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Regina Gouveia




Estórias com sabor a Nordeste
Estórias com sabor a Nordeste                                                                    Regina Gouveia




Prefácio


No Prefácio de “O Fogo e as Cinzas” Manuel da Fonseca diz: Ficção constrói-se com o
que fica do passado. Revive-o.
É um pouco esse reviver do passado, de uma vida de mais de meio século, que emerge
em Estórias com sabor a Nordeste. As personagens podem ter sido inspiradas por
personagens reais que conheci no Nordeste Transmontano, mas também em tantos
outros lugares por onde tenho passado e /ou viajado, por personagens reais ou
imaginárias de que ouvi falar à volta da lareira, nos serões ainda iluminados à luz do
petromax, ou simplesmente por personagens que entram em nossas casa através dos
jornais, do ecrã da televisão, dos livros que lemos.
Também os cenários, embora virtuais, são                      inspirados em locais reais. Não será difícil
reconhecer no Rio, o rio Sabor, que Stº Estêvão teve como inspiração o Stº Antão da
Barca, que a Terra nos transporta para a freguesia de Parada e que a Vila teve como
inspiração      Alfândega da Fé. Com cenários e personagens fui construindo estórias, ou
melhor, recriando histórias e estórias                que foram passando, algumas de geração em
geração, quem sabe, “assopradas” pelo vento cieiro….
Mas porquê esse reviver do passado?
Um dos meus passatempos favoritos é, desde criança, a leitura O gosto pela leitura foi-
me incutido principalmente pelo meu pai. Desde sempre me lembro de o ouvir ler-me
excertos de textos ou poesias (Camões, Guerra Junqueiro, Júlio Dinis, Camilo, Victor
Hugo…) . Não sei se lia bem ou mal, sei que ouvi-lo me fascinava e comovia ao mesmo
tempo.      Um dia decidi aventurar-me na escrita, que                     foi secreta até há cerca de três
anos. Em 2000 tinha sido editado, pela mão da Areal Editores, um livro da minha autoria
“ Se eu não fosse professora de Física. Algumas reflexões sobre prática lectivas” Um dia,
a Drª Maria do Carmo Cruz, em conversa, disse-me que já tinha oferecido o meu livro a
várias pessoas. Fiquei um pouco intrigada. Por que razão uma pessoa licenciada em
Germânicas, oferecia um livro que falava do percurso e da                                  experiência de uma
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professora de Física? A resposta vou buscá - la directamente a um texto seu:
E uma obra sua explicando como se tinha tornado professora, entretanto publicada,
mostrava como a sua prosa era igualmente poética. Não podia deixar de lhe perguntar
por que não escrevia Poesia…..:" E quem lhe disse que não escrevo? " Tinha que a ler e
em breve tive o prazer e a honra de ter em mãos os seus escritos. Li-os com um certo



1
  (Extractos do texto de apresentação da autoria da Drª Maria do Carmo Cruz e que consta da colectânea Tempera(Mental),
na qual foram incluídos seis poemas meus)

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Estórias com sabor a Nordeste                                          Regina Gouveia




espanto: eram tão reais, falavam das coisas de todos os dias e, ao mesmo tempo,
mostravam-nas de uma forma que nos permitia vê-las como se pela primeira vez.
É, pois, em primeiro lugar, à Drª Maria do Carmo Cruz que devo o ter ganho coragem
para dar a conhecer a minha escrita. Comecei por participar em duas colectâneas de
poesia e por fim decidi-me a publicar sozinha. Foi assim que surgiu, em 2002, o meu
primeiro livro de poemas “Reflexões e Interferências”, em co-edição com a Editora
Palavra em Mutação.
Incentivada pela aceitação que os meus poemas tiveram, muito para além daquilo que
eu esperava, ganhei coragem para continuar a escrever/publicar poesia e dar a conhecer
a prosa. È assim que surgem Estórias com sabor a Nordeste. Poderá parecer estranho
que tendo começado a publicar tão tardiamente, surjam agora várias publicações
próximas no tempo A explicação, se é que existe, talvez possa ser encontrada      num
poema de Manuel Alegre.


…. E no entanto o tempo agora é de corrida
contra o tempo se corre contra o tempo
contra o tempo se corre e assim se morre
em frente ao mar olhando a desmedida
distância entre a tão curta vida e o amor dela…..
e todo o tempo agora é contra o tempo
e mesmo sem correr só há corrida.
(Canção do tempo que passa, in        Alegre, A.(2001), Livro do Português Errante, D.
Quixote)




Porto, 12 de Abril de 2004




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À memória:
   •   de meus pais, muito em particular à de minha mãe,
   •   dos meus tios Cândida, António e Júlio.


Ao Fernando, a minha segunda memória, ao Miguel, ao Nuno, à Teresa e à Rita.


Ainda aos meus irmãos e à memória duma nossa antepassada castelhana que inspirou
uma das personagens que atravessam estas estórias




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Debaixo dos sobreiros




                                Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve
                                e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é
                                preciso, para os ver, é que os olhos não percam a
                                virgindade original diante da realidade e o coração,
                                depois, não hesite.


                                Miguel Torga , em “ Um Reino Maravilhoso”




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Esta é a estória de uma família. Dela   existem vários testemunhos. Alguns são tão
simples como um lenço bordado, um hissope ou uma luva desgarrada, mas há dois que
se destacam: a CASA e o chão debaixo dos sobreiros. Chamo-lhe estória porque as
personagens são fruto da imaginação. Isso não impede, porém, que esta família tenha a
sua árvore genealógica.




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1
       Meu pai tinha fama de aventureiro. Quando novo, viajara por três continentes, em
situações por vezes rocambolescas. No entanto não foi esse aventureiro que eu conheci
mas sim um homem sem a mínima vontade de sair para qualquer lado. Era lá na TERRA
que ele se sentia bem. E acontecia o mesmo com os seus irmãos. Referiam-se sempre à
aldeia como a TERRA e quando falavam dela era de uma forma tão enlevada que me
confundia. Apercebia-me quando o meu pai tinha que se ausentar por uns dias; ficava
ansioso, tenso e no seu olhar, sempre expressivo, eu notava inquietude que por vezes
me parecia insegurança. Quando regressava a nossa casa, a tranquilidade regressava ao
seu olhar e dizia:
       Há lá dinheiro que pague esta paz. Lembra-me a CASA.
Sempre que o meu pai ou os meus tios se referiam à casa que tinha sido dos avós e
depois dos pais, chamavam-lhe a CASA. Por vezes o meu pai acrescentava:
       Daqui só para debaixo dos sobreiros.
Referia-se deste modo ao cemitério, que está rodeado de sobreiros.
       Também os meus tios tinham uma relação singular com o cemitério. O TIO, que
vivia em Lisboa, sempre que vinha à TERRA dizia:
       Não se esqueçam que eu depois quero vir para debaixo dos sobreiros.
Creio ter entendido esta relação com o cemitério muitos anos mais tarde. A sepultura da
família ficava mesmo em frente ao portão. Quando o cemitério se tornou demasiado
pequeno, foi preciso ampliá-lo. Nas obras de ampliação foi incluída a criação de uma
“alameda” central, pelo que o jazigo teve que ser mudado. Nessa altura já o meu pai e o
TIO estavam suficientemente esclerosados para poderem tomar qualquer decisão; coube
à   TIA escolher o local para onde a campa deveria ser mudada.            Achou que era
importante consultar-me bem como aos meus primos, filhos do TIO. Para nós era
indiferente a nova localização da campa,      mas a TIA queria a nossa opinião.     A seu
pedido, acabei por me deslocar à TERRA. Indicou-me os lugares por que poderíamos
optar e quando sugeri um deles a TIA disse:
       Não. Os vizinhos do lado direito não são lá muito boa gente.
A uma outra sugestão, ripostou:
       Aí ? Tão ensombrado ? Não, tem que ser um lugar mais soalheiro.
Percebi então que a TIA tinha uma concepção        muito própria sobre a vida depois da
morte e admiti que essa concepção seria comum aos irmãos. Para eles, “debaixo dos
sobreiros”, deveria representar em morte, o mesmo que a CASA representara em vida.
Debaixo dos sobreiros está toda a família: os meus avós Álvaro e Marta, os irmãos desta,
os meus tios Clara, Pedro e Adélia, os meus pais, o TIO, a TIA e o marido - o tio Justino.
A tia Laura, mulher do TIO, alfacinha de quatro costados, essa quis ser sepultada no


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jazigo da família, no Alto de S. João. Debaixo dos sobreiros estão também os meus
bisavós: Isabel Castelhana e Luís Engrácio. Foram eles os primeiros a ocupar o jazigo.




