SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 72
Baixar para ler offline
Magnetismo Terrestre
Regina Gouveia




2005
Magnetismo Terrestre
Género: Poesia
Autor: Regina Gouveia
Fotografia: Fernando Gouveia
Direcção gráfica: fábrica mutante
Capa: fábrica mutante

Calendário de letras
morada ???
contactos ???

Impressão e acabamento: Papelmunde
1ª edição: ????? de 2005
ISBN:
Depósito legal:
Tudo me prende à terra onde me dei:
O rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente
….
Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia

Eugénio de Andrade, “Canção Breve”
Prefácio




A beleza das coisas só pode ser fruída por um espírito
sensível e o artista, ao exprimir na obra a estesia que
alguma vez experimentou, inescapavelmente deixa nela
as marcas da sua idiossincrasia e das suas vivências. O
título desta colectânea de poemas repassados de
saudades de um tempo e de um lugar (que afinal é um
universo) é a transposição alegórica de uma temática
científica da área da Física, o que não surpreende
porque a autora, docente de Física e Química pode, com
a maior naturalidade, emoldurar o seu estro em
referentes científicos ainda que metafóricos, como é o
caso presente e foi também o caso das obras anteriores
Reflexões e Interferências e Poeira Cósmica.
A vertente poética que a autora manifesta e cultiva com
mestria mostra, por um lado, que a formação científica e
a actividade profissional, ainda que empenhada (como é
o caso) não satisfazem cabalmente os anseios de uma
alma sensível que busca a completude. Por isso, que a
prática da arte seja um complemento cabonde do frio
racionalismo que enforma e estrutura a ciência. A autora
reconhece-o quando diz “É difícil de explicar pois não há
explicação que assente só na razão“ (poema Sensações,
nesta obra). Os poetas são seres sensíveis que,
consonantes com a Natureza, vêm e exprimem o que a
razão não alcança. A mente do artista pode atribuir às
coisas características que a pessoa dita normal não
vislumbra.”A paisagem é um estado de alma“, Fernando
Pessoa dixit.
Os vinte e sete poemas que a autora nos oferece estão
impregnados da recordação saudosa das coisas e dos
seres dos lugares onde decorreu a sua meninice,
infância e adolescência (o Universo da autora)
08/09       Magnetismo Terrestre
                                               Regina Gouveia




recordação que se aviva a cada visita ao seu rincão sito
no Nordeste Transmontano. O que está plasmado nos
versos que nos deixa é a transfiguração pelo poeta que a
autora é, do sentimento induzido por esse pequeno /
grande mundo para ela de tão gratas memórias.
A formação científica da autora transparece, como em
António Gedeão, na obra poética. Assim, às vezes, notas
de cariz científico surgem integrados no discurso poético
sem quebras de ritmo nem significância, antes pelo
contrário, como é, por exemplo o caso do final do poema
Ilusão “ No ocaso, o sol vermelho já se esconde, porém,
já lá não está, é ilusão. Ainda o vemos devido à
refracção.” Outras vezes (poema Big Bang) noções
científicas como a do Big Bang, ligado à expansão do
Universo são contrapostas à vivência da autora, cujo
Universo, clama, se contrai no tempo.
Dos vinte e sete poemas cinco não são inéditos,
respigados que foram do primeiro livro publicado pela
autora - Reflexões e Interferências. Foram aqui incluídos
por se referirem à temática nordestina, foco polarizador
da inspiração dos poemas agora dados à estampa.
Muitos dos poemas destilam nostalgia de um tempo que
passou mas que deixou marcas indeléveis, agora
transfiguradas em poesia induzida pela revivência desse
passado. No poema que tem expressamente essa
designação - Nostalgia - é dada conta do
desaparecimento de práticas ancestrais ligadas à
economia de subsistência das populações nordestinas
(cultura da oliveira e da amendoeira, emblema da região
agora substituído pela cerejeira, também objecto de um
poema). Curiosa a terminologia ligada a essas práticas
como alpechim e infernos.
Sem curar de fazer uma recensão completa da obra, no
conjunto de grande nível e valor artístico – tarefa que
competirá a quem for da arte da crítica literária - apraz-
me salientar dois exemplos paradigmáticos: No poema
Sensações a autora poetiza “o cheiro da sua casa da
aldeia”, o que recorda Régio quando refere em uma das
suas obras “ os bons e maus cheiros” de uma velha
casa. No poema Entropia a degradação da matéria viva
(medronhos apodrecendo no chão) é usada como
ilustração do 2º Princípio da Termodinâmica.
Já outros autores com formação científica de base
poetaram glosando, por exemplo, temas de Física (Niels
Bohr) e / ou de Química (António Gedeão / Rómulo de
Carvalho). Mas no caso da presente autora a poesia,
ainda que insira aspectos da sua cultura científica
encadeados no discurso poético, o lirismo dos temas e a
forma como são tratados denunciam uma sensibilidade
que só pode ser feminina.
A presente obra, pela diversidade dos tópicos que
percorre, todos ligados à vivência da autora na terra das
suas raízes ficará, sem dúvida, como um belo retrato
poético do Nordeste Transmontano.

José Ferreira da Silva1




1 Professor Catedrático jubilado do Departamento de Física da Faculdade

de Ciências da Universidade do Porto.
10/11   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Raízes




As minhas raízes estão em íngremes ladeiras,
em terras de xisto, onde crescem amendoeiras,
carrascos, sobreiros, oliveiras,
e onde o sentir é outro, mais profundo.
Como que em busca da certeza de que existo,
gosto de vaguear pelas ladeiras,
sentindo rumorejar o rio ao fundo.
12/13   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Outrora




Outrora seriam por certo diferentes
o achatamento polar, o campo magnético,
a atracção lunar e, como tal,
o peso das coisas, as marés.
Diferença subtil, irrelevante,
pois se esse tempo, à escala humana é já distante,
à escala do Universo ainda é presente.
Outrora seriam por certo diferentes
as gentes que no castro habitavam
mas como hoje, sofriam, amavam e guerreavam
em sangrentas batalhas, deixando virgens,
talvez para sempre, tímidas donzelas.
Testemunhas desse tempo, as muralhas,
naturais do lado do abismo,
do outro lado humana construção,
como também humana a destruição
que de onde em onde grassa.
Ignorou-se que enquanto o tempo passa,
as pedras guardam na memória
os feitos da história, o sangue derramado,
a glória, o revés.
Em terras que com sangue foram adubadas,
florescem hoje papoilas encarnadas
por entre alvas estevas, roxas arçãs
e giestas amarelas. Na Primavera,
todas elas salpicam a ladeira do castro até ao rio.
Deste, quem sabe, o rumor será ainda eco
dum clamor, outrora lançado no vazio.
14/15   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Tempos agrestes




Eram tempos agrestes
quando da azeitona ou da amêndoa, a apanha.
Era o vento cieiro que vinha de Espanha,
uma brisa seca, cortante, gelada
que gretava a pele já de si curtida,
era a soalheira que encardia o rosto
no ateado Agosto.
Eram tempos agrestes
de fugas para França e de passadores
de silêncios pesados, de densos suores
que iam desgastando dia a dia a vida
qual roupa delida já de tanto usada.
Eram tempos agrestes
grávidos de sol, de frio e de nada.
16/17   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Ocaso




Em Fevereiro, o dia quase exangue,
era azul claro e rosa a cor do céu.
Depois escureceu; tornou-se cor de chumbo
e cor de sangue.
Talvez anjos brincando na imensidão etérea
ou, simplesmente,
a interacção da luz com a matéria.
O sol vai imergindo por detrás do monte
e no horizonte destaca-se a silhueta de um sobreiro.
Difusa, voa rasante uma cotovia
e é então que, no céu, Vénus se anuncia.
18/19   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Caminhada




Flores tímidas, selvagens, atapetam o chão.
Coberta de líquenes e musgo, a fraga, ao fundo,
onde frágil se equilibra uma oliveira
que espreita a queda de água que escorre na ladeira
onde agoniza um pombal, já sem função.
Um balir de rebanho rompe o ar dolente
e uma avezita, que emerge de um sobreiro,
toma por seu mundo o céu inteiro.
Medito enquanto calcorreio o caminho lentamente.
Quanta transformação química ocorrida
para transformar húmus em vida…
Quanta energia transformada…
Quanto neutrino atravessando o nada…
20/21   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Moinho




