Este documento é uma coletânea de poemas escrita por Regina Gouveia sobre suas memórias e raízes no nordeste de Trás-os-Montes, Portugal. O prefácio descreve a autora como uma professora de física e química que expressa sua sensibilidade através da poesia. Os 27 poemas exploram temas como a paisagem, tradições e mudanças na região, enquanto incorporam ocasionalmente conceitos científicos.
4. Magnetismo Terrestre
Género: Poesia
Autor: Regina Gouveia
Fotografia: Fernando Gouveia
Direcção gráfica: fábrica mutante
Capa: fábrica mutante
Calendário de letras
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Impressão e acabamento: Papelmunde
1ª edição: ????? de 2005
ISBN:
Depósito legal:
5. Tudo me prende à terra onde me dei:
O rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente
….
Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia
Eugénio de Andrade, “Canção Breve”
6.
7. Prefácio
A beleza das coisas só pode ser fruída por um espírito
sensível e o artista, ao exprimir na obra a estesia que
alguma vez experimentou, inescapavelmente deixa nela
as marcas da sua idiossincrasia e das suas vivências. O
título desta colectânea de poemas repassados de
saudades de um tempo e de um lugar (que afinal é um
universo) é a transposição alegórica de uma temática
científica da área da Física, o que não surpreende
porque a autora, docente de Física e Química pode, com
a maior naturalidade, emoldurar o seu estro em
referentes científicos ainda que metafóricos, como é o
caso presente e foi também o caso das obras anteriores
Reflexões e Interferências e Poeira Cósmica.
A vertente poética que a autora manifesta e cultiva com
mestria mostra, por um lado, que a formação científica e
a actividade profissional, ainda que empenhada (como é
o caso) não satisfazem cabalmente os anseios de uma
alma sensível que busca a completude. Por isso, que a
prática da arte seja um complemento cabonde do frio
racionalismo que enforma e estrutura a ciência. A autora
reconhece-o quando diz “É difícil de explicar pois não há
explicação que assente só na razão“ (poema Sensações,
nesta obra). Os poetas são seres sensíveis que,
consonantes com a Natureza, vêm e exprimem o que a
razão não alcança. A mente do artista pode atribuir às
coisas características que a pessoa dita normal não
vislumbra.”A paisagem é um estado de alma“, Fernando
Pessoa dixit.
Os vinte e sete poemas que a autora nos oferece estão
impregnados da recordação saudosa das coisas e dos
seres dos lugares onde decorreu a sua meninice,
infância e adolescência (o Universo da autora)
8. 08/09 Magnetismo Terrestre
Regina Gouveia
recordação que se aviva a cada visita ao seu rincão sito
no Nordeste Transmontano. O que está plasmado nos
versos que nos deixa é a transfiguração pelo poeta que a
autora é, do sentimento induzido por esse pequeno /
grande mundo para ela de tão gratas memórias.
A formação científica da autora transparece, como em
António Gedeão, na obra poética. Assim, às vezes, notas
de cariz científico surgem integrados no discurso poético
sem quebras de ritmo nem significância, antes pelo
contrário, como é, por exemplo o caso do final do poema
Ilusão “ No ocaso, o sol vermelho já se esconde, porém,
já lá não está, é ilusão. Ainda o vemos devido à
refracção.” Outras vezes (poema Big Bang) noções
científicas como a do Big Bang, ligado à expansão do
Universo são contrapostas à vivência da autora, cujo
Universo, clama, se contrai no tempo.
Dos vinte e sete poemas cinco não são inéditos,
respigados que foram do primeiro livro publicado pela
autora - Reflexões e Interferências. Foram aqui incluídos
por se referirem à temática nordestina, foco polarizador
da inspiração dos poemas agora dados à estampa.
Muitos dos poemas destilam nostalgia de um tempo que
passou mas que deixou marcas indeléveis, agora
transfiguradas em poesia induzida pela revivência desse
passado. No poema que tem expressamente essa
designação - Nostalgia - é dada conta do
desaparecimento de práticas ancestrais ligadas à
economia de subsistência das populações nordestinas
(cultura da oliveira e da amendoeira, emblema da região
agora substituído pela cerejeira, também objecto de um
poema). Curiosa a terminologia ligada a essas práticas
como alpechim e infernos.
9. Sem curar de fazer uma recensão completa da obra, no
conjunto de grande nível e valor artístico – tarefa que
competirá a quem for da arte da crítica literária - apraz-
me salientar dois exemplos paradigmáticos: No poema
Sensações a autora poetiza “o cheiro da sua casa da
aldeia”, o que recorda Régio quando refere em uma das
suas obras “ os bons e maus cheiros” de uma velha
casa. No poema Entropia a degradação da matéria viva
(medronhos apodrecendo no chão) é usada como
ilustração do 2º Princípio da Termodinâmica.
Já outros autores com formação científica de base
poetaram glosando, por exemplo, temas de Física (Niels
Bohr) e / ou de Química (António Gedeão / Rómulo de
Carvalho). Mas no caso da presente autora a poesia,
ainda que insira aspectos da sua cultura científica
encadeados no discurso poético, o lirismo dos temas e a
forma como são tratados denunciam uma sensibilidade
que só pode ser feminina.
A presente obra, pela diversidade dos tópicos que
percorre, todos ligados à vivência da autora na terra das
suas raízes ficará, sem dúvida, como um belo retrato
poético do Nordeste Transmontano.
José Ferreira da Silva1
1 Professor Catedrático jubilado do Departamento de Física da Faculdade
de Ciências da Universidade do Porto.
11. Raízes
As minhas raízes estão em íngremes ladeiras,
em terras de xisto, onde crescem amendoeiras,
carrascos, sobreiros, oliveiras,
e onde o sentir é outro, mais profundo.
Como que em busca da certeza de que existo,
gosto de vaguear pelas ladeiras,
sentindo rumorejar o rio ao fundo.
13. Outrora
Outrora seriam por certo diferentes
o achatamento polar, o campo magnético,
a atracção lunar e, como tal,
o peso das coisas, as marés.
Diferença subtil, irrelevante,
pois se esse tempo, à escala humana é já distante,
à escala do Universo ainda é presente.
Outrora seriam por certo diferentes
as gentes que no castro habitavam
mas como hoje, sofriam, amavam e guerreavam
em sangrentas batalhas, deixando virgens,
talvez para sempre, tímidas donzelas.
Testemunhas desse tempo, as muralhas,
naturais do lado do abismo,
do outro lado humana construção,
como também humana a destruição
que de onde em onde grassa.
Ignorou-se que enquanto o tempo passa,
as pedras guardam na memória
os feitos da história, o sangue derramado,
a glória, o revés.
Em terras que com sangue foram adubadas,
florescem hoje papoilas encarnadas
por entre alvas estevas, roxas arçãs
e giestas amarelas. Na Primavera,
todas elas salpicam a ladeira do castro até ao rio.
Deste, quem sabe, o rumor será ainda eco
dum clamor, outrora lançado no vazio.
15. Tempos agrestes
Eram tempos agrestes
quando da azeitona ou da amêndoa, a apanha.
Era o vento cieiro que vinha de Espanha,
uma brisa seca, cortante, gelada
que gretava a pele já de si curtida,
era a soalheira que encardia o rosto
no ateado Agosto.
Eram tempos agrestes
de fugas para França e de passadores
de silêncios pesados, de densos suores
que iam desgastando dia a dia a vida
qual roupa delida já de tanto usada.
Eram tempos agrestes
grávidos de sol, de frio e de nada.
17. Ocaso
Em Fevereiro, o dia quase exangue,
era azul claro e rosa a cor do céu.
Depois escureceu; tornou-se cor de chumbo
e cor de sangue.
Talvez anjos brincando na imensidão etérea
ou, simplesmente,
a interacção da luz com a matéria.
O sol vai imergindo por detrás do monte
e no horizonte destaca-se a silhueta de um sobreiro.
Difusa, voa rasante uma cotovia
e é então que, no céu, Vénus se anuncia.
19. Caminhada
Flores tímidas, selvagens, atapetam o chão.
Coberta de líquenes e musgo, a fraga, ao fundo,
onde frágil se equilibra uma oliveira
que espreita a queda de água que escorre na ladeira
onde agoniza um pombal, já sem função.
Um balir de rebanho rompe o ar dolente
e uma avezita, que emerge de um sobreiro,
toma por seu mundo o céu inteiro.