2
Nunca conheci os meus bisavós mas a sua história sempre me fascinou. A minha bisavó
terá chegado a Portugal, juntamente com um irmão, por volta de 1865. Eram refugiados
políticos. Durante quase todo o século XIX a Espanha viveu uma terrível convulsão
política muitas vezes caracterizada pela brutalidade. Por volta de 1830 opõem-se duas
facções rivais- cristinistas e carlistas. Os primeiros apoiam a terceira esposa de D.
Fernando, Maria Cristina, regente do Reino em nome de sua filha Isabel II; os segundos
apoiam D. Carlos, irmão do rei. As guerrilhas carlistas prolongar-se-iam até quase finais
do século XIX. Não sei qual das facções a minha bisavó e o irmão apoiavam, apenas sei
que se chamavam Isabel e Diego e tinham como apelido, Rodriguez. Parece que terão
vindo de Castela, pelo que a minha bisavó foi sempre conhecida por Isabel Castelhana.
Os dois irmãos ter-se-ão disfarçado de sombreireiros. Como       da arte não percebiam
nada, sempre que em alguma terra por onde passavam alguém lhes pedia para consertar
um sombreiro eles alegavam ter pressa pois tinham de chegar ainda com dia ao lugar do
destino. Num dia frio de Dezembro, terão chegado famintos e cansados às margens do
Rio, precisamente quando Luís Engrácio varejava uma das quatro únicas oliveiras que
tinha herdado de seus pais, numa nesga de terra, junto ao Rio, num local designado por
Zimbro. Luís Engrácio era ainda jovem (23 anos), mas já marcado por uma vida de
trabalho. Ficara órfão de mãe aos 6 anos e de pai aos 10. Dos seus pais herdara apenas
a nesga de terra no Zimbro, o casebre onde vivia e a alcunha por que era conhecido. O
seu nome era Luís Pereira, mas como a mãe se chamava Engrácia, foi sempre conhecido
pelo Luís Engrácio.
Luís Engrácio tinha as mãos engaranhadas com o frio pelo que resolveu acender uns
guissos para as aquecer. Foi nesse momento que viu surgir Isabel e Diego.
       Boas tardes nos dê Deus. Queçam-se aí - terá dito.
Foram estas as primeiras palavras que aquele que seria o meu bisavô Luís Engrácio
dirigiu àqueles que viriam a ser a minha bisavó Isabel Castelhana e o meu tio bisavô
Diego Rodriguez. O frio, o cansaço e a fome eram tantos que Isabel e Diego devem ter
esquecido o pavor que sempre os assaltou pelo caminho - serem identificados,
denunciados e apanhados pelas hostes da facção rival. Em silêncio chegaram-se à beira
do simulacro de fogueira. Comeram ainda da parca merenda que Luís Engrácio levara
com ele- um cibo de pão com azeitonas e cebola.
Casebre que chega p´ra um, chega p´ra três. Passados        tantos dias, Isabel e Diego
tiveram algo parecido com um tecto para se acolherem, numa aldeia transmontana que
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nunca tinham sonhado conhecer e a que mais tarde os seus netos chamariam a TERRA. A
presença dos dois irmãos, falando arrevesado, levantou uma onda de curiosidade na
aldeia à mistura com alguma suspeita. Seguiu-se-lhes mais tarde um misto de admiração
e respeito, em boa parte graças à estima que todo o povo tinha por Luís Engrácio. Mas
ao povo, não parecia bem Isabel estar a viver no casebre de Luís. Isabel, decidida dizia:
       Hombre, que hay! Yo no estoy haciendo nada de malo.
Não sei se para calar as bocas do povo, se para arranjar quem lhe fizesse o caldo, se por
amor, ou se por ter descoberto que Isabel e Diego tinham conseguido trazer com eles
ouro e dinheiro, Luís Engrácio resolveu casar com Isabel. Na época, um homem para
casar deveria envergar um capote, mas Luís Engrácio não tinha dinheiro para comprá-lo.
Isabel pretendeu oferecer-lho mas Luís não aceitou.
       Enquanto não casarmos o dinheiro é só teu.
Foi assim que o Padre Pimentel casou Isabel Rodriguez com Luís Engrácio, este de capote
emprestado. Os padrinhos foram Diego Rodriguez e Maria Clemente que mais tarde viria
a casar com Diego.
Luís Engrácio era um homem habituado ao trabalho;          o ouro e o dinheiro de Isabel
deram uma ajuda. A nesga de terra no Zimbro começou a aumentar, por compra das
terras vizinhas. O número de oliveiras crescia. Juntavam-se-lhe agora amendoeiras,
sobreiros, laranjeiras, vinha, terras de pão, hortas e lameiros. Isabel cria bichos da seda
e Luís Engrácio abelhas. São agora um casal de lavradores abastados. Engrácio fala com
orgulho de Isabel.
       É uma mulher sabida- referia, querendo significar que a           mulher não era
       analfabeta.
Nunca passara pela cabeça de Luís Engrácio, analfabeto, ter um dia uma mulher que tão
bem soubesse ler, escrever, e fazer contas.
O casebre, esse já há muito que dera lugar à CASA.




3
A transformação do casebre em casa foi gradual. Disso são bem evidentes as escadas
que sobem e descem para os mais variados compartimentos e            o passadiço sobre a
canelha. Também não restam dúvidas que a primeira parte da casa a ser construída foi
a cozinha. Trata-se de um compartimento muito amplo a que se tem acesso da rua, por
umas escadas de xisto, com corrimão de madeira. Ao cimo das escadas existe o balcão a
que se segue uma porta com um postigo. Num dos cantos da cozinha tínhamos o lar.
Ao lar tinha-se acesso por uma portinha de madeira que se prolongava por um conjunto
de escanos que rodeavam a lareira propriamente dita. Em dois dos escanos havia
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preguiças2. Um dos escanos estava encostado a uma parede e em frente a ele existia um
outro, de costas muito altas, por trás das quais funcionava, por baixo a cantareira onde
se colocavam os cântaros da água e por cima o louceiro.
Provavelmente terá sido esta a primeira versão da CASA. Posteriormente o meu bisavô
terá comprado alguns casebres contíguos e a casa foi crescendo. Num dos lados da
cozinha abriram-se duas portas que dão acesso a um quarto e a uma sala com varanda
para a rua; construíram-se ainda duas escadas: uma que dá lugar ao forro - designação
dada ao sótão- e outra que dá acesso a um quarto a um nível ligeiramente inferior e que
foi, durante muito tempo, o quarto dos bichos da seda.                   Mais tarde, do outro lado da
cozinha construíram-se umas escadas que davam acesso a três quartos, a um nível
ligeiramente superior. Um desses quartos constitui o passadiço sobre a canelha debaixo
do qual ficavam a lenha e os carros. Em baixo, a loja (dos bois, dos machos, do cavalo e
do burro), a adega, o pio do vinho, o cortelho dos porcos, o forno e o galinheiro.
Não sei ao certo quantos anos mediaram entre o casamento dos meus bisavós e o
nascimento da primeira filha- a minha avó Marta, mas quando a minha avó nasceu o
casebre já tinha dado lugar à CASA, provavelmente não na sua versão final, mas pelo
menos na sua primeira etapa de construção. A seguir à avó Marta nasceram mais três
filhos - o João que morreu ainda menino, e de quem o meu pai viria a herdar o nome, a
Matilde e o Afonso.
O meu pai foi o primeiro neto dos meus bisavós. Com eles viveu em criança. Com eles,
com a tia Matilde,         o tio Afonso e os criados Pepe, António e             Artúrio,    que substituiu
António quando este morreu. Pepe e António eram galegos e se alguém quisesse ver a
minha bisavó zangada era dizer-lhe que os criados eram da sua terra.
           Hombre, yo soy castellana, no gallega.
Pepe fumava muito e tinha com o tabaco uma relação quase sensual. O meu pai ficava
fascinado ao vê-lo enrolar a mortalha para fazer um cigarro. Uma vez deu um a fumar
a meu pai, tinha ele oito anos. Ficou tão mal disposto que tossiu e vomitou o dia inteiro.
Ficou vacinado para toda a vida. Nunca fumou. Por isso dizia que tinha ficado a dever
um favor a Pepe.          Artúrio era da TERRA e o seu nome era Artur. Foi a mãe, por não
saber dizer o nome, que lhe criou a alcunha. O Artúrio fazia os piões com que o meu pai
brincava. O Artúrio e também o tio Afonso com quem o meu pai sempre manteve uma
relação no mínimo, ambivalente. Penso que o meu pai via o tio Afonso mais como um
companheiro mais velho,            do que como tio. Lembro-me de discutirem muitas vezes, a
ponto de ficarem incompatibilizados temporariamente. O tema podia ser política, futebol,
religião, agricultura, ou qualquer outro, mas se era dia de dar para o torto, tínhamos
discussão pela certa. Por vezes o tio Afonso terminava aos berros.


2
    tábuas que giram em torno de um eixo e podem funcionar como mesas de apoio
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         Lembra-te de que eu sou teu tio.
O fascínio do meu pai pela CASA e pela TERRA vinha desde aquela fase da sua vida,
quando menino.
Gostava de recordar os cheiros, as cores, os gostos: do pão acabado de fazer, do mel,
das compotas no Outono, das torradas (de unto e de azeite, no lagar), do fumeiro (as
alheiras, os salpicões, os bulhos, as chouriças, os chouriços doces com mel e amêndoa),
das sanchas, das rocas e dos roquelhos guisados, dos míscaros assados na brasa, dos
espargos fritos com ovos, das doçarias de Natal (as rabanadas, as filhoses, os milhos, o
arroz doce, a aletria, os fritos de jerimum), dos folares na Páscoa (os de carne e os
doces), das sopas de tomate da tia Matilde, das casulas com bulho, do leite das cabras
acabadas de ordenhar, do queijo, do soro, da coalhada e dos requeijões, das “tortillas”,
das “empanadas”, dos “gaspachos” e das “yemas bentas” da avó, das frutas ao longo de
todo o ano (no Outono as peras, as maçãs, as romãs, os diospiros, os medronhos; no
Inverno e na Primavera, as laranjas; em Junho as amoras de amoreira, as cerejas, as
ginjas, os figos lampos, os pêssegos de S. João, as malapas; no Verão as amoras de
silva, os melões, as melancias, os figos, as uvas).
Gostava de recordar os sons: do toque a rezar3, da escacha da amêndoa, do crepitar da
lenha na lareira, do chiar dos carros de bois e do passar dos machos na rua, dos homens
a pisar o vinho, do ferrador a ferrar os machos, do ferreiro a malhar o ferro, dos sinos da
Igreja na Páscoa e nos casamentos, das vozes na rua ao lusco- fusco, do azeite a estalar
nas sopas de xis, do chiar do porco na matança, do cantar do cuco na primavera.
Gostava de recordar os animais: os bois (o castanho e o manso), os machos (o carriço e
o amarelo que faziam brrrrrrrrrr na loja, por baixo do seu quarto), os porcos e os leitões
no cortelho, as galinhas, os perús e os galos    no galinheiro, o gato Simeão e     a gata
Baronesa, o cão preto e o cão grande, as andorinhas que faziam os ninhos debaixo da
varanda da sala.
Gostava de recordar as suas brincadeiras de menino: pendurado nas engarelas dos
carros, jogando ao pião, à rodinca e ao espiche, trepando às árvores para apanhar os
ninhos, apanhando formigas de asa para montar as costelas aos pássaros, trincando o
carambelo nos dias de muito frio, correndo atrás das canas dos foguetes na festa de Sto
Estevão.
Gostava de recordar os rituais, particularmente o da matança do porco.
Gostava de recordar a feitura do pão, do fumeiro, dos folares, do queijo, do azeite, do
vinho, da aguardente e do sabão com soda e borras de azeite.
O seu amor à TERRA foi-lhe incutido, antes de tudo, pelo avô que ele adorava. Nunca ia
ao Zimbro que não dissesse com os olhos rasos de lágrimas:


3
    toque das Trindades
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       Quantas vezes vim aqui com ele. Aos doze anos eu já sabia podar, enxertar,
       crestar.
A sua relação com a avó era mais distante. Quando lhe perguntava por que razão tinha
vindo de Espanha ela, que nunca se acostumou         a dizer o seu nome em português,
respondia:
       Juan, no me gusta hablar de eso.
Dela   lembrava essencialmente que lhe ensinou as primeiras letras e que era quem o
castigava quando fazia tolices. Quando era castigado, o avô sofria mais que ele. Quantas
vezes, ao sair para o campo voltava atrás e dizia:
       Isabel, tu não ralhes com o menino.
Quando o meu pai tinha doze anos, morreu o meu bisavô e logo depois a minha bisavó.
Dizia o meu pai que morreram de desgosto com a morte da tia Matilde. A tia Matilde era,
no dizer de meu pai, a rapariga mais bonita das redondezas, mas era doente. Tinha um
problema de coração. Aos 19 anos começou a namorar com Luciano Almeida, um jovem
da aldeia. Consciente da sua doença, resolveu ir consultar um médico ao Porto, onde
minha avó Marta vivia com o meu avô Álvaro, ajudante de escrivão de Finanças. A
viagem era penosa. O meu bisavô levou a tia Matilde, a cavalo, até ao Pocinho para
apanhar o combóio. No Porto, era suposto estar o meu avô na estação, à espera da
cunhada. O meu avô não pôde ir pelo que pediu a um colega que lhe fizesse esse favor.
A tia Matilde ficou muito aflita quando não viu o cunhado e mais ainda quando se viu
acompanhada por um desconhecido numa terra, que só pelo tamanho já era de si
assustadora.
Fosse pelo cansaço da viagem, fosse pela angústia da chegada, no dia seguinte à
mesma, a tia Matilde faleceu com um ataque cardíaco. A avó Marta, que estava grávida
pela quinta vez, perdeu a criança e a tia Matilde, em vida, não chegou a regressar à
aldeia para casar com Luciano Almeida.