Entre calhaus e areias, grossas, finas,
virgens porque há muito não pisadas,
e mescladas de vegetação rasteira,
resistem ao tempo, no fundo da ladeira,
umas ruínas de um açude, um canal e um moinho,
cuja cobertura se perdeu
como todos os anos se perdia quando o rio,
nas enchentes, lúbrico crescia.
Ainda hoje o rio umas vezes adormece
outras galopa na viagem.
Do moinho que agoniza junto à margem
resta, corroída, uma mó que em tempos
transformava grão em pó.
Restam também vestígios de uma antiga construção
e, numa fraga, escavada uma pequena cova,
talvez a gamela de um cão. Quiçá um perdigueiro,
companhia de caça do moleiro.
22/23   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Crepúsculo




Plana o falcão sobre a ravina.
O sol declina e todo um mistério invade o ar.
Num eco etéreo, há um rumor que se aproxima.
Talvez o vento cujo lamento cruza a neblina
que esconde o dia e abraça a noite
que se anuncia numa acalmia,
numa doçura crepuscular.
Porém, na Terra, algures há guerra,
bombas, granadas a deflagrar.
24/25   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Barca




Entardece. Ainda uns raios de sol, já desmaiados
que se reflectem nos calhaus rolados
que o rio afaga. No ar, um silêncio
que apenas o rumor do rio apaga,
rumor, ou talvez prece
ao Senhor da Barca, ali ao lado.
Já não existe mais a barca que outrora foi real
mas na margem do rio, enferrujado,
testemunha de um tempo intemporal,
jaz moribundo um pedaço do cabo
que, a cada viagem, guiava a barca
de uma à outra margem.
26/27   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Big-Bang




 Na minha infância, o Universo estendia-se
do Castelo até às Eiras, envolvendo a Praça
e o Cabecinho onde ficava a minha escola.
À volta eram ladeiras que velavam o sono do rio
lá no fundo. Era assim o meu mundo
que, para mim, era maior que o infinito
e que em cinco linhas aqui ficou descrito,
contrariando assim, à evidência,
uma das conjecturas da ciência.
Desde o seu Big-Bang
o meu Universo contrai-se, não se expande.
28/29   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Teia




Com as recordações da minha infância
fui tecendo, dia a dia, enredada teia.
O cheiro do azeite no lagar
e no Outono a fermentar o mosto,
o céu estrelado, o luar de Agosto,
as cores da Primavera e as do Outono,
o vermelho das papoilas, dos medronhos,
o branco das flores de amendoeira,
o sabor das amoras de silva ou de amoreira,
as histórias contadas à lareira,
o som da chuva, da neve, do granizo,
na escacha da amêndoa, o som do riso,
o rumorejar do rio no fundo da ladeira,
o piar da coruja, o bramir do vento,
são imagens que preenchem os meus sonhos
e assim invadem o meu pensamento,
enredando-o na emaranhada teia
que até hoje a minha vida prende
por um fio, que tanto se contrai como distende.
30/31   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Ponte 2




Sempre em concordância com o traçado,
desventraram a ladeira de um e outro lado.
O rio, no fundo, parece alheado,
correndo ligeiro ou sonhando parado.
Sobre ele crescem, da ponte, pilares e tabuleiro.
Este, apoiado só no meio, cresce dia a dia
para um e outro lado, sempre em simetria.
As leis da física assim o determinam.
Pesos, momentos, reacções, tensões,
tudo se conjuga em equações
que os operários jamais imaginam.
Em busca da terra prometida
vêm daquém, dalém, vêm de Leste,
vêm de África, têm vida agreste,
chegam a pagar o sonho com a vida.
E o Sabor, em eterno devaneio,
beija a ladeira a tudo o mais alheio.




2   Foto gentilmente cedida por Maria Manuel Gouveia.
32/33   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Casas de Xisto




Casas de xisto com, sem escaleiras,
traves de zimbro nas padieiras,
balcões, sacadas, toscas ombreiras,
foram com o tempo, há muito tempo…
Ficaram histórias entre as memórias
que traz o vento
que chora, chora e no seu pranto
lembra o encanto das casas de outrora.
34/35   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Stacatto




Ali onde o silêncio impera
e onde o infinito faz sentido,
numa fraga, junto ao rio, foi esculpido
algo que pode ser uma mensagem,
uma data, talvez de uma romagem,
um nome, quiçá o de um romeiro,
que envolto num denso nevoeiro,
surgiu num dealbar de primavera.
36/37   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Divagação




Com o olhar perdido entre rio e céu,
tendo por horizonte o infinito,
divaga o meu eu, angustiado, aflito.
Se este rio fosse meu,
não permitiria que algo o poluísse
e talvez um dia com ele me fundisse
num apertado e sempiterno abraço
quando a vida nada mais fosse que cansaço
38/39   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Cores outonais




O muro de xisto é já uma ruína mas a vinha,
velha e tão cansada,
exibe de novo os seus tons outonais.
Numa subtil gradação de frequências
a folhagem é agora amarelada, acobreada,
cor de vinho, acastanhada.
Ostentam cores outonais também, mais além,
a pereira e o marmeleiro.
Enquanto transferências de electrões
desencadeiam oxidações e reduções,
carotenos e antocianinas
conjugam-se em paisagens quase surreais.
Sentada numa fraga, ao lado de um sobreiro,
quero perpetuar estes instantes,
transformar em eterno este momento,
mas o agora de há pouco já é antes,
nesta implacável corrida do tempo.
40/41   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Prodígio




Prodigiosa aquela cerejeira com seus frutos.
Sensual, rubro o epicarpo, carnudo, nacarado o
mesocarpo
da pudica semente protecção.
Tal como se fora a vez primeira, saboreio uma cereja
calmamente num misto de volúpia e devoção.
42/43   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Andorinhas




Sentada no terraço, vejo as andorinhas
entrar e sair dos ninhos na casa do vizinho.
O vizinho morreu e a casa está abandonada,
mas as andorinhas, de luto,
como é sempre o seu vestir,
talvez pelo vizinho, os que o antecederam
e os que ainda hão-de vir,
continuam a voltear em torno dos ninhos
na casa agora abandonada
do vizinho que morreu.
Sempre me lembro das andorinhas
no beiral da casa do vizinho.
Sei que as de agora não são as mesmas
que as de outrora
mas talvez de geração em geração,
tal como passa o sentido de orientação,
tenha passado a informação
da minha existência no terraço
em frente à casa do vizinho
desde quando o meu pai me dizia poesia
que falava da sua migração.
Orientadas pelo campo magnético terrestre,
pelo sol, pelas estrelas,
ou simplesmente navegando à vista,
aí vão elas seguindo uma pista
que as trará de volta novamente,
quando se iniciar o tempo quente
Só que um dia já não haverá casa do vizinho,
nem eu estarei no terraço a recebê-las.
44/45   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Lição




Constava no compêndio que eu tinha
que estudar que o azeite, no essencial,
é um misto de oleína e palmitina
de diferente densidade e ponto de fusão
Falava ainda o meu compêndio
em decantação, ponto de inflamação,
porém, ainda antes do compêndio,
era bem pequenina e já sabia
que os negros frutos de todo o olival
iriam ser esmagados no lagar
para das entranhas o azeite retirar
junto com o alpechim do qual se iria separar
Amargo e negro, o alpechim
iria ser lançado nos infernos3.
Também antes do compêndio já sabia
que em candeias o azeite iria alumiar
e que em gélidos Invernos iria talhar,
em duas camadas se iria separar,
a inferior, pastosa, esbranquiçada,
a superior , viscosa, amarelada.
Mas quando criança, também me apercebia
que o tão dourado azeite,
à mesa sempre usado com deleite,
na malga do pobre não ia ter lugar,
quando muito o azeite das sobras de fritar.
Só que isso não constava no compêndio.