Medito enquanto calcorreio o caminho lentamente.
Quanta transformação química ocorrida
para transformar húmus em vida…
Quanta energia transformada…
Quanto neutrino atravessando o nada…
21. Moinho
Entre calhaus e areias, grossas, finas,
virgens porque há muito não pisadas,
e mescladas de vegetação rasteira,
resistem ao tempo, no fundo da ladeira,
umas ruínas de um açude, um canal e um moinho,
cuja cobertura se perdeu
como todos os anos se perdia quando o rio,
nas enchentes, lúbrico crescia.
Ainda hoje o rio umas vezes adormece
outras galopa na viagem.
Do moinho que agoniza junto à margem
resta, corroída, uma mó que em tempos
transformava grão em pó.
Restam também vestígios de uma antiga construção
e, numa fraga, escavada uma pequena cova,
talvez a gamela de um cão. Quiçá um perdigueiro,
companhia de caça do moleiro.
23. Crepúsculo
Plana o falcão sobre a ravina.
O sol declina e todo um mistério invade o ar.
Num eco etéreo, há um rumor que se aproxima.
Talvez o vento cujo lamento cruza a neblina
que esconde o dia e abraça a noite
que se anuncia numa acalmia,
numa doçura crepuscular.
Porém, na Terra, algures há guerra,
bombas, granadas a deflagrar.
25. Barca
Entardece. Ainda uns raios de sol, já desmaiados
que se reflectem nos calhaus rolados
que o rio afaga. No ar, um silêncio
que apenas o rumor do rio apaga,
rumor, ou talvez prece
ao Senhor da Barca, ali ao lado.
Já não existe mais a barca que outrora foi real
mas na margem do rio, enferrujado,
testemunha de um tempo intemporal,
jaz moribundo um pedaço do cabo
que, a cada viagem, guiava a barca
de uma à outra margem.
27. Big-Bang
Na minha infância, o Universo estendia-se
do Castelo até às Eiras, envolvendo a Praça
e o Cabecinho onde ficava a minha escola.
À volta eram ladeiras que velavam o sono do rio
lá no fundo. Era assim o meu mundo
que, para mim, era maior que o infinito
e que em cinco linhas aqui ficou descrito,
contrariando assim, à evidência,
uma das conjecturas da ciência.
Desde o seu Big-Bang
o meu Universo contrai-se, não se expande.
29. Teia
Com as recordações da minha infância
fui tecendo, dia a dia, enredada teia.
O cheiro do azeite no lagar
e no Outono a fermentar o mosto,
o céu estrelado, o luar de Agosto,
as cores da Primavera e as do Outono,
o vermelho das papoilas, dos medronhos,
o branco das flores de amendoeira,
o sabor das amoras de silva ou de amoreira,
as histórias contadas à lareira,
o som da chuva, da neve, do granizo,
na escacha da amêndoa, o som do riso,
o rumorejar do rio no fundo da ladeira,
o piar da coruja, o bramir do vento,
são imagens que preenchem os meus sonhos
e assim invadem o meu pensamento,
enredando-o na emaranhada teia
que até hoje a minha vida prende
por um fio, que tanto se contrai como distende.
31. Ponte 2
Sempre em concordância com o traçado,
desventraram a ladeira de um e outro lado.
O rio, no fundo, parece alheado,
correndo ligeiro ou sonhando parado.
Sobre ele crescem, da ponte, pilares e tabuleiro.
Este, apoiado só no meio, cresce dia a dia
para um e outro lado, sempre em simetria.
As leis da física assim o determinam.
Pesos, momentos, reacções, tensões,
tudo se conjuga em equações
que os operários jamais imaginam.
Em busca da terra prometida
vêm daquém, dalém, vêm de Leste,
vêm de África, têm vida agreste,
chegam a pagar o sonho com a vida.
E o Sabor, em eterno devaneio,
beija a ladeira a tudo o mais alheio.
2 Foto gentilmente cedida por Maria Manuel Gouveia.
33. Casas de Xisto
Casas de xisto com, sem escaleiras,
traves de zimbro nas padieiras,
balcões, sacadas, toscas ombreiras,
foram com o tempo, há muito tempo…
Ficaram histórias entre as memórias
que traz o vento
que chora, chora e no seu pranto
lembra o encanto das casas de outrora.
