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Baixar para ler offline
Chicos
N. 29 - Janeiro 2011
e-zine de literatura e idéias
de Cataguases – MG
Capa
Gabriel Franco - foto de Vicente Costa
Editores
Emerson Teixeira Cardoso
José Antonio Pereira
Colaboradores desta edição:
Antônio Jaime Soares
Antônio Perin
Francisco Marcelo Cabral
Leonardo Campos
Marcelo Benini
Ronaldo Brito Roque
Ronaldo Cagiano
Wilson Pereira
Fale conosco em:
chicos.cataletras@hotmail.com
Visite-nos em:
http://chicoscataletras.blogspot.com/
Dedim de prosa
Terminamos bem o ano de 2010, com uma edição especial
comemoramos os 80 anos de Chico Cabral.
Já 2011, começamos bastante preocupados. O eleitor paulista, ao
transformar um palhaço em deputado, não esperava que a coisa fosse tão
longe, pelo menos é o que acreditamos. Não é que o deputado palhaço foi
indicado para a Comissão de Educação e Cultura. Parte de nossos políticos,
não satisfeitos em transformar o congresso em um obscuro bazar onde se
compra e se vende de um tudo, pelo menos agora têm um especialista em
picadeiro para virar de vez uma grande feira, isto se não virar uma zebeeme
antes. Assusta-nos como se imbeciliza a passos tão largos as estruturas
públicas do país. Parabéns eleitores do palhaço. Talvez, nós mereçamos o
castigo.
Quem reaparece nesta edição é o poeta Leonardo Campos autor de Alma
de Brinquedo.
Apresentamos a vocês o poeta Marcelo Benini que estréia com o livro: o
capim sobre o coleiro ou tentativas para ausência de chão
Antônio Perin lamenta a queda da casa da Rua Alferes.
Convidamos a todos para uma visita ao Instituto Chica, onde encontra-
se em exposição uma ótima retrospectiva dos 30 anos de carreira do artista
plástico Luiz Lopez. Vale a pena ser vista.
2
Sumário
RONALDO BRITO ROQUE
Será que você também está elegendo seu Tiririca 03
JOSÉ ANTONIO PEREIRA
A fuga 04
RONALDO CAGIANO
A ressurreição de um grande escritor 06
WILSON PEREIRA
Os cavalos in/domados de Luiz Ruffato 07
EMERSON TEIXEIRA CARDOSO
O mundo, a alma e os descaminhos na obra de Leonardo Campos 10
ANTONIO JAIME SOARES
O ocaso nas letras 11
FRANCISCO MARCELO CABRAL
O gato 12
EDUARDO SANGUINETI
Último passeio 13
ANTÔNIO PERIN
A casa morta I 14
LEONARDO DE PAULA CAMPOS
Inerências 15
MARCELO BENINI
Desenvolvi a aptidão do olho..... 16
MIGUEL TORGA
Alguns dados biográficos e alguma poesia 17
3
Ronaldo Brito Roque
Será que você também está
elegendo seu Tiririca
Foi uma supresa quando um
humorista de baixo nível, nem tão engraçado
assim, ganhou as eleições para deputado
federal de São Paulo. Mais surpreendente foi
seu desempenho, pois ele chegou a se eleger
com votos suficientes para levar outros
candidatos do partido à Câmara.
Mais tarde se verificou que o sujeito mal sabe
ler e escrever, e cometeu erros grotescos de
ortografia no exame que a justiça eleitoral o
obrigou a fazer. Mas a decepção não parou por
aí. Ele ainda admitiu ter fraudado um
documento, pois assinou uma declaração de
próprio punho dizendo que sabia ler e
escrever, e depois confessou que sua mulher é
que tinha escrito o texto da declaração. Ora,
não sei se vocês sabem, mas não existe
declaração de próprio punho escrita por um
terceiro. O punho do terceiro não é próprio.
Ou seja, não é o mesmo de quem assina.
Obviamente muitos gostaram disso, e
acreditam piamente que um legislador pode
prescindir da habilidade de ler e escrever. Mas
se você é como eu, e entende que ler e escrever
são o primeiro passo para compreender e
expor idéias. Se você, como eu, sabe que o
cargo de legislador exige mais que a mera
atividade de contar piadas e divertir um
público de semiletrados, então talvez você
tenha ficado indignado com esse
acontecimento. Talvez você esteja pensando
que os brasileiros começaram a perder a
medida com que deve se julgar um legislador
ou um administrador público.
Se você teve essa impressão, então quero
convidá-lo a uma pequena reflexão. Você já
parou para pensar se também não está
elegendo seu próprio Tiririca? A pergunta
pode parecer absurda, mas pense bem:
quando você vai comprar um livro, você
escolhe um escritor que domine o idioma e a
arte da fabulação, ou uma prostituta que narra
suas peripécias sexuais? Quando você vai
contratar um novo funcionário, você dá
preferência àquele jovem inteligente e
dinâmico, mas que fala o que pensa, ou àquela
menina burrinha e lerda, que nunca ousa
discordar de você? Quando seus filhos
demonstram interesse em compreender a
realidade, e lhe fazem perguntas que você não
sabe responder, você admite que não sabe, e
os incentiva a procurar a resposta, ou
simplesmente os manda fazer outra coisa?
Quando você se reúne com os amigos, nos
churrascos de fim de semana, você prefere
aquelas canções bonitas, que falam de
sentimentos humanos autênticos, ou aquelas
que apenas repetem bordões fáceis, às vezes
até insultosos?
A eleição de Tiririca não é um fenômeno
isolado. O brasileiro vem demonstrando
repetidamente preferir o pior ao melhor. As
pessoas que estudam e se dedicam à produção
cultural são freqüentemente humilhadas e
preteridas àqueles que promovem o
divertimento banal, sexual ou zombeteiro. Em
geral o quadro político deriva do
comportamental. Se você se indignou com a
eleição de um palhaço para deputado, um
palhaço que não revelou aptidão nenhuma
para a função que disputava, a melhor forma
de lutar contra isso é agir no seu meio pessoal
e social. Valorize as pessoas que demonstram
capacidade para compreender e expor idéias,
valorize o sujeito que é capaz de lhe explicar
as situações que você vive. Valorize o jovem
que busca se informar e compreender o
mundo, não o humilhe por ele buscar algo que
você mesmo não conquistou. Comece a
valorizar a cultura e a inteligência que estão
mais próximas de você, e logo você as verá
ocupando lugares de destaque na política e na
mídia. Mas se você não valoriza a cultura
dentro do seu próprio círculo social, então
dificilmente a verá ocupando algum lugar de
destaque na sociedade. Os políticos e figuras
públicas não surgem do nada. Assim como a
chuva é resultado da queda de bilhões de
gotas, eles são resultado das escolhas
aparentemente insignificantes de milhões de
indivíduos. Talvez você não possa interromper
a enxurrada, mas pode deixar de descer com
ela. Vamos dar esse primeiro passo, e as
mudanças virão naturalmente.
Ronaldo Brito Roque nascido em
Cataguases reside no Rio de Janeiro RJ
4
José Antonio Pereira
A fuga
Caminhando pela Avenida
Central sobre anêmicas luzes filtradas
pelas árvores, enevoadas pela fria
temperatura de julho. Seguia pela noite.
Não percebia nada em torno de si. Seus
olhos, outrora astutos e penetrantes,
naquela cor de mel acastanhado, eram
agora um triste olhar bovino. Senta-se em
um dos bancos que existem pela calçada.
Ali de costas para o córrego que escorre
paralelo a linha férrea bem no meio da
avenida separando-a em duas pistas.
A respiração ofegante fazia as narinas
inflarem e desinflarem como se fossem
borrachas engolindo bolhas de ar. Pensava
naquela vida inútil se arrastando, um fardo
de fracassos e tristezas. Sentado ali no
banco não conseguia entender
absolutamente nada. Levanta, passa a mão
pelo áspero queixo, dá conta que há dias
não se barbeia.
Atravessa a rua e volta a caminhar sobe
rumo à velha praça, na esquina se mete
pelo bar adentro. Cotovelos no balcão,
senta-se bem no fundo, nem percebe o
cheiro forte que vem dos banheiros à suas
costas. Pede uma aguardente. Lá na frente
aquele clima de falsa euforia de bancários,
que ali estão desde o encerramento do
expediente, o incomoda. Contam dinheiro
o dia todo, mas permanecem tão sem
dinheiro como qualquer outro proletário.
Vangloriam-se de ter espoliado com os
abusivos juros do patrão mais um nanico
que se meteu a ser empresário, desfrutam
um asqueroso prazer em espetá-lo no
serasa e no spc, estes instrumentos de
crucificação do mercado financeiro.
Enojado pede outra dose.
Chamam-lhe a atenção as primeiras
mulheres de aluguel que já iniciaram o
batente. Tão carregadas de maquiagem,
aquelas caras e bocas falseadas por cremes
e cores, borboleteando pelo bar, enfiadas
em saias curtíssimas, botas até os joelhos e
os seios querendo saltar de blusas
extremamente apertadas. Se fosse só a
maquiagem diria que elas saíram de um
oriental teatro kabuqui. Sente por elas
um misto de solidariedade e irmandade na
inutilidade de suas vidas. Todos nós somos
usados e só o percebemos após o descarte.
O vozerio dos caixas e atendentes
bancários o incomoda, por eles, após ter a
raiva amortizada pela cachaça, sente só
pena e uma quase aversão. Já pelos
gerentes de banco não tem jeito, é uma
imensa repugnância. São sórdidos serviçais
dos grandes agiotas, os banqueiros.
As duas doses somadas as outras que
tomara ao longo do dia, turvam um pouco
os pensamentos, mas não embriagam os
sentimentos. Sendo isto o que mais
necessitasse. Duas sensações lhe ocorrem
um empalidecido cinza já de quase
repulsão aos bancários e uma fosca
empatia avermelhada, quase brilho de
desejo pelas mulheres. Elas começam a
tornarem-se as belas e raras ruivas do
cinema lá da sua adolescência.
Era apaixonado por ruivas, nunca as vira
pelas ruas da cidade, as loiras era uma
paixão secundária, mas também muito
intensa. Bardot, Candice Berger...
Decepcionara-se ao descobrir que a
loiríssima Marilyn Monroe pintava suas
madeixas, mas Marilyn era Marilyn.
5
José Antonio Pereira
Lembra-se que depois de muita bebida já a
teve cantando Je t'aime naquele tom
sussurrado num belo vestido negro inflado
por ventos imaginários.
Noutra ocasião, completamente
embriagado, embarcava numa aventura
ferroviária pela Europa num vagão a sós,
ora com Candice ora com Brigite e La vie
em rose na voz de Piaf ao fundo.