3   Reservatórios para recolha do alpechim.
46/47   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Estevas




Pegajosas as estevas, quando florescem,
ostentam flores majestosas de fino odor. Porém
as flores fenecem. Resta uma além, murcha, esquecida.
Pobre flor! Uma das pétalas já não tem vida
mas, mesmo assim, desfalecida, mantém o odor.
48/49   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Nostalgia




Quando passo num amendoal, após o verão,
sinto um misto de nostalgia e emoção
ao ver a amêndoa abandonada
nas árvores e no chão.
Outrora significou prosperidade
e eram guardados os amendoais
para garantir que os rebusqueiros
não rebuscavam demais,
que rebuscavam só no chão, à claridade,
só de dia e não ao lusco-fusco.
Hoje já ninguém anda ao rebusco.
No Verão, sob um sol abrasador, era a apanha.
Hoje fica nas árvores e cai na terra
que a arrebanha e com ela se funde;
confundem-se os seus tons.
Da escacha já há muito não se ouvem sons.
Os escachadores ora em uníssono,
ora desfasados, habilmente manejados
com gestos secos, certeiros e breves
por mulheres, crianças, raparigas,
que enchiam o ar de risos e cantigas,
iam partindo a amêndoa, sempre cadenciados,
deixando o grão intacto ou com mazelas leves,
enquanto das cascas, o monte crescia no chão.
Mais tarde, a par da lenha, na lareira,
iriam servir para combustão.
O grão ia para sacos de serapilheira.
Mais tarde era vendido
e o seu destino era assim perdido.
Aquele que ficava imperfeito, esbotenado,
iria ser, mais tarde, laminado,
misturado com ovos e açúcar, nos rochedos
cujas receitas eram envoltas em segredos
e cuja doçura ocultava a agrura
de tanta fadiga e de tanto suor.
Eram a lavra, a limpa, a enxertia,
ano após ano um ritual que se cumpria
e quando floriam as amendoeiras,
o lavrador contemplava do cimo das ladeiras
aqueles véus de noiva a perder de vista,
não com o olhar breve de um turista,
mas com um profundo olhar, cheio de amor.
52/53   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Flores de amendoeira




As flores de amendoeira, antes da Primavera,
cobrem a ladeira como um branco véu
ou como vestes de anjo que se esfumou no céu.
Impressa no código genético a química magia
da ebúrnea cor que recende a nostalgia
54/53   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Ilusão4




Em pleno estio
os meus olhos vagueiam na ladeira
que exulta em cor, em cheiro e em sons
que me afloram o ouvido, subtis.
Os meus olhos vagueiam na ladeira,
exuberante em todos os seus tons,
tecendo à minha volta mil ardis
É o amarelo das searas, das oliveiras
o verde prateado, dos troncos dos sobreiros
o tom acastanhado, mais além um outro verde,
das figueiras. Pobres figueiras
em terras tão avaras, avaras de água,
que não de encantamento
que esse de há muito me há a mim tomado
enquanto dolente passa o vento
que agita os ramos das amendoeiras.
Os meus olhos vagueiam na ladeira
em pleno estio e sinto um arrepio.
Lá em baixo serpenteia preguiçoso o rio
e o céu, por cima, dum azul sem fim,
parece olhar para mim.




4   Poema incluído em Reflexões e Interferências.
Sinto no ar toda uma fragrância
e volto sem querer à minha infância
de sonhos que nunca mais foram sonhados.
Amoras, mel, uvas e mosto
de repente sinto-lhes o gosto.
Tudo se repete agora e logo, de onde em onde.
Cigarras, besouros, libelinhas,
gaviões, pardais e andorinhas,
urze, giesta, papoilas e tomilho,
tudo se agita; é grande a euforia
nos meus pensamentos enredados,
grávidos de sonho e fantasia
que parecem gerar como que um filho,
envolto em tule, rendas e brocados.
Afaga-me uma onda de alegria
matizada de muita nostalgia,
aproxima-se a noite, ao fim do dia.
No ocaso, o sol vermelho já se esconde,
porém, já lá não está, é ilusão!
Ainda o vemos devido à refracção
58/59   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Flores5




Eram flores selvagens embelezando Maio,
junto ao caminho. Eram muitas e singelas,
rubras, azuis, roxas , brancas, amarelas.
Os seus nomes?
Creio que uma se chamava rosmaninho,
as outras não sei, mas não importa.
Numa conferência a que a memória me reporta
Feynman, Nobel da Física, sobre a ciência dizia
que o nome das coisas não é o que mais importa,
até porque de lugar para lugar varia.
Importa muito mais observar, reflectir, interrogar.
Só assim se pode compreender a natureza.
E também amar, eu acrescentaria.
Veio isto a propósito das flores junto ao caminho,
que me impressionaram pela singeleza,
mas cujo nome não sei. Por isso as baptizei;
a uma chamei ternura e a outra afecto,
a uma outra alegria, a uma dei o nome fantasia,
a outra atribuí o nome de paixão.
A uma que logo ali murchou e murcha se quedou
baptizei-a com o nome de ilusão




5   Poema incluído em Reflexões e Interferências.
60/61   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Castro6




Em mato de urze, de giesta, de carrasco,
fica ali escondido, abandonado, o castro,
castelo dos mouros, como o povo diz,
de onde, quem sabe, uma moura donzela
fugiu para Castela num belo alazão
enquanto soprava o vento suão.
Partiu com um mouro, ou partiu com cristão?
De livre vontade ou partiu infeliz?
Quem sabe, não descenderia da moura donzela
minha bisavó, de seu nome Ana
que era castelhana fugida da guerra, da luta intestina
entre um tal D. Carlos e D. Cristina?
Quem sabe? Pergunto ao carrasco,
mas não existia, ao tempo, no castro.
Questiono o rio que corre no fundo,
mas a água de outrora correu, foi embora,
perdeu-se no mundo.




6   Poema incluído em Reflexões e Interferências.
62/63   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Hipocrisia7




Lactarius deliciosus.
Não sei se foi Lineu quem o nome lhes deu.
Eu, no meio do pinhal,
com gestos suaves, subtis,
vou-as colhendo uma a uma.
São as sanchas, frágeis, delicadas,
como que envergonhadas, por baixo da caruma.
Chapéu e pé em tom alaranjado,
já em pequenina,
a medo eu as colhia pois sabia
que mesmo ali ao lado, outros cogumelos,
alguns muito mais belos, teciam seus ardis.
Insidiosos, perigosos, escondem em si a muscarina,
a psilocibina, tanta, tanta toxina, tantas vezes fatal.
Tal qual a hipocrisia nos humanos,
desumanos, antes eu diria,
que enchem a boca com a democracia
e a globalização, visando um mundo novo,
enquanto vendem armas para matar o povo
que subjugam pela exploração




7   Poema incluído em Reflexões e Interferências.
64/65   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Entropia




Desde o átomo à célula, toda uma evolução
que desafia os mais ousados sonhos.
E assim, no mato denso de carrascos,
salpicando de cor os dias baços
e dando aos espaços um ar de fantasia,
irrompem sensuais e rubros os medronhos.
Alguns logo ali se degradam, ao cair no chão.
Eis o sentido da evolução.
Chamou-se-lhe entropia.
66/67   Magnetismo Terrestre
        Regina Gouveia
Sensações8




Tem um cheiro inconfundível a minha casa da aldeia
Não sei se é do rosmaninho
que perfuma todo o linho dentro das arcas guardado,
se é da madeira das portas, dos tectos
e do sobrado se é das pratas no lambrim
ou das peças de faiança, são travessas e são pratos,
nas paredes pendurados, se é das peças de mobília,
uma herança de família, não sei se é dos retratos
que às vezes, a horas mortas, falam, sorriem para mim.
Terão perfume as memórias de quando eu era criança?
Terá perfume a lembrança?
Tem um cheiro inesquecível a minha casa da aldeia
Mas não é só o odor, são as cores e são os sons
que vejo e ouço em qualquer lado e em tudo o que me rodeia
Lembro lágrimas, sorrisos, por vezes já imprecisos.
Lembro sussurros e histórias,
imagens em vários tons, plenas de luz e de cor
ou também acinzentadas baças, sem cor, desbotadas.
Têm cor alguns dos sons, sons e cores têm odor
A minha casa da aldeia cheira a afecto e amor.
Mesmo quando estou distante às vezes,
por um instante, chego a pensar que estou lá,
pois apesar da distância eu sinto aquela fragrância.
Que explicação haverá? Será acção magnética?
Uma interacção eléctrica? Força electromagnética?
Gravítica? Nuclear? Forte ou fraca interacção?
É difícil de explicar pois não há explicação
que assente só na razão. Esta estranha sensação
tem a ver com o coração.