35. Stacatto
Ali onde o silêncio impera
e onde o infinito faz sentido,
numa fraga, junto ao rio, foi esculpido
algo que pode ser uma mensagem,
uma data, talvez de uma romagem,
um nome, quiçá o de um romeiro,
que envolto num denso nevoeiro,
surgiu num dealbar de primavera.
37. Divagação
Com o olhar perdido entre rio e céu,
tendo por horizonte o infinito,
divaga o meu eu, angustiado, aflito.
Se este rio fosse meu,
não permitiria que algo o poluísse
e talvez um dia com ele me fundisse
num apertado e sempiterno abraço
quando a vida nada mais fosse que cansaço
39. Cores outonais
O muro de xisto é já uma ruína mas a vinha,
velha e tão cansada,
exibe de novo os seus tons outonais.
Numa subtil gradação de frequências
a folhagem é agora amarelada, acobreada,
cor de vinho, acastanhada.
Ostentam cores outonais também, mais além,
a pereira e o marmeleiro.
Enquanto transferências de electrões
desencadeiam oxidações e reduções,
carotenos e antocianinas
conjugam-se em paisagens quase surreais.
Sentada numa fraga, ao lado de um sobreiro,
quero perpetuar estes instantes,
transformar em eterno este momento,
mas o agora de há pouco já é antes,
nesta implacável corrida do tempo.
41. Prodígio
Prodigiosa aquela cerejeira com seus frutos.
Sensual, rubro o epicarpo, carnudo, nacarado o
mesocarpo
da pudica semente protecção.
Tal como se fora a vez primeira, saboreio uma cereja
calmamente num misto de volúpia e devoção.
43. Andorinhas
Sentada no terraço, vejo as andorinhas
entrar e sair dos ninhos na casa do vizinho.
O vizinho morreu e a casa está abandonada,
mas as andorinhas, de luto,
como é sempre o seu vestir,
talvez pelo vizinho, os que o antecederam
e os que ainda hão-de vir,
continuam a voltear em torno dos ninhos
na casa agora abandonada
do vizinho que morreu.
Sempre me lembro das andorinhas
no beiral da casa do vizinho.
Sei que as de agora não são as mesmas
que as de outrora
mas talvez de geração em geração,
tal como passa o sentido de orientação,
tenha passado a informação
da minha existência no terraço
em frente à casa do vizinho
desde quando o meu pai me dizia poesia
que falava da sua migração.
Orientadas pelo campo magnético terrestre,
pelo sol, pelas estrelas,
ou simplesmente navegando à vista,
aí vão elas seguindo uma pista
que as trará de volta novamente,
quando se iniciar o tempo quente
Só que um dia já não haverá casa do vizinho,
nem eu estarei no terraço a recebê-las.
45. Lição
Constava no compêndio que eu tinha
que estudar que o azeite, no essencial,
é um misto de oleína e palmitina
de diferente densidade e ponto de fusão
Falava ainda o meu compêndio
em decantação, ponto de inflamação,
porém, ainda antes do compêndio,
era bem pequenina e já sabia
que os negros frutos de todo o olival
iriam ser esmagados no lagar
para das entranhas o azeite retirar
junto com o alpechim do qual se iria separar
Amargo e negro, o alpechim
iria ser lançado nos infernos3.
Também antes do compêndio já sabia
que em candeias o azeite iria alumiar
e que em gélidos Invernos iria talhar,
em duas camadas se iria separar,
a inferior, pastosa, esbranquiçada,
a superior , viscosa, amarelada.
Mas quando criança, também me apercebia
que o tão dourado azeite,
à mesa sempre usado com deleite,
na malga do pobre não ia ter lugar,
quando muito o azeite das sobras de fritar.
Só que isso não constava no compêndio.
3 Reservatórios para recolha do alpechim.
47. Estevas
Pegajosas as estevas, quando florescem,
ostentam flores majestosas de fino odor. Porém
as flores fenecem. Resta uma além, murcha, esquecida.
Pobre flor! Uma das pétalas já não tem vida
mas, mesmo assim, desfalecida, mantém o odor.