Noites e mais noites de sexo solitário com
tantas musas cinematográficas.
Arrepia-se com as baionetas da ditadura,
fálicos instrumentos de perseguição aos
que por apenas pensar diferente eram
massacrados. Barricadas em Paris
sacudiam sua inércia, na voz de Janis
Joplin viajava de Mercedes Benz por
estradas de poeira multicolorida num
quase delirium tremens.
Liberdade, palavra imantadora de desejos,
fugas alucinadas, viagens e mais viagens
regadas a álcool turbinadas por Blow in the
win e Summertimes.
Encontrara na poesia onde em redemoinho
liquidificar tudo isto. Nunca terminara um
poema. Todos foram para o lixo
inconclusos.
Conhecera Lia. Via nela novos rumos até
quem sabe um prumo. Lia foi-se com um
bacharel.
As taxas de juros recitadas pelos bancários,
num tom de leiloeiro de quermesse, o traz
a tona. Pede outra aguardente, a última,
senão sente que irá a lona. Olham-no com
desdém, ele percebe nos contadores de
dinheiro alheio repulsa pela sua presença.
Acham-se membros de uma casta superior
e ele um pária invadindo um espaço que
não lhe pertence.
Tudo dera errado.
Nessa hora o cérebro contraía de raiva
nessa contração nada sentia, tornava-se
um autômato, quando o ódio em sentido
contrário expandia a massa cinzenta
pressionando-a contra o crânio a dor era
violenta, era o ódio a todos aqueles que o
levaram àquela situação. Já não enxergava
individualmente seus algozes, todos
adquiriram uma expressão única. Era
aquela igualdade torpe, ali unificada num
sorriso medíocre, um prazer mórbido em
ver alguém destruído. Eles conseguiram.
O coração acelerava a intensidade das
emoções. O corpo aquecia, brotando
suores por todos os poros. Era gelado, tão
gelado que se sentia como mergulhado
num mundo só de nitrogênio líquido.
Pediu a conta. Pagou e saiu.
Caminhou por horas e horas dentro da
noite, não havia mais ninguém pelas ruas.
Tudo era dor, os pés, os músculos, que
mesmo com tanto álcool, continuavam
tensionados. Sentou-se no banco de uma
praçinha morta, o cansaço e a dor
venceram. Acendeu um cigarro, tragou–o
profunda e demoradamente. Arregalou os
olhos rumo à imensidão silenciosa do céu
sem lua. Surgiu uma bela estrela no meio
do céu. Pensou que sempre no meio da
dor brota um ato poético, começava a
sentir um fio de esperança. Lembrou-se da
promessa ao acordar naquele dia.
Desistiu da esperança.
Mais um longo trago, viu a brasa do cigarro
vagalumear no meio da noite. A vertigem
da tragada deu-lhe coragem.
Com o disparo de um relâmpago a estrela
oscilou, uma dor em alta voltagem
explodiu no peito, ele se esticou e
endureceu. Uma pacífica calmaria soprada
por uma brisa acalentou seu corpo. Seus
pensamentos eram uma bola formada por
minúsculas luzes matizadas por infinitas
cores.
Ele agora ouvia e via tudo. Não havia mais
dor. Via seu corpo ali no banco, a boca
tinha um sorriso doce, o semblante era
pura ternura. Tudo era claro. Nem a poesia
o libertara. Viu a cidade despertar e partiu
rumo ao breu da noite.
José Antonio Pereira – Cataguases MG
6
Ronaldo Cagiano
A ressureição de um grande escritor
A editora LetraSelvagem, de
Taubaté, por iniciativa de seu editor,
Nicodemos Sena relançou, recentemente,
em São Paulo, o romance “Deus de
Caim”, do matogrossense Ricardo
Guilherme Dicke, obra que foi um dos
vencedores do concorrido Prêmio
Walmap (1967) e foi saudado por Jorge
Amado, Guimarães Rosa e Antonio
Olinto, integrantes do júri, como uma
revelação e um marco na literatura
brasileira.
Deus de Caim surge num momento de
transição: política, das artes, da moral,
dos costumes, da linguagem. Vivíamos
uma época de rápido escalonamento de
valores, em direção a uma suposta
modernidade em todos os sentidos.
A ficção ainda vinha de um experiência
estética bastante canônica, ainda muito
fortes os ecos do modernismo na poesia.
Mas a prosa ainda caminhava para
descolar-se dos modelos machadianos ou
do realismo naturalismo, quando
primeiro surgiu o tufão chamado “Grande
sertão: veredas”. Uma década depois,
Deus de Caim emerge como um furacão
estético.
Em Pasmoso, cidade criada pelo autor, a
partir de sua habilidosa capacidade de
recuperar a mitologia popular ou o
inconsciente coletivo – como uma
Macondo ou uma Komala, ou uma
Yoknapatawpha, a exemplo de García
Márquez, Rulfo ou Faulkner, que
espelhou as experiências de um mundo
arcaico e burguês - esboçam-se os
conflitos da família Amarante, de amor
entre Lázaro e Minira, interditado pelo
seu irmão Jônatas, por meio de sedução e
tentativa de estupro, constituem-se no
ponto de partida de uma tensão que vai
perpassar todo o livro e que são o núcleo
central do romance.
A partir desse fato e seus
desdobramentos é que se instaura uma
profunda discussão sobre o homem,
sobre o amor, sobre a traição, sobre o
poder, sobre interesses escusos e difusos,
como o desejo de apropriação do outro
(que na verdade soa como uma metáfora
da apropriação da terra, num momento
em que o tema da reforma agrária era um
tabu).
Muitos acontecimentos se intercalam, ou
interpenetram, nesse romance, como
alegoria ou como recurso da
intertextualidade, como no caso dos
embates filosóficos travados entre os
personagens Grego e Cirillo Serra sobre o
mundo, sobre a verdade, sobre a religião
e a cultura, assim como Isidoro, ao
discorrer sobre música e poesia.
Essa faceta do romance também
exterioriza o diálogo que Dicke
estabelece com outros gêneros e reflete a
sua preocupação existencial e sua relação
muito íntima com a Filosofia, as artes e o
pensamento culto, uma vez que ele foi
filósofo, professor , tradutor e pintor, e é
também como pintor, que reverberam
sua visão impressionista desse mundo
interiorano, atrasado, resistente às
mudanças, característica de um país até
então confinado a uma cultura e a uma
economia agrárias e estigmatizada por
totens, tabus e mitos que sustentam a
vida e a memória do homem comum e do
homem que controla política, ideológica
e religiosamente a vida das pessoas,
como os velhos coronéis do passado.
Deus de Caim, ao fazer uma releitura do
mito bíblico, na verdade está fazendo
uma incursão na atualidade, porque o
mundo não mudou, apesar da tecnologia,
do avanço das comunicações e das
ciências, do desenvolvimento material e
econômico das pessoas e das nações. Os
mesmos conflitos, dramas; as mesmas
questões, dissensões; os mesmos
dilemas, controvérsias e polêmicas –
estão aí – ambição, incesto, mentira,
roubo, morte, usurpação, esbulho da
terra – estão aí, desde a fundação do
mundo, desde que Adão e Eva,
experimentaram do fruto proibido, e
levantaram guarda para viver o próprio
caminho, atraindo o que na lógica cristã
seria chamado de maldição. De Adão e
Eva até Abel e Caim, o grande dilema
existencial é a luta pelo poder e contra a
morte; seja o poder do que quer roubar o
amor de outrem; seja o poder arbitrário
dos que detém o controle político e
financeiro de um país; seja o poder de
decidir, obrigar e impor sanções, sem
defesa (como dos ditadores), seja o poder
intrínseco, que o desejo de ambicionar o
poder maior, que é o poder demiúrgico
de um mestre (que pode ser Deus ou o
diabo) e que, na verdade, deságua numa
única e instintiva necessidade: a de
perpetrar-se, l e para isso, vencer o
tempo, despistar a morte e, se possível,
vencê-la, custe o que custar.
Com Deus de Caim, Dicke cutuca as férias
da humanidade, que estão abertas até
hoje, desde a fundação do mundo. E seu
processo criativo contempla o caos, e
esse caos se reflete nas histórias repletas
de cizânia e perigo, mas prioritariamente
numa linguagem vigorosa, densa, que
não deixa o leitor sair indiferente, que
nada atenua, senão repercute a violência
a violência que atravessa os séculos, sem
estereótipos, calcada numa impactante
revelação, que é resultado ou espelho da
própria desordem mental e intelectual do
próprio homem.
O elo entre o passado genético da
humanidade e a modernidade
tumultuada em que vivemos – homens,
governo e mundo – mereceu em Dicke
uma releitura surreal, não como fantasia
pura e simples de uma historieta de
sertão, mas como recurso para entender-
se a loucura individual e coletiva e, acima
de tudo, mostrar que o real supera a si
mesmo, que é necessária as tintas da
ficção pelo viés do absurdo para poder
entender esse intricado e violento
sistema que é a vida, aquela que,
segundo Guimarães Rosa, é perigoso
viver.
Ronaldo Cagiano nascido em
Cataguases reside em São Paulo SP
7
Wilson Pereira
Os cavalos in/domados de Luiz Ruffato
Eles eram muitos cavalos, de Luiz
Ruffato, é um livro surpreendente. Mais; é
um romance terrível, instigante, envolvente.
Surpreendente pela sua inusitada
estruturação, que como muito bem anota o
escritor Sérgio Sant’Anna, na orelha do
volume, funde “as melhores virtualidades do
conto e do romance. Uma obra com o olhar
abrangente e romanesco sobre uma
diversidade de cenas e personagens
interligados e, ao mesmo tempo, em seus
episódios, o impacto do gênero conto, com a
elaboração de uma linguagem condensada
que aproxima o conto mais moderno,cheio de
invenção, da poesia”.
De certo. Luiz Ruffato não é o primeiro
escritor a romper com a estrutura tradicional
do romance, aquele com inicio, meio e fim,
com a trama evoluindo num clima de tensão
para um clímax e desfecho, como ensinavam
os compêndios de literatura. Já vem de
algum tempo a tendência para um novo
modelo de narrativa, fugindo ao velho
esquema, sobretudo o da oposição entre
protagonista e antagonista, que se intrigavam
em disputa por um amor ou por terras ou por
poder. Até mesmo a velha questão
maniqueísta da disputa entre o bem e o mal
parece não dar mais o tom de contos, novelas
e romances, pelo menos nos moldes de
outrora.
Mas o que realmente surpreende e
constitui uma saudável inovação neste livro
do Ruffato é que os personagens entram e
saem de cena rapidamente e uma única vez.