8   Poema incluído em Reflexões e Interferências.
Índice




07   Prefácio
10   Raízes
12   Outrora
14   Tempos agrestes
16   Ocaso
18   Caminhada
20   Moinho
22   Crepúsculo
24   Barca
26   Big-Bang
28   Teia
30   Ponte
32   Casas de Xisto
34   Stacatto
36   Divagação
38   Cores outonais
40   Prodígio
42   Andorinhas
44   Lição
46   Estevas
48   Nostalgia
52   Flores de amendoeira
54   Ilusão
58   Flores
60   Castro
62   Hipocrisia
64   Entropia
66   Sensações
Magnetismoterrestre2
Magnetismoterrestre2
Magnetismoterrestre2

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Segunda geração da poesia romântica
Segunda geração da poesia românticaSegunda geração da poesia romântica
Segunda geração da poesia românticama.no.el.ne.ves
 
Lírica e sátira na poesia de bocage
Lírica e sátira na poesia de bocageLírica e sátira na poesia de bocage
Lírica e sátira na poesia de bocagema.no.el.ne.ves
 
Poemas de Bocage
Poemas de Bocage Poemas de Bocage
Poemas de Bocage agnes2012
 
Paradoxos de um comediante Qorpo-santo
Paradoxos de um comediante   Qorpo-santoParadoxos de um comediante   Qorpo-santo
Paradoxos de um comediante Qorpo-santoCarmemGadelha
 
Análise de o homem e sua hora
Análise de o homem e sua horaAnálise de o homem e sua hora
Análise de o homem e sua horama.no.el.ne.ves
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, terceira aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, terceira aula de cábulasApresentação para décimo segundo ano de 2016 7, terceira aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, terceira aula de cábulasluisprista
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, primeira aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, primeira aula de cábulasApresentação para décimo segundo ano de 2016 7, primeira aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, primeira aula de cábulasluisprista
 
Arcano dezenove renata bomfim
Arcano dezenove  renata bomfimArcano dezenove  renata bomfim
Arcano dezenove renata bomfimRenata Bomfim
 
Terceira geração da poesia romântica
Terceira geração da poesia românticaTerceira geração da poesia romântica
Terceira geração da poesia românticama.no.el.ne.ves
 
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)gersonastolfi
 
Memento Mori V Noite De Poesia Arádia Raymon
Memento Mori   V Noite De Poesia   Arádia RaymonMemento Mori   V Noite De Poesia   Arádia Raymon
Memento Mori V Noite De Poesia Arádia RaymonMemento Mori
 
Sonetos de camões
Sonetos de camões Sonetos de camões
Sonetos de camões TVUERJ
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, segunda aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, segunda aula de cábulasApresentação para décimo segundo ano de 2016 7, segunda aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, segunda aula de cábulasluisprista
 

Mais procurados (20)

Tintapres
TintapresTintapres
Tintapres
 
Pagina 3-7
Pagina   3-7Pagina   3-7
Pagina 3-7
 
Segunda geração da poesia romântica
Segunda geração da poesia românticaSegunda geração da poesia romântica
Segunda geração da poesia romântica
 
Lírica e sátira na poesia de bocage
Lírica e sátira na poesia de bocageLírica e sátira na poesia de bocage
Lírica e sátira na poesia de bocage
 
Poemas de Bocage
Poemas de Bocage Poemas de Bocage
Poemas de Bocage
 
Paradoxos de um comediante Qorpo-santo
Paradoxos de um comediante   Qorpo-santoParadoxos de um comediante   Qorpo-santo
Paradoxos de um comediante Qorpo-santo
 
Análise de o homem e sua hora
Análise de o homem e sua horaAnálise de o homem e sua hora
Análise de o homem e sua hora
 
TI:Bocageapresentaçao
TI:BocageapresentaçaoTI:Bocageapresentaçao
TI:Bocageapresentaçao
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, terceira aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, terceira aula de cábulasApresentação para décimo segundo ano de 2016 7, terceira aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, terceira aula de cábulas
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, primeira aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, primeira aula de cábulasApresentação para décimo segundo ano de 2016 7, primeira aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, primeira aula de cábulas
 
Espumas flutuantes
Espumas flutuantesEspumas flutuantes
Espumas flutuantes
 
Arcano dezenove renata bomfim
Arcano dezenove  renata bomfimArcano dezenove  renata bomfim
Arcano dezenove renata bomfim
 
Orfeu rebelde
Orfeu rebeldeOrfeu rebelde
Orfeu rebelde
 
Q114
Q114Q114
Q114
 
Terceira geração da poesia romântica
Terceira geração da poesia românticaTerceira geração da poesia romântica
Terceira geração da poesia romântica
 
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)
 
Memento Mori V Noite De Poesia Arádia Raymon
Memento Mori   V Noite De Poesia   Arádia RaymonMemento Mori   V Noite De Poesia   Arádia Raymon
Memento Mori V Noite De Poesia Arádia Raymon
 
Sonetos de camões
Sonetos de camões Sonetos de camões
Sonetos de camões
 
Noivado do sepulcro
Noivado do sepulcroNoivado do sepulcro
Noivado do sepulcro
 
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, segunda aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, segunda aula de cábulasApresentação para décimo segundo ano de 2016 7, segunda aula de cábulas
Apresentação para décimo segundo ano de 2016 7, segunda aula de cábulas
 

Destaque (20)

Maio.junho
Maio.junhoMaio.junho
Maio.junho
 
Alterações climáticas.s.d.s
Alterações climáticas.s.d.sAlterações climáticas.s.d.s
Alterações climáticas.s.d.s
 
por TELE-satellite 1003
por TELE-satellite 1003por TELE-satellite 1003
por TELE-satellite 1003
 
BotâNicaquasecompleto
BotâNicaquasecompletoBotâNicaquasecompleto
BotâNicaquasecompleto
 
Heróis do Hexa
Heróis do HexaHeróis do Hexa
Heróis do Hexa
 
O Intrigante Iraque
O Intrigante IraqueO Intrigante Iraque
O Intrigante Iraque
 
Embu das artes
Embu das artesEmbu das artes
Embu das artes
 
4practica 4 secuencia didactica equipo 4 problemas de progresiones
4practica 4 secuencia didactica equipo 4 problemas de progresiones4practica 4 secuencia didactica equipo 4 problemas de progresiones
4practica 4 secuencia didactica equipo 4 problemas de progresiones
 
A Experiência (e a falta dela) em Linux como usuário comum
A Experiência (e a falta dela) em Linux como usuário comumA Experiência (e a falta dela) em Linux como usuário comum
A Experiência (e a falta dela) em Linux como usuário comum
 
E book marketing-digital
E book marketing-digitalE book marketing-digital
E book marketing-digital
 
Oficina de ged ecm bpm 2010 rio lpd
Oficina de ged ecm bpm 2010 rio lpdOficina de ged ecm bpm 2010 rio lpd
Oficina de ged ecm bpm 2010 rio lpd
 
propuesta
propuestapropuesta
propuesta
 
Modelo de apresentação 2
Modelo de apresentação 2Modelo de apresentação 2
Modelo de apresentação 2
 
DATA POPULAR_CLASSE C NO SHOPPING
DATA POPULAR_CLASSE C NO SHOPPINGDATA POPULAR_CLASSE C NO SHOPPING
DATA POPULAR_CLASSE C NO SHOPPING
 
Caja trujillo presentaciòn
Caja trujillo presentaciònCaja trujillo presentaciòn
Caja trujillo presentaciòn
 
Confiabilidad
Confiabilidad Confiabilidad
Confiabilidad
 
Lipidos
LipidosLipidos
Lipidos
 
Roberto Bergamo - artista plastico - obras
Roberto Bergamo -  artista plastico - obrasRoberto Bergamo -  artista plastico - obras
Roberto Bergamo - artista plastico - obras
 
Comicas
ComicasComicas
Comicas
 
Expertise Thinkommunity - out 2013
Expertise   Thinkommunity - out 2013Expertise   Thinkommunity - out 2013
Expertise Thinkommunity - out 2013
 

Semelhante a Magnetismoterrestre2

O quotidiano na obra de Cesário Verde
O quotidiano na obra de Cesário VerdeO quotidiano na obra de Cesário Verde
O quotidiano na obra de Cesário VerdeMariaVerde1995
 
O RAPTO DE EUROPA: Uma comparação entre Ovídio e Ticiano / The Rape of Europa...
O RAPTO DE EUROPA: Uma comparação entre Ovídio e Ticiano / The Rape of Europa...O RAPTO DE EUROPA: Uma comparação entre Ovídio e Ticiano / The Rape of Europa...
O RAPTO DE EUROPA: Uma comparação entre Ovídio e Ticiano / The Rape of Europa...marciothamos
 
Reflexões e interferências
Reflexões e interferênciasReflexões e interferências
Reflexões e interferênciasRegina Gouveia
 
Antologia Digital da ALSPA.pdf
Antologia Digital da ALSPA.pdfAntologia Digital da ALSPA.pdf
Antologia Digital da ALSPA.pdfLuciana Rugani
 
5 exercicios arcadismo-literatura_portugues
5   exercicios arcadismo-literatura_portugues5   exercicios arcadismo-literatura_portugues
5 exercicios arcadismo-literatura_portuguesjasonrplima
 
Carlos Drummond de Andrade A rosa do povo
Carlos Drummond de Andrade  A rosa do povoCarlos Drummond de Andrade  A rosa do povo
Carlos Drummond de Andrade A rosa do povoZanah
 