49. Nostalgia
Quando passo num amendoal, após o verão,
sinto um misto de nostalgia e emoção
ao ver a amêndoa abandonada
nas árvores e no chão.
Outrora significou prosperidade
e eram guardados os amendoais
para garantir que os rebusqueiros
não rebuscavam demais,
que rebuscavam só no chão, à claridade,
só de dia e não ao lusco-fusco.
Hoje já ninguém anda ao rebusco.
No Verão, sob um sol abrasador, era a apanha.
Hoje fica nas árvores e cai na terra
que a arrebanha e com ela se funde;
confundem-se os seus tons.
Da escacha já há muito não se ouvem sons.
Os escachadores ora em uníssono,
ora desfasados, habilmente manejados
com gestos secos, certeiros e breves
por mulheres, crianças, raparigas,
que enchiam o ar de risos e cantigas,
iam partindo a amêndoa, sempre cadenciados,
deixando o grão intacto ou com mazelas leves,
enquanto das cascas, o monte crescia no chão.
50.
51. Mais tarde, a par da lenha, na lareira,
iriam servir para combustão.
O grão ia para sacos de serapilheira.
Mais tarde era vendido
e o seu destino era assim perdido.
Aquele que ficava imperfeito, esbotenado,
iria ser, mais tarde, laminado,
misturado com ovos e açúcar, nos rochedos
cujas receitas eram envoltas em segredos
e cuja doçura ocultava a agrura
de tanta fadiga e de tanto suor.
Eram a lavra, a limpa, a enxertia,
ano após ano um ritual que se cumpria
e quando floriam as amendoeiras,
o lavrador contemplava do cimo das ladeiras
aqueles véus de noiva a perder de vista,
não com o olhar breve de um turista,
mas com um profundo olhar, cheio de amor.
53. Flores de amendoeira
As flores de amendoeira, antes da Primavera,
cobrem a ladeira como um branco véu
ou como vestes de anjo que se esfumou no céu.
Impressa no código genético a química magia
da ebúrnea cor que recende a nostalgia
55. Ilusão4
Em pleno estio
os meus olhos vagueiam na ladeira
que exulta em cor, em cheiro e em sons
que me afloram o ouvido, subtis.
Os meus olhos vagueiam na ladeira,
exuberante em todos os seus tons,
tecendo à minha volta mil ardis
É o amarelo das searas, das oliveiras
o verde prateado, dos troncos dos sobreiros
o tom acastanhado, mais além um outro verde,
das figueiras. Pobres figueiras
em terras tão avaras, avaras de água,
que não de encantamento
que esse de há muito me há a mim tomado
enquanto dolente passa o vento
que agita os ramos das amendoeiras.
Os meus olhos vagueiam na ladeira
em pleno estio e sinto um arrepio.
Lá em baixo serpenteia preguiçoso o rio
e o céu, por cima, dum azul sem fim,
parece olhar para mim.
4 Poema incluído em Reflexões e Interferências.
56.
57. Sinto no ar toda uma fragrância
e volto sem querer à minha infância
de sonhos que nunca mais foram sonhados.
Amoras, mel, uvas e mosto
de repente sinto-lhes o gosto.
Tudo se repete agora e logo, de onde em onde.
Cigarras, besouros, libelinhas,
gaviões, pardais e andorinhas,
urze, giesta, papoilas e tomilho,
tudo se agita; é grande a euforia
nos meus pensamentos enredados,
grávidos de sonho e fantasia
que parecem gerar como que um filho,
envolto em tule, rendas e brocados.
Afaga-me uma onda de alegria
matizada de muita nostalgia,
aproxima-se a noite, ao fim do dia.
No ocaso, o sol vermelho já se esconde,
porém, já lá não está, é ilusão!
Ainda o vemos devido à refracção
59. Flores5
Eram flores selvagens embelezando Maio,
junto ao caminho. Eram muitas e singelas,
rubras, azuis, roxas , brancas, amarelas.
Os seus nomes?
Creio que uma se chamava rosmaninho,
as outras não sei, mas não importa.
Numa conferência a que a memória me reporta
Feynman, Nobel da Física, sobre a ciência dizia
que o nome das coisas não é o que mais importa,
até porque de lugar para lugar varia.
Importa muito mais observar, reflectir, interrogar.
Só assim se pode compreender a natureza.
E também amar, eu acrescentaria.
Veio isto a propósito das flores junto ao caminho,
que me impressionaram pela singeleza,
mas cujo nome não sei. Por isso as baptizei;
a uma chamei ternura e a outra afecto,
a uma outra alegria, a uma dei o nome fantasia,
a outra atribuí o nome de paixão.
A uma que logo ali murchou e murcha se quedou
baptizei-a com o nome de ilusão
5 Poema incluído em Reflexões e Interferências.
61. Castro6
Em mato de urze, de giesta, de carrasco,
fica ali escondido, abandonado, o castro,
castelo dos mouros, como o povo diz,
de onde, quem sabe, uma moura donzela
fugiu para Castela num belo alazão
enquanto soprava o vento suão.
Partiu com um mouro, ou partiu com cristão?
De livre vontade ou partiu infeliz?
Quem sabe, não descenderia da moura donzela
minha bisavó, de seu nome Ana
que era castelhana fugida da guerra, da luta intestina
entre um tal D. Carlos e D. Cristina?
Quem sabe? Pergunto ao carrasco,
mas não existia, ao tempo, no castro.
Questiono o rio que corre no fundo,
mas a água de outrora correu, foi embora,
perdeu-se no mundo.
6 Poema incluído em Reflexões e Interferências.
63. Hipocrisia7
Lactarius deliciosus.
Não sei se foi Lineu quem o nome lhes deu.
Eu, no meio do pinhal,
com gestos suaves, subtis,
vou-as colhendo uma a uma.
São as sanchas, frágeis, delicadas,
como que envergonhadas, por baixo da caruma.
Chapéu e pé em tom alaranjado,
já em pequenina,
a medo eu as colhia pois sabia
que mesmo ali ao lado, outros cogumelos,
alguns muito mais belos, teciam seus ardis.
Insidiosos, perigosos, escondem em si a muscarina,
a psilocibina, tanta, tanta toxina, tantas vezes fatal.
Tal qual a hipocrisia nos humanos,
desumanos, antes eu diria,
que enchem a boca com a democracia
e a globalização, visando um mundo novo,
enquanto vendem armas para matar o povo
que subjugam pela exploração
7 Poema incluído em Reflexões e Interferências.
65. Entropia
Desde o átomo à célula, toda uma evolução
que desafia os mais ousados sonhos.
E assim, no mato denso de carrascos,
salpicando de cor os dias baços
e dando aos espaços um ar de fantasia,
irrompem sensuais e rubros os medronhos.
Alguns logo ali se degradam, ao cair no chão.
Eis o sentido da evolução.
Chamou-se-lhe entropia.
67. Sensações8
Tem um cheiro inconfundível a minha casa da aldeia
Não sei se é do rosmaninho
que perfuma todo o linho dentro das arcas guardado,
se é da madeira das portas, dos tectos
e do sobrado se é das pratas no lambrim
ou das peças de faiança, são travessas e são pratos,
nas paredes pendurados, se é das peças de mobília,
uma herança de família, não sei se é dos retratos
que às vezes, a horas mortas, falam, sorriem para mim.
Terão perfume as memórias de quando eu era criança?
Terá perfume a lembrança?
Tem um cheiro inesquecível a minha casa da aldeia
Mas não é só o odor, são as cores e são os sons
que vejo e ouço em qualquer lado e em tudo o que me rodeia
Lembro lágrimas, sorrisos, por vezes já imprecisos.
Lembro sussurros e histórias,
imagens em vários tons, plenas de luz e de cor
ou também acinzentadas baças, sem cor, desbotadas.
Têm cor alguns dos sons, sons e cores têm odor
A minha casa da aldeia cheira a afecto e amor.
Mesmo quando estou distante às vezes,
por um instante, chego a pensar que estou lá,
pois apesar da distância eu sinto aquela fragrância.
Que explicação haverá? Será acção magnética?
Uma interacção eléctrica? Força electromagnética?
Gravítica? Nuclear? Forte ou fraca interacção?
É difícil de explicar pois não há explicação
que assente só na razão. Esta estranha sensação
tem a ver com o coração.
8 Poema incluído em Reflexões e Interferências.