Mesmo que aparentemente não tenham
relação uns com os outros, estão, sim,
interligados por um fio tênue, quase
indizível, mas que os alinhava num painel
humano, social e, sobretudo, dramático. Os
diversos episódios, vão se sucedendo, como
pequenos relatos, numa espécie de
minicontos /, mas, ao mesmo tempo, vão
compondo um to(l)do narrativo
multifacetado, em que partes tecem a
realidade dramática geral, feita de ações (e
suas consequências) , de intenções e tensões,
de angustias, pressões (sociais) e depressões
individuais.
Essa teia em cujos fios andam, vivem,
convivem, sobrevivem ou subvivem, sofrem,
amam, desamam-se, agridem-se..., teia em
que uns se tornam presas fáceis, outros
aprendem artimanhas e destilam venenos,
mas onde há também vida pulsando nas vias
urbanas, nas veias humanas, onde há
lampejos de solidariedade, de bondade e de
poesia, essa imensa teia que se chama
cidade, megalópole... Tanto que Sérgio
Sant’Anna afirma: “Tomado em seu todo, se
poderia dizer que a personagem principal de
(...) Cavalos é a cidade de São Paulo, como se
contempla do mais alto de seus edifícios ou
do avião que se aproxima à noite, dos
aeroportos de Congonhas ou Cumbica”.
Ah! Como deveria ser inocente,
provinciana, a Paulicéia Desvairada, de
Mário de Andrade, diante da São Paulo
atual, retratada por Ruffato, mas que em
muitos aspectos já incomodava o poeta
modernista que, aliás, já denunciava em
seus poemas o risco da perda da
individualidade, além de injustiça social, de
preconceitos, pois ele já anteviu, ou viu
mesmo naquela época, a cidade como
engrenagem a triturar as pessoas. O livro
de Ruffato bem que poderia trazer epígrafe
de Mário de Andrade, pois certamente há
parentesco entre as duas obras. Nesse
sentido merecem menção os seguintes
versos; “Giram homens fracos, baixos,
magros... / Serpentinas de entes frementes
8
Wilson Pereira
a se desenrolar... / Estes homens de São
Paulo. Todos iguais e desiguais / Quando
vivem dentro dos meus olhos tão ricos /
Parecem uns macacos, uns macacos” do
poema Cortejos, Paulicéia Desvairada.
Possivelmente Luiz Ruffato não tenha se
lembrado disso, nem se inspirado nas
preocupações de Mário de Andrade com o
burburinho e as peripécias do cotidiano da
capital paulista nos idos de 1920. E, claro,
não se pode comparar a vida frenética, o
ritmo alucinado e, às vezes, caótico dos dias
atuais com aqueles em que os iconoclastas
modernistas viveram, quando ainda não
fervilhava nas ruas de São Paulo a multidão
de pessoas, nem circulavam pelas ruas e
avenidas a avalanche de automóveis. Nem
os problemas de hoje se espelham nos
daquele tempo, quando certamente não
havia as filas quilométricas por emprego, os
assaltos e seqüestros, o tráfico de drogas, o
sexo anunciado como mercadoria nos
jornais e na Internet. Fica, porém, a
lembrança da afinidade entre os dois textos,
e se houve alguma intencionalidade do autor
de Eles eram muitos cavalos, não significa
demérito, mas, antes, busca e realização de
um projeto literário, digamos de um projeto
narrativo-poético rico e afinado com obras
de primeira grandeza da literatura nacional.
Assim é que, ao evocar o extraordinário
poema de Cecília Meirelles (“Romance
LXXXIV OU DOS CAVALOS DA
INCONFIDÊNCIA”, do livro Romanceiro da
Inconfidência), do qual toma emprestado o
verso do título, o autor enuncia, de saída,
seu projeto de um texto plurissignificativo,
feito de alusões, de conotações, de
sugestões, portanto de múltiplas
possibilidades interpretativas.
Respaldado nessas possibilidades de
interpretação, sem, no entanto, a pretensão
de contestar Sérgio Sant’Anna, ocorre-me
que o personagem principal pode (também)
ser o próprio narrador, que aparece pouco
explicitado ( eu narrador e eu narrado) em
poucos episódios. E levanto essa hipótese
por pensar que ninguém narra fatos dessa
ordem (poderia dizer: ninguém escreve um
livro desses, mas não se deve confundir –
manda a boa cartilha crítica – o narrador
com o autor) e sai incólume, imparcial, sem
sangrar sua sensibilidade, e mesmo sua dor
parceira, nas tintas das páginas. Por isso, o
emprego do adjetivo “terrível”. A escolha
das cenas e dos cenários, a apropriação
desse universo íntimo do individuo e,
simultaneamente, coletivo, social, urbano,
já entremostra o desafio do narrador de se
entranhar nos sentimentos e emoções de
suas criaturas, de revirar-lhes o avesso, de
percorrer seus labirintos psíquicos. Além da
escolha, há forma de narrar, elíptica, densa,
tensa e intensa, a denotar o envolvimento
do autor, que extrai de cada episódio a
carga mais dramática ( e traumática), numa
linguagem apropriada propositadamente a
esse objetivo.
E, se procede essa minha leitura,
confirma-a o texto intitulado “Noite” (p131),
em que o narrador, em priemeira pessoa,
embora nomeado Humberto, se coloca
como sujeito da ação e acaba por confessar
sua impotência diante da realidade
(sugerida) que o atormenta: “(... não vai
passar nunca esse mal-estar, nunca essa
sensação de inutilidade, Marin!, Marina!, e
sigo sussurando, suspirando o hálito
suocante da gasolina.)”
Envolvente, ainda, porque o leitor, pelo
princípio da intersubjetividade artística, se
vê preso ao emaranhado teor das situações,
que são, na verdade, conhecidas suas,
alguns por experimentá-las na própria pele,
outros por assistirem a elas, a olho nu no
corre-corre das ruas, ou nas telas da TV ou
por as lerem nas páginas dos jornais.
Instigante, o outro adjetivo suscitado,
porque o autor vai aproximando os atores
nessa rede de intrigas, como se estivesse
fazendo uma reportagem ao vivo, trazendo
o foco do alto, da distância (o romance
começa
9
Wilson Pereira
com a visão panorâmica, de quem olha a
cidade de cima, quando o avião se aproxima
para o pouso) pra fixá-lo depois no chão
áspero do cotidiano até jogá-lo dentro dos
olhos de cada ser abordado e, por extensão,
dentro da consciência do leitor. Instigante,
por fim, porque o livro é um convite à
reflexão crítica e a sensibilidade artística,
além da humana. Ou pelo menos um convite
à busca de entendimento da linha frágil que
costura as relações humanas e sociais destes
dias atribulados, especialmente nas grandes
cidades.
Mas, resta indagar: se o romance expõe,
numa espécie de reportagem, fatos que, por
mais cruéis que possam parecer, se
tronaram corriqueiros, como atestar, então,
o seu poder de fascínio, a sua vibrante
energia literária, que prende a atenção do
leitor e o sacode, com sua carga lírico-
dramática, da inércia e da indiferença? A
resposta é que isso só é possível aos bons
escritores, que sabem transformar matéria
bruta em arte. Machado de Assis, por
exemplo, não transformou o batido e
ancestral tema do ciúme num dos romances
mais geniais da literatura universal, o D.
Casmurro?
Luiz Ruffato procede assim, pois não
apenas narra, mas imprime aos fatos uma
visão – e uma versão – sutil e pungente,
sugerindo, insinuando, novas e intrincadas
realidades. O citado texto “Noite” bem que
pode ser tomado como síntese da proposta
do livro: “entreolho-a por sobre as páginas
do Estado de São Paulo: (sugestão de um
entre/olhar que vê, cria, mostra, nas
entrelinhas, uma supra-realidade, além da
mera realidade expostas nas bancas de
jornal).” E prossegue: “e ela come
estupidamente, metafisicamente (...)” (a
junção dos dois advérbios é bastante
sintomática).
Todo o arcabouço tra(u)mático do
romance vem à tona com o corte preciso da
linguagem, matéria-prima da literatura, que
se constrói ali, a propósito, com metáforas,
metonímias, elipses, interrupções, num
ritmo adequado ao conteúdo, às vezes
acelarado,em galopes, às vezes sôfrego,
entrecortado, mas sempre domado pela
mão sábia de quem domina as rédeas desses
cavalos. E eles eram muitos cavalos.
Wilson Pereira – Brasília DF
10
Emerson Teixeira Cardoso
O mundo, a alma e os descaminhos
na poesia de Leonardo Campos
Quando você não tiver passarinho
pra tratar, experimente ler o livro Alma de
Brinquedo de Leonardo de Paula Campos.
Nesse livro está a alma de um poeta
singularíssimo. Sou capaz de apostar que
ele satisfará todas as suas necessidades de
poesia: as possíveis e as impossíveis
também. Porque o poeta nos diz ali, que
“sonhar o impossível é um bem da poesia” e
que tudo não se esgota nas possibilidades
terrenas.
Vai mais longe ao dizer, que melhores
ainda “são os sonhos que não se
concretizam” porque estes habitarão o
mundo da imaginação. Já finalizando na
sua preleção, convida-nos a nos conhecer no
“espelho das letras” que realizamos unindo
a imaginação do autor a nossa e vice-versa.
Eu acabei concordando com tudo que
ele disse, nos preparando, como ele fez,
para as possibilidades do seu sonho que vai
começando com este Triste Início - “A noite
escolta inocente a desgraça humana” e as
estrelas perdem seus valores.”
Passa por: Renata caminha nas estrelas
Todo tempo é pouco
Quando em meio ao tempo tento refletir
Que a paisagem mais bonita é o rosto.
Ela é viva; ela pode sorrir.
Na noite pairam flores no asfalto,
precipitam-se do céu – do seu auto.
E mais que despedida, que na sua ida,
Você deixou todas as estrelas.
e era só uma menina.....
E o algodão
Ela tomou do pé o algodão,
arrancou aquelas sementes
e veio até a mim
meio displicente, consciente, voluntária
observou-me pediu a aliança
e então, a poliu.
Mais intimamente com os olhos
Do que com o algodão de suas mãos.
Ou nessa estrofe do poema Alheia
É que se insinua aí a canção da morte?
Pois da cova profunda do seu olho,
avoluma-se um vento torpe
como a seca bebe um poço [...]
Campos às vezes parece coincidir com
Álvares de Azevedo, que com certeza leu, o
poeta que segundo um crítico arguto trouxe
Poe à paulicéia, que no seu caso é Minas,
mais cervantina que camoniana – a benção,
Pedro Nava – com seus crepúsculos
sangrentos. Muito se teria que dizer deste
poeta o que certamente ainda se fará no
futuro. Pelo menos é o que me parece ou
então muito me engano.
É que vieram aqui os corvos,
(guardiães da noite)
Precipitaram-me reminiscências
dos mortos
ao tom de graças e açoites...
Por que não dizer que a si se aplicam as
mesmas palavras do Sr Legrandin ao
memorialista infante em O Caminho de
Swann: “Tens uma bela alma, de qualidade
rara, uma natureza de artista. Não a deixe
em falta do que é preciso.”
Lendo Alma de Brinquedo de Leonardo de
Paula Campos pensei ver desenhar-se muito
depressa na minha imaginação o perfil de
sua alma meiga habitante do corpo de um
genuíno poeta. Daí eu pensar que é sorte
nossa que tantos valores culturais
mantenham-se vivos e a tão cantada
vocação artística desta cidade, enfim, ainda
se justifica.
Emerson Teixeira Cardoso – Cataguases MG
11
Antonio Jaime
O ocaso nas letras
Romantismo:
“O sol declinava no horizonte.” –
José de Alencar
Modernismo:
“A tarde suicidava-se como Petrônio.” –
Oswald de Andrade
Pós-modernismo:
“Caía a tarde feito um viaduto.” –
João Bosco-Aldir Blanc
Atemporal:
“O sol amuntava na cacunda da serra.” –
Geraldinho
Antonio Jaime Soares Cataguases MG
12
Chico Cabral
O Gato
Para Marcus Vinicius Quiroga
Na sala da Rua Duvivier
o cheiro de jasmins
colhidos em jardim público
e a presença do gato
sucumbem ao odor de pêssegos e peras
que esperam o poema
num canto de mesa
de Ferreira Gullar
Francisco Marcelo Cabral nascido em
Cataguases reside no Rio de Janeiro RJ
13
Edoardo Sanguineti
Último passeio
Homenagem a Giovanni Pascoli, 1982
eu sou o sopro asmático, fantasmático, mecânico e automático e patético, e paródico
patológico, psicológico pneumático, de uma voz vivaz em contra-luz, com filigrana
honesta, de mesto grão e trama, e grama, arcaico tanto, e apotropaico tanto,
de me ficar entalado, empalhado, fossilizado, entre as quelas de suas teias
telagráficas, holográficas, oleográficas, gráficas, para assustar-te os teus mortos tortos,
espantalhesco fonema fresco, antimorceguesco epirema picaresco, faunesco
grotesco, simiesco, poetema piratesco, papagaiesco, galesco, falante em ponto
e linha, em ponto e vírgula, perturbador compungido, provocador estafante tripudiante
diarróico logorróico, alfabético estóico, estético emético, herpético energético, erótico
hermético, harpa sonora até agora vibrante, carpa canora timidamente abocante, e por
fortuna, ao teu anzol afiado, ao teu chamado, numa má hora muito andante, face de lua
galante minguante, coante pensante:
assim dizia e, dizendo assim, a minha voz sumiu:
Fragmento 4 do poema pertencente ao livro Bisbidis (1987)
tradução de Aurora F. Bernardini
14
Antônio Perin
A casa morta I
Ao José Vecchi
..... Lá na casa dos Carneiros,
violas e violeiros
só vivem clamando assim
madre amiga é ruim....
Lá na casa dos Carneiros, sete
candeeiros
Iluminam a sala de amor......
Elomar em Cantiga De Amigo
Zé! A casa da rua Alferes caiu!
O cheiro da nossa infância foi-se.
A açucena-branca no aço do portão
lacrimejou no fio da foice do peão.
Tratores avançaram sem alvará
O último átimo do Pequeno al-fãriz
brandindo o aço de sua cimitarra
forjada do mais diáfano verbo
foi chorar um acorde da guitarra.
Zé! O cheiro da manga
agora só na gôndola
O roxo da jabuticaba
só na marca dos imorais.
Tudo a baixo. Tudo... Tudo...
nem soleira alta nem sótão
nem cumeeira nem porão
nem assoalho de tábua corrida
nem virgens nuas por entre frestas.
Doravante Zé
Fruta roubada no pomar
Nem pensar Nunca mais.
Antonio Perin – Itaobim MG
15
Leonardo Campos
Inerências
Só quando a morte chegar
ganharei o mundo.
E deste mundo, só abrigaremos uma leve
lembrança,
um olhar uniforme
e uma saudade horizontal,
da forma mais inocente
por desconhecida que existe.
E já agora, enclausurado no mármore
esquecido e gelado, na lembrança de que
nossos corpos são fé e nossa existência ainda
um precário mistério, convivo a fio com minha
/própria reticência:
este dilema sem morada ou descanso.
De “Alma de Brinquedo”
Leonardo de Paula Campos - Cataguases MG
16
Marcelo Benini
Desenvolvi a aptidão do olho...
Desenvolvi a aptidão do olho
O que se entende pela capacidade
De localizar passarinho em árvore
A coisa se deu sem esforço, ao que explico:
Os galhos quando não ventam, enmesmecem
Daí o enredo
Espreita que num movimento ligeiro
Ele aparece
Entorta a cabecinha e você vê faceiro
Acompanha e ele voa, é outro.
Com o tempo esse ofício ganha ciência
E o talzinho passa a te tratar pelo douto
Aí esmera
Empina o rabinho, trejeita, pega inseto.
Por presteza, aviso que o fim
É um vezo de escória
Um andar de chão atrás de emprego
desse meu fazer
Mundo sem penas!
De “o capim sobre o coleiro
ou tentativas para ausência de chão”
Marcelo Benini nascido em
Cataguases reside em Brasília DF
17
Miguel Torga
Alguns dados biográficos e alguma poesia
Miguel Torga possui uma obra
volumosa e muito significativa: poesia, teatro,
ficção narrativa em prosa, impressões de viagem e
um curioso Diário em prosa e verso, com dezesseis
volumes publicados entre 1941 e 1993. Neles se
encontra de tudo: crítica social, polêmica,
apontamentos de paisagem, esboços de contos,
apreciações culturais, reflexões moralistas e,
frequentemente, textos da mais alta poesia.
Nascido na aldeia de São Martinho de Anta, em
Trás-os-Montes, em 1907, Adolfo Correia da Rocha
era filho de modestos agricultores. Criado em uma
tradicional família católica, o catolicismo o marca
profundamente, inclusive o levando a estudar no
seminário de Lamego.
O pseudônimo Miguel Torga, onde Torga é o
nome de um arbusto duro e retorcido
transmontano que cresce entre as rochas,
demonstra não só sua luta pela sobrevivência em
um mundo hostil como também sua forte
identidade com as raízes e origens de seu mundo
em Trás-os-Montes.
Em 1920 vem para o Brasil. Dos treze aos dezoitos
anos, viveu na Zona da Mata de Minas Gerais.
Inicialmente trabalhou na fazenda Santa Cruz em
Leopoldina pertencente a um tio seu.
Fazenda Santa Cruz – Leopoldina - MG
“Simples máquina de trabalho era o último a
deitar-me e o primeiro a erguer-me, sem domingos
nem dias santos para que a engrenagem
funcionasse com perfeição. Carregar o moinho,
mungir as vacas, tratar os porcos, ir buscar os
cavalos da cocheira ao pasto, limpá-los e arreá-los,
rachar lenha, varrer o pátio e atender a freguesia
que vinha comprar fumo, cachaça, carne seca,
feijão ou trocar o grão pelo fubá; ir buscar o correio
à povoação; fazer a escrita da fazenda, verificar à
noite se as portas e as janelas estavam bem
fechadas.”
Quatro anos depois seu tio o matrícula no Colégio
Leopoldinense em Leopoldina cidade vizinha à
nossa Cataguases. Onde permanece por um ano.
Colégio Leopoldinense –Leopoldina – MG
Regressando a Portugal, conclui o liceu. Decidiu
então trabalhar para a revista Presença, mas
acabou por decidir que era melhor deixar esta
revista em 1930. No decorrer desse ano, com a
parceria de Branquinho da Fonseca, cria a Sinal,
revista da qual sairia apenas um número.
Resolveu então entrar no curso de medicina que
concluiu no ano de 1933. Em 1936 volta a tentar
criar uma revista, a Manifesto, que infelizmente
teve uma curta duração. Exerce a profissão de
médico em várias localidades, acabando por fixar
em Coimbra em 1941, como otorrinolaringologista.
18
Miguel Torga
A passagem pelo Brasil, os estudos em Coimbra e
a prática poética, seu catolicismo se esvai reduz-se
a uma recordação de infância. Mas São Martinho
de Anta, é o chão sagrado. É a terra que lhe traz
segurança, o antídoto para o desespero, a eterna
mãe que lhe estende os braços e não um deus
distante e austero que nunca se viu, como nos
versos de Diário II:
Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no
mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu
nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam
[...]; A terra com os seus vestidos e as suas pregas,
essa foi sempre generosa [...]. Vivo a natureza
integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-
me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou
nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá
semelhante plenitude e cria no meu espírito um
sentido tão acabado do perfeito e do eterno.
No Diário I, o poeta revela tanto a beleza de criar
arte como seu sentido trágico: “O artista tem a
condenação e o dom de nunca poder automatizar a
mão, o gosto, os olhos, a enxada. Quando deixa de
descobrir, de sofrer a dúvida, de caminhar na
incerteza e no desespero – está perdido”.
Ganhador do Prêmio Camões, em 1989, e indicado,
por diversas vezes, para o Prêmio Nobel de
Literatura, Miguel Torga é, sem favor algum, uma
das maiores expressões da literatura em língua
portuguesa de todos os tempos.
Ariane
Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.
Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...
Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.
Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.
19
Miguel Torga
Brasil
Pátria de emigração.
É num poema que te posso ter...
A terra - possessiva inspiração;
E os rios - como versos a correr.
Achada na longínqua meninice,
Perdida na perdida juventude,
Guardei-te como podia:
na doce quietude
Da força represada da poesia.
E assim consigo ver-te
Como te sinto:
Na doirada moldura de lembrança,
O retrato da pura imensidade
A que dei a possível semelhança
Com palavras e rimas de saudade.
Segredo
Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.
Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...
20
Miguel Torga
Orfeu Rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam os rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
Confiança
O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova...
21
Miguel Torga
Quase um poema de amor
Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.
Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
--- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor
Prospecção
Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado
Por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.
22
Miguel Torga
São Leonardo da Galafura
À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.
Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.
Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!
Chicos 29   fevereiro 2011

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  • 2. Chicos N. 29 - Janeiro 2011 e-zine de literatura e idéias de Cataguases – MG Capa Gabriel Franco - foto de Vicente Costa Editores Emerson Teixeira Cardoso José Antonio Pereira Colaboradores desta edição: Antônio Jaime Soares Antônio Perin Francisco Marcelo Cabral Leonardo Campos Marcelo Benini Ronaldo Brito Roque Ronaldo Cagiano Wilson Pereira Fale conosco em: chicos.cataletras@hotmail.com Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/ Dedim de prosa Terminamos bem o ano de 2010, com uma edição especial comemoramos os 80 anos de Chico Cabral. Já 2011, começamos bastante preocupados. O eleitor paulista, ao transformar um palhaço em deputado, não esperava que a coisa fosse tão longe, pelo menos é o que acreditamos. Não é que o deputado palhaço foi indicado para a Comissão de Educação e Cultura. Parte de nossos políticos, não satisfeitos em transformar o congresso em um obscuro bazar onde se compra e se vende de um tudo, pelo menos agora têm um especialista em picadeiro para virar de vez uma grande feira, isto se não virar uma zebeeme antes. Assusta-nos como se imbeciliza a passos tão largos as estruturas públicas do país. Parabéns eleitores do palhaço. Talvez, nós mereçamos o castigo. Quem reaparece nesta edição é o poeta Leonardo Campos autor de Alma de Brinquedo. Apresentamos a vocês o poeta Marcelo Benini que estréia com o livro: o capim sobre o coleiro ou tentativas para ausência de chão Antônio Perin lamenta a queda da casa da Rua Alferes. Convidamos a todos para uma visita ao Instituto Chica, onde encontra- se em exposição uma ótima retrospectiva dos 30 anos de carreira do artista plástico Luiz Lopez. Vale a pena ser vista.
  • 3. 2 Sumário RONALDO BRITO ROQUE Será que você também está elegendo seu Tiririca 03 JOSÉ ANTONIO PEREIRA A fuga 04 RONALDO CAGIANO A ressurreição de um grande escritor 06 WILSON PEREIRA Os cavalos in/domados de Luiz Ruffato 07 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO O mundo, a alma e os descaminhos na obra de Leonardo Campos 10 ANTONIO JAIME SOARES O ocaso nas letras 11 FRANCISCO MARCELO CABRAL O gato 12 EDUARDO SANGUINETI Último passeio 13 ANTÔNIO PERIN A casa morta I 14 LEONARDO DE PAULA CAMPOS Inerências 15 MARCELO BENINI Desenvolvi a aptidão do olho..... 16 MIGUEL TORGA Alguns dados biográficos e alguma poesia 17
  • 4. 3 Ronaldo Brito Roque Será que você também está elegendo seu Tiririca Foi uma supresa quando um humorista de baixo nível, nem tão engraçado assim, ganhou as eleições para deputado federal de São Paulo. Mais surpreendente foi seu desempenho, pois ele chegou a se eleger com votos suficientes para levar outros candidatos do partido à Câmara. Mais tarde se verificou que o sujeito mal sabe ler e escrever, e cometeu erros grotescos de ortografia no exame que a justiça eleitoral o obrigou a fazer. Mas a decepção não parou por aí. Ele ainda admitiu ter fraudado um documento, pois assinou uma declaração de próprio punho dizendo que sabia ler e escrever, e depois confessou que sua mulher é que tinha escrito o texto da declaração. Ora, não sei se vocês sabem, mas não existe declaração de próprio punho escrita por um terceiro. O punho do terceiro não é próprio. Ou seja, não é o mesmo de quem assina. Obviamente muitos gostaram disso, e acreditam piamente que um legislador pode prescindir da habilidade de ler e escrever. Mas se você é como eu, e entende que ler e escrever são o primeiro passo para compreender e expor idéias. Se você, como eu, sabe que o cargo de legislador exige mais que a mera atividade de contar piadas e divertir um público de semiletrados, então talvez você tenha ficado indignado com esse acontecimento. Talvez você esteja pensando que os brasileiros começaram a perder a medida com que deve se julgar um legislador ou um administrador público. Se você teve essa impressão, então quero convidá-lo a uma pequena reflexão. Você já parou para pensar se também não está elegendo seu próprio Tiririca? A pergunta pode parecer absurda, mas pense bem: quando você vai comprar um livro, você escolhe um escritor que domine o idioma e a arte da fabulação, ou uma prostituta que narra suas peripécias sexuais? Quando você vai contratar um novo funcionário, você dá preferência àquele jovem inteligente e dinâmico, mas que fala o que pensa, ou àquela menina burrinha e lerda, que nunca ousa discordar de você? Quando seus filhos demonstram interesse em compreender a realidade, e lhe fazem perguntas que você não sabe responder, você admite que não sabe, e os incentiva a procurar a resposta, ou simplesmente os manda fazer outra coisa? Quando você se reúne com os amigos, nos churrascos de fim de semana, você prefere aquelas canções bonitas, que falam de sentimentos humanos autênticos, ou aquelas que apenas repetem bordões fáceis, às vezes até insultosos? A eleição de Tiririca não é um fenômeno isolado. O brasileiro vem demonstrando repetidamente preferir o pior ao melhor. As pessoas que estudam e se dedicam à produção cultural são freqüentemente humilhadas e preteridas àqueles que promovem o divertimento banal, sexual ou zombeteiro. Em geral o quadro político deriva do comportamental. Se você se indignou com a eleição de um palhaço para deputado, um palhaço que não revelou aptidão nenhuma para a função que disputava, a melhor forma de lutar contra isso é agir no seu meio pessoal e social. Valorize as pessoas que demonstram capacidade para compreender e expor idéias, valorize o sujeito que é capaz de lhe explicar as situações que você vive. Valorize o jovem que busca se informar e compreender o mundo, não o humilhe por ele buscar algo que você mesmo não conquistou. Comece a valorizar a cultura e a inteligência que estão mais próximas de você, e logo você as verá ocupando lugares de destaque na política e na mídia. Mas se você não valoriza a cultura dentro do seu próprio círculo social, então dificilmente a verá ocupando algum lugar de destaque na sociedade. Os políticos e figuras públicas não surgem do nada. Assim como a chuva é resultado da queda de bilhões de gotas, eles são resultado das escolhas aparentemente insignificantes de milhões de indivíduos. Talvez você não possa interromper a enxurrada, mas pode deixar de descer com ela. Vamos dar esse primeiro passo, e as mudanças virão naturalmente. Ronaldo Brito Roque nascido em Cataguases reside no Rio de Janeiro RJ
  • 5. 4 José Antonio Pereira A fuga Caminhando pela Avenida Central sobre anêmicas luzes filtradas pelas árvores, enevoadas pela fria temperatura de julho. Seguia pela noite. Não percebia nada em torno de si. Seus olhos, outrora astutos e penetrantes, naquela cor de mel acastanhado, eram agora um triste olhar bovino. Senta-se em um dos bancos que existem pela calçada. Ali de costas para o córrego que escorre paralelo a linha férrea bem no meio da avenida separando-a em duas pistas. A respiração ofegante fazia as narinas inflarem e desinflarem como se fossem borrachas engolindo bolhas de ar. Pensava naquela vida inútil se arrastando, um fardo de fracassos e tristezas. Sentado ali no banco não conseguia entender absolutamente nada. Levanta, passa a mão pelo áspero queixo, dá conta que há dias não se barbeia. Atravessa a rua e volta a caminhar sobe rumo à velha praça, na esquina se mete pelo bar adentro. Cotovelos no balcão, senta-se bem no fundo, nem percebe o cheiro forte que vem dos banheiros à suas costas. Pede uma aguardente. Lá na frente aquele clima de falsa euforia de bancários, que ali estão desde o encerramento do expediente, o incomoda. Contam dinheiro o dia todo, mas permanecem tão sem dinheiro como qualquer outro proletário. Vangloriam-se de ter espoliado com os abusivos juros do patrão mais um nanico que se meteu a ser empresário, desfrutam um asqueroso prazer em espetá-lo no serasa e no spc, estes instrumentos de crucificação do mercado financeiro. Enojado pede outra dose. Chamam-lhe a atenção as primeiras mulheres de aluguel que já iniciaram o batente. Tão carregadas de maquiagem, aquelas caras e bocas falseadas por cremes e cores, borboleteando pelo bar, enfiadas em saias curtíssimas, botas até os joelhos e os seios querendo saltar de blusas extremamente apertadas. Se fosse só a maquiagem diria que elas saíram de um oriental teatro kabuqui. Sente por elas um misto de solidariedade e irmandade na inutilidade de suas vidas. Todos nós somos usados e só o percebemos após o descarte. O vozerio dos caixas e atendentes bancários o incomoda, por eles, após ter a raiva amortizada pela cachaça, sente só pena e uma quase aversão. Já pelos gerentes de banco não tem jeito, é uma imensa repugnância. São sórdidos serviçais dos grandes agiotas, os banqueiros. As duas doses somadas as outras que tomara ao longo do dia, turvam um pouco os pensamentos, mas não embriagam os sentimentos. Sendo isto o que mais necessitasse. Duas sensações lhe ocorrem um empalidecido cinza já de quase repulsão aos bancários e uma fosca empatia avermelhada, quase brilho de desejo pelas mulheres. Elas começam a tornarem-se as belas e raras ruivas do cinema lá da sua adolescência. Era apaixonado por ruivas, nunca as vira pelas ruas da cidade, as loiras era uma paixão secundária, mas também muito intensa. Bardot, Candice Berger... Decepcionara-se ao descobrir que a loiríssima Marilyn Monroe pintava suas madeixas, mas Marilyn era Marilyn.
  • 6. 5 José Antonio Pereira Lembra-se que depois de muita bebida já a teve cantando Je t'aime naquele tom sussurrado num belo vestido negro inflado por ventos imaginários. Noutra ocasião, completamente embriagado, embarcava numa aventura ferroviária pela Europa num vagão a sós, ora com Candice ora com Brigite e La vie em rose na voz de Piaf ao fundo. Noites e mais noites de sexo solitário com tantas musas cinematográficas. Arrepia-se com as baionetas da ditadura, fálicos instrumentos de perseguição aos que por apenas pensar diferente eram massacrados. Barricadas em Paris sacudiam sua inércia, na voz de Janis Joplin viajava de Mercedes Benz por estradas de poeira multicolorida num quase delirium tremens. Liberdade, palavra imantadora de desejos, fugas alucinadas, viagens e mais viagens regadas a álcool turbinadas por Blow in the win e Summertimes. Encontrara na poesia onde em redemoinho liquidificar tudo isto. Nunca terminara um poema. Todos foram para o lixo inconclusos. Conhecera Lia. Via nela novos rumos até quem sabe um prumo. Lia foi-se com um bacharel. As taxas de juros recitadas pelos bancários, num tom de leiloeiro de quermesse, o traz a tona. Pede outra aguardente, a última, senão sente que irá a lona. Olham-no com desdém, ele percebe nos contadores de dinheiro alheio repulsa pela sua presença. Acham-se membros de uma casta superior e ele um pária invadindo um espaço que não lhe pertence. Tudo dera errado. Nessa hora o cérebro contraía de raiva nessa contração nada sentia, tornava-se um autômato, quando o ódio em sentido contrário expandia a massa cinzenta pressionando-a contra o crânio a dor era violenta, era o ódio a todos aqueles que o levaram àquela situação. Já não enxergava individualmente seus algozes, todos adquiriram uma expressão única. Era aquela igualdade torpe, ali unificada num sorriso medíocre, um prazer mórbido em ver alguém destruído. Eles conseguiram. O coração acelerava a intensidade das emoções. O corpo aquecia, brotando suores por todos os poros. Era gelado, tão gelado que se sentia como mergulhado num mundo só de nitrogênio líquido. Pediu a conta. Pagou e saiu. Caminhou por horas e horas dentro da noite, não havia mais ninguém pelas ruas. Tudo era dor, os pés, os músculos, que mesmo com tanto álcool, continuavam tensionados. Sentou-se no banco de uma praçinha morta, o cansaço e a dor venceram. Acendeu um cigarro, tragou–o profunda e demoradamente. Arregalou os olhos rumo à imensidão silenciosa do céu sem lua. Surgiu uma bela estrela no meio do céu. Pensou que sempre no meio da dor brota um ato poético, começava a sentir um fio de esperança. Lembrou-se da promessa ao acordar naquele dia. Desistiu da esperança. Mais um longo trago, viu a brasa do cigarro vagalumear no meio da noite. A vertigem da tragada deu-lhe coragem. Com o disparo de um relâmpago a estrela oscilou, uma dor em alta voltagem explodiu no peito, ele se esticou e endureceu. Uma pacífica calmaria soprada por uma brisa acalentou seu corpo. Seus pensamentos eram uma bola formada por minúsculas luzes matizadas por infinitas cores. Ele agora ouvia e via tudo. Não havia mais dor. Via seu corpo ali no banco, a boca tinha um sorriso doce, o semblante era pura ternura. Tudo era claro. Nem a poesia o libertara. Viu a cidade despertar e partiu rumo ao breu da noite. José Antonio Pereira – Cataguases MG
  • 7. 6 Ronaldo Cagiano A ressureição de um grande escritor A editora LetraSelvagem, de Taubaté, por iniciativa de seu editor, Nicodemos Sena relançou, recentemente, em São Paulo, o romance “Deus de Caim”, do matogrossense Ricardo Guilherme Dicke, obra que foi um dos vencedores do concorrido Prêmio Walmap (1967) e foi saudado por Jorge Amado, Guimarães Rosa e Antonio Olinto, integrantes do júri, como uma revelação e um marco na literatura brasileira. Deus de Caim surge num momento de transição: política, das artes, da moral, dos costumes, da linguagem. Vivíamos uma época de rápido escalonamento de valores, em direção a uma suposta modernidade em todos os sentidos. A ficção ainda vinha de um experiência estética bastante canônica, ainda muito fortes os ecos do modernismo na poesia. Mas a prosa ainda caminhava para descolar-se dos modelos machadianos ou do realismo naturalismo, quando primeiro surgiu o tufão chamado “Grande sertão: veredas”. Uma década depois, Deus de Caim emerge como um furacão estético. Em Pasmoso, cidade criada pelo autor, a partir de sua habilidosa capacidade de recuperar a mitologia popular ou o inconsciente coletivo – como uma Macondo ou uma Komala, ou uma Yoknapatawpha, a exemplo de García Márquez, Rulfo ou Faulkner, que espelhou as experiências de um mundo arcaico e burguês - esboçam-se os conflitos da família Amarante, de amor entre Lázaro e Minira, interditado pelo seu irmão Jônatas, por meio de sedução e tentativa de estupro, constituem-se no ponto de partida de uma tensão que vai perpassar todo o livro e que são o núcleo central do romance. A partir desse fato e seus desdobramentos é que se instaura uma profunda discussão sobre o homem, sobre o amor, sobre a traição, sobre o poder, sobre interesses escusos e difusos, como o desejo de apropriação do outro (que na verdade soa como uma metáfora da apropriação da terra, num momento em que o tema da reforma agrária era um tabu). Muitos acontecimentos se intercalam, ou interpenetram, nesse romance, como alegoria ou como recurso da intertextualidade, como no caso dos embates filosóficos travados entre os personagens Grego e Cirillo Serra sobre o mundo, sobre a verdade, sobre a religião e a cultura, assim como Isidoro, ao discorrer sobre música e poesia. Essa faceta do romance também exterioriza o diálogo que Dicke estabelece com outros gêneros e reflete a sua preocupação existencial e sua relação muito íntima com a Filosofia, as artes e o pensamento culto, uma vez que ele foi filósofo, professor , tradutor e pintor, e é também como pintor, que reverberam sua visão impressionista desse mundo interiorano, atrasado, resistente às mudanças, característica de um país até então confinado a uma cultura e a uma economia agrárias e estigmatizada por totens, tabus e mitos que sustentam a vida e a memória do homem comum e do homem que controla política, ideológica e religiosamente a vida das pessoas, como os velhos coronéis do passado. Deus de Caim, ao fazer uma releitura do mito bíblico, na verdade está fazendo uma incursão na atualidade, porque o mundo não mudou, apesar da tecnologia, do avanço das comunicações e das ciências, do desenvolvimento material e econômico das pessoas e das nações. Os mesmos conflitos, dramas; as mesmas questões, dissensões; os mesmos dilemas, controvérsias e polêmicas – estão aí – ambição, incesto, mentira, roubo, morte, usurpação, esbulho da terra – estão aí, desde a fundação do mundo, desde que Adão e Eva, experimentaram do fruto proibido, e levantaram guarda para viver o próprio caminho, atraindo o que na lógica cristã seria chamado de maldição. De Adão e Eva até Abel e Caim, o grande dilema existencial é a luta pelo poder e contra a morte; seja o poder do que quer roubar o amor de outrem; seja o poder arbitrário dos que detém o controle político e financeiro de um país; seja o poder de decidir, obrigar e impor sanções, sem defesa (como dos ditadores), seja o poder intrínseco, que o desejo de ambicionar o poder maior, que é o poder demiúrgico de um mestre (que pode ser Deus ou o diabo) e que, na verdade, deságua numa única e instintiva necessidade: a de perpetrar-se, l e para isso, vencer o tempo, despistar a morte e, se possível, vencê-la, custe o que custar. Com Deus de Caim, Dicke cutuca as férias da humanidade, que estão abertas até hoje, desde a fundação do mundo. E seu processo criativo contempla o caos, e esse caos se reflete nas histórias repletas de cizânia e perigo, mas prioritariamente numa linguagem vigorosa, densa, que não deixa o leitor sair indiferente, que nada atenua, senão repercute a violência a violência que atravessa os séculos, sem estereótipos, calcada numa impactante revelação, que é resultado ou espelho da própria desordem mental e intelectual do próprio homem. O elo entre o passado genético da humanidade e a modernidade tumultuada em que vivemos – homens, governo e mundo – mereceu em Dicke uma releitura surreal, não como fantasia pura e simples de uma historieta de sertão, mas como recurso para entender- se a loucura individual e coletiva e, acima de tudo, mostrar que o real supera a si mesmo, que é necessária as tintas da ficção pelo viés do absurdo para poder entender esse intricado e violento sistema que é a vida, aquela que, segundo Guimarães Rosa, é perigoso viver. Ronaldo Cagiano nascido em Cataguases reside em São Paulo SP
  • 8. 7 Wilson Pereira Os cavalos in/domados de Luiz Ruffato Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, é um livro surpreendente. Mais; é um romance terrível, instigante, envolvente. Surpreendente pela sua inusitada estruturação, que como muito bem anota o escritor Sérgio Sant’Anna, na orelha do volume, funde “as melhores virtualidades do conto e do romance. Uma obra com o olhar abrangente e romanesco sobre uma diversidade de cenas e personagens interligados e, ao mesmo tempo, em seus episódios, o impacto do gênero conto, com a elaboração de uma linguagem condensada que aproxima o conto mais moderno,cheio de invenção, da poesia”. De certo. Luiz Ruffato não é o primeiro escritor a romper com a estrutura tradicional do romance, aquele com inicio, meio e fim, com a trama evoluindo num clima de tensão para um clímax e desfecho, como ensinavam os compêndios de literatura. Já vem de algum tempo a tendência para um novo modelo de narrativa, fugindo ao velho esquema, sobretudo o da oposição entre protagonista e antagonista, que se intrigavam em disputa por um amor ou por terras ou por poder. Até mesmo a velha questão maniqueísta da disputa entre o bem e o mal parece não dar mais o tom de contos, novelas e romances, pelo menos nos moldes de outrora. Mas o que realmente surpreende e constitui uma saudável inovação neste livro do Ruffato é que os personagens entram e saem de cena rapidamente e uma única vez. Mesmo que aparentemente não tenham relação uns com os outros, estão, sim, interligados por um fio tênue, quase indizível, mas que os alinhava num painel humano, social e, sobretudo, dramático. Os diversos episódios, vão se sucedendo, como pequenos relatos, numa espécie de minicontos /, mas, ao mesmo tempo, vão compondo um to(l)do narrativo multifacetado, em que partes tecem a realidade dramática geral, feita de ações (e suas consequências) , de intenções e tensões, de angustias, pressões (sociais) e depressões individuais. Essa teia em cujos fios andam, vivem, convivem, sobrevivem ou subvivem, sofrem, amam, desamam-se, agridem-se..., teia em que uns se tornam presas fáceis, outros aprendem artimanhas e destilam venenos, mas onde há também vida pulsando nas vias urbanas, nas veias humanas, onde há lampejos de solidariedade, de bondade e de poesia, essa imensa teia que se chama cidade, megalópole... Tanto que Sérgio Sant’Anna afirma: “Tomado em seu todo, se poderia dizer que a personagem principal de (...) Cavalos é a cidade de São Paulo, como se contempla do mais alto de seus edifícios ou do avião que se aproxima à noite, dos aeroportos de Congonhas ou Cumbica”. Ah! Como deveria ser inocente, provinciana, a Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade, diante da São Paulo atual, retratada por Ruffato, mas que em muitos aspectos já incomodava o poeta modernista que, aliás, já denunciava em seus poemas o risco da perda da individualidade, além de injustiça social, de preconceitos, pois ele já anteviu, ou viu mesmo naquela época, a cidade como engrenagem a triturar as pessoas. O livro de Ruffato bem que poderia trazer epígrafe de Mário de Andrade, pois certamente há parentesco entre as duas obras. Nesse sentido merecem menção os seguintes versos; “Giram homens fracos, baixos, magros... / Serpentinas de entes frementes
  • 9. 8 Wilson Pereira a se desenrolar... / Estes homens de São Paulo. Todos iguais e desiguais / Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos / Parecem uns macacos, uns macacos” do poema Cortejos, Paulicéia Desvairada. Possivelmente Luiz Ruffato não tenha se lembrado disso, nem se inspirado nas preocupações de Mário de Andrade com o burburinho e as peripécias do cotidiano da capital paulista nos idos de 1920. E, claro, não se pode comparar a vida frenética, o ritmo alucinado e, às vezes, caótico dos dias atuais com aqueles em que os iconoclastas modernistas viveram, quando ainda não fervilhava nas ruas de São Paulo a multidão de pessoas, nem circulavam pelas ruas e avenidas a avalanche de automóveis. Nem os problemas de hoje se espelham nos daquele tempo, quando certamente não havia as filas quilométricas por emprego, os assaltos e seqüestros, o tráfico de drogas, o sexo anunciado como mercadoria nos jornais e na Internet. Fica, porém, a lembrança da afinidade entre os dois textos, e se houve alguma intencionalidade do autor de Eles eram muitos cavalos, não significa demérito, mas, antes, busca e realização de um projeto literário, digamos de um projeto narrativo-poético rico e afinado com obras de primeira grandeza da literatura nacional. Assim é que, ao evocar o extraordinário poema de Cecília Meirelles (“Romance LXXXIV OU DOS CAVALOS DA INCONFIDÊNCIA”, do livro Romanceiro da Inconfidência), do qual toma emprestado o verso do título, o autor enuncia, de saída, seu projeto de um texto plurissignificativo, feito de alusões, de conotações, de sugestões, portanto de múltiplas possibilidades interpretativas. Respaldado nessas possibilidades de interpretação, sem, no entanto, a pretensão de contestar Sérgio Sant’Anna, ocorre-me que o personagem principal pode (também) ser o próprio narrador, que aparece pouco explicitado ( eu narrador e eu narrado) em poucos episódios. E levanto essa hipótese por pensar que ninguém narra fatos dessa ordem (poderia dizer: ninguém escreve um livro desses, mas não se deve confundir – manda a boa cartilha crítica – o narrador com o autor) e sai incólume, imparcial, sem sangrar sua sensibilidade, e mesmo sua dor parceira, nas tintas das páginas. Por isso, o emprego do adjetivo “terrível”. A escolha das cenas e dos cenários, a apropriação desse universo íntimo do individuo e, simultaneamente, coletivo, social, urbano, já entremostra o desafio do narrador de se entranhar nos sentimentos e emoções de suas criaturas, de revirar-lhes o avesso, de percorrer seus labirintos psíquicos. Além da escolha, há forma de narrar, elíptica, densa, tensa e intensa, a denotar o envolvimento do autor, que extrai de cada episódio a carga mais dramática ( e traumática), numa linguagem apropriada propositadamente a esse objetivo. E, se procede essa minha leitura, confirma-a o texto intitulado “Noite” (p131), em que o narrador, em priemeira pessoa, embora nomeado Humberto, se coloca como sujeito da ação e acaba por confessar sua impotência diante da realidade (sugerida) que o atormenta: “(... não vai passar nunca esse mal-estar, nunca essa sensação de inutilidade, Marin!, Marina!, e sigo sussurando, suspirando o hálito suocante da gasolina.)” Envolvente, ainda, porque o leitor, pelo princípio da intersubjetividade artística, se vê preso ao emaranhado teor das situações, que são, na verdade, conhecidas suas, alguns por experimentá-las na própria pele, outros por assistirem a elas, a olho nu no corre-corre das ruas, ou nas telas da TV ou por as lerem nas páginas dos jornais. Instigante, o outro adjetivo suscitado, porque o autor vai aproximando os atores nessa rede de intrigas, como se estivesse fazendo uma reportagem ao vivo, trazendo o foco do alto, da distância (o romance começa
  • 10. 9 Wilson Pereira com a visão panorâmica, de quem olha a cidade de cima, quando o avião se aproxima para o pouso) pra fixá-lo depois no chão áspero do cotidiano até jogá-lo dentro dos olhos de cada ser abordado e, por extensão, dentro da consciência do leitor. Instigante, por fim, porque o livro é um convite à reflexão crítica e a sensibilidade artística, além da humana. Ou pelo menos um convite à busca de entendimento da linha frágil que costura as relações humanas e sociais destes dias atribulados, especialmente nas grandes cidades. Mas, resta indagar: se o romance expõe, numa espécie de reportagem, fatos que, por mais cruéis que possam parecer, se tronaram corriqueiros, como atestar, então, o seu poder de fascínio, a sua vibrante energia literária, que prende a atenção do leitor e o sacode, com sua carga lírico- dramática, da inércia e da indiferença? A resposta é que isso só é possível aos bons escritores, que sabem transformar matéria bruta em arte. Machado de Assis, por exemplo, não transformou o batido e ancestral tema do ciúme num dos romances mais geniais da literatura universal, o D. Casmurro? Luiz Ruffato procede assim, pois não apenas narra, mas imprime aos fatos uma visão – e uma versão – sutil e pungente, sugerindo, insinuando, novas e intrincadas realidades. O citado texto “Noite” bem que pode ser tomado como síntese da proposta do livro: “entreolho-a por sobre as páginas do Estado de São Paulo: (sugestão de um entre/olhar que vê, cria, mostra, nas entrelinhas, uma supra-realidade, além da mera realidade expostas nas bancas de jornal).” E prossegue: “e ela come estupidamente, metafisicamente (...)” (a junção dos dois advérbios é bastante sintomática). Todo o arcabouço tra(u)mático do romance vem à tona com o corte preciso da linguagem, matéria-prima da literatura, que se constrói ali, a propósito, com metáforas, metonímias, elipses, interrupções, num ritmo adequado ao conteúdo, às vezes acelarado,em galopes, às vezes sôfrego, entrecortado, mas sempre domado pela mão sábia de quem domina as rédeas desses cavalos. E eles eram muitos cavalos. Wilson Pereira – Brasília DF
  • 11. 10 Emerson Teixeira Cardoso O mundo, a alma e os descaminhos na poesia de Leonardo Campos Quando você não tiver passarinho pra tratar, experimente ler o livro Alma de Brinquedo de Leonardo de Paula Campos. Nesse livro está a alma de um poeta singularíssimo. Sou capaz de apostar que ele satisfará todas as suas necessidades de poesia: as possíveis e as impossíveis também. Porque o poeta nos diz ali, que “sonhar o impossível é um bem da poesia” e que tudo não se esgota nas possibilidades terrenas. Vai mais longe ao dizer, que melhores ainda “são os sonhos que não se concretizam” porque estes habitarão o mundo da imaginação. Já finalizando na sua preleção, convida-nos a nos conhecer no “espelho das letras” que realizamos unindo a imaginação do autor a nossa e vice-versa. Eu acabei concordando com tudo que ele disse, nos preparando, como ele fez, para as possibilidades do seu sonho que vai começando com este Triste Início - “A noite escolta inocente a desgraça humana” e as estrelas perdem seus valores.” Passa por: Renata caminha nas estrelas Todo tempo é pouco Quando em meio ao tempo tento refletir Que a paisagem mais bonita é o rosto. Ela é viva; ela pode sorrir. Na noite pairam flores no asfalto, precipitam-se do céu – do seu auto. E mais que despedida, que na sua ida, Você deixou todas as estrelas. e era só uma menina..... E o algodão Ela tomou do pé o algodão, arrancou aquelas sementes e veio até a mim meio displicente, consciente, voluntária observou-me pediu a aliança e então, a poliu. Mais intimamente com os olhos Do que com o algodão de suas mãos. Ou nessa estrofe do poema Alheia É que se insinua aí a canção da morte? Pois da cova profunda do seu olho, avoluma-se um vento torpe como a seca bebe um poço [...] Campos às vezes parece coincidir com Álvares de Azevedo, que com certeza leu, o poeta que segundo um crítico arguto trouxe Poe à paulicéia, que no seu caso é Minas, mais cervantina que camoniana – a benção, Pedro Nava – com seus crepúsculos sangrentos. Muito se teria que dizer deste poeta o que certamente ainda se fará no futuro. Pelo menos é o que me parece ou então muito me engano. É que vieram aqui os corvos, (guardiães da noite) Precipitaram-me reminiscências dos mortos ao tom de graças e açoites... Por que não dizer que a si se aplicam as mesmas palavras do Sr Legrandin ao memorialista infante em O Caminho de Swann: “Tens uma bela alma, de qualidade rara, uma natureza de artista. Não a deixe em falta do que é preciso.” Lendo Alma de Brinquedo de Leonardo de Paula Campos pensei ver desenhar-se muito depressa na minha imaginação o perfil de sua alma meiga habitante do corpo de um genuíno poeta. Daí eu pensar que é sorte nossa que tantos valores culturais mantenham-se vivos e a tão cantada vocação artística desta cidade, enfim, ainda se justifica. Emerson Teixeira Cardoso – Cataguases MG
  • 12. 11 Antonio Jaime O ocaso nas letras Romantismo: “O sol declinava no horizonte.” – José de Alencar Modernismo: “A tarde suicidava-se como Petrônio.” – Oswald de Andrade Pós-modernismo: “Caía a tarde feito um viaduto.” – João Bosco-Aldir Blanc Atemporal: “O sol amuntava na cacunda da serra.” – Geraldinho Antonio Jaime Soares Cataguases MG
  • 13. 12 Chico Cabral O Gato Para Marcus Vinicius Quiroga Na sala da Rua Duvivier o cheiro de jasmins colhidos em jardim público e a presença do gato sucumbem ao odor de pêssegos e peras que esperam o poema num canto de mesa de Ferreira Gullar Francisco Marcelo Cabral nascido em Cataguases reside no Rio de Janeiro RJ
  • 14. 13 Edoardo Sanguineti Último passeio Homenagem a Giovanni Pascoli, 1982 eu sou o sopro asmático, fantasmático, mecânico e automático e patético, e paródico patológico, psicológico pneumático, de uma voz vivaz em contra-luz, com filigrana honesta, de mesto grão e trama, e grama, arcaico tanto, e apotropaico tanto, de me ficar entalado, empalhado, fossilizado, entre as quelas de suas teias telagráficas, holográficas, oleográficas, gráficas, para assustar-te os teus mortos tortos, espantalhesco fonema fresco, antimorceguesco epirema picaresco, faunesco grotesco, simiesco, poetema piratesco, papagaiesco, galesco, falante em ponto e linha, em ponto e vírgula, perturbador compungido, provocador estafante tripudiante diarróico logorróico, alfabético estóico, estético emético, herpético energético, erótico hermético, harpa sonora até agora vibrante, carpa canora timidamente abocante, e por fortuna, ao teu anzol afiado, ao teu chamado, numa má hora muito andante, face de lua galante minguante, coante pensante: assim dizia e, dizendo assim, a minha voz sumiu: Fragmento 4 do poema pertencente ao livro Bisbidis (1987) tradução de Aurora F. Bernardini
  • 15. 14 Antônio Perin A casa morta I Ao José Vecchi ..... Lá na casa dos Carneiros, violas e violeiros só vivem clamando assim madre amiga é ruim.... Lá na casa dos Carneiros, sete candeeiros Iluminam a sala de amor...... Elomar em Cantiga De Amigo Zé! A casa da rua Alferes caiu! O cheiro da nossa infância foi-se. A açucena-branca no aço do portão lacrimejou no fio da foice do peão. Tratores avançaram sem alvará O último átimo do Pequeno al-fãriz brandindo o aço de sua cimitarra forjada do mais diáfano verbo foi chorar um acorde da guitarra. Zé! O cheiro da manga agora só na gôndola O roxo da jabuticaba só na marca dos imorais. Tudo a baixo. Tudo... Tudo... nem soleira alta nem sótão nem cumeeira nem porão nem assoalho de tábua corrida nem virgens nuas por entre frestas. Doravante Zé Fruta roubada no pomar Nem pensar Nunca mais. Antonio Perin – Itaobim MG
  • 16. 15 Leonardo Campos Inerências Só quando a morte chegar ganharei o mundo. E deste mundo, só abrigaremos uma leve lembrança, um olhar uniforme e uma saudade horizontal, da forma mais inocente por desconhecida que existe. E já agora, enclausurado no mármore esquecido e gelado, na lembrança de que nossos corpos são fé e nossa existência ainda um precário mistério, convivo a fio com minha /própria reticência: este dilema sem morada ou descanso. De “Alma de Brinquedo” Leonardo de Paula Campos - Cataguases MG
  • 17. 16 Marcelo Benini Desenvolvi a aptidão do olho... Desenvolvi a aptidão do olho O que se entende pela capacidade De localizar passarinho em árvore A coisa se deu sem esforço, ao que explico: Os galhos quando não ventam, enmesmecem Daí o enredo Espreita que num movimento ligeiro Ele aparece Entorta a cabecinha e você vê faceiro Acompanha e ele voa, é outro. Com o tempo esse ofício ganha ciência E o talzinho passa a te tratar pelo douto Aí esmera Empina o rabinho, trejeita, pega inseto. Por presteza, aviso que o fim É um vezo de escória Um andar de chão atrás de emprego desse meu fazer Mundo sem penas! De “o capim sobre o coleiro ou tentativas para ausência de chão” Marcelo Benini nascido em Cataguases reside em Brasília DF
  • 18. 17 Miguel Torga Alguns dados biográficos e alguma poesia Miguel Torga possui uma obra volumosa e muito significativa: poesia, teatro, ficção narrativa em prosa, impressões de viagem e um curioso Diário em prosa e verso, com dezesseis volumes publicados entre 1941 e 1993. Neles se encontra de tudo: crítica social, polêmica, apontamentos de paisagem, esboços de contos, apreciações culturais, reflexões moralistas e, frequentemente, textos da mais alta poesia. Nascido na aldeia de São Martinho de Anta, em Trás-os-Montes, em 1907, Adolfo Correia da Rocha era filho de modestos agricultores. Criado em uma tradicional família católica, o catolicismo o marca profundamente, inclusive o levando a estudar no seminário de Lamego. O pseudônimo Miguel Torga, onde Torga é o nome de um arbusto duro e retorcido transmontano que cresce entre as rochas, demonstra não só sua luta pela sobrevivência em um mundo hostil como também sua forte identidade com as raízes e origens de seu mundo em Trás-os-Montes. Em 1920 vem para o Brasil. Dos treze aos dezoitos anos, viveu na Zona da Mata de Minas Gerais. Inicialmente trabalhou na fazenda Santa Cruz em Leopoldina pertencente a um tio seu. Fazenda Santa Cruz – Leopoldina - MG “Simples máquina de trabalho era o último a deitar-me e o primeiro a erguer-me, sem domingos nem dias santos para que a engrenagem funcionasse com perfeição. Carregar o moinho, mungir as vacas, tratar os porcos, ir buscar os cavalos da cocheira ao pasto, limpá-los e arreá-los, rachar lenha, varrer o pátio e atender a freguesia que vinha comprar fumo, cachaça, carne seca, feijão ou trocar o grão pelo fubá; ir buscar o correio à povoação; fazer a escrita da fazenda, verificar à noite se as portas e as janelas estavam bem fechadas.” Quatro anos depois seu tio o matrícula no Colégio Leopoldinense em Leopoldina cidade vizinha à nossa Cataguases. Onde permanece por um ano. Colégio Leopoldinense –Leopoldina – MG Regressando a Portugal, conclui o liceu. Decidiu então trabalhar para a revista Presença, mas acabou por decidir que era melhor deixar esta revista em 1930. No decorrer desse ano, com a parceria de Branquinho da Fonseca, cria a Sinal, revista da qual sairia apenas um número. Resolveu então entrar no curso de medicina que concluiu no ano de 1933. Em 1936 volta a tentar criar uma revista, a Manifesto, que infelizmente teve uma curta duração. Exerce a profissão de médico em várias localidades, acabando por fixar em Coimbra em 1941, como otorrinolaringologista.
  • 19. 18 Miguel Torga A passagem pelo Brasil, os estudos em Coimbra e a prática poética, seu catolicismo se esvai reduz-se a uma recordação de infância. Mas São Martinho de Anta, é o chão sagrado. É a terra que lhe traz segurança, o antídoto para o desespero, a eterna mãe que lhe estende os braços e não um deus distante e austero que nunca se viu, como nos versos de Diário II: Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam [...]; A terra com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa [...]. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir- me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. No Diário I, o poeta revela tanto a beleza de criar arte como seu sentido trágico: “O artista tem a condenação e o dom de nunca poder automatizar a mão, o gosto, os olhos, a enxada. Quando deixa de descobrir, de sofrer a dúvida, de caminhar na incerteza e no desespero – está perdido”. Ganhador do Prêmio Camões, em 1989, e indicado, por diversas vezes, para o Prêmio Nobel de Literatura, Miguel Torga é, sem favor algum, uma das maiores expressões da literatura em língua portuguesa de todos os tempos. Ariane Ariane é um navio. Tem mastros, velas e bandeira à proa, E chegou num dia branco, frio, A este rio Tejo de Lisboa. Carregado de Sonho, fundeou Dentro da claridade destas grades... Cisne de todos, que se foi, voltou Só para os olhos de quem tem saudades... Foram duas fragatas ver quem era Um tal milagre assim: era um navio Que se balança ali à minha espera Entre as gaivotas que se dão no rio. Mas eu é que não pude ainda por meus passos Sair desta prisão em corpo inteiro, E levantar âncora, e cair nos braços De Ariane, o veleiro.
  • 20. 19 Miguel Torga Brasil Pátria de emigração. É num poema que te posso ter... A terra - possessiva inspiração; E os rios - como versos a correr. Achada na longínqua meninice, Perdida na perdida juventude, Guardei-te como podia: na doce quietude Da força represada da poesia. E assim consigo ver-te Como te sinto: Na doirada moldura de lembrança, O retrato da pura imensidade A que dei a possível semelhança Com palavras e rimas de saudade. Segredo Sei um ninho. E o ninho tem um ovo. E o ovo, redondinho, Tem lá dentro um passarinho Novo. Mas escusam de me atentar: Nem o tiro, nem o ensino. Quero ser um bom menino E guardar Este segredo comigo. E ter depois um amigo Que faça o pino A voar...
  • 21. 20 Miguel Torga Orfeu Rebelde Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto, a ver se o meu canto compromete A eternidade do meu sofrimento. Outros, felizes, sejam os rouxinóis... Eu ergo a voz assim, num desafio: Que o céu e a terra, pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura, Saibam que há gritos como há nortadas, Violências famintas de ternura. Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa, Canto como quem usa Os versos em legítima defesa. Canto, sem perguntar à Musa Se o canto é de terror ou de beleza. Confiança O que é bonito neste mundo, e anima, É ver que na vindima De cada sonho Fica a cepa a sonhar outra aventura... E que a doçura Que se não prova Se transfigura Numa doçura Muito mais pura E muito mais nova...
  • 22. 21 Miguel Torga Quase um poema de amor Há muito tempo já que não escrevo um poema De amor. E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! A nossa natureza Lusitana Tem essa humana Graça Feiticeira De tornar de cristal A mais sentimental E baça Bebedeira. Mas ou seja que vou envelhecendo E ninguém me deseje apaixonado, Ou que a antiga paixão Me mantenha calado O coração Num íntimo pudor, --- Há muito tempo já que não escrevo um poema De amor Prospecção Não são pepitas de oiro que procuro. Oiro dentro de mim, terra singela! Busco apenas aquela Universal riqueza Do homem que revolve a solidão: O tesoiro sagrado De nenhuma certeza, Soterrado Por mil certezas de aluvião. Cavo, Lavo, Peneiro, Mas só quero a fortuna De me encontrar. Poeta antes dos versos E sede antes da fonte. Puro como um deserto. Inteiramente nu e descoberto.
  • 23. 22 Miguel Torga São Leonardo da Galafura À proa dum navio de penedos, A navegar num doce mar de mosto, Capitão no seu posto De comando, S. Leonardo vai sulcando As ondas Da eternidade, Sem pressa de chegar ao seu destino. Ancorado e feliz no cais humano, É num antecipado desengano Que ruma em direcção ao cais divino. Lá não terá socalcos Nem vinhedos Na menina dos olhos deslumbrados; Doiros desaguados Serão charcos de luz Envelhecida; Rasos, todos os montes Deixarão prolongar os horizontes Até onde se extinga a cor da vida. Por isso, é devagar que se aproxima Da bem-aventurança. É lentamente que o rabelo avança Debaixo dos seus pés de marinheiro. E cada hora a mais que gasta no caminho É um sorvo a mais de cheiro A terra e a rosmaninho!