Marcia feitosa
Marcia feitosaMarcia feitosa
Marcia feitosaliterafro
 
Assis, m os deuses de casaca
Assis, m   os deuses de casacaAssis, m   os deuses de casaca
Assis, m os deuses de casacaNicolas Pelicioni
 
Sugestão de livros projecto eco-escolas
Sugestão de livros projecto eco-escolasSugestão de livros projecto eco-escolas
Sugestão de livros projecto eco-escolasEcoleca
 
Monsaraz Alentejo
Monsaraz AlentejoMonsaraz Alentejo
Monsaraz AlentejoBiaEsteves
 
Crítica ao livro «Reflexões à Boca de Cena / Onstage Reflections» de João Ric...
Crítica ao livro «Reflexões à Boca de Cena / Onstage Reflections» de João Ric...Crítica ao livro «Reflexões à Boca de Cena / Onstage Reflections» de João Ric...
Crítica ao livro «Reflexões à Boca de Cena / Onstage Reflections» de João Ric...Madga Silva
 
Cesario Verde Ave Marias Ana Catarina E Ana Sofia
Cesario Verde   Ave Marias   Ana Catarina E Ana SofiaCesario Verde   Ave Marias   Ana Catarina E Ana Sofia
Cesario Verde Ave Marias Ana Catarina E Ana SofiaJoana Azevedo
 
Crítica ao livro «Eutrapelia de João Ricardo Lopes» (2021)
Crítica ao livro «Eutrapelia de João Ricardo Lopes» (2021)Crítica ao livro «Eutrapelia de João Ricardo Lopes» (2021)
Crítica ao livro «Eutrapelia de João Ricardo Lopes» (2021)Madga Silva
 
Apresentação para décimo primeiro ano de 2015 6, aula 97-98
Apresentação para décimo primeiro ano de 2015 6, aula 97-98Apresentação para décimo primeiro ano de 2015 6, aula 97-98
Apresentação para décimo primeiro ano de 2015 6, aula 97-98luisprista
 
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O Amanhã
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O AmanhãFolhetim Literário Desiderata n 2 - O Amanhã
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O AmanhãJosé Feldman
 
Polishop (livro de poesia) - Tiago Nené [pt]
Polishop (livro de poesia) - Tiago Nené [pt]Polishop (livro de poesia) - Tiago Nené [pt]
Polishop (livro de poesia) - Tiago Nené [pt]mafia888
 

Semelhante a Magnetismoterrestre2 (20)

O quotidiano na obra de Cesário Verde
O quotidiano na obra de Cesário VerdeO quotidiano na obra de Cesário Verde
O quotidiano na obra de Cesário Verde
 
Ria5
Ria5Ria5
Ria5
 
O RAPTO DE EUROPA: Uma comparação entre Ovídio e Ticiano / The Rape of Europa...
O RAPTO DE EUROPA: Uma comparação entre Ovídio e Ticiano / The Rape of Europa...O RAPTO DE EUROPA: Uma comparação entre Ovídio e Ticiano / The Rape of Europa...
O RAPTO DE EUROPA: Uma comparação entre Ovídio e Ticiano / The Rape of Europa...
 
Reflexões e interferências
Reflexões e interferênciasReflexões e interferências
Reflexões e interferências
 
Antologia Digital da ALSPA.pdf
Antologia Digital da ALSPA.pdfAntologia Digital da ALSPA.pdf
Antologia Digital da ALSPA.pdf
 
5 exercicios arcadismo-literatura_portugues
5   exercicios arcadismo-literatura_portugues5   exercicios arcadismo-literatura_portugues
5 exercicios arcadismo-literatura_portugues
 
Carlos Drummond de Andrade A rosa do povo
Carlos Drummond de Andrade  A rosa do povoCarlos Drummond de Andrade  A rosa do povo
Carlos Drummond de Andrade A rosa do povo
 
Marcia feitosa
Marcia feitosaMarcia feitosa
Marcia feitosa
 
Assis, m os deuses de casaca
Assis, m   os deuses de casacaAssis, m   os deuses de casaca
Assis, m os deuses de casaca
 
Sugestão de livros projecto eco-escolas
Sugestão de livros projecto eco-escolasSugestão de livros projecto eco-escolas
Sugestão de livros projecto eco-escolas
 
Monsaraz Alentejo
Monsaraz AlentejoMonsaraz Alentejo
Monsaraz Alentejo
 
Crítica ao livro «Reflexões à Boca de Cena / Onstage Reflections» de João Ric...
Crítica ao livro «Reflexões à Boca de Cena / Onstage Reflections» de João Ric...Crítica ao livro «Reflexões à Boca de Cena / Onstage Reflections» de João Ric...
Crítica ao livro «Reflexões à Boca de Cena / Onstage Reflections» de João Ric...
 
Monsaraz
MonsarazMonsaraz
Monsaraz
 
Cesario Verde Ave Marias Ana Catarina E Ana Sofia
Cesario Verde   Ave Marias   Ana Catarina E Ana SofiaCesario Verde   Ave Marias   Ana Catarina E Ana Sofia
Cesario Verde Ave Marias Ana Catarina E Ana Sofia
 
Os Lusíadas Ilha dos Amores - Canto X
Os Lusíadas   Ilha dos Amores -  Canto XOs Lusíadas   Ilha dos Amores -  Canto X
Os Lusíadas Ilha dos Amores - Canto X
 
Luís vaz de camões (1524 – 1580
Luís vaz de camões (1524 – 1580Luís vaz de camões (1524 – 1580
Luís vaz de camões (1524 – 1580
 
Crítica ao livro «Eutrapelia de João Ricardo Lopes» (2021)
Crítica ao livro «Eutrapelia de João Ricardo Lopes» (2021)Crítica ao livro «Eutrapelia de João Ricardo Lopes» (2021)
Crítica ao livro «Eutrapelia de João Ricardo Lopes» (2021)
 
Apresentação para décimo primeiro ano de 2015 6, aula 97-98
Apresentação para décimo primeiro ano de 2015 6, aula 97-98Apresentação para décimo primeiro ano de 2015 6, aula 97-98
Apresentação para décimo primeiro ano de 2015 6, aula 97-98
 
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O Amanhã
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O AmanhãFolhetim Literário Desiderata n 2 - O Amanhã
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O Amanhã
 
Polishop (livro de poesia) - Tiago Nené [pt]
Polishop (livro de poesia) - Tiago Nené [pt]Polishop (livro de poesia) - Tiago Nené [pt]
Polishop (livro de poesia) - Tiago Nené [pt]
 

Mais de Regina Gouveia

Se eu não fosse professora de física. algumas reflexões sobre práticas letivas
Se eu não fosse professora de física. algumas reflexões sobre práticas letivasSe eu não fosse professora de física. algumas reflexões sobre práticas letivas
Se eu não fosse professora de física. algumas reflexões sobre práticas letivasRegina Gouveia
 
Se eu não fosse professora de Física....
Se eu não fosse professora de Física....Se eu não fosse professora de Física....
Se eu não fosse professora de Física....Regina Gouveia
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordesteRegina Gouveia
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordesteRegina Gouveia
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordesteRegina Gouveia
 
Era uma vez ...ciência e poesia no reino da fantasia
Era uma vez ...ciência e poesia no reino da fantasiaEra uma vez ...ciência e poesia no reino da fantasia
Era uma vez ...ciência e poesia no reino da fantasiaRegina Gouveia
 
Breve história da químicaexperiências
Breve história da químicaexperiênciasBreve história da químicaexperiências
Breve história da químicaexperiênciasRegina Gouveia
 
Actividades sistema solar
Actividades   sistema solarActividades   sistema solar
Actividades sistema solarRegina Gouveia
 
Vou-me embora para Pasárgada
Vou-me embora para PasárgadaVou-me embora para Pasárgada
Vou-me embora para PasárgadaRegina Gouveia
 

Mais de Regina Gouveia (14)

Atvidades cpmpp
Atvidades cpmppAtvidades cpmpp
Atvidades cpmpp
 
Se eu não fosse professora de física. algumas reflexões sobre práticas letivas
Se eu não fosse professora de física. algumas reflexões sobre práticas letivasSe eu não fosse professora de física. algumas reflexões sobre práticas letivas
Se eu não fosse professora de física. algumas reflexões sobre práticas letivas
 
Se eu não fosse professora de Física....
Se eu não fosse professora de Física....Se eu não fosse professora de Física....
Se eu não fosse professora de Física....
 