4
A avó Marta casou com o avô Álvaro Matias em 1898. O avô Álvaro era de uma aldeia
vizinha. Filho de um sapateiro analfabeto, teria sido um continuador do pai se o Padre
Pimentel, pároco de várias aldeias,      entre elas as dos meus avós, não se tivesse
apercebido que o rapaz era muito inteligente e não tivesse convencido o meu bisavô a
deixá-lo ir à escola. A aldeia de Álvaro não tinha escola pelo que percorria a pé todos os
dias os 5 km que separavam a sua aldeia da TERRA. Fez com distinção o exame de
segundo      grau, que era assim que se chamava a quarta classe. A sua paixão era a
leitura. À falta de qualquer livro em casa, um dia em que acompanhou o pai à feira, na
Vila, com os poucos trocados que tinha amealhado, comprou um Borda d´ Água. De
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tanto ler e reler as antevisões do tempo, os conselhos aos lavradores, as anedotas, já
sabia de cor, quer os conteúdos, quer as páginas onde se encontravam.
Cedo o pai se apercebeu de que o filho não tinha grande queda nem para a lavoura nem
para a arte de sapateiro. Aos 15 anos mandou-o para o Porto. Aí tinha um primo que lhe
arranjou o emprego de marçano numa loja de fazendas. Mais tarde, um cliente da loja,
secretário de finanças,         apercebeu-se das capacidades do rapaz e arranjou-lhe o
emprego de ajudante de escrivão. Aos 28 anos o         ajudante de escrivão de Finanças,
regressou pela primeira vez a casa em gozo de férias. Resolveu ir à TERRA visitar o
Padre Pimentel, agora já muito surdo e trôpego. Foi o Padre Pimentel que lhe sugeriu
para esposa a minha avó Marta. Foi ainda o Padre Pimentel quem os casou, seis meses
depois. O casamento foi por procuração pois o meu avô tinha regressado ao Porto e não
era fácil deslocar-se à TERRA para casar. Passados dois meses a minha avó,
aproveitando a companhia do farmacêutico da Vila que tinha que deslocar-se ao Porto,
foi ter com o marido. No Porto nasceram os 4 primeiros filhos do casal - João, José, Clara
e Pedro. Teriam sido cinco não fosse o aborto na sequência da morte da tia Matilde. A
minha avó ficou grávida do tio José pouco tempo depois de meu pai nascer. Por isso,
desde pequenino, e até à morte dos meus bisavós, o meu pai viveu com eles na TERRA.
Após a morte dos meus bisavós, o meu tio avô Afonso continuou a morar na CASA,
acompanhado do Artúrio que entretanto casara e vivia lá com a mulher, Zefa, e os dois
filhos: o António Joaquim e a Germana. Quando o tio Afonso casou com a tia Teresa,
filha única, os pais impuseram-lhe ir viver com eles. Mas Artúrio continuou a viver na
CASA com a sua família, que entretanto cresceu com o nascimento da Balbina. Os meus
avós raramente ali iam, pois naquele tempo a viagem do Porto à TERRA era            difícil,
especialmente com filhos pequenos.
O meu avô sempre desejara aproximar-se da TERRA. Em 1915 conseguiu ser transferido
para a Vila (era assim que era conhecida a sede do Concelho), onde nasceram Adélia e
Matilde. A transferência do meu avô para a Vila permitia-lhe ir com frequência à TERRA.
Na época da caça       sempre que podia, lá estava caído. O meu avô era um grande
caçador. O que ele gostava era de ir à perdiz mas também ia ao coelho, à lebre, às rolas,
aos tordos. A minha avó, no Outono, por altura de fazer as compotas, no Inverno, por
altura de fazer o fumeiro e na Páscoa, época de folares, mudava-se de armas e bagagens
par a CASA e aí permanecia por um tempo cada vez mais dilatado. Por esse tempo já a
CASA pertencia aos meus avós.
Com a reforma do meu avô em 1932, a família regressa definitivamente à CASA que vai
continuar a partilhar com os filhos do Artúrio, o António Joaquim, a Germana e a Balbina
que se encarregam fundamentalmente das lides do campo. Nesta altura, apenas a TIA
vivia com os pais. O TIO, que entretanto tinha cumprido o serviço militar, ingressara na
força aérea e casara com uma jovem de Lisboa. O meu pai, dedicava-se a explorar o
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mundo. Isso até 1934. Em 1935 a TIA casa com o tio Justino, rapaz da aldeia que era
funcionário público em Viana do Castelo.
Todos os Natais, quase sempre na Páscoa, e na altura das vindimas, a TIA e             o tio
Justino regressavam à CASA. O TIO, nem sempre, e quando ia, ia só. A tia Laura foi
apenas três vezes à TERRA, duas delas para dar a conhecer aos avós os meus primos
Afonso e Gonçalo e a terceira no casamento da TIA.
Dos meus tios só conheci a tia Matilde e o tio José, a quem sempre chamei simplesmente
TIA e TIO, e os respectivos cônjuges. Os outros morreram cedo: o tio Pedro, em menino,
com a pneumónica, a tia Clara e a tia Adélia, na flor da idade, tuberculosas. Também não
conheci os meus avós. A minha avó faleceu em 1936 e o meu avô em 1938. Deixaram
aos filhos a CASA praticamente como a tinham recebido dos meus bisavós. Apenas lhe
tinham sido introduzidas três pequenas alterações:     uma delas consistia numa espécie
de quarto de banho, com uma sanita em madeira que dava directamente para a loja dos
machos; as outras duas consistiam em dois nichos (a que na CASA chamavam pilheiras),
um grande e um pequeno, numa das paredes da varanda e quatro cabides, um pouco
toscos, numa das paredes da cozinha. O nicho maior destinava-se a colocar o jornal e o
livro que o meu avô estivesse a ler, o outro destinava-se à caixinha do rapé. Soube da
função dos nichos pelo António Joaquim, que mantendo a tradição de família viveu
sempre na CASA. Foi também por ele que soube da função dos cabides.
       Cada cabide era para seu capote. O do seu avô, o do seu pai, o do seu tio e o do
       Sr. Padre Marcos que vinha todas as noites para conversar com o avô. O do seu
       pai, pouco usado por ele, foi depois destinado ao seu tio Justino.




5
O casamento da TIA com o Tio Justino não foi, de início, motivo de grande alegria para
os meus avós. Não que não gostassem do tio Justino. Antes pelo contrário.
       Se há homem bom está ali- dizia a minha avó.
Mas o casamento iria implicar longas separações e a CASA já estava muito vazia. Talvez
pressentindo isso, a TIA, após o casamento, foi adiando sucessivamente a sua ida para
Viana. O tio Justino vivia numa pensão e vinha à Terra sempre que lhe era possível. Com
a morte da minha avó, em 1936, a ida da TIA para Viana ficou ainda mais complicada.
Como deixar o pai, para mais tão combalido depois da morte da mãe? O tio Justino lá se
ia resignando a continuar a viver no quarto da pensão,        vindo à TERRA sempre que
podia. E foi assim até     à morte do meu avô em 1938. Só então a TIA se decidiu a
acompanhar o marido.


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Estórias com sabor a Nordeste                                             Regina Gouveia




O tio Justino era de facto um homem bom. Coxeava um pouco de uma perna na
sequência de uma tuberculose óssea, mal curada em menino. Por vezes tinha muitas
dores mas não se impacientava. Nunca o vi zangado. O meu pai comentava:
       Só mesmo a paciência do Justino para aturar a ranzinza da minha irmã.
A paciência do tio Justino manifestava-se nas mais pequenas coisas. Era sempre ele que
deitava a canela no arroz doce. Começava por fazer, num papel, um estudo do desenho
que queria fazer no prato. Depois colocava a canela na ponta do cabo de um garfo ou
colher que segurava com a mão esquerda, enquanto, com a mão direita dava pequeninos
toques nesse mesmo cabo. Era um trabalho de minúcia mas cujo efeito era
surpreendente. Nunca vi pratos de arroz doce mais bem decorados, e quem diz arroz
doce diz aletria ou milhos. Foi ainda o tio Justino quem me ensinou a nadar no Rio. E que
paciência ele teve que ter! Ainda hoje está dependurado de uma das traves da adega, o
colete de placas de cortiça, ligadas entre si por tiras de pano, que ele construiu para as
minhas lições. Eu adorava-o.
A TIA era uma boa pessoa, sempre pronta a ajudar, mas o que ela dissesse era lei e ai
de quem a contrariasse. Vivia sempre preocupada com a opinião dos outros.
       Cuidado que isso parece mal; o povo pode falar.
Muito religiosa, explicava todos os factos invocando a intervenção divina. Se uma pessoa
bondosa morria de repente, praticamente sem sofrimento, a TIA comentava:
       É que Deus não dorme e sabe muito bem quem merece a Sua protecção.
Mas se outra boa alma morria depois de um longo sofrimento a TIA justificava:
       O Senhor escolhe os bons para os pôr à prova.
A sua maior fé era em Sto Estevão para todos apenas o Santo- o padroeiro da Terra. A
festa do Santo ocorre no primeiro domingo de Setembro, pelo que genericamente o dia
é de Sol, geralmente intenso. Todos os anos a TIA comentava:
       Sto Estevão fez o milagre. Esteve um dia lindo.
Só me lembro de ter chovido uma vez, na festa do Santo. Também dessa vez a TIA
achou que tinha sido milagre.
       Foi um milagre e dos grandes. Aquela chuvinha serviu para assentar o pó.
Creio que a TIA, após sair da escola, nunca leu qualquer outra coisa que não fossem
missais, bíblias ou pagelas religiosas, que coleccionava, bem como terços. Já a colecção
do tio Justino era de outra natureza. Coleccionava objectos relacionados com as lides do
linho. Eram cardas, espadelas, maças, rocas, fusos, dobadoiras. Até o jipe teve que
compartilhar o seu lugar na garagem, por baixo do passadiço da CASA, agora fechado,
com um tear que comprou numa aldeia vizinha. Também coleccionava termos usados na
TERRA, pelo que andava sempre com um bloquinho no bolso e sempre que ouvia uma
palavra já em desuso ou mal pronunciada, lá ia ele anotá-la. Esta mania de procurar


