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O Barcelona e a
       Nova Ciência das Redes
                  Augusto de Franco
                        Draft2 26/04/2012




Aqui onde moro atualmente, nos Jardins, em São Paulo, ouvi ontem
(24/04/2012) ao final da partida Barcelona x Chelsea, gritos
enfurecidos: "Chupa Barcelona Filho da Puta!". A partida empatou (2
x 2), mas o Barcelona foi eliminado da Champions League porque
precisava vencer por dois gols et coetera.

Fiquei pensando se Albert Camus, prêmio Nobel de literatura, não
tinha razão quando dizia que de todas as suas experiências na vida a
que maior conhecimento lhe proporcionou sobre os homens foi o
futebol. Aquele buzinaço que se seguiu à partida, comemorando o
não-futebol do Chelsea, me disse muita coisa desagradável. Revelou,
por um lado, as entranhas da intolerância com o que foge dos
padrões. Mais do que isso, entretanto, soou, por outro lado, como um
lamento desesperado de seres aprisionados que gostariam de se
libertar mas não o fazem porque acham que não é possível, porque
imaginam que a sua prisão é universal.

Quem viu o jogo pôde perceber que o Chelsea, a partir de certo
momento (coincidente com o início da partida), praticamente não
jogou bola. Matou o tempo. Matou o futebol. Mesmo assim, contou
com o entusiasmo de fervorosos torcedores. Mais do que isso, contou


                                 1
com hard feelings de uma multidão que mais parecia estar se
vingando da arte.

Arte? Como é possível? Parem com isso! O que queremos é a guerra.
Não queremos um lírico Iniesta fazendo firulas no meio campo.
Queremos a força, a garra, o vale-tudo orientado pelo resultado do
gigante Drogbah. Fora Iniesta, seu anão imprestável! Drogbah é o
nosso herói!

Bem, devo dizer que meu interesse no assunto não é propriamente
futebolístico e sim investigativo e decorre de minhas explorações na
nova ciência das redes. Há bastante tempo venho observando como a
topologia da rede “produz” o comportamento coletivo. É claro – não
vou negar – que prefiro me deleitar assistindo o novo futebol criativo
do Barcelona do que o futebol de resultados dos times ingleses e
italianos que envelheceram-mal e que só sabem dar chutão prá
frente para tentar surpreender a defesa desarmada do oponente.
Ainda não me deformei a ponto de gostar da realpolitik: para isso não
preciso de futebol: bastaria acompanhar as guerras, a luta política
pervertida como arte da guerra ou a concorrência adversarial
praticada pelas empresas hierárquicas.

Mas isso agora talvez não venha ao caso.

Diz-se que o Barcelona perdeu porque ficou vulnerável. Concordo.
Acho que o futebol do Barcelona é extremamente vulnerável mesmo,
não a um ou outro adversário que tenha estudado suas fraquezas e
sim às regras do futebol, que não acompanharam a evolução do
futebol.

O velho futebol do século 20 é – como observou argutamente George
Orwell no artigo “The Sporting Spirit” (London: Tribune, December
1945) – uma espécie de guerra sem mortes (“It is war minus the
shooting”, escreveu ele textualmente). Não é bem um jogo, uma
atividade lúdica da qual se possa tirar fruição, admirada em si mesma
ou por si mesma, uma coreografia estrutural coletiva onde as
coordenações de coordenações comportamentais se encaixem
sinergicamente (a essência da dança e daí a arte), mas um vale-tudo
no qual se exalça as capacidades dos indivíduos de obter por
qualquer meio a vitória, seja dando uma joelhada desleal nas costas
do jogador adversário, seja falsificando abertamente as regras (pois,
afinal, “guerra é guerra” e na guerra, como se sabe, é necessário que
a primeira vítima seja a verdade).

Parece óbvio que o futebol one-touch oriented do Barcelona exigiria
novas regras no-touch oriented. Por exemplo, as regras atuais do
futebol deixam um jogador tirar outro fisicamente da jogada com um
encontrão (que se for feito com o ombro, com o quadril ou com o

                                  2
tronco, na maior parte dos casos não é falta e sim “disputa normal”
do jogo). Ora, nessas condições, quem se prepara melhor para o
vale-tudo (quem se prepara para a guerra) tende a prevalecer.