Xviii a einstein
Xviii a einsteinXviii a einstein
Xviii a einstein
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordeste
 
Magnetismoterrestre2
Magnetismoterrestre2Magnetismoterrestre2
Magnetismoterrestre2
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordeste
 
Estórias com sabor a nordeste
Estórias com  sabor a nordesteEstórias com  sabor a nordeste
Estórias com sabor a nordeste
 
Era uma vez ...ciência e poesia no reino da fantasia
Era uma vez ...ciência e poesia no reino da fantasiaEra uma vez ...ciência e poesia no reino da fantasia
Era uma vez ...ciência e poesia no reino da fantasia
 
Breve história da químicaexperiências
Breve história da químicaexperiênciasBreve história da químicaexperiências
Breve história da químicaexperiências
 
Actividades sistema solar
Actividades   sistema solarActividades   sistema solar
Actividades sistema solar
 
Pp
PpPp
Pp
 
Vou-me embora para Pasárgada
Vou-me embora para PasárgadaVou-me embora para Pasárgada
Vou-me embora para Pasárgada
 
Cmpp Actividades
Cmpp ActividadesCmpp Actividades
Cmpp Actividades
 

Magnetismoterrestre2

  • 1.
  • 2.
  • 4. Magnetismo Terrestre Género: Poesia Autor: Regina Gouveia Fotografia: Fernando Gouveia Direcção gráfica: fábrica mutante Capa: fábrica mutante Calendário de letras morada ??? contactos ??? Impressão e acabamento: Papelmunde 1ª edição: ????? de 2005 ISBN: Depósito legal:
  • 5. Tudo me prende à terra onde me dei: O rio subitamente adolescente, a luz tropeçando nas esquinas, as areias onde ardi impaciente …. Dizem que há outros céus e outras luas e outros olhos densos de alegria mas eu sou destas casas, destas ruas, deste amor a escorrer melancolia Eugénio de Andrade, “Canção Breve”
  • 6.
  • 7. Prefácio A beleza das coisas só pode ser fruída por um espírito sensível e o artista, ao exprimir na obra a estesia que alguma vez experimentou, inescapavelmente deixa nela as marcas da sua idiossincrasia e das suas vivências. O título desta colectânea de poemas repassados de saudades de um tempo e de um lugar (que afinal é um universo) é a transposição alegórica de uma temática científica da área da Física, o que não surpreende porque a autora, docente de Física e Química pode, com a maior naturalidade, emoldurar o seu estro em referentes científicos ainda que metafóricos, como é o caso presente e foi também o caso das obras anteriores Reflexões e Interferências e Poeira Cósmica. A vertente poética que a autora manifesta e cultiva com mestria mostra, por um lado, que a formação científica e a actividade profissional, ainda que empenhada (como é o caso) não satisfazem cabalmente os anseios de uma alma sensível que busca a completude. Por isso, que a prática da arte seja um complemento cabonde do frio racionalismo que enforma e estrutura a ciência. A autora reconhece-o quando diz “É difícil de explicar pois não há explicação que assente só na razão“ (poema Sensações, nesta obra). Os poetas são seres sensíveis que, consonantes com a Natureza, vêm e exprimem o que a razão não alcança. A mente do artista pode atribuir às coisas características que a pessoa dita normal não vislumbra.”A paisagem é um estado de alma“, Fernando Pessoa dixit. Os vinte e sete poemas que a autora nos oferece estão impregnados da recordação saudosa das coisas e dos seres dos lugares onde decorreu a sua meninice, infância e adolescência (o Universo da autora)
  • 8. 08/09 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia recordação que se aviva a cada visita ao seu rincão sito no Nordeste Transmontano. O que está plasmado nos versos que nos deixa é a transfiguração pelo poeta que a autora é, do sentimento induzido por esse pequeno / grande mundo para ela de tão gratas memórias. A formação científica da autora transparece, como em António Gedeão, na obra poética. Assim, às vezes, notas de cariz científico surgem integrados no discurso poético sem quebras de ritmo nem significância, antes pelo contrário, como é, por exemplo o caso do final do poema Ilusão “ No ocaso, o sol vermelho já se esconde, porém, já lá não está, é ilusão. Ainda o vemos devido à refracção.” Outras vezes (poema Big Bang) noções científicas como a do Big Bang, ligado à expansão do Universo são contrapostas à vivência da autora, cujo Universo, clama, se contrai no tempo. Dos vinte e sete poemas cinco não são inéditos, respigados que foram do primeiro livro publicado pela autora - Reflexões e Interferências. Foram aqui incluídos por se referirem à temática nordestina, foco polarizador da inspiração dos poemas agora dados à estampa. Muitos dos poemas destilam nostalgia de um tempo que passou mas que deixou marcas indeléveis, agora transfiguradas em poesia induzida pela revivência desse passado. No poema que tem expressamente essa designação - Nostalgia - é dada conta do desaparecimento de práticas ancestrais ligadas à economia de subsistência das populações nordestinas (cultura da oliveira e da amendoeira, emblema da região agora substituído pela cerejeira, também objecto de um poema). Curiosa a terminologia ligada a essas práticas como alpechim e infernos.
  • 9. Sem curar de fazer uma recensão completa da obra, no conjunto de grande nível e valor artístico – tarefa que competirá a quem for da arte da crítica literária - apraz- me salientar dois exemplos paradigmáticos: No poema Sensações a autora poetiza “o cheiro da sua casa da aldeia”, o que recorda Régio quando refere em uma das suas obras “ os bons e maus cheiros” de uma velha casa. No poema Entropia a degradação da matéria viva (medronhos apodrecendo no chão) é usada como ilustração do 2º Princípio da Termodinâmica. Já outros autores com formação científica de base poetaram glosando, por exemplo, temas de Física (Niels Bohr) e / ou de Química (António Gedeão / Rómulo de Carvalho). Mas no caso da presente autora a poesia, ainda que insira aspectos da sua cultura científica encadeados no discurso poético, o lirismo dos temas e a forma como são tratados denunciam uma sensibilidade que só pode ser feminina. A presente obra, pela diversidade dos tópicos que percorre, todos ligados à vivência da autora na terra das suas raízes ficará, sem dúvida, como um belo retrato poético do Nordeste Transmontano. José Ferreira da Silva1 1 Professor Catedrático jubilado do Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
  • 10. 10/11 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 11. Raízes As minhas raízes estão em íngremes ladeiras, em terras de xisto, onde crescem amendoeiras, carrascos, sobreiros, oliveiras, e onde o sentir é outro, mais profundo. Como que em busca da certeza de que existo, gosto de vaguear pelas ladeiras, sentindo rumorejar o rio ao fundo.
  • 12. 12/13 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 13. Outrora Outrora seriam por certo diferentes o achatamento polar, o campo magnético, a atracção lunar e, como tal, o peso das coisas, as marés. Diferença subtil, irrelevante, pois se esse tempo, à escala humana é já distante, à escala do Universo ainda é presente. Outrora seriam por certo diferentes as gentes que no castro habitavam mas como hoje, sofriam, amavam e guerreavam em sangrentas batalhas, deixando virgens, talvez para sempre, tímidas donzelas. Testemunhas desse tempo, as muralhas, naturais do lado do abismo, do outro lado humana construção, como também humana a destruição que de onde em onde grassa. Ignorou-se que enquanto o tempo passa, as pedras guardam na memória os feitos da história, o sangue derramado, a glória, o revés. Em terras que com sangue foram adubadas, florescem hoje papoilas encarnadas por entre alvas estevas, roxas arçãs e giestas amarelas. Na Primavera, todas elas salpicam a ladeira do castro até ao rio. Deste, quem sabe, o rumor será ainda eco dum clamor, outrora lançado no vazio.
  • 14. 14/15 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 15. Tempos agrestes Eram tempos agrestes quando da azeitona ou da amêndoa, a apanha. Era o vento cieiro que vinha de Espanha, uma brisa seca, cortante, gelada que gretava a pele já de si curtida, era a soalheira que encardia o rosto no ateado Agosto. Eram tempos agrestes de fugas para França e de passadores de silêncios pesados, de densos suores que iam desgastando dia a dia a vida qual roupa delida já de tanto usada. Eram tempos agrestes grávidos de sol, de frio e de nada.
  • 16. 16/17 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 17. Ocaso Em Fevereiro, o dia quase exangue, era azul claro e rosa a cor do céu. Depois escureceu; tornou-se cor de chumbo e cor de sangue. Talvez anjos brincando na imensidão etérea ou, simplesmente, a interacção da luz com a matéria. O sol vai imergindo por detrás do monte e no horizonte destaca-se a silhueta de um sobreiro. Difusa, voa rasante uma cotovia e é então que, no céu, Vénus se anuncia.