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coisas, fossem elas objectos ou palavras,          levou a que o TIO lhe chamasse por
brincadeira, o procurador.
O TIO gostava de chamar as pessoas por alcunhas, algumas que só ele usava. A um filho
do António Joaquim, que em criança passava a vida dentro de uma espécie de gaiola
improvisada, idêntica ao que costumamos chamar de parques, chamou sempre Afonso
VI. À TIA chamava-a de agulhinha porque o seu passatempo preferido era fazer renda,
muito particularmente os panos de cinco agulhas. A mim, por ser um pouco irrequieta,
chamava-me piãozinho. Mas a par destas alcunhas carregadas de ternura, havia as que,
pela forma como eram ditas, faziam transparecer um sentimento bem diferente. Uma
delas era “O Botas”, quando se referia a Salazar.
Lembro-me das grandes discussões que havia entre o meu pai e o TIO, sempre por causa
da política. O meu pai era salazarista e para se justificar invocava sempre o mesmo
argumento.
           Eu saí daqui em 1919 e sei bem a bagunça que se vivia. Agora está tudo calmo.
O TIO respondia-lhe então:
           Especialmente em Peniche e em Caxias.
E a partir daqui a conversa subia habitualmente de tom e acabava quase sempre do
mesmo modo. O TIO dizia-lhe:
           Não há pior cego que aquele que não quer ver.
Ao que o meu pai respondia:
           Sim, sim tu falas, mas cagas no prato onde comes. Tenho vergonha de ser teu
           irmão.
Isto tudo era da boca para fora pois       se havia sentimento que o meu pai nutria pelo
irmão não era o de vergonha mas o de orgulho, particularmente         na sua bela carreira
militar.
As opções políticas do meu pai começaram a ficar um pouco abaladas após as eleições de
1958. O TIO conhecia Humberto Delgado com quem tinha trabalhado, e tinha por ele
uma grande consideração que se reflectia na imagem com que o descrevia. Talvez por
isso, o meu pai nutria alguma simpatia pelo General. Mas o seu voto foi, naturalmente,
para o Almirante. No dia 14 de Maio de 1958, dia em que o general passou pelo Porto em
campanha, o meu pai estava lá casualmente e viu. Por isso, quando foram anunciados os
resultados das eleições de 8 de Junho, terá comentado:
           Aqui houve marosca.
Isso, no entanto, não o impediu de continuar a elogiar o homem de S. Bento e a ter em
lugar de destaque, na sua estante, o livro “Salazar na Intimidade”. Em 1960 o TIO é
passado à reserva compulsivamente. Fui eu quem entregou ao meu pai a carta do TIO
que trazia a notícia. O meu pai começou a ler a carta e eu fiquei ali à espera daquele
trecho habitual: “Como vai o piãozinho ? Diz-lhe que já estou com saudades”.
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Mas não foi isso que ouvi. Vi o rosto do meu pai crispar-se e pela primeira vez ouvi-o
dizer um palavrão na minha frente.
       Grandes filhos da puta.
Não entendi a quem se referia, mas se usou o plural não se refere ao TIO, pensei, e saí
de imediato sem que o meu pai desse conta. Creio, no entanto, que o maior golpe nas
suas convicções políticas foi dado em 1965, quando o General foi assassinado. O TIO
passava agora mais tempo na TERRA. Um dia, na varanda da CASA, pegou num jornal
que se referia à morte do general, como tendo sido obra dos seus correligionários.
Comentou em voz alta:
       A quem eles pensam que enganam? Quem o matou foi a “Pevide”.
Como visse o meu olhar atónito o TIO achou que era tempo de eu abrir os olhos. Foi essa
a primeira sessão de esclarecimento político que tive na vida. À noite, talvez um pouco
para provocar o meu pai, comentei que fora a Pide a responsável pela morte do General.
Esperava uma reacção violenta mas fiquei surpreendida quando ouvi o meu pai comentar
com algum desalento :
       Já não digo nada.
Não posso localizar a data em que “Salazar na Intimidade” deixou de ocupar a estante do
meu pai, nem sei que sumiço o livro levou. O certo é que no espólio nunca apareceu.




6
Após a morte dos meus bisavós, o meu pai, com 12 anos, foi viver para o Porto com os
pais e os irmãos (à data José, Pedro e Clara). Tinha feito o exame do primeiro grau com
distinção, mas como o professor Bernardo tinha falecido, a TERRA ficara sem escola e os
seus estudos tinham terminado aí. Era uma criança um pouco selvagem pois os cuidados
disciplinadores da avó não tinham surtido o efeito desejado, face à complacência do avô
aliada à cumplicidade do Pepe, do António, do Artúrio e da Zefa. A casa dos pais era uma
casa cheia de regras. Horas para levantar, horas para deitar, horas para comer, horas
para rezar, horas para ler, regras para estar à mesa. Tudo isto era demais para uma
criança que nem sabia pegar nos talheres.         A sua vida, até aí despreocupada,
transformou-se num inferno. Por um lado os castigos do pai quando alguma regra era
infringida, por outro a chacota dos irmãos para quem era praticamente um estranho. Só
a mãe parecia apoiá-lo. Para agravar tudo isto o pai achou que ele devia completar a
instrução primária. O irmão José frequentava o segundo      grau e tinha um professor
conhecido pelo seu elevado grau de exigência mas também pela sua barbaridade. Foi aos
cuidados desse professor - Germano Vicente Dias - que o meu avô entregou o meu pai.
O meu pai era inteligente pelo que em breve se tornou o melhor aluno da classe. Isso
valeu-lhe a consideração do irmão, em quem passou a ter um aliado. Parecia assim mais
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fácil de suportar a disciplina do pai. As coisas ter-se-iam arranjado se o professor
Germano não tivesse dado um golpe de misericórdia em toda a situação.
O professor passou uma prova para os alunos fazerem e o meu pai foi o único que
resolveu tudo correctamente. Então Germano Vicente Dias passou-lhe a palmatória para
a mão e disse-lhe:
       Hoje és tu que vais castigar os colegas ; o primeiro será o teu irmão a quem terás
       que aplicar dez    palmatoadas, cinco em cada   mão - duas por cada erro, mais
       quatro por cada conta mal feita.
O irmão estendeu cada uma das mãos e o meu pai aplicou-lhe os 10 “bolos” com
bastante suavidade, não fosse ele o seu irmão. Então, o professor tirou-lhe a palmatória
das mãos.
       Eu vou mostrar-te como se usa a palmatória.
As mãos do meu pai jorraram sangue mas não chorou. À noite, enquanto a mãe com
lágrimas nos olhos lhe tratava as mãos, o pai comentava :
       Só assim te farás homem.
No dia seguinte de manhã o meu pai não estava na cama. Tinha saído, pé ante pé,
direito à estação, onde se meteu no combóio do Douro. Expulso do combóio sempre que
era descoberta a sua clandestinidade, fazia troços do percurso a pé, sempre junto à linha
férrea, comendo o que encontrava pelos campos onde passava e assim, ao fim de vários
dias, cheio de fome, sujo e exausto chegou à Vila. Procurou o boticário a       quem se
identificou e em casa de quem dormiu, depois de uma boa ceia. Nesse mesmo dia, um
mensageiro levou a notícia ao meu tio avô Afonso que, no dia seguinte, em pessoa, foi
buscar o sobrinho. Aproveitou para telegrafar para o Porto a sossegar a família
desesperada,    que já imaginava o filho afogado no mar    ou vítima de qualquer outra
fatalidade.
Passa então a viver na CASA com o tio Afonso, o Artúrio e a família deste. Ajuda nas
lides do campo e tem como principal divertimento acompanhar o tio nas peixadas que
faziam no Rio. Aprende a deitar as redes e as chumbeiras e a pôr o embude nas locas ,
para obrigar os peixes a sair. Os homens metiam-se      no Rio, todos nus, mesmo     em
pleno inverno. Ele ainda quase menino, um pouco envergonhado, lá ia também. Peixes
apanhados, era preparar a fogueira para os assar. Para ele sobrava ir buscar a lenha e
atiçar o lume. Os peixes, assados pelos homens, eram acompanhados com aquele pão
que ninguém fazia tão bem como a Zefa, e servidos com aquele molho que, só de
lembrar, fazia crescer água na boca. Guarda dessa altura recordações felizes.
Quando, após a transferência do meu avô, os meus avós foram viver para a Vila, o meu
pai foi viver com eles, mas não conseguiu adaptar-se, apesar de cada vez serem mais
fortes os laços com os irmãos, particularmente com José. Por isso passava a maior parte
do tempo na CASA, mesmo depois do casamento do tio Afonso. O Artúrio proporciona-lhe
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alguns encontros com raparigas e mulheres da TERRA e assim se faz a sua iniciação. Aos
18 anos apaixona-se por Luísa, com 16, de quem toda a vida guardará um lenço
bordado. Mas Luisa morre com a gripe pneumónica. Não houve uma só família na TERRA
que não tivesse ficado de luto devido à pneumónica. O meu tio Pedro, ainda menino,
morre também vítima da epidemia.
Estava-se no rescaldo da Grande Guerra e em Portugal vivia-se uma tremenda
instabilidade política. A pneumónica      tinha espalhado dor e luto à sua volta.
Provavelmente tudo isto, aliado às marcas deixadas pela morte dos avós e à dificuldade
de relacionamento com o pai, terá pesado na decisão que o meu pai tomou. Decidiu
partir, mas nem ele próprio sabia concretamente porque partia tal como não sabia muito
bem para onde ia. Tinha então 19 anos de idade.
A viagem era, de si, uma história fantástica; infelizmente não consegui guardar a maior
parte dos pormenores pois o meu pai não gostava muito de recordá-la. Saiu de casa
ainda noite escura. Num pequeno saco levava a pouca bagagem que tinha e, numa
taleiga, a merenda que Zefa lhe tinha arranjado, convencida que o meu pai ia para uma
festa, numa aldeia um pouco distante. Só levava uma intenção, atravessar a fronteira.
Subiu e desceu ladeiras até chegar ao Douro, que atravessou a nado. Ao fim de alguns
dias foi ter a Medina Del Campo onde foi acolhido por uma família de lavradores, muito
hospitaleira, para quem trabalhou durante cerca de um ano e meio. Mas o seu espírito
inquieto não o deixou parar por lá mais tempo. Conhece Denis, um jovem francês que se
tinha acolhido em Espanha durante a Grande Guerra e que vai regressar a casa em
Bedous, nos Pirinéus, relativamente perto de Lourdes. Parte com ele. Vai a Lourdes com
Denis. Reza pela primeira vez, depois de tanto tempo. Nas suas orações, num misto de
português e castelhano, pois fora assim que as aprendera, lembra os mortos, os vivos, a
TERRA e a CASA. No regresso a Bedous, passam por Pau onde Denis lhe apresenta a
sua prima Monique. Monique parece-se imenso com Luisa, o que perturba o meu pai.
Nasce assim a segunda      grande paixão da sua vida. Disposto a remover montanhas e
com a ajuda de Denis o meu pai aproxima-se da família de Monique. O pai, Mr. Dupont, é
marceneiro e tem uma oficina em Pau. O meu pai vai trabalhar com ele. Aprende o ofício
e trabalha empenhadamente, por um lado para impressionar o pai de          Monique, por
outro porque o trabalho lhe dá prazer. Gostava de usar as plainas, as garlopas, as enxós.
Gostava do cheiro da madeira e do serrim, da resina da madeira de pinho ainda verde.
Com Monique limita-se a trocar olhares que são correspondidos. Parecia que finalmente
iria reencontrar a paz há tanto perdida. Espera toda a semana pelo domingo. Ao entrar
na Igreja faz por entrar logo a seguir a Monique para receber das mãos dela o hissope de
água-benta. E assim passa       mais de um ano. Quando Mr. Dupont se apercebe das
intenções do meu pai chama-o e diz-lhe:


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           Meu rapaz, não tenhas ilusões. A Monique está prometida a um primo                 que
           presentemente vive na Argélia. Logo que regresse casar-se-ão.
Nessa mesma noite o meu pai arruma as trouxas e prepara-se para partir. Por baixo da
porta da marcenaria deixa um envelope dirigido a Mademoiselle Monique. Lá dentro uma
mensagem curta, aliás a única mensagem de amor que trocou com ela, para além dos
olhares e da passagem do hissope.
           Il faut que je parte mais je t´aimerai toujours.
Passa pela igreja. Entra e pede perdão a Deus pela falta que irá cometer. Passa junto da
pia de água-benta e rouba o hissope. Não sabe bem porquê, leva um destino- Marselha
- de que Denis lhe falara. Está-se em 1921, depois da guerra, e arranjar trabalho não é
fácil. Consegue uns biscates na estiva do porto. Conhece marinheiros e com a ajuda de
um deles consegue partir como clandestino para Dakar, no Senegal. Não faz a mínima
ideia de onde fica o Senegal, mas ao consultar o mapa, apercebe-se que é perto da
Guiné, a colónia portuguesa de que ouvira falar nos tempos de escola. Durante a viagem
decide que não ficará em Dakar. Decide que é para a Guiné que há-de ir. Pensava que
uma vez no Senegal seria fácil chegar à Guiné, pois dominava razoavelmente a língua
francesa. Só que ignorava que a maior parte da população falava nas suas línguas
nativas e o francês de pouco lhe serviria. Atravessou parte do Senegal com Infali, um
gila4 guineense. Foi assim que conseguiu chegar à Guiné. Durante a viagem com Infali
toma corpo a ideia de montar um pequeno comércio, com                       o pouco dinheiro que
conseguira juntar ao longo dos últimos três anos. Estabelece-se em                Bafatá. Pela sua
vida passam várias mulheres, uma delas a crioula Cesária. Pela primeira vez escreve
para casa, depois de quase três anos e meio sem dar notícias. A carta encontrou-a por
acaso a TIA, esquecida no meio de umas peças de linho que herdou da mãe. Achou que
eu devia ser a sua depositária e por isso veio parar às minhas mãos.


           Bafatá, 2 de Dezembro de 1922
           Querida Mãe:
           Escrevo-lhe da Guiné, em África. Não é tão longe como Angola ou Moçambique,
           mas mesmo assim demoram-se muitos                  dias a cá chegar, de barco. Imagino
           quantas aflições não terão passado por minha causa. Mas, como coisa ruim não
           tem perigo, encontro-me são e salvo. Quando saí de Portugal fui para Espanha, e
           daí para França. Não imagina as saudades que tive da CASA e de todos,              e o
           número de vezes que pensei em voltar. Eu sei que a mãe não consegue entender
           por que razão parti. Se calhar nem eu sei. Mas eu sou assim. Só estou bem onde
           não estou. Na CASA sinto-me bem, mas a mãe sabe que eu e o pai não nos


4
    contrabandista que faz o comércio transfronteiriço
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       conseguimos entender. Sei que a culpa é minha que sou rebelde. Acredite mãe,
       eu gostava de mudar, mas não consigo. Tanto só estou bem onde não estou, que
       da França vim para aqui, sem eu mesmo saber porquê. Acho que alguém guia os
       meus passos, mesmo sem       eu querer, mas também não sei quem. Mas não se
       preocupe. Estou bem. Aqui é tudo muito diferente. As pessoas são pretas, como a
       mãe deve saber, mas mesmo assim diferentes. Há assim como que uma espécie
       de raças dentro da raça. Há os manjacos, os balantas, os mandingas, os fulas, os
       futa-fulas, os saracolés, os papéis e muitos outros. Não falam português e cada
       uma dessa espécie de raças fala uma língua diferente das outras. Mas há uma
       língua que muitos falam -o crioulo. É nessa língua que eu lhes falo. É engraçado
       o crioulo, mãe. Bó quer dizer tu, cá, quer dizer não, jubi é ver, obi é ouvir. Vivem
       numa espécie de aldeias a que chamamos tabancas. Os homens geralmente
       vivem com mais que uma mulher, todos na mesma casa. As casas são redondas,
       com um só compartimento e cobertas de palha. Alguns, principalmente os fulas,
       criam gado, umas vacas muito magrinhas, mas grande parte vive da agricultura.
       O que mais cultivam é o arroz mas também um pouco de milho e mancarrra
       (amendoim). No amanho da terra não usam arados, nem charruas mas sim uma
       espécie de sachos de madeira. O arroz é cultivado nas bolanhas (uma espécie de
       charcos) e o trabalho é essencialmente feito por mulheres que, enquanto
       trabalham, carregam os filhos ás costas presos com um pano. Aqui faz sempre
       calor. De Novembro a Maio quase que não chove. Nos outros meses cai cada
       aguaceiro, que de repente a água nos dá pelos joelhos. Mas não molhamos as
       calças porque aqui andamos de calções - os brancos, porque os pretos andam
       com uns balandraus até aos pés. Isso os homens, porque as mulheres andam com
       o peito destapado e usam uns panos compridos coloridos, enrolados na cintura e
       que vão quase até ao chão. Andam todos descalços e as mulheres usam muitos
       penduricalhos, geralmente    ao pescoço e nos tornozelos. São muito boa gente
       mas têm costumes muito diferentes dos nossos a começar pela religião Não são
       da nossa religião e a maior parte são muçulmanos. Também acreditam em Deus,
       só que Lhe chamam Alá. Moisés é um profeta e Jesus Cristo também. Dizem que o
       último profeta foi Maomé, que deixou as leis sagradas que respeitam, e que estão
       no Alcorão, que é assim como a Bíblia para nós. Não comem carne de porco nem
       bebem vinho. O seu dia Santo não é o domingo, mas a sexta. Às igrejas, que são
       diferentes das nossas,    chamam mesquitas, mas em muitas tabancas não há
       mesquitas. Mas eles rezam sempre cinco vezes ao dia. Lavam-se antes de rezar e
       rezam de joelhos ,com a cabeça encostada ao chão, virados para Meca que é a
       terra onde nasceu Maomé, e que fica muito longe daqui. Todos os anos, durante
       um mês fazem jejum total do nascer ao pôr- do- sol. Chamam-lhe o mês do
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       Ramadão. A música deles também é muito diferente da nossa, e os instrumentos
       também. Usam muitos, feitos por eles com cabaças, peles de macaco, troncos de
       árvores - são tambores, uma espécie de bandolins, e muitos outros que não lhe
       sei explicar. Eu gosto muito de ver as danças que fazem ao som dessa música.
       Como nem todos são muçulmanos, há quem beba vinho, mas é vinho de palma.
       Não se faz com uvas mas com seiva de palmeiras que são umas árvores muito
       altas. Aqui há árvores muito esquisitas. Há umas muito grandes que parecem ter
       ratos pendurados, mas não são - são uns frutos que não comemos. E por falar em
       frutos há aqui alguns que eu nunca tinha visto. O que mais estranhei foram uns
       que sabem a resina. Agora já me estou a acostumar ao gosto, mas foi custoso.
       Também não comem batatas e couves como nós. Quase só comem arroz. A terra
       também não é como a nossa. É vermelha e não há serras. Há rios muito cheios de
       curvas e maiores que o nosso. Há peixes, mas também não sabem como os
       nossos. Um animal que às vezes aparece nos rios é o crocodilo. Já ouviu falar
       mãe? É como um lagarto muito grande e que come animais grandes, mesmo
       pessoas. Por falar em animais, há aqui muitos macacos que trepam pelas árvores,
       lagartos, pássaros, alguns muito bonitos, e muitos morcegos, tantos, que à noite
       urinam em cima da gente. Há muitas moscas, muito mais que aí. São tantas que
       a gente já as não enxota. Habitua-se e anda com elas pela cara, pelos braços,
       pelas pernas. Há também muito mosquito, osgas, e baratas- grandes que eu sei
       lá. Os cheiros aqui são muito diferentes, mas gosto deles. Não tanto como dos
       nossos, já se vê. Aqui há poucos portugueses mas os poucos que somos juntamo-
       nos de vez em quando, para jogar uma suecada e lembrar as nossas terras. Eu
       tenho um pequeno soto onde vendo de tudo. Quando preciso de comprar coisas,
       por vezes vou de barco a Bolama que é a terra mais importante, e que fica junto
       do mar. Mas também tenho um amigo, o Infali, que é uma espécie de
       contrabandista e que me abastece. Os nomes, como vê, também são diferentes -
       Infali, Mamadu, Bonco, Sajuma, Kumba, Braima, Binta. Pus-me para aqui a contar
       tudo e nem perguntei por todos. Como estão ? O Pai continua a caçar? O José já
       fez a tropa? A Clara já tem namorado ? E as meninas? Já devem estar grandes. E
       o tio Afonso ?     O Artúrio e a Zefa estão bem ? Diga-lhes    que, quando for
       Fevereiro, colham uns galhos de amendoeira em flor e os ponham na sepultura
       dos avós. Ou eles ou os filhos.
       Mãe, vou-me despedir. Como o Natal se aproxima desejo-lhes um Santo Natal.
       Aqui não tem grande graça. Para mim é triste porque me lembro muito dos Natais
       na CASA.
        Recomende-me a todos, que eu qualquer dia volto.
       A sua benção, mãe
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         João


Quando a minha avó recebeu esta carta, já a tia Clara não fazia parte do rol dos vivos;
tinha falecido vítima de tuberculose. A carta está um pouco esborratada. Dizia a TIA que
já tinha chegado assim e que a minha avó reconhecera nela duas lágrimas de meu pai.
Talvez essas duas se tenham misturado com outras, vertidas pela minha avó que durante
aqueles três anos e meio tinha sofrido calada. Ao marido não podia falar da sua dor pois
ele, indignado com a partida do filho, nem sequer no seu nome queria ouvir falar.
O meu pai manter-se-ia em Bafatá por mais uns anos e escreveria mais cartas para casa,
mas delas não ficou qualquer registo. Da sua passagem pela Guiné, para além desta
carta, resta apenas uma foto desbotada ao lado da Cesária, em frente a uma palhota,
possivelmente aquela onde viviam. Durante esse tempo morrerão a sua irmã Adélia, o
Artúrio e a Zefa,      José cumprirá o serviço militar, ingressará na força aérea, casará e
terá dois filhos, e Matilde ficará noiva do tio Justino. A sua estada na Guiné foi
bruscamente interrompida quando, em 1934, adoece gravemente com tifo. Regressa à
TERRA, segundo ele, para morrer. Mas não era esse o seu destino.