Nessa espécie de variação de baixa intensidade do rugby, o futebol
vai assim se rendendo aos atributos físicos individuais dos jogadores
e à chamada “tática”, traçada de antemão por algum chefe-técnico
que monta seus ardis com base no comando-e-controle. Não é por
acaso o deslizamento de categorias próprias da guerra para o futebol:
tática, estratégia, ofensiva, defensiva, espírito de corpo ou coesão e
aplicação tática (quer dizer, subordinação a um esquema pré-
determinado). Faz sentido. E a utilização desses conceitos só
corrobora a hipótese de George Orwell. Mas o problema é que tudo
isso favorece o ânimo adversarial e diminui as nossas oportunidades
de sentir aquele prazer tipicamente humano de contemplar as
interações sociais (quer dizer... aquelas interações tipicamente
humanas).

O Chelsea é uma remanescência do futebol do século passado. No
entanto, como as regras do jogo continuam no passado, já se sabia,
antes da partida, que tudo poderia acontecer. Quer dizer: que o não-
futebol poderia vencer o futebol. Como venceu, pelas regras. Não
apenas o Chelsea, mas qualquer outro time poderia (e poderá)
vencer o Barcelona, sem violar as regras. Porque é fácil derrotar o
Barcelona. Basta, para tanto, derrubar seus jogadores. Se o jogador
não está em pé ele não pode jogar. Ponto.

No entanto, o futebol do Barcelona não foi derrotado pelo futebol de
outros times. Nem poderá sê-lo. Mesmo que o Barcelona venha a
perder todas as próximas partidas que disputar, parece óbvio que um
número maior de caminhos (mais passes por unidade de tempo)
significa a configuração de uma topologia de rede mais distribuída do
que centralizada. E que quanto mais distribuída for a topologia da
rede, mais conectividade e mais interatividade haverá. E que, assim,
mais possibilidades surgirão de fazer a bola chegar ao gol adversário
(a regra suprema do jogo). É matemático. O que não quer dizer que
ocorrerá sempre.

Eis os diagramas ilustrativos (publicados originalmente por Paulo
Ganns, na Escola-de-Redes) do jogo Barcelona x Santos em
dezembro de 2011. Veja-se a diferença das topologias (caricaturadas
na imagem para evidenciar a diferença).




                                  3
E eis agora minhas variações do diagrama do Paulo Ganns,
comparando a rede distribuída configurada pelos passes do Barcelona
com a representação de um emaranhado quântico (no lado esquerdo)
e a rede centralizada do Santos Futebol Club com o organograma de
uma organização centralizada (no lado direito).




Pois bem. O mais importante, do ponto de vista das redes, vem
agora.

O campo social gerado pela alta interatividade do Barcelona (o time
mais highly connected que já foi formado) enseja a manifestação
daqueles fenômenos acompanhantes da auto-organização e da

                                 4
inteligência coletiva: seus jogadores se aglomeram (clustering) e
desaglomeram de acordo com os fluxos da partida, jogam a maior
parte do tempo sem a bola, mudando de lugar continuamente (o time
é realmente mobile), praticam o imitamento ou cloning (clonagem
variacional dos movimentos dos outros jogadores do mesmo time e,
às vezes, do time adversário – coisa que pouquíssima gente nota,
sobretudo os experts no assunto), eventualmente enxameiam
(swarming) impedindo que a bola saia do campo adversário e
diminuem o espaço-tempo para os movimentos do oponente, quer
dizer, contraem o tamanho social do mundo composto pelos vinte e
dois players (o Barcelona provoca o efeito Small-World). Basta
observar: seus jogadores são pequenos (não precisam de corpo
avantajado), seus passes são pequenos (curtos)... O Barcelona –
provavelmente sem ter a menor consciência disso – causa esse
amassamento (crunching) e talvez esta seja sua principal virtude e
vantagem comparativa: o Barcelona é a prova viva de que small is
powelful!

Por tudo isso, não tenho receio de afirmar que há mais inteligência
coletiva embutida num jogo do Barcelona do que em todas as
partidas travadas pelo Real Madrid, ainda que este último possa ter
craques com mais assertividade e mais combatividade e sejam mais
– como direi? – results-oriented do que os jogadores do Barcelona.

Bem... aqui começa minha investigação. O jogo aparentemente bobo
do Barcelona, de ficar trocando passes redundantemente na
intermediária é em geral censurado pelos comentaristas futebolísticos
(e por outros metidos a profundos conhecedores de futebol) como
sintoma de falta de objetividade. Mas a contração de redundância
(repetição de caminhos) com distribuição (multiplicação de caminhos)
é o que compõe a resiliência, uma das características principais da
sustentabilidade (ou do que chamamos de vida). O tempo de posse
de bola é um indicador indireto dessa resiliência quando revela, entre
outras coisas, a frequência da mudança de trajetória da bola e a
repetição de caminhos (não é raro ver um jogador do Barcelona
trocar passes com outro jogador mantendo os dois praticamente as
mesmas posições; ou então progredindo no terreno como em um
movimento solidário de dois corpos, como se fosse um haltere se
deslocando ou Plutão e Caronte em translação ao redor do Sol).

Sim, o Barcelona imita a vida. Ao contrário do que se pensa, a vida
nunca trabalha com economia de esforços e sim com repetição
intermitente (iteração) de ações similares. E a vida não economiza
esforços simplesmente porque não precisa fazer isso, porque
multiplicação de caminhos gera abundância e não escassez.

Mas não é só isso. O Barcelona clona o funcionamento do
formigueiro. Como as formigas, seus jogadores não têm posição fixa,

                                  5
mas podem mudar de função várias vezes em uma mesma partida.
Como nos mostrou a cientista Deborah Gordon (1999), em “Formigas
em ação”, ao contrário do que se acreditava, as formigas mudam de
função (dependendo das necessidades coletivas do formigueiro, uma
forrageira pode virar “soldado”, por exemplo). Os jogadores do
Barcelona também não têm dificuldade de mudar de posição (ou de
função). Usando as antigas denominações (no caso, merecidas): o
ponta esquerda pode virar ponta direita, o meio-campista pode virar
beque ou centroavante, qual o problema?

O problema é que se pensava em produtividade a partir da
especialização, do desempenho ótimo de funções fixas: como na
produção fordista, um indivíduo que repetiu milhares de vezes a
mesma função tem mais chances de ser mais rápido e menos
chances de errar no exercício daquela função determinada. Isso é
válido, por certo, para a reprodução mecânica das mesmas ações.
Aplicado ao futebol, porém, contribui para eliminar a criatividade,
sobretudo a criatividade coletiva, quer dizer, o ambiente favorável à
criação ou à inovação. Instaura-se assim o futebol reprodutivo, a
fábrica de jogar bola da sociedade industrial.

Nesse ambiente reprodutivo o que se destaca é o craque (o
indivíduo), não o time (a rede social composta pelos jogadores
interagindo segundo determinado padrão). Porque, em tais
circunstâncias estruturais da rede centralizada só a genialidade
individual pode romper o esquema, surpreender, sair fora da caixa.
Tudo então passa a depender dos craques, dos indivíduos. É o
futebol-burro com a sobressaliência dos pontos fora da curva,
daqueles indivíduos inteligentes capazes, como se diz, de fazer a
diferença e definir a partida com um lance magistral.

E é por isso que se atribui, não raro, o sucesso do Barcelona à
genialidade do craque Messi. Sim, Messi é de fato um jogador
excepcional, mas o futebol do Barcelona não depende de suas
jogadas excepcionais. Com toda certeza as interações do dipolo Xavi
Hernándes – Andrés Iniesta e deles com o restante do time (com
Lionel Messi inclusive e deste último com Daniel Alves) são mais
decisivas para o excelente comportamento do time do que os lances
geniais individuais do fabuloso artilheiro argentino. Essas bobagens
são ditas porque ainda é bastante generalizada a crença de que o
comportamento coletivo pode ser explicado a partir dos atributos dos
indivíduos, de que a inteligência coletiva é a soma das inteligências
dos indivíduos e não uma nova qualidade que emerge das relações
entre eles.

Os gritos enraivecidos de ontem, comemorando a eliminação do
Barcelona (sim, porque o time não perdeu o jogo, foi desclassificado
pela tabela), revelam que existe base social para legitimar mais um

                                  6
retrocesso no futebol. Dir-se-á que o “estilo-barsa” esgotou-se, que o
“futebol-arte” não pode resistir ao “futebol-de-resultados”, que “Messi
entrou numa fase ruim”, que o futebol é assim mesmo (as modas, os
estilos, vêm e vão) e outras besteiras semelhantes. Já se dá até
como certa a derrota do Barcelona para o Real Madrid no campeonato
espanhol (e isso pode acontecer mesmo).

Assistiremos, provavelmente, a mais uma daquelas tristes revoltas de
escravos que introjetaram a escravidão a tal ponto que, em vez de
lutarem para se libertar dessa condição, não suportam ver que
existem pessoas livres e querem torná-las também escravas como
eles. Assim interpretei os gritos de “Chupa Barcelona Filho da Puta”
no final da tarde de 24 de abril de 2012.




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O Barcelona e a Nova Ciência das Redes

  • 1. O Barcelona e a Nova Ciência das Redes Augusto de Franco Draft2 26/04/2012 Aqui onde moro atualmente, nos Jardins, em São Paulo, ouvi ontem (24/04/2012) ao final da partida Barcelona x Chelsea, gritos enfurecidos: "Chupa Barcelona Filho da Puta!". A partida empatou (2 x 2), mas o Barcelona foi eliminado da Champions League porque precisava vencer por dois gols et coetera. Fiquei pensando se Albert Camus, prêmio Nobel de literatura, não tinha razão quando dizia que de todas as suas experiências na vida a que maior conhecimento lhe proporcionou sobre os homens foi o futebol. Aquele buzinaço que se seguiu à partida, comemorando o não-futebol do Chelsea, me disse muita coisa desagradável. Revelou, por um lado, as entranhas da intolerância com o que foge dos padrões. Mais do que isso, entretanto, soou, por outro lado, como um lamento desesperado de seres aprisionados que gostariam de se libertar mas não o fazem porque acham que não é possível, porque imaginam que a sua prisão é universal. Quem viu o jogo pôde perceber que o Chelsea, a partir de certo momento (coincidente com o início da partida), praticamente não jogou bola. Matou o tempo. Matou o futebol. Mesmo assim, contou com o entusiasmo de fervorosos torcedores. Mais do que isso, contou 1
  • 2. com hard feelings de uma multidão que mais parecia estar se vingando da arte. Arte? Como é possível? Parem com isso! O que queremos é a guerra. Não queremos um lírico Iniesta fazendo firulas no meio campo. Queremos a força, a garra, o vale-tudo orientado pelo resultado do gigante Drogbah. Fora Iniesta, seu anão imprestável! Drogbah é o nosso herói! Bem, devo dizer que meu interesse no assunto não é propriamente futebolístico e sim investigativo e decorre de minhas explorações na nova ciência das redes. Há bastante tempo venho observando como a topologia da rede “produz” o comportamento coletivo. É claro – não vou negar – que prefiro me deleitar assistindo o novo futebol criativo do Barcelona do que o futebol de resultados dos times ingleses e italianos que envelheceram-mal e que só sabem dar chutão prá frente para tentar surpreender a defesa desarmada do oponente. Ainda não me deformei a ponto de gostar da realpolitik: para isso não preciso de futebol: bastaria acompanhar as guerras, a luta política pervertida como arte da guerra ou a concorrência adversarial praticada pelas empresas hierárquicas. Mas isso agora talvez não venha ao caso. Diz-se que o Barcelona perdeu porque ficou vulnerável. Concordo. Acho que o futebol do Barcelona é extremamente vulnerável mesmo, não a um ou outro adversário que tenha estudado suas fraquezas e sim às regras do futebol, que não acompanharam a evolução do futebol. O velho futebol do século 20 é – como observou argutamente George Orwell no artigo “The Sporting Spirit” (London: Tribune, December 1945) – uma espécie de guerra sem mortes (“It is war minus the shooting”, escreveu ele textualmente). Não é bem um jogo, uma atividade lúdica da qual se possa tirar fruição, admirada em si mesma ou por si mesma, uma coreografia estrutural coletiva onde as coordenações de coordenações comportamentais se encaixem sinergicamente (a essência da dança e daí a arte), mas um vale-tudo no qual se exalça as capacidades dos indivíduos de obter por qualquer meio a vitória, seja dando uma joelhada desleal nas costas do jogador adversário, seja falsificando abertamente as regras (pois, afinal, “guerra é guerra” e na guerra, como se sabe, é necessário que a primeira vítima seja a verdade). Parece óbvio que o futebol one-touch oriented do Barcelona exigiria novas regras no-touch oriented. Por exemplo, as regras atuais do futebol deixam um jogador tirar outro fisicamente da jogada com um encontrão (que se for feito com o ombro, com o quadril ou com o 2
  • 3. tronco, na maior parte dos casos não é falta e sim “disputa normal” do jogo). Ora, nessas condições, quem se prepara melhor para o vale-tudo (quem se prepara para a guerra) tende a prevalecer. Nessa espécie de variação de baixa intensidade do rugby, o futebol vai assim se rendendo aos atributos físicos individuais dos jogadores e à chamada “tática”, traçada de antemão por algum chefe-técnico que monta seus ardis com base no comando-e-controle. Não é por acaso o deslizamento de categorias próprias da guerra para o futebol: tática, estratégia, ofensiva, defensiva, espírito de corpo ou coesão e aplicação tática (quer dizer, subordinação a um esquema pré- determinado). Faz sentido. E a utilização desses conceitos só corrobora a hipótese de George Orwell. Mas o problema é que tudo isso favorece o ânimo adversarial e diminui as nossas oportunidades de sentir aquele prazer tipicamente humano de contemplar as interações sociais (quer dizer... aquelas interações tipicamente humanas). O Chelsea é uma remanescência do futebol do século passado. No entanto, como as regras do jogo continuam no passado, já se sabia, antes da partida, que tudo poderia acontecer. Quer dizer: que o não- futebol poderia vencer o futebol. Como venceu, pelas regras. Não apenas o Chelsea, mas qualquer outro time poderia (e poderá) vencer o Barcelona, sem violar as regras. Porque é fácil derrotar o Barcelona. Basta, para tanto, derrubar seus jogadores. Se o jogador não está em pé ele não pode jogar. Ponto. No entanto, o futebol do Barcelona não foi derrotado pelo futebol de outros times. Nem poderá sê-lo. Mesmo que o Barcelona venha a perder todas as próximas partidas que disputar, parece óbvio que um número maior de caminhos (mais passes por unidade de tempo) significa a configuração de uma topologia de rede mais distribuída do que centralizada. E que quanto mais distribuída for a topologia da rede, mais conectividade e mais interatividade haverá. E que, assim, mais possibilidades surgirão de fazer a bola chegar ao gol adversário (a regra suprema do jogo). É matemático. O que não quer dizer que ocorrerá sempre. Eis os diagramas ilustrativos (publicados originalmente por Paulo Ganns, na Escola-de-Redes) do jogo Barcelona x Santos em dezembro de 2011. Veja-se a diferença das topologias (caricaturadas na imagem para evidenciar a diferença). 3
  • 4. E eis agora minhas variações do diagrama do Paulo Ganns, comparando a rede distribuída configurada pelos passes do Barcelona com a representação de um emaranhado quântico (no lado esquerdo) e a rede centralizada do Santos Futebol Club com o organograma de uma organização centralizada (no lado direito). Pois bem. O mais importante, do ponto de vista das redes, vem agora. O campo social gerado pela alta interatividade do Barcelona (o time mais highly connected que já foi formado) enseja a manifestação daqueles fenômenos acompanhantes da auto-organização e da 4
  • 5. inteligência coletiva: seus jogadores se aglomeram (clustering) e desaglomeram de acordo com os fluxos da partida, jogam a maior parte do tempo sem a bola, mudando de lugar continuamente (o time é realmente mobile), praticam o imitamento ou cloning (clonagem variacional dos movimentos dos outros jogadores do mesmo time e, às vezes, do time adversário – coisa que pouquíssima gente nota, sobretudo os experts no assunto), eventualmente enxameiam (swarming) impedindo que a bola saia do campo adversário e diminuem o espaço-tempo para os movimentos do oponente, quer dizer, contraem o tamanho social do mundo composto pelos vinte e dois players (o Barcelona provoca o efeito Small-World). Basta observar: seus jogadores são pequenos (não precisam de corpo avantajado), seus passes são pequenos (curtos)... O Barcelona – provavelmente sem ter a menor consciência disso – causa esse amassamento (crunching) e talvez esta seja sua principal virtude e vantagem comparativa: o Barcelona é a prova viva de que small is powelful! Por tudo isso, não tenho receio de afirmar que há mais inteligência coletiva embutida num jogo do Barcelona do que em todas as partidas travadas pelo Real Madrid, ainda que este último possa ter craques com mais assertividade e mais combatividade e sejam mais – como direi? – results-oriented do que os jogadores do Barcelona. Bem... aqui começa minha investigação. O jogo aparentemente bobo do Barcelona, de ficar trocando passes redundantemente na intermediária é em geral censurado pelos comentaristas futebolísticos (e por outros metidos a profundos conhecedores de futebol) como sintoma de falta de objetividade. Mas a contração de redundância (repetição de caminhos) com distribuição (multiplicação de caminhos) é o que compõe a resiliência, uma das características principais da sustentabilidade (ou do que chamamos de vida). O tempo de posse de bola é um indicador indireto dessa resiliência quando revela, entre outras coisas, a frequência da mudança de trajetória da bola e a repetição de caminhos (não é raro ver um jogador do Barcelona trocar passes com outro jogador mantendo os dois praticamente as mesmas posições; ou então progredindo no terreno como em um movimento solidário de dois corpos, como se fosse um haltere se deslocando ou Plutão e Caronte em translação ao redor do Sol). Sim, o Barcelona imita a vida. Ao contrário do que se pensa, a vida nunca trabalha com economia de esforços e sim com repetição intermitente (iteração) de ações similares. E a vida não economiza esforços simplesmente porque não precisa fazer isso, porque multiplicação de caminhos gera abundância e não escassez. Mas não é só isso. O Barcelona clona o funcionamento do formigueiro. Como as formigas, seus jogadores não têm posição fixa, 5
  • 6. mas podem mudar de função várias vezes em uma mesma partida. Como nos mostrou a cientista Deborah Gordon (1999), em “Formigas em ação”, ao contrário do que se acreditava, as formigas mudam de função (dependendo das necessidades coletivas do formigueiro, uma forrageira pode virar “soldado”, por exemplo). Os jogadores do Barcelona também não têm dificuldade de mudar de posição (ou de função). Usando as antigas denominações (no caso, merecidas): o ponta esquerda pode virar ponta direita, o meio-campista pode virar beque ou centroavante, qual o problema? O problema é que se pensava em produtividade a partir da especialização, do desempenho ótimo de funções fixas: como na produção fordista, um indivíduo que repetiu milhares de vezes a mesma função tem mais chances de ser mais rápido e menos chances de errar no exercício daquela função determinada. Isso é válido, por certo, para a reprodução mecânica das mesmas ações. Aplicado ao futebol, porém, contribui para eliminar a criatividade, sobretudo a criatividade coletiva, quer dizer, o ambiente favorável à criação ou à inovação. Instaura-se assim o futebol reprodutivo, a fábrica de jogar bola da sociedade industrial. Nesse ambiente reprodutivo o que se destaca é o craque (o indivíduo), não o time (a rede social composta pelos jogadores interagindo segundo determinado padrão). Porque, em tais circunstâncias estruturais da rede centralizada só a genialidade individual pode romper o esquema, surpreender, sair fora da caixa. Tudo então passa a depender dos craques, dos indivíduos. É o futebol-burro com a sobressaliência dos pontos fora da curva, daqueles indivíduos inteligentes capazes, como se diz, de fazer a diferença e definir a partida com um lance magistral. E é por isso que se atribui, não raro, o sucesso do Barcelona à genialidade do craque Messi. Sim, Messi é de fato um jogador excepcional, mas o futebol do Barcelona não depende de suas jogadas excepcionais. Com toda certeza as interações do dipolo Xavi Hernándes – Andrés Iniesta e deles com o restante do time (com Lionel Messi inclusive e deste último com Daniel Alves) são mais decisivas para o excelente comportamento do time do que os lances geniais individuais do fabuloso artilheiro argentino. Essas bobagens são ditas porque ainda é bastante generalizada a crença de que o comportamento coletivo pode ser explicado a partir dos atributos dos indivíduos, de que a inteligência coletiva é a soma das inteligências dos indivíduos e não uma nova qualidade que emerge das relações entre eles. Os gritos enraivecidos de ontem, comemorando a eliminação do Barcelona (sim, porque o time não perdeu o jogo, foi desclassificado pela tabela), revelam que existe base social para legitimar mais um 6
  • 7. retrocesso no futebol. Dir-se-á que o “estilo-barsa” esgotou-se, que o “futebol-arte” não pode resistir ao “futebol-de-resultados”, que “Messi entrou numa fase ruim”, que o futebol é assim mesmo (as modas, os estilos, vêm e vão) e outras besteiras semelhantes. Já se dá até como certa a derrota do Barcelona para o Real Madrid no campeonato espanhol (e isso pode acontecer mesmo). Assistiremos, provavelmente, a mais uma daquelas tristes revoltas de escravos que introjetaram a escravidão a tal ponto que, em vez de lutarem para se libertar dessa condição, não suportam ver que existem pessoas livres e querem torná-las também escravas como eles. Assim interpretei os gritos de “Chupa Barcelona Filho da Puta” no final da tarde de 24 de abril de 2012. 7