  • 18. 18/19 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 19. Caminhada Flores tímidas, selvagens, atapetam o chão. Coberta de líquenes e musgo, a fraga, ao fundo, onde frágil se equilibra uma oliveira que espreita a queda de água que escorre na ladeira onde agoniza um pombal, já sem função. Um balir de rebanho rompe o ar dolente e uma avezita, que emerge de um sobreiro, toma por seu mundo o céu inteiro. Medito enquanto calcorreio o caminho lentamente. Quanta transformação química ocorrida para transformar húmus em vida… Quanta energia transformada… Quanto neutrino atravessando o nada…
  • 20. 20/21 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 21. Moinho Entre calhaus e areias, grossas, finas, virgens porque há muito não pisadas, e mescladas de vegetação rasteira, resistem ao tempo, no fundo da ladeira, umas ruínas de um açude, um canal e um moinho, cuja cobertura se perdeu como todos os anos se perdia quando o rio, nas enchentes, lúbrico crescia. Ainda hoje o rio umas vezes adormece outras galopa na viagem. Do moinho que agoniza junto à margem resta, corroída, uma mó que em tempos transformava grão em pó. Restam também vestígios de uma antiga construção e, numa fraga, escavada uma pequena cova, talvez a gamela de um cão. Quiçá um perdigueiro, companhia de caça do moleiro.
  • 22. 22/23 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 23. Crepúsculo Plana o falcão sobre a ravina. O sol declina e todo um mistério invade o ar. Num eco etéreo, há um rumor que se aproxima. Talvez o vento cujo lamento cruza a neblina que esconde o dia e abraça a noite que se anuncia numa acalmia, numa doçura crepuscular. Porém, na Terra, algures há guerra, bombas, granadas a deflagrar.
  • 24. 24/25 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 25. Barca Entardece. Ainda uns raios de sol, já desmaiados que se reflectem nos calhaus rolados que o rio afaga. No ar, um silêncio que apenas o rumor do rio apaga, rumor, ou talvez prece ao Senhor da Barca, ali ao lado. Já não existe mais a barca que outrora foi real mas na margem do rio, enferrujado, testemunha de um tempo intemporal, jaz moribundo um pedaço do cabo que, a cada viagem, guiava a barca de uma à outra margem.
  • 26. 26/27 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 27. Big-Bang Na minha infância, o Universo estendia-se do Castelo até às Eiras, envolvendo a Praça e o Cabecinho onde ficava a minha escola. À volta eram ladeiras que velavam o sono do rio lá no fundo. Era assim o meu mundo que, para mim, era maior que o infinito e que em cinco linhas aqui ficou descrito, contrariando assim, à evidência, uma das conjecturas da ciência. Desde o seu Big-Bang o meu Universo contrai-se, não se expande.
  • 28. 28/29 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 29. Teia Com as recordações da minha infância fui tecendo, dia a dia, enredada teia. O cheiro do azeite no lagar e no Outono a fermentar o mosto, o céu estrelado, o luar de Agosto, as cores da Primavera e as do Outono, o vermelho das papoilas, dos medronhos, o branco das flores de amendoeira, o sabor das amoras de silva ou de amoreira, as histórias contadas à lareira, o som da chuva, da neve, do granizo, na escacha da amêndoa, o som do riso, o rumorejar do rio no fundo da ladeira, o piar da coruja, o bramir do vento, são imagens que preenchem os meus sonhos e assim invadem o meu pensamento, enredando-o na emaranhada teia que até hoje a minha vida prende por um fio, que tanto se contrai como distende.
  • 30. 30/31 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 31. Ponte 2 Sempre em concordância com o traçado, desventraram a ladeira de um e outro lado. O rio, no fundo, parece alheado, correndo ligeiro ou sonhando parado. Sobre ele crescem, da ponte, pilares e tabuleiro. Este, apoiado só no meio, cresce dia a dia para um e outro lado, sempre em simetria. As leis da física assim o determinam. Pesos, momentos, reacções, tensões, tudo se conjuga em equações que os operários jamais imaginam. Em busca da terra prometida vêm daquém, dalém, vêm de Leste, vêm de África, têm vida agreste, chegam a pagar o sonho com a vida. E o Sabor, em eterno devaneio, beija a ladeira a tudo o mais alheio. 2 Foto gentilmente cedida por Maria Manuel Gouveia.
  • 32. 32/33 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 33. Casas de Xisto Casas de xisto com, sem escaleiras, traves de zimbro nas padieiras, balcões, sacadas, toscas ombreiras, foram com o tempo, há muito tempo… Ficaram histórias entre as memórias que traz o vento que chora, chora e no seu pranto lembra o encanto das casas de outrora.
  • 34. 34/35 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 35. Stacatto Ali onde o silêncio impera e onde o infinito faz sentido, numa fraga, junto ao rio, foi esculpido algo que pode ser uma mensagem, uma data, talvez de uma romagem, um nome, quiçá o de um romeiro, que envolto num denso nevoeiro, surgiu num dealbar de primavera.
  • 36. 36/37 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 37. Divagação Com o olhar perdido entre rio e céu, tendo por horizonte o infinito, divaga o meu eu, angustiado, aflito. Se este rio fosse meu, não permitiria que algo o poluísse e talvez um dia com ele me fundisse num apertado e sempiterno abraço quando a vida nada mais fosse que cansaço
  • 38. 38/39 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 39. Cores outonais O muro de xisto é já uma ruína mas a vinha, velha e tão cansada, exibe de novo os seus tons outonais. Numa subtil gradação de frequências a folhagem é agora amarelada, acobreada, cor de vinho, acastanhada. Ostentam cores outonais também, mais além, a pereira e o marmeleiro. Enquanto transferências de electrões desencadeiam oxidações e reduções, carotenos e antocianinas conjugam-se em paisagens quase surreais. Sentada numa fraga, ao lado de um sobreiro, quero perpetuar estes instantes, transformar em eterno este momento, mas o agora de há pouco já é antes, nesta implacável corrida do tempo.
  • 40. 40/41 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 41. Prodígio Prodigiosa aquela cerejeira com seus frutos. Sensual, rubro o epicarpo, carnudo, nacarado o mesocarpo da pudica semente protecção. Tal como se fora a vez primeira, saboreio uma cereja calmamente num misto de volúpia e devoção.
  • 42. 42/43 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 43. Andorinhas Sentada no terraço, vejo as andorinhas entrar e sair dos ninhos na casa do vizinho. O vizinho morreu e a casa está abandonada, mas as andorinhas, de luto, como é sempre o seu vestir, talvez pelo vizinho, os que o antecederam e os que ainda hão-de vir, continuam a voltear em torno dos ninhos na casa agora abandonada do vizinho que morreu. Sempre me lembro das andorinhas no beiral da casa do vizinho. Sei que as de agora não são as mesmas que as de outrora mas talvez de geração em geração, tal como passa o sentido de orientação, tenha passado a informação da minha existência no terraço em frente à casa do vizinho desde quando o meu pai me dizia poesia que falava da sua migração. Orientadas pelo campo magnético terrestre, pelo sol, pelas estrelas, ou simplesmente navegando à vista, aí vão elas seguindo uma pista que as trará de volta novamente, quando se iniciar o tempo quente Só que um dia já não haverá casa do vizinho, nem eu estarei no terraço a recebê-las.
  • 44. 44/45 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 45. Lição Constava no compêndio que eu tinha que estudar que o azeite, no essencial, é um misto de oleína e palmitina de diferente densidade e ponto de fusão Falava ainda o meu compêndio em decantação, ponto de inflamação, porém, ainda antes do compêndio, era bem pequenina e já sabia que os negros frutos de todo o olival iriam ser esmagados no lagar para das entranhas o azeite retirar junto com o alpechim do qual se iria separar Amargo e negro, o alpechim iria ser lançado nos infernos3. Também antes do compêndio já sabia que em candeias o azeite iria alumiar e que em gélidos Invernos iria talhar, em duas camadas se iria separar, a inferior, pastosa, esbranquiçada, a superior , viscosa, amarelada. Mas quando criança, também me apercebia que o tão dourado azeite, à mesa sempre usado com deleite, na malga do pobre não ia ter lugar, quando muito o azeite das sobras de fritar. Só que isso não constava no compêndio. 3 Reservatórios para recolha do alpechim.