7
Quando o barco atraca no cais o TIO aguarda ansioso o irmão. Recebera a carta que lhe
escrevera, já com muita dificuldade, num dos momentos em que a febre abrandara um
pouco.    Em poucas linhas, com uma letra tremida dizia que estava muito doente e
embarcava para Portugal onde esperava chegar ainda com vida para depois ser
sepultado debaixo dos sobreiros. O TIO receava já não reconhecer o irmão pois tinham
passado 15 anos. Mas quando viu descer um homem envelhecido, com aspecto
cadavérico, amparado e muito trémulo, teve como que uma intuição. Quando chegou
perto dele perguntou:
         És o João ?
O meu pai já não respondeu. Caiu inanimado nos braços do irmão. Por isso, quando
naquele dia abriu os olhos, não conseguiu perceber onde estava. Não identificou o quarto
nem o rosto da mulher que o fitava.
         Sou a sua cunhada Laura , mulher do José.
Teve alguma dificuldade em apreender o significado daquelas palavras. Durante um mês
não dera conta do que se passava à sua volta. Nos seus delírios frequentes chamara pelo
avô, pela mãe, pela avó, por Luisa e por Monique. Um dia, alagado em suor grita aflito:
         José perdoa-me mas foi o Sr. Professor que me obrigou.
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Após o incidente no desembarque, o TIO levou o meu pai para sua casa e chamou o
Doutor Silveira, médico da família, que o examinou cuidadosamente.
       Então Doutor? Perguntou o TIO.
       Só por milagre se salvará- respondeu o Doutor Silveira.
O TIO comunicou então para a TERRA o estado em que estava o irmão. As notícias não
os apanharam de surpresa pois já anteriormente tinha escrito a dar conta do conteúdo
da carta do meu pai. Desde esse dia que a minha avó e a TIA passavam a maior parte
do tempo na igreja, onde as velas não se apagavam. Na CASA, todos faziam promessas
a todos os Santos, particularmente a Sto Estevão. Voltas de joelhos à capela, uma toalha
de linho bordada para cada altar, razões de trigo, dias de jejum. Até o meu avô fez uma
promessa, ele que não era muito para essas coisas. Como já de há muito se falava na
necessidade de construir um coreto par as festas em honra de Sto Estevão, o meu avô
prometeu que se o filho se salvasse mandaria construir não um, mas dois coretos junto
da capela do Santo.
Fosse pelas promessas e rezas, fosse pelos cuidados que o TIO e a tia Laura tiveram,
fosse por obra dos medicamentos receitados pelo Dr. Silveira, pouco a pouco o meu pai
foi-se libertando das garras da morte. No primeiro dia em que se levantou para se sentar
numa cadeira de braços no pequeno jardim da casa, foi amparado pela tia Laura e pelo
TIO. Só nesse dia é que reparou nos rostos daqueles seus companheiros dos últimos
tempos. O irmão era uma bela figura- alto e garboso, quando estava fardado ficava com
um aspecto imponente. A cunhada não era bonita mas tinha uma presença agradável.
Reparou então em duas crianças pequenas que brincavam num cavalinho de pau- os
sobrinhos Afonso e Gonçalo que não conhecia, mas de quem o irmão já lhe falara por
carta. Como era possível que durante todo este tempo não se tivesse apercebido das
crianças ? O TIO e a tia Laura tinham-nas posto em casa dos avós maternos durante a
doença do tio. Abraçou o irmão e chorou. Lembrou-se então que o pai dizia que um
homem não chora, mas essa lembrança fê-lo chorar ainda mais.
Passara-se    mais um mês e o meu pai ia poder, finalmente, regressar à CASA.
Interrogava-se várias vezes sobre como iria ser a sua relação com o pai e partiu com
uma certa apreensão. O TIO acompanhou-o pois o seu estado de saúde era            ainda
precário. A viagem entre a Vila e a TERRA foi feita num carro de machos, todo enfeitado
com ramos de árvores, e tocado pelo António Joaquim. Quando chegou ao fundo das
escadas da CASA foi penetrado pelos cheiros que jamais esquecera. Mas o que mais lhe
ficou na memória dos cheiros desse dia foi o dos milhos doces polvilhados com canela.
No balcão, e continuando pela cozinha, estavam todos- o pai, a mãe, o tio Afonso, a irmã
Matilde, o António Joaquim, a Germana e a Balbina. Estes últimos eram ainda muito
novos quando partira pelo que já não os conhecia, embora desde logo tivesse adivinhado


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quem eram. Estavam também muitos vizinhos, entre eles um jovem que também não
reconheceu.
Começou por abraçar a mãe; preparava-se para cumprimentar o pai na forma habitual,
uma vénia com o pedido da bênção. Mas o pai, com os olhos rasos de lágrimas
estreitou-o nos braços.     Seguiram-se os cumprimentos a todos os outros, uns mais
efusivos que outros. Para o fim ficou o jovem que não reconhecera. Era Justino. O
casamento da TIA com o tio Justino já tivera data marcada, mas logo que se soube do
estado de saúde do meu pai a TIA disse-lhe:
         Temos que desmarcar o casamento por agora. O meu irmão João está muito mal
         e as esperanças são poucas. Não vou casar nestas condições.
O meu pai recupera agora rapidamente. Passa a maior parte do tempo sentado na
varanda. No nicho maior da parede há sempre o jornal e um ou outro livro. Não lhe
apetece ler mas o pai vai-lhe dando conta dos principais acontecimentos. Por vezes, ao
fim da tarde, os dois vão até à Fraga. De lá avista-se o Santo, onde já se iniciaram as
obras dos coretos.    Pai e filho aprendem a gostar-se mutuamente,      tal qual são um e
outro. Vai, com os pais e a irmã, conhecer Fátima. Vai também a Viana a e ao Bom
Jesus em Braga. Os pais podem assim rever sítios que já não viam há muito, enquanto
que ele e a irmã os conhecem pela primeira vez.
Tudo parece ter voltado ao normal e a TIA casa finalmente com o tio Justino, no dia 5 de
Agosto de 1935. O casamento foi na capela de Sto Estevão, já rodeada de dois belos
coretos. A Capela de Sto Estevão não fica propriamente na TERRA. Fica à beira do Rio, no
fundo de uma ladeira. Chegar lá não é muito difícil. O pior é regressar, pois a ladeira é
muito íngreme. Vem-se de macho, é certo, mas para os animais a subida também não
é fácil. O casamento foi celebrado pelo Padre Marcos e os padrinhos foram o TIO e a tia
Laura. No fim da cerimónia religiosa e antes de se iniciar o almoço, a ti Idalina cantou as
loas. Possivelmente como ainda as cantava, quando eu a conheci muitos anos mais
tarde.
               “Biba o noibo mai-la noiba
               Bibam os pais que a criaram
               Bibam também os padrinhos
               que à igreja os lubaram”
Seguiu-se o almoço. Peixes do rio, vitela, borrego e peru assados, arroz de vitela,
presunto, folar de carne, bolo moreno, pão de ló, arroz doce, aletria, milhos doces,
súplicas, económicos, e vinho à descrição. Também não podiam faltar o “vinho fino” e os
tremoços, adoçados no Rio.
Após o casamento da TIA todos estranharam a avó, mas atribuíram o seu ar abatido à
apreensão que lhe causava a partida da filha, que supunha para breve. Infelizmente não
era só isso. A Avó estava doente. Já passara por muito. A morte da irmã, dos pais e dos
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três filhos foram-na minando por dentro. A juntar a tudo isso, as aflições que passara
por causa do meu pai. A doença que quase o levara, foi a gota de água. Morre em 1936,
vítima de ataque cardíaco.
A morte da avó abalou muito toda a família. Mas a vida não para. Na CASA vivem agora
o avô, a TIA, o meu pai e o António Joaquim com as irmãs. O tio Justino está a trabalhar
em Viana, mas sempre que pode aparece. Quando o meu pai partiu em 1919, a TIA tinha
apenas dois anos pelo que praticamente não se conheciam. É nesta altura que se vão
criar laços. Com a TIA e com o tio Justino, de quem o meu pai sempre dirá, tal como o
dissera a mãe:
       Se há homem bom, está ali.
Agora restabelecido, o meu pai assume-se pela primeira vez como lavrador. É ele que
trata de todos os problemas da CASA, ajudado pela TIA. Quando é preciso contratar os
ranchos para apanha da amêndoa e da azeitona, contratar os jeireiros para as diferentes
tarefas, vender a amêndoa, o azeite ou o vinho é ele quem vai, depois de ouvir a opinião
do pai, da TIA e do António Joaquim. Participa em todos os trabalhos sejam eles a lavra,
a limpa, ou qualquer outro. Mas os que lhe dão especial prazer são a poda e a enxertia,
que aprendeu em menino com o avô.
Sempre que parece estar a restabelecer-se o equilíbrio na vida emocional do meu pai,
surge algo desestabilizador.     Em 1938, o meu avô morre. Para o meu pai,
estranhamente, a morte do pai foi um golpe mais duro do que a morte da mãe. Talvez
por se terem encontrado tão tarde,   talvez porque mais um laço se rompia. A TIA vai
finalmente para Viana. O meu pai decide partir, desta vez para o Brasil, onde vive o tio
Filipe. O tio Filipe não era propriamente tio. Era um primo da minha avó, filho de Diego
Rodriguez e Maria Clemente. Tendo ficado órfão bastante cedo,         decidiu vender a
herança e partir para o Brasil. A vida correu-lhe bem e tinha em S. Paulo uma firma,
relativamente importante, de venda por grosso - a firma Rodriguez. Manteve sempre
algum contacto com a família pelo que o meu pai partiu ao seu encontro, mas sem disso
o prevenir. De tal modo se sentia que disse aos irmãos que desta vez partia para não
voltar. Antes de partir vendeu ao TIO a sua parte na CASA. Entre a parca bagagem que
levou iam um lenço bordado e um hissope.




8
Apesar da sua vida errante, uma das maiores cidades que o meu pai já tinha visto era
Lisboa, que conhecia mal. Estivera lá apenas duas vezes. A primeira quando regressara
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doente da Guiné, e dessa vez pouco ou nada tinha visto. A segunda             foi antes do
embarque para o Brasil. Durante uma semana,            com o irmão,   tinha    visitado os
Jerónimos, a torre de Belém, o castelo de S. Jorge, tinha passeado pela Baixa, tinha
entrado no Grandela e no Chiado. Quando chegou a S. Paulo, ficou um pouco assustado
com o tamanho da cidade e teve alguma dificuldade em dar com a morada do tio Filipe.
Quando chegou a casa do tio ficou estarrecido. Era uma bela casa, rodeada de um
jardim. Tocou a campainha e        apareceu uma empregada a quem se identificou. O tio
Filipe não estava, mas estava a mulher, a tia Carlota, uma senhora brasileira,
descendente de italianos,       ainda nova. A tia Carlota, recebeu-o numa sala ricamente
mobilada, cheia de cristais e pratas. Nunca o meu pai vira nada parecido. Na CASA não
havia cristais nem pratas, à excepção da caixinha de rapé do pai, no nicho pequeno da
varanda, e quanto aos móveis, eram muito simples- camas de ferro, várias arcas, dois
roupeiros em mogno onde se acomodava a roupa de toda a família e na sala uma mesa
com 12 cadeiras e um louceiro, também em mogno. As outras casas por onde tinha
passado, eram ainda mais simples, à excepção da casa do irmão José em Lisboa, que
em nada se comparava à casa do tio Filipe. Parecia assim confirmada a ideia de que o
tio Filipe estava muito bem de vida. O tio Filipe não estava, mas não devia demorar.
Esperou.
Quando o tio chegou, acompanhado do primo Júlio, 10 anos mais novo que meu pai, este
apresentou-se como o João, o filho mais velho da prima Marta. O tio Filipe nunca
conhecera o João, pois saíra rapaz da Terra, ainda a prima Marta era solteira, mas com
ela trocara sempre correspondência, pelo que estava um pouco a par da vida da família.
O meu pai já não saiu dali.        Ficou   a viver em casa do tio e a trabalhar na firma
Rodriguez, de início fazendo um pouco de tudo, mas logo depois como caixeiro viajante.
O tio Filipe lembrava-lhe um pouco o pai, pois também pautava a sua vida por muitas
regras. A sua e a dos que trabalhavam com ele. Uma das regras que lhe impôs foi:
       Aqui sou o tio Filipe, mas na firma sou o Sr. Rodriguez.
Não sei se ao escolher para o meu pai a vida de viajante, o tio Filipe teve em conta a
vida errante que ele até aí levara. Mas a escolha não poderia ter sido melhor. O meu pai
representava a firma do tio nas principais povoações ao longo da Estrada de Ferro da
Sorocabana: Avaré, Botucatu, Ourinhos, Presidente Prudente. Adorava a sua vida de
viajante. Era muito responsável no seu trabalho, mas totalmente irresponsável no que
dizia respeito à sua vida privada. Tinha uma mulher em cada uma das localidades por
onde passava e      gastava quanto ganhava, com carros, orgias e mulheres. Isto até
conhecer Nair.




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Foi no Brasil        que o meu pai teve uma vida social mais intensa. Torna-se sócio da
ARCESP5, relacionando-se com muitos outros comerciantes, alguns                     deles portugueses
(patrícios, como sempre lhes chamava). Juntamente com seu primo Júlio é sócio de
várias associações culturais e recreativas,                 entre elas o clube de regatas Tietê. É
precisamente nesse clube que ambos conhecem Nair. Desde logo Nair impressiona o meu
pai. Lembra-lhe Luisa e Monique. Não sabe bem porquê. Estas eram relativamente altas,
tinham lábios finos e cabelos castanhos. Nair é relativamente baixa, tem lábios grossos
e olhos e cabelos negros.
Nair não só impressionou o meu pai, como também o seu primo Júlio, mas foi este quem
conquistou o coração de Nair. Não houve disputa entre os dois. Quando o meu pai se
apercebeu de que Júlio gostava de Nair, retirou-se simplesmente de cena. Não seria
justo roubar a mulher ao primo, filho do tio que tão bem o tinha acolhido. Durante anos
viveu uma paixão em silêncio. Nair casou com Júlio em 1942. Meu pai foi, não só
padrinho de casamento, como também padrinho dos dois filhos do casal- uma menina
nascida em 1943 e um rapaz nascido em 1944. Júlio, partilhando uma mania comum a
muitos brasileiros, de darem a todos os filhos nomes começados pela mesma letra, deu
a ambos um nome começado por R: Renata e Ricardo. Renata e Ricardo irão sempre
representar papel importante na vida afectiva do meu pai. De Nair                   guardará sempre,
sem o primo e ela saberem, uma luva que um dia deixou esquecida no clube. Afinal,
omitir este facto ao primo não deveria ser tão grave como roubar um hissope numa
igreja de Pau.
A partir do dia em que conheceu Nair, passou a levar uma vida mais regrada. Para isso
também terá contribuído o fim da sua vida de viajante. Efectivamente o tio Filipe, cedo
se apercebeu que meu pai tinha muito mais jeito para o negócio do que Júlio. Pensou,
então, que a melhor maneira de garantir o futuro da firma após a sua morte, seria dar-
lhe      sociedade. O meu pai tornou-se então sócio minoritário da firma que passou a
chamar-se Rodriguez e Matias. O que o                   tio Filipe nunca imaginou   foi que, uns anos
mais tarde, o            meu pai venderia a sua quota ao primo Júlio, para regressar
definitivamente à TERRA. Mas isso foi depois de conhecer Mariana.




9
Durante todo este tempo o meu pai raramente escreve aos irmãos que se queixam dos
seus silêncios prolongados. Esses escrevem com mais frequência. Nas cartas, dão-lhe
conta do que se vai passando. Numa delas o TIO fala-lhe entusiasticamente da festa de
Sto Estevão em que ele, e                 mais alguns camaradas, acompanharam a procissão


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    Associação dos Representantes Comerciais do Estado de S. Paulo
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sobrevoando-a em aviões. Fala-lhe também de Majores e Coronéis que leva à TERRA e
de uma homenagem que lhe prestaram na Vila. Conta-lhe vários episódios divertidos
como aquele que aconteceu com a Germana, uma das vezes em que foi à TERRA com
dois oficiais seus colegas, e a viúva de um outro, uma senhora suíça, a quem chamavam
Madame Junqueira, por ser este o nome de família do falecido marido, e que        já por
várias vezes manifestara o desejo de conhecer a TERRA. Segundo ela, as descrições do
TIO traziam-lhe à mente recordações da sua Suíça distante. Madame Junqueira não
conseguiu conquistar a simpatia da Germana:
       “A Senhora D. Madama debe ser uma desabergonhada. Bem de Lisboa, só, com
       os homes, e fuma como eis”.
Mas o meu pai tenta esquecer a TERRA, a CASA e tudo o que com elas se relaciona.
Também durante todo este tempo só entrou três vezes numa igreja, aliás sempre a
mesma, a Igreja de N. Sr.ª da Consolação, em S. Paulo. Foi no casamento de Júlio e nos
baptizados de Renata e Ricardo. O coro da igreja acompanhou a cerimónia religiosa do
baptizado de Ricardo. O meu pai reparou particularmente na solista, com uma linda voz
de soprano. Estava decidido a conhecê-la. Seguiu-a várias vezes sem que ela desse por
isso. Soube onde morava. Na rua havia uma estabelecimento de um patrício, “Seu”
Antero, com o qual foi metendo conversa até saber pormenores da sua vida. Era uma
jovem, descendente de italianos, de uma família simples, que vivia ali perto com os pais
e os irmãos. O pai era contabilista na farmo-química Baldacci. A jovem, que se chamava
Mariana, vivera até há pouco tempo com uns tios, numa fazenda do interior do estado.
Foi “Seu” Antero quem apresentou Mariana ao meu pai. Quando o meu pai começou a
fazer a corte a Mariana, ela comentou com a irmã mais velha.
       Aquele “Seu” João é bobo. Podia ser meu pai.
Mas o meu pai, apesar de 20 anos mais velho que Mariana,          era ainda um homem
cativante. Muito vivo, bom contador de histórias, com uma vida social relativamente
intensa e, na altura, com uma boa situação económica. Tudo isto terá contribuído para
que a resistência de Mariana fosse progressivamente diminuindo. Casaram em 1945,
mas só civilmente. Não sei se a iniciativa foi de ambos, ou de algum deles em particular,
mas creio que os dois tinham a consciência que naquela relação havia grande
probabilidade de insucesso.
Mariana revelou-se uma caixinha de surpresas. Não só era uma mulher muito bonita
como tinha uma série de predicados, para além daquele que tinha chamado a atenção do
meu pai, no dia em que a conheceu - a sua bela voz de soprano. Bordava com mãos de
fada e cozinhava     divinamente. Nos primeiros anos de casamento tudo correu bem.
Tinham uma vida despreocupada. Em casa havia de tudo e podiam divertir-se. Iam à
ópera, ao cinema, ao clube, à praia;      viajavam no Chevrolet que o meu pai tinha
comprado, conviviam muito com amigos. Quando Mariana manifestou a vontade de ter
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um filho, aí as coisas complicaram-se. O meu pai disse frontalmente que não queria
filhos. Já não tinha idade para ser pai e além disso era um homem que não gostava de
amarras.      Para crianças     já tinha os afilhados a quem queria como filhos. Perante a
insistência de minha mãe começam as desavenças no casal seguidas de curtas ausências
de meu pai, cada vez mais frequentes. Quando em 1949 a minha mãe lhe anuncia que
está grávida o meu pai propôs-lhe desfazer-se da criança, o que a minha mãe não aceita.
O meu pai terá feito um ultimato à minha mãe:
       Ou ela, ou eu.
Ao que a minha mãe terá respondido:
       Ela.
       As ausências do meu pai tornam-se agora prolongadas, para além de frequentes.
A minha mãe sabe que voltou à vida desregrada que tinha quando era viajante. Mas está
decidida. A criança irá nascer. Quando eu nasci em 10 de Janeiro de 1950, num dia de
calor sufocante, o meu pai estava ausente já há uns dias. Regressou, por acaso, no dia
15 depois de ter passado por casa do primo Júlio onde lhe deram a notícia do meu
nascimento. Quando soube que era uma menina terá apenas comentado:
       Um azar nunca vem só.
Quando entrou em casa eu dormia no berço. Parece que nem para mim olhou. Sentou-se
na sala onde eu e minha mãe nos encontrávamos.              Foi a minha mãe quem falou
primeiro.
       Vens para ficar?
       Ainda não sei- respondeu o meu pai.
A minha mãe saiu por instantes e o meu pai aproximou-se do berço, creio que mais por
curiosidade do que por qualquer outro sentimento. Olhou para mim e voltou a sentar-se.
Quando a minha mãe regressou e após alguns minutos de silêncio, o meu pai perguntou-
lhe:
       Já tem nome?
       Estava a pensar em Gabriela- respondeu a minha mãe
Então o meu pai disse:
       Eu preferia que fosse Marta.
Foi assim que nasceu o meu nome.
Embora o meu pai não tivesse decidido ficar, agora são os períodos de presença que
passam a ser cada vez mais frequentes e prolongados. Um dia, tinha eu já cinco meses,
decidiu-se a ficar definitivamente. Nesse mesmo dia levou lá a casa os afilhados, Ricardo
e Renata. Ter-nos-á apresentado assim:
       Esta menina chama-se Marta e é como se fosse vossa irmã.
E para mim, que do mundo tinha começado a descobrir as minhas mãos, terá dito:
       Estes são a Renata e o Ricardo que são como teus irmãos.
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Estórias com sabor a Nordeste                                               Regina Gouveia




O meu pai tinha decidido          aprender a gostar de mim, como em tempos tivera que
aprender a gostar do pai.
Até essa altura o meu pai praticamente nunca falara da TERRA nem da CASA com a
minha mãe. Será a partir daqui que ele começará a fazê-lo criando na minha mãe uma
imagem que só para ele era real. A CASA era o lugar mais acolhedor que alguma vez
tivera conhecido. A TERRA era um lugar paradisíaco, com cheiros, cores, sons e sabores
como não existiam em qualquer outra parte do mundo. Falava-lhe de estevas, urzes,
arçãs, papoilas, alecrim;       de andorinhas, melros, calhandras, cotovias, poupas, cucos,
gaios. Descrevia as encostas do Rio, no fim do Inverno, com as amendoeiras em flor,
como parecendo véus de noiva, em Junho com os seus tons de castanho, amarelo, verde
e roxo, e em Outubro com os tons dados pelas folhas secas das árvores e das vinhas,
lembrando telas dos melhores pintores. Falava-lhe        das oliveiras no inverno, geladas,
como lembrando árvores de prata, dos pingarelhos de gelo caindo dos beirais como
lembrando peças de cristal. Falava-lhe também da capelinha de Sto Estevão, lá junto ao
Rio, que corria preguiçoso nos dias cálidos de Verão e tumultuoso nos dias de invernia,
como que ciumento da beleza das encostas que o ladeavam. Descrevia os vários tons do
céu, cinza quase branco anunciando neve, cinza quase negro anunciando trovoada, azul
sem igual, nos dias límpidos ou, em outros dias, azul manchado de branco pelos castelos
de nuvens cuja sombra, nas encostas, se misturava com todos os seus tons tornando a
paisagem ainda mais deslumbrante. O meu pai falava de tudo isto, mas omitia           quão
duras são a apanha da amêndoa sob um sol abrasador e a da azeitona, sob um frio de
rachar, tal como omitia a inexistência de estrada entre a vila e a TERRA, a falta de luz
eléctrica, de água canalizada, o pouco conforto da CASA. Creio que nestas omissões não
havia intenção deliberada de enganar a minha mãe. Não, o meu pai via de facto a TERRA
como o paraíso e a CASA como um palácio.
A    firma não vai lá muito bem desde a morte do tio Filipe em 1951. O primo Júlio,
decididamente não tem jeito para o negócio. Também a situação política no Brasil vai
de mal a pior. Todos estes factores aliados à saudade da TERRA e da CASA devem ter
levado o meu pai a fixar o regresso como objectivo. Consegue convencer a minha mãe,
inicialmente muito renitente. Nessa altura vende a sua quota ao primo. Felizmente o tio
Filipe já cá não estava para ver. Regressa. Desta vez será definitivamente. Estávamos
em 1954, o ano em que o presidente Getúlio Vargas se suicida. Parte para Portugal,
apenas com uma mágoa- não poder levar consigo Renata e Ricardo.




10




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Estórias com sabor a Nordeste                                            Regina Gouveia




A viagem é feita de barco. Viemos em primeira classe. Eu sou a principal companhia do
meu pai pois a minha mãe vem enjoada quase todo o tempo. O meu pai, sempre que
contava a viagem, comentava com orgulho:
        Algumas vezes, a única “senhora” presente na sala de refeições era a Marta.
Sei que fizemos escala nas Canárias. Não que me lembre, mas ainda guardo uma boneca
que o meu pai lá me comprou. Ao chegar a Lisboa lá estava o TIO, no cais, para receber
o irmão. Desta vez o irmão não vinha para morrer. Há muito que não amava tanto a
vida.
Logo que conheceu a minha mãe, o TIO apercebeu-se que a adaptação à TERRA e à
CASA seria no mínimo difícil, senão impossível. Tenta convencer o meu pai a adiar a ida,
e a procurar um modo de vida em Lisboa. Mas o meu pai estava decidido. Queria ir ver a
TERRA e a CASA e o mais rapidamente possível.          É certo que a CASA já não lhe
pertencia. Vendera a sua parte ao irmão antes de partir, mas ele desde logo lhe dissera:
        É como se continuasse a ser tua.
Fomos no Austin A40 que o TIO tinha recentemente comprado. Mas só até à Vila pois
para a TERRA ainda não havia estrada. Na Vila aguardava-nos o António Joaquim com
um carro de machos ricamente engalanado com galhos de amendoeira em flor.
Estávamos em Março. Os bancos para nos sentarmos estavam cobertos com colchas de
linho impecavelmente lavadas. Todos estes cuidados tinham estado a cargo da TIA e do
tio Justino que tirou uns dias de licença par nos poder receber. A TIA, já uma semana
antes da chegada fora com a Germana e a Balbina para o Rio, tratar da lavagem das
colchas. Em sua opinião, só no Rio uma roupa podia ficar bem lavada. No dia           da
chegada o António Joaquim foi colher os ramos de amendoeira e depois, foi o trabalho
de engalanar o carro. A imagem do carro impressionou a minha mãe mas não conseguiu
tornar a viagem confortável.    Quando entrou na TERRA a minha mãe estava maçada.
Para além disso, sentia frio como nunca tinha sentido, mesmo quando,        em menina,
vivia na fazenda dos tios, onde por vezes as temperaturas chegavam aos 80C.
Fosse por ter chegado ao lusco- fusco, fosse pelas vestes das pessoas, todas muito
escuras, fosse porque, para além da CASA poucas casas eram caiadas, a minha mãe não
conseguiu ver as tais cores fascinantes de que o meu pai lhe falara. Via tudo cinzento e
triste. E quanto aos cheiros os que ela identificava não os achava agradáveis- o do
estrume e o dos excrementos dos animais, nas ruas.         Quando chegou à CASA, as
desilusões continuaram. Ao entrar na cozinha o cheiro que mais identificou foi o de fumo,
fumo esse que lhe fazia arder os olhos. A iluminação da CASA era feita através das mais
variadas formas- candeias, lampiões, candeeiros de petróleo, gasómetros            e um
petromax. Por azar, nessa noite ninguém conseguiu pôr o petromax a funcionar e o
cheiro do carboneto no gasómetro, incomodava a minha mãe. Tiveram que comer à luz
de um candeeiro de petróleo.
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Estórias com sabor a Nordeste                                            Regina Gouveia




O jantar   estava divino, mas Mariana já está demasiado confusa para percepcionar os
gostos e os cheiros. À sobremesa come uma compota de ginja na qual parece detectar
qualquer coisa estranha. Dizem-lhe que é assim mesmo. Mas no dia seguinte, à luz do
dia, Mariana descobre que a ginjada está coberta de moscas que morreram coladas ao
doce, vítimas da sua gula. A CASA tem andado de facto um pouco desleixada. Se a TIA
ainda estivesse para controlar tudo, tal nunca teria acontecido. Mas a Germana e a
Balbina, duas boas criaturas, dão pouca importância a certos aspectos de higiene. O meu
pai, esse está deliciado com tudo. Parece ter regressado aos seus dias de menino. Nessa
noite Mariana chora copiosamente e no dia seguinte decide não sair da cama. Nem no
seguinte, nem nos vários que se lhe seguiram. Ignora-me, mas eu tenho muito quem
cuide de mim- a TIA, a Germana, a Balbina e todas as vizinhas, particularmente a Sr.ª
Felismina e a sua filha,    Mininha. De   tal modo eu ando de mão em mão que a Sr.ª
Felismina me chamará sempre a pombinha da Catrina. A TIA e o tio Justino têm que
regressar. A TIA ainda pensa ficar mas o tio Justino acha que o meu pai e a minha mãe
têm um problema que tem que ser resolvido por eles e que qualquer interferência
estranha pode ser negativa.
O estado depressivo da minha mãe agrava-se de dia para dia e o TIO acha que a minha
mãe tem que ser vista por um médico. Regressamos a Lisboa, mas já durante a viagem
o meu pai vai arquitectando uma solução para o problema. Construir uma casa, com
mais conforto, no palheiro que existe no cimo da aldeia. Fala nesta ideia ao irmão que o
apoia. Com esta ideia em mente o meu pai quer voltar à TERRA o mais cedo que lhe for
possível. O médico acha que a minha mãe está como que em estado de choque pelo que
nem pensar em regressar. O meu pai pensa então em regressar só comigo, enquanto a
minha mãe fica internada numa clínica. O TIO acha que é um disparate pois, embora a
Balbina e a Germana sejam muito extremosas, não saberão cuidar duma criança com
hábitos muito diferentes dos delas. Mas o meu pai é inflexível.
       Eu levo a Marta comigo.
Não sei se ao tomar esta decisão, o meu pai já estava a contar com a colaboração da
Sr.ª Felismina e da Mininha. A Sr.ª Felismina morava paredes meias com a CASA. Ela, o
Sr. Pedro e a Mininha. O casal era já idoso e a Mininha, teria na altura os seus 35 anos.
Foi com esta família que eu passei a maior parte daquele tempo. De início estranhei
muito a falta    de minha mãe (a mamãe, como eu dizia) mas pouco a pouco a sua
imagem foi-se diluindo. Desses tempos guardo muito boas recordações. Nunca tinha
brincado com um gato, nunca tinha feito festas a um cordeiro, nunca tinha pegado num
pintainho ao colo e agora tinha um só para mim, que a Mininha me tinha dado e de que
eu cuidava, com a sua ajuda. Também nunca tinha cozinhado. Mas a Srª Felismina
arranjou-me uma panelinha de ferro de três pés, