? E aí, o delegado perguntou: de Informações (SNI), em 21 de dezembro os ânimos, a chance de buscar uma saída
“Desses lotes, qual tem documento público? de 2005. Eu acho que isso foi uma marca para melhorar a infra-estrutura do Arquivo. Ao
E as obras e os livros antigos?” A decisão emblemática na política arquivística brasileira: mesmo tempo, depois da passagem do Arquivo
do delegado: “Vocês passam agora a ter um a transferência do acervo de um órgão que Nacional para a Presidência da República,
enorme trabalho, vão examinar os mil lotes era o coração da informação a serviço da conseguimos a melhoria das condições salariais
de documentos e ninguém sai do espaço do repressão, durante tantos anos, de 1964 a dos servidores. Mas uma coisa que me causa
leilão até que esse exame seja realizado”. E 1985, e que ficava sob a guarda da Agência frustração, pela qual há muitos anos a gente
complementou: “Em caso de dúvida, pró-réu, Brasileira de Inteligência. Não sei por que, pugna, é não ter conseguido, até hoje, a
separa”. Foi parar na Polícia Federal tudo que mas não me parecia o lugar mais adequado. criação do plano de carreira dos servidores do
foi documento de arquivo, mapa, foto, livros A entrada desse acervo possibilitou que Arquivo Nacional.
raros. Só depois disso ele liberou o povo, dezenas de outros fundos documentais fossem
registrou todo mundo que estava lá e disse que transferidos para o Arquivo Nacional. Então,
* Entrevista concedida ao historiador
as entidades que tiveram seus acervos roubados eu considero este um marco importante de
Luciano Figueiredo.
foram instadas a dar uma declaração de que não uma posição do governo para iniciar um
20 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Entrevista: Jaime Antunes | A casa da memória brasileira | 21
13.
14. Revista do Arquivo Público Mineiro Dossiê | Apresentação
Em busca de uma
polifonia urbana Lucilia de Almeida
Neves Delgado
> As cidades são polifônicas, plurais, sua historicidade, superou também a cultura unitária uma urbe modificada pela ação do tempo histórico e deve ser transformado e o que deve ser preservado.
heterogêneas. Todavia, são também peculiares na e bem ordenada, que contribuiu para caracterizá-la, dos sujeitos que nela habitaram e habitam. Cidade em A cada movimento de reforma na planta da cidade
multiplicidade que as caracterizam. Belo Horizonte, durante os primeiros anos de sua trajetória, como movimento constante de atualização e transformação, e de implementação de intervenções denominadas
cidade singular e múltipla, cravada entre montanhas uma cidade provinciana. avançou sobre si mesma ao criar novos espaços reengenharias urbanas, brotam conflitos entre as
de Minas Gerais, hospeda paisagens urbanas, públicos, variados locais de convivência e inúmeros demandas por transformação e os apelos simbólicos,
complexas relações entre indivíduos e grupos sociais, A Belo Horizonte do tempo presente deixou, de fato, bairros, não previstos em seu projeto original. A afetivos e sociais em favor da preservação.
arquitetura eclética, inúmeras redes de comunicações, no passado seus ares de urbe bem comportada, capital mineira, em sua trajetória urbana, ampliou e
intensa musicalidade, lugares da memória, espaços habitada por uma população com características diversificou sua economia e sua vida social. Cresceu Por tudo isso, as histórias das cidades são constituídas
de sociabilidade, monumentos, tessitura de bastante homogêneas e que se dedicava, quase enormemente e transformou-se em uma metrópole de contradições que incorporam, em um único
temporalidades, movimentos culturais diversificados, que exclusivamente, à administração pública, que, nos seus movimentos paradoxais, contém a antiga movimento, desejos de manter os signos dos lugares
história e passado na história. complementada por algumas atividades nos ramos cidade, ao mesmo tempo em que a descaracteriza. e as necessidades de atualizar os equipamentos
dos serviços, comércio e educação, enquanto urbanos, tornando-os mais adequados às exigências
Ao completar 110 anos de sua fundação, podemos segregava os trabalhadores manuais, que deviam Sobre essa questão, recorreremos a Susana Gastal, da modernidade, em um primeiro momento, e, em um
constatar que, de cidade planificada, construída morar fora do eixo da avenida do Contorno. que em seu livro Alegorias do Urbano afirma que o segundo, da pós-modernidade. Ou seja, às atitudes
em sintonia com os cânones da melhor expressão fluxo tende a superar e a transformar o fixo. É desse que identificam as cidades – que se transformam em
arquitetônica/urbanística do positivismo, ela A Belo Horizonte na qual vivemos é bastante diferente impulso ao movimento que surge um dos principais fluxo contínuo – como patrimônio e como memória,
transformou-se em cidade eclética, que ultrapassou da cálida e tranqüila cidade estratificada do final do dilemas das cidades em suas inexoráveis trajetórias contra-põem-se, não poucas vezes, as dinâmicas e as
geograficamente o espaço que lhe fora reservado. Em século XIX e início do século XX. Transformou-se em históricas. Ou seja, como e para que definir o que exigências relacionadas a outras formas de vivenciá-las.
24 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Dossiê Lucilia de Almeida Neves Delgado | Em busca de uma polifonia urbana | 25
15. Nesse processo, os rituais de identificação das conservação. A cidade tem também convivido com buscou contemplar análises e interpretações que o Dossiê desta edição comemorativa também traz a
pessoas com os lugares deparam-se com os signos demandas contraditórias: as sociais e políticas, de consideram a cidade em sua memória, em sua contribuição da socióloga Luciana Teixeira Andrade.
das mudanças e dos impulsos transformadores. objetivos imediatos, e as de preservação histórica, historicidade e em seus movimentos transformadores.
A memória defronta-se com a tessitura de redes caracterizadas por apelos de retenção da memória Entendemos que tarefa tão complexa necessitaria Esperamos que a construção teórica e histórica sobre
impulsionadoras das mudanças, que sobrelevam o urbana. Dessa forma, constatamos que o olhar da colaboração de profissionais de diferentes áreas a relação tempo, espaço e cidade, que constitui
valor da transformação como necessário à obtenção da cidade, como historicidade, se contrapõe, não de conhecimento, pois para analisar a pluralidade o conteúdo desta publicação, contemple, com
de um maior conforto ambiental urbano. raramente, aos pressupostos que orientam as de uma cidade centenária nada melhor do que a sensibilidade e densidade, a polifonia constitutiva da
constantes descaracterizações das urbes. conjugação dialógica de textos escritos a partir de rica realidade urbana e dos suportes da identidade
A trajetória histórica de Belo Horizonte, nesse sentido, diferentes olhares e de percepções diversificadas. pluralista de Belo Horizonte.
não é diferente da de muitas outras cidades que Nessa dinâmica tem predominado, não poucas vezes,
nasceram e cresceram sob o signo da modernidade. uma tendência de se preservarem alguns espaços, O sentido interdisciplinar que orientou a edição da
Os ideais de progresso e os pressupostos iluministas que são considerados lugares-âncora, ou lugares da seção Dossiê deste número histórico da Revista do
ligados à ciência constituíram-se, em diferentes memória. Essa tem sido uma fórmula que, muitas Arquivo Público Mineiro coloca em interlocução
conjunturas, como ícones de adesão desta cidade/ vezes, alcança algum êxito no esforço de conciliar os múltiplas visões sobre uma cidade também múltipla.
capital aos valores civilizadores modernos. São clamores do progresso com as heranças simbólicas, Assim, a publicação conta com a colaboração de
valores de referência, que tendem mais a projetar o materiais e culturais, que são os principais lastros de arquitetos, nas pessoas de Heliana Angotti-Salgueiro,
Lucilia de Almeida Neves Delgado foi professora da UFMG
futuro do que a preservar os lastros do passado e das uma história viva. Cláudio Listher Marques Bahia e Celina Borges de 1978 a 1996. Atualmente é professora titular do Curso de
tradições, suportes da identidade citadina. Lemos; de historiadores, que se fazem presentes nos Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da PUC-Minas. É autora, entre outros, do
A homenagem que a Revista do Arquivo Público artigos de Betânia Gonçalves Figueiredo, Claúdia livro História Oral: memória, tempo, identidades (Autêntica)
Belo Horizonte tem se defrontado simultaneamente Mineiro ora presta à cidade de Belo Horizonte nos Maria Ribeiro Viscardi, Lucilia de Almeida Neves e organizadora da coleção O Brasil Republicano (Civilização
Brasileira, 4 vol.), em conjunto com Jorge Ferreira.
com impulsos de mudança e projetos de seus 110 anos de existência e de trajetória histórica Delgado e Sérgio da Mata. Além desses autores,
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16. Revista do Arquivo Público Mineiro Dossiê Revista do Arquivo Público Mineiro 29
O dissenso em torno do projeto de mudança da capital pôs em evidência
Cláudia Maria
Ribeiro Viscardi A capital controversa o espectro das lutas internas na elite governante mineira, que se polarizou
em duas posições, numa controvérsia só resolvida depois de superados os
conflitos entre os grupos em disputa.
17. > Há variadas formas de se refletir sobre debate na imprensa tornou-se tão acirrado a ponto de A disputa se tornou cada vez mais ferrenha. Ouro Preto havia crescido em função das benesses do Estado, que
a construção da nova capital de Minas Gerais, e serem proibidas transcrições de quaisquer notícias ameaçou partir para a luta armada contra os “sindicatos investira muito em seu sistema viário. Em um meeting
inúmeros pesquisadores preocuparam-se em prestar d”O Pharol nos jornais ouro-pretanos. de Juiz de Fora”.4 Por sua vez, os líderes políticos de que reuniu 800 pessoas, um padre ouro-pretano propôs
sua contribuição ao tema. A mudança de uma capital Juiz de Fora ameaçaram separar a cidade de Minas, que não se consumisse mais cerveja na cidade, uma vez
é sempre uma decisão política que, por assim ser, A imprensa de Juiz de Fora, em sua campanha por juntando-a ao Rio de Janeiro ou ao Espírito Santo, que toda ela provinha das fábricas de Juiz de Fora. Só
implica valores, crenças, novas expectativas, interesses sediar a capital no município, alegava ser a região garantindo seu acesso ao mar. Desafiou Ouro Preto a esse boicote poderia fragilizar aquela “cidade de vícios”.
e necessidades reais ou presumidas. Ao mesmo econômica e culturalmente a mais desenvolvida de viver a suas próprias custas e não apenas do dinheiro O Pharol dirigia diariamente críticas aos governadores
tempo, envolve diferentes atores, a exemplo de seus Minas Gerais. Afirmava encontrar-se próxima ao Rio do café produzido pela Zona da Mata. Ao mesmo de Estado por estarem investindo às pressas na
idealizadores, construtores, futuros residentes, defensores de Janeiro, para onde escoava a principal riqueza do tempo, propôs que a decisão fosse tomada no Congresso industrialização de Ouro Preto, para que a mudança
e opositores à sua construção. Estado, o café, e de onde provinham as manifestações Constituinte. Para isso, mobilizou-se pela eleição de não ocorresse.
culturais. Afastar a capital do litoral seria condenar representantes comprometidos com o mudancismo, sem
Especificamente no caso da “Cidade de Minas”, cujo Minas à escuridão e ao atraso econômico. Só se que tivesse obtido o êxito desejado. O Jornal de Minas Como se pode perceber, o debate na imprensa opunha
projeto foi intensamente debatido e disputado voto a justificaria uma capital construída no Centro – alegavam apresentava a proposta de uma nova capital como um dois grupos de valores estereotipados. De um lado, Juiz
voto, destaca-se a existência de vencedores e vencidos. os juizforanos – em Estados em que a densidade vírus peçonhento de corrupção de costumes a absorver a de Fora, uma cidade que se via moderna, industrializada
É impossível dar conta de tudo isso nos limites de um populacional e o desenvolvimento fossem eqüitativos. seiva nacional. e economicamente avançada. Mas era vista pelos seus
artigo. Assim sendo, propomo-nos a contribuir com as Não era este o caso de Minas Gerais. Nesse projeto, oponentes como rebelde e viciada. De outro, Ouro Preto,
reflexões já produzidas, a partir de três perspectivas. seria reservado a Ouro Preto um papel de centralizador A luta entre interesses políticos assumia caráter claro. que se percebia como um lídimo representante do
A primeira, enfocando o árduo debate travado na da cultura – uma nova Coimbra – e a Juiz de Fora, o As críticas que partiam d”O Pharol eram dirigidas contra Estado de Minas, por ser uma cidade culta e tradicional.
imprensa de Juiz de Fora e de Ouro Preto sobre o tema. papel de pólo político e econômico. Cesário Alvim, João Pinheiro, Augusto de Lima e Bias Mas o grupo oponente a via como suja, mal-cheirosa
A segunda, propondo uma síntese de alguns trabalhos Fortes, tidos como lídimos representantes dos interesses e empobrecida. O grupo ouro-pretano inventava-se na
anteriormente realizados. A terceira por meio de uma Aos poucos, o debate jornalístico ganhou as ruas. Alguns de Ouro Preto. Acusava-os, primeiro, de obstaculizarem tradição. O juiz-forano, na modernidade.
leitura alternativa dos grupos em luta, a partir da análise meetings foram realizados em Juiz de Fora e Ouro a mudança; segundo, de transferirem a capital com base
da composição política e regional das comissões criadas Preto, a favor e contra a mudança, respectivamente. O em critérios de interesse exclusivamente pessoal.
para a deliberação da proposta.1 deputado Alexandre Stockler, representante da Zona da Historiografia da mudança
Mata, chamou a si a responsabilidade de centralizar as O Pharol, sucessivas vezes, acusou a classe política de
pressões pela mudança, chegando a reunir um abaixo- estar adquirindo terrenos na região em que hoje está A transferência da capital de Ouro Preto não era
Palco de debates assinado com dez mil assinaturas, provindas de várias Belo Horizonte antes de a decisão ser tomada, visando a uma idéia nova. Há notícias da ocorrência de
regiões do Estado.3 ganhos futuros com a especulação imobiliária. Afirmava- inúmeras propostas ao longo dos anos.5 No entanto,
As pressões para a mudança da capital se iniciaram se que muitos bancos, inclusive de outros Estados, que as significativas transformações ocorridas após a
no ano de 1890 por meio da imprensa. A campanha As disputas extravasaram as fronteiras mineiras. tinham interesse em operar em Minas Gerais, bem como proclamação da República provocaram o ressurgimento
começou em Juiz de Fora, no seu principal jornal, O Representações de Juiz de Fora foram enviadas ao proprietários de fábricas e políticos, haviam adquirido da questão mudancista.
Pharol. Aos poucos, outros jornais foram se posicionando Congresso e Executivo federais, solicitando a mudança. terrenos na região, aguardando por sua posterior
a respeito do tema. A maior oposição à idéia vinha do Representantes de Ouro Preto pressionaram Deodoro valorização. O deputado Bernardino de Lima foi acusado Pode-se dividir a produção sobre o tema em dois grandes
Jornal de Minas, de Ouro Preto.2 – então presidente da República – para que a lei que de ter obtido uma concessão de extensão de via férrea grupos. Um que destaca as bases políticas e regionais da
autorizava mudanças de capitais fosse cancelada. até o local indicado para a nova capital. disputa entre mudancistas e não mudancistas. Para este
De várias cidades provinham artigos, transcritos n’O Líderes de Juiz de Fora solicitaram intervenção federal grupo, a opção pela construção da nova capital resultou
Pharol, que apoiavam a transferência da capital, no Estado. Reuniões ocorriam entre mineiros residentes Do Jornal de Minas partiam críticas à mudança, em vencedores e vencidos. Outro que entende tal escolha
chegando a propor que a decisão fosse tomada por no Rio de Janeiro e São Paulo para discutir a questão. alegando que Ouro Preto reunia muitas estradas de ferro como motivada por um esforço, bem ou mal-sucedido, de
meio de um plebiscito. O Jornal de Minas respondia A imprensa nacional destacou vários momentos dessas e cumpria bem o seu papel de capital do Estado. Quanto conciliação entre as diferentes regiões mineiras, com o fim
defendendo a permanência da capital em Ouro Preto. O divergências. ao “Pantanal às margens do Paraibuna” (Juiz de Fora), de conferir alguma unidade ao Estado.
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18. Quadro do 1º Congresso do Estado de Minas Gerais, 1891. Photografia Americana. Cortesia da Assembléia Legislativa de Minas Gerais.
O trabalho de Hélio Lobo6 destaca-se como uma O trabalho de Moema Siqueira9 reforça a tese de que o
das primeiras referências à existência de dois grupos grupo mudancista era representado pela ala republicana
distintos no Estado, após a indicação de Cesário progressista do Estado e os anti-mudancistas eram
Alvim para a presidência de Minas Gerais,7 feita por reacionários e conservadores. Grupos que, segundo
Deodoro: o dos alvinistas e o dos dissidentes. O grupo a autora, se faziam porta-vozes de uma cultura
dissidente, ao fazer oposição a Cesário Alvim no Estado urbano-industrial em oposição a uma de caráter mais
e a Deodoro em âmbito nacional, propunha a retirada tradicional. Sua contribuição em relação ao clássico
da capital de Ouro Preto como uma estratégia para trabalho de Afonso Arinos se deu no sentido de
conseguir maior número de cadeiras no Congresso contestar a base regional dos grupos (anti-mudancistas
Estadual Constituinte. Ao mesmo tempo, tentava concentrados no Centro e mudancistas na Zona da Mata
garantir hegemonia política e econômica para a região e no Sul). Ela aponta para a existência de conservadores
agroexportadora, na qual seus representantes mais e progressistas em bases regionais difusas.
destacados se concentravam. Por essa razão, segundo
o autor, Juiz de Fora teria sido a primeira cidade a Para Vera Cardoso Silva,10 a escolha da capital
desfraldar a bandeira da mudança da capital após a também resultou de lutas inter-regionais. O elemento
proclamação da República, tendo como porta-voz seu novo introduzido pela autora foi a ruptura da aliança
principal jornal, O Pharol, na edição de 30 de setembro entre a Zona da Mata e o Sul de Minas, que, unidos
de 1890. Em seguida, o jornal atuaria fortemente em na luta mudancista, separaram-se na segunda fase da
prol do projeto mudancista, fomentando a organização discussão, a da escolha do local. Na ocasião, o Sul teria
de meetings que, por sua vez, eram respondidos se unido à região central, contra a Zona da Mata. A
com outros, organizados pela imprensa ouro-pretana, escolha da região do Curral del Rei teria se constituído
conforme visto anteriormente. em meia vitória para os interessados.
Da mesma forma, Afonso Arinos de Mello Franco 8
explica o ressurgimento da proposta de mudança Conciliação de interesses
relacionando-a às disputas políticas e à diferenciação
econômica no interior de Minas Gerais, ocorridas ao Entre os trabalhos que realçam o caráter conciliador
final do século XIX. A Zona da Mata, capitaneada por da escolha desse local, destaca-se o artigo de
Juiz de Fora, pretendia sediar a nova capital e teria Efigênia Resende.11 Por meio de consulta aos Anais
se unido ao sul de Minas para defender interesses do Congresso Constituinte Mineiro e das mensagens
comuns, uma vez que ambas as regiões eram presidenciais, a autora procurou enfocar com prioridade
cafeicultoras. A região central, após a decadência o papel de Afonso Pena no processo. Conclui que Pena,
da mineração, não tinha mais fôlego para manter a na condição de senador constituinte da região centro-
capital. Na visão de Arinos, a divergência expressava norte de Minas, opunha-se ao projeto mudancista.
diferentes interesses entre regiões economicamente Tão logo assumiu a presidência do Estado, envidou
dominantes e outras decadentes. Ao mesmo tempo, consideráveis esforços em prol da construção da
revelava um conflito político entre republicanos nova capital. Por essa razão, a criação da futura Belo
históricos (concentrados nas regiões cafeicultoras) e Horizonte teria resultado do interesse do Executivo
adesistas e monarquistas (concentrados em outras estadual, ocupado na ocasião por Pena, que soube
regiões do Estado). administrar e conciliar os inúmeros conflitos existentes.
32 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Dossiê
19. Somando-se à mesma perspectiva, alguns autores conservadores. Afonso Pena expressaria bem esse
reforçam o caráter conciliador da proposta, na medida consenso, por ser portador de uma fleuma moderna
em que ela resolveria os problemas derivados das e de um passado monarquista e conservador. Para o
diversidades econômicas e políticas do Estado. Este é o autor, não obstante o caráter conciliatório da escolha
caso de Paul Singer,12 que destacou o caráter centrífugo de Belo Horizonte, houve um grupo derrotado, o dos
da economia mineira, dividida em pólos autônomos com republicanos históricos.
interesses voltados para fora do Estado. A construção de
uma capital no centro geográfico, que se diferenciasse Para Helena Bomeny,16 a criação da nova capital
de Ouro Preto, ou seja, que refletisse com mais expressava uma idéia de síntese, concebida como
fidedignidade os novos valores e crenças dominantes uma resposta às antinomias e aos conflitos resultantes
em uma época de mudanças intensas, poderia atenuar da diversidade de povoamento, interesses e influências
os arroubos separatistas com os quais o Estado do Estado. A capital surgia com o fim de conferir a
permanentemente convivia, promovendo a sonhada Minas uma identidade própria. Em que pesem as
integração entre as Minas e as Gerais. intenções de seus formuladores, segundo a autora,
o projeto de construção de Belo Horizonte não
Jonh Wirth, caminhando na direção apontada por atendeu aos objetivos de se criar uma metrópole
Singer, afirma que a idéia da criação de uma nova moderna para Minas, na medida em que foram para
capital expressava anseios de conferir a Minas uma lá transplantados os laços pessoais, os vínculos
certa unidade política que não existia em sua economia. familiares dos redutos rurais e as redes políticas de
preservação do poder.
O fato de Minas não ser uma unidade econômica
coerente derivava de suas origens no século XVIII, como Pouco se fala, nesses trabalhos, acerca de um tema
conveniência administrativa à metrópole. Todavia, desde encoberto pelas discussões da proposta mudancista e
Tiradentes, o ideal de unificação e de tentar tornar a a ela diretamente relacionado. Trata-se da questão dos
unidade política mais viável economicamente era um limites da autonomia dos municípios e da distribuição
legado importante da cultura política do Estado. Esse das rendas municipais. Políticos oriundos de regiões
ideal estimulou a fundação de Belo Horizonte em 1897.13 economicamente mais dinâmicas tinham interesse na
ampliação de sua autonomia, de modo a reter seus
Peter Blasenheim,14 tal como Resende, concluiu que a excedentes em sua região de origem. Na ausência de
escolha de Belo Horizonte teve a marca da conciliação. autonomia, restava a eles a luta por sediar a capital.
As regiões da Mata e do Sul tiveram ganhos ao Já políticos de regiões não tão dinâmicas, na ocasião,
Carlos Oswald (Rio de Janeiro, 1882 – Petrópolis, 1971). 13 de dezembro de 1893.
esvaziarem o poder do Centro, retirando a capital de tendiam a impor obstáculos à proposta, com o fim de Óleo sobre tela, s/d, 80 x 89,7 cm. Acervo Museu Mineiro, Coleção Credireal (ACR 0061).
A cena mostra a defesa do senador J. Pedro Drummond pela localidade de Belo Horizonte em seção do Congresso Mineiro em Barbacena, 1893.
Ouro Preto. Por sua vez, o Centro teve como recompensa garantir a redistribuição de riquezas por todo o Estado.
a construção de uma nova capital em seu âmbito, Por outro lado, insistiam na permanência da capital
esvaziando politicamente o Sul e a Mata. no Centro.
ações separatistas no Estado. Qualquer oposição à uma decisão política
Iglesias15 destaca que a construção de uma capital O quadro nacional também alimentava as divisões mudança da capital era acompanhada por ameaças
em moldes arquitetônicos bastante modernos acabava internas. A luta entre os projetos deodorista e florianista de separação.17 Como se verá, só após a renúncia A primeira iniciativa concreta em relação à mudança
por atender a ambos os interesses, quais sejam, dividia a elite mineira. Para se contrapor a Deodoro, de Deodoro e de Cesário Alvim é que a proposta de partiu do próprio Cesário Alvim, que tomou a decisão
o dos republicanos progressistas e o dos liberais Floriano incentivava seus correligionários a fomentarem mudança seria aprovada. de construir a nova capital no Morro do Cruzeiro,
34 | Revista do Arquivo Público Mineiro | Dossiê Cláudia Maria Ribeiro Viscardi | A capital controversa | 35
20. bairro de Ouro Preto, o qual seria ligado à velha capital lideranças, que haviam se candidatado pelo Partido Quando o tema foi pautado em plenário, os para a realização de estudos. Segundo Helena Bomeny22
por um viaduto. A proposta chegou a ser entregue a Católico e não se incluíam na chapa oficial do PRM. representantes de outras regiões apresentaram a escolha de Aarão Reis objetivava dar à discussão
um engenheiro para execução. As críticas e pressões emendas propondo a construção da capital em suas um caráter técnico e menos político. Reis era formado
contrárias foram intensas. Em Juiz de Fora um meeting Avaliando-se, com base nos grupos políticos em que bases eleitorais. Alguns chegaram com propostas pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, a mesma de
foi organizado para que a nova capital não fosse o Congresso se dividia, temos, conforme a Tabela 2, a concretas de oferecimento de terrenos, postos à Pereira Passos. Buscaria em sua proposta de trabalho a
construída na própria Ouro Preto. Esse meeting recebeu seguinte composição: um primeiro grupo liderado por disposição do Estado.20 escolha de um local higienizado, ordenado e moderno,
apoio dos clubes republicanos de Minas Gerais e da Cesário Alvim e composto de monarquistas e republicanos segundo padrões franceses, especialmente os de Paris.
imprensa do Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas. de última hora. Concentrados nas regiões economicamente Dando continuidade à estratégia de seu grupo, o
menos dinâmicas do Estado, eram contrários à mudança deputado Gama Cerqueira (dissidente/republicano A comissão técnica terminou seus trabalhos no ano
Numa segunda tentativa de resolver a questão, da capital. Já o segundo grupo era composto por histórico) propôs dividir a votação em duas partes: a seguinte (1893). Para a análise do relatório final da
o governo Augusto de Lima elaborou um decreto propagandistas republicanos e concentravam-se nas primeira relativa à mudança da capital; a segunda a sua mesma, foi formada uma terceira comissão do
transferindo a capital para a região do Rio das Velhas, regiões cafeicultoras. Eram favoráveis à proposta de alocação futura, através de votação secreta. A proposta Congresso composta de sete membros (veja Tabela 5).
onde hoje se localiza Belo Horizonte. Tal ato gerou mudança e disputavam entre si a sede da nova capital. foi aprovada. Em seguida foi designada nova comissão
inúmeros protestos. Não pela mudança, pois a grande O terceiro grupo, por fim, liderado por João Pinheiro, tinha para realizar estudos e apontar propostas de locais. Era O resultado obtido na terceira comissão apontou para
maioria lhe era favorável, mas pelo local, passível de vínculos com o alvinismo e também havia participado da composta por sete membros, sendo três da comissão dois locais, nesta ordem: Várzea do Marçal e Curral del
discussão. Pressionado, em abril de 1891 Augusto de propaganda republicana. Era favorável à construção de anterior, conforme informa a Tabela 4. Rei. Essa decisão impediu que outras propostas fossem
Lima voltou atrás e remeteu o tema para o Congresso uma nova capital para o Estado. examinadas pelo plenário.
Constituinte. A ausência de representação do grupo que defendia
A mudança da capital constituiu-se na pauta mais a proposta do Executivo (liderado por João Pinheiro) Os anti-mudancistas, derrotados, passaram a apoiar
A eleição do Congresso Constituinte Mineiro foi a expressão importante do Congresso Constituinte. A primeira permitiu que propostas de outras cidades-sede pudessem a transferência para Curral del Rei em oposição a Juiz
das lutas internas dominantes no Estado. Apesar da comissão a discutir o tema foi composta conforme ser incluídas. Assim, o trabalho da segunda comissão de Fora e Barbacena, cidades que congregavam os
presença de republicanos históricos no novo governo, as mostra a Tabela 3. Nela, Augusto Clementino da Silva, resultou na indicação de quatro locais: Curral del Rei, dissidentes. Várzea do Marçal foi posta em primeiro
oposições não cessaram, e vários conflitos marcaram a que tinha relações próximas a Augusto de Lima, propôs Paraúna, Barbacena e Várzea do Marçal (região próxima lugar da lista, embora o relatório de Aarão Reis fosse
história de Minas Gerais nesse período. Sucederam-se que a nova capital fosse localizada em ponto central a São João del Rei). A estratégia do grupo contrário à claramente favorável a Curral del Rei.23 Percebe-se
ameaças separatistas por parte da cidade de Campanha, do Estado, no Vale do Rio das Velhas. Tal proposta mudança foi apoiar a proliferação de propostas para que tal prioridade resultou no grande controle que
ao sul de Minas, e de Juiz de Fora, na Zona da Mata. contemplava plenamente os interesses dos republicanos aprofundar as dissidências, atrasando o processo. o Executivo tinha sobre a tramitação desse tema na
históricos ligados a João Pinheiro (Costa Reis, Idelfonso comissão técnica.
Após inúmeras disputas, o Congresso Estadual Alvim e o próprio autor da proposta). Ela foi aprovada Ao ser levada a proposta em plenário, Carlos Alves
Constituinte ficou constituído conforme mostrado por seis dos onze integrantes da comissão.19 (republicano histórico/dissidente) propôs emenda Os debates foram muito intensos. A questão teve que ser
na Tabela 1.18 acrescentando Juiz de Fora, alegando a sua proximidade adiada para uma reunião extraordinária, que só ocorreu
Os seis nomes que aprovaram o projeto mudancista do mar e sua condição de maior cidade de Minas. em 1893, em Barbacena. Lá, os anti-mudancistas
Como se pode observar pela composição do Congresso, eram identificados com o republicanismo histórico. A emenda foi aprovada, e Juiz de Fora passou a fazer tentaram de todas as formas impedir que a decisão
havia uma maioria expressiva das regiões Norte, Sul e Os outros cinco, a exceção de um, com o adesismo ou parte dos estudos.21 fosse tomada. Auxiliados por vários pareceres jurídicos
Centro. A região das Vertentes esteve igualmente bem com o monarquismo. A estratégia escolhida de advogados de renome nacional, como Rui Barbosa
representada. Em função das dissidências anteriores, pelos dissidentes, em minoria, foi a de aderir à e Saldanha Marinho, denunciavam a caducidade da
a Zona da Mata, que reunia o maior número de proposta do grupo de João Pinheiro para garantir a solução técnica proposta de mudança.
dissidentes, ficou sub-representada, principalmente mudança, e com ela o enfraquecimento político do
quando se leva em conta a importância econômica setor mais conservador do alvinismo. Ao mesmo Já à frente do governo de Minas Gerais, Afonso Pena A decisão em transferir o Congresso para Barbacena
daquela região. Dos 12,5% de deputados que a tempo, o tema ainda iria a plenário, podendo nomeou uma comissão técnica chefiada pelo engenheiro justificava-se por torná-lo imune às pressões e
representavam, estavam excluídas as suas principais eventualmente ser modificado. Aarão Reis, com o qual mantinha relações pessoais, por excluir a cidade-sede das opções de escolha.
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