  • 46. 46/47 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 47. Estevas Pegajosas as estevas, quando florescem, ostentam flores majestosas de fino odor. Porém as flores fenecem. Resta uma além, murcha, esquecida. Pobre flor! Uma das pétalas já não tem vida mas, mesmo assim, desfalecida, mantém o odor.
  • 48. 48/49 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 49. Nostalgia Quando passo num amendoal, após o verão, sinto um misto de nostalgia e emoção ao ver a amêndoa abandonada nas árvores e no chão. Outrora significou prosperidade e eram guardados os amendoais para garantir que os rebusqueiros não rebuscavam demais, que rebuscavam só no chão, à claridade, só de dia e não ao lusco-fusco. Hoje já ninguém anda ao rebusco. No Verão, sob um sol abrasador, era a apanha. Hoje fica nas árvores e cai na terra que a arrebanha e com ela se funde; confundem-se os seus tons. Da escacha já há muito não se ouvem sons. Os escachadores ora em uníssono, ora desfasados, habilmente manejados com gestos secos, certeiros e breves por mulheres, crianças, raparigas, que enchiam o ar de risos e cantigas, iam partindo a amêndoa, sempre cadenciados, deixando o grão intacto ou com mazelas leves, enquanto das cascas, o monte crescia no chão.
  • 50.
  • 51. Mais tarde, a par da lenha, na lareira, iriam servir para combustão. O grão ia para sacos de serapilheira. Mais tarde era vendido e o seu destino era assim perdido. Aquele que ficava imperfeito, esbotenado, iria ser, mais tarde, laminado, misturado com ovos e açúcar, nos rochedos cujas receitas eram envoltas em segredos e cuja doçura ocultava a agrura de tanta fadiga e de tanto suor. Eram a lavra, a limpa, a enxertia, ano após ano um ritual que se cumpria e quando floriam as amendoeiras, o lavrador contemplava do cimo das ladeiras aqueles véus de noiva a perder de vista, não com o olhar breve de um turista, mas com um profundo olhar, cheio de amor.
  • 52. 52/53 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 53. Flores de amendoeira As flores de amendoeira, antes da Primavera, cobrem a ladeira como um branco véu ou como vestes de anjo que se esfumou no céu. Impressa no código genético a química magia da ebúrnea cor que recende a nostalgia
  • 54. 54/53 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 55. Ilusão4 Em pleno estio os meus olhos vagueiam na ladeira que exulta em cor, em cheiro e em sons que me afloram o ouvido, subtis. Os meus olhos vagueiam na ladeira, exuberante em todos os seus tons, tecendo à minha volta mil ardis É o amarelo das searas, das oliveiras o verde prateado, dos troncos dos sobreiros o tom acastanhado, mais além um outro verde, das figueiras. Pobres figueiras em terras tão avaras, avaras de água, que não de encantamento que esse de há muito me há a mim tomado enquanto dolente passa o vento que agita os ramos das amendoeiras. Os meus olhos vagueiam na ladeira em pleno estio e sinto um arrepio. Lá em baixo serpenteia preguiçoso o rio e o céu, por cima, dum azul sem fim, parece olhar para mim. 4 Poema incluído em Reflexões e Interferências.
  • 56.
  • 57. Sinto no ar toda uma fragrância e volto sem querer à minha infância de sonhos que nunca mais foram sonhados. Amoras, mel, uvas e mosto de repente sinto-lhes o gosto. Tudo se repete agora e logo, de onde em onde. Cigarras, besouros, libelinhas, gaviões, pardais e andorinhas, urze, giesta, papoilas e tomilho, tudo se agita; é grande a euforia nos meus pensamentos enredados, grávidos de sonho e fantasia que parecem gerar como que um filho, envolto em tule, rendas e brocados. Afaga-me uma onda de alegria matizada de muita nostalgia, aproxima-se a noite, ao fim do dia. No ocaso, o sol vermelho já se esconde, porém, já lá não está, é ilusão! Ainda o vemos devido à refracção
  • 58. 58/59 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 59. Flores5 Eram flores selvagens embelezando Maio, junto ao caminho. Eram muitas e singelas, rubras, azuis, roxas , brancas, amarelas. Os seus nomes? Creio que uma se chamava rosmaninho, as outras não sei, mas não importa. Numa conferência a que a memória me reporta Feynman, Nobel da Física, sobre a ciência dizia que o nome das coisas não é o que mais importa, até porque de lugar para lugar varia. Importa muito mais observar, reflectir, interrogar. Só assim se pode compreender a natureza. E também amar, eu acrescentaria. Veio isto a propósito das flores junto ao caminho, que me impressionaram pela singeleza, mas cujo nome não sei. Por isso as baptizei; a uma chamei ternura e a outra afecto, a uma outra alegria, a uma dei o nome fantasia, a outra atribuí o nome de paixão. A uma que logo ali murchou e murcha se quedou baptizei-a com o nome de ilusão 5 Poema incluído em Reflexões e Interferências.
  • 60. 60/61 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 61. Castro6 Em mato de urze, de giesta, de carrasco, fica ali escondido, abandonado, o castro, castelo dos mouros, como o povo diz, de onde, quem sabe, uma moura donzela fugiu para Castela num belo alazão enquanto soprava o vento suão. Partiu com um mouro, ou partiu com cristão? De livre vontade ou partiu infeliz? Quem sabe, não descenderia da moura donzela minha bisavó, de seu nome Ana que era castelhana fugida da guerra, da luta intestina entre um tal D. Carlos e D. Cristina? Quem sabe? Pergunto ao carrasco, mas não existia, ao tempo, no castro. Questiono o rio que corre no fundo, mas a água de outrora correu, foi embora, perdeu-se no mundo. 6 Poema incluído em Reflexões e Interferências.
  • 62. 62/63 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 63. Hipocrisia7 Lactarius deliciosus. Não sei se foi Lineu quem o nome lhes deu. Eu, no meio do pinhal, com gestos suaves, subtis, vou-as colhendo uma a uma. São as sanchas, frágeis, delicadas, como que envergonhadas, por baixo da caruma. Chapéu e pé em tom alaranjado, já em pequenina, a medo eu as colhia pois sabia que mesmo ali ao lado, outros cogumelos, alguns muito mais belos, teciam seus ardis. Insidiosos, perigosos, escondem em si a muscarina, a psilocibina, tanta, tanta toxina, tantas vezes fatal. Tal qual a hipocrisia nos humanos, desumanos, antes eu diria, que enchem a boca com a democracia e a globalização, visando um mundo novo, enquanto vendem armas para matar o povo que subjugam pela exploração 7 Poema incluído em Reflexões e Interferências.
  • 64. 64/65 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 65. Entropia Desde o átomo à célula, toda uma evolução que desafia os mais ousados sonhos. E assim, no mato denso de carrascos, salpicando de cor os dias baços e dando aos espaços um ar de fantasia, irrompem sensuais e rubros os medronhos. Alguns logo ali se degradam, ao cair no chão. Eis o sentido da evolução. Chamou-se-lhe entropia.
  • 66. 66/67 Magnetismo Terrestre Regina Gouveia
  • 67. Sensações8 Tem um cheiro inconfundível a minha casa da aldeia Não sei se é do rosmaninho que perfuma todo o linho dentro das arcas guardado, se é da madeira das portas, dos tectos e do sobrado se é das pratas no lambrim ou das peças de faiança, são travessas e são pratos, nas paredes pendurados, se é das peças de mobília, uma herança de família, não sei se é dos retratos que às vezes, a horas mortas, falam, sorriem para mim. Terão perfume as memórias de quando eu era criança? Terá perfume a lembrança? Tem um cheiro inesquecível a minha casa da aldeia Mas não é só o odor, são as cores e são os sons que vejo e ouço em qualquer lado e em tudo o que me rodeia Lembro lágrimas, sorrisos, por vezes já imprecisos. Lembro sussurros e histórias, imagens em vários tons, plenas de luz e de cor ou também acinzentadas baças, sem cor, desbotadas. Têm cor alguns dos sons, sons e cores têm odor A minha casa da aldeia cheira a afecto e amor. Mesmo quando estou distante às vezes, por um instante, chego a pensar que estou lá, pois apesar da distância eu sinto aquela fragrância. Que explicação haverá? Será acção magnética? Uma interacção eléctrica? Força electromagnética? Gravítica? Nuclear? Forte ou fraca interacção? É difícil de explicar pois não há explicação que assente só na razão. Esta estranha sensação tem a ver com o coração. 8 Poema incluído em Reflexões e Interferências.
  • 68.
  • 69. Índice 07 Prefácio 10 Raízes 12 Outrora 14 Tempos agrestes 16 Ocaso 18 Caminhada 20 Moinho 22 Crepúsculo 24 Barca 26 Big-Bang 28 Teia 30 Ponte 32 Casas de Xisto 34 Stacatto 36 Divagação 38 Cores outonais 40 Prodígio 42 Andorinhas 44 Lição 46 Estevas 48 Nostalgia 52 Flores de amendoeira 54 Ilusão 58 Flores 60 Castro 62 Hipocrisia 64 Entropia 66 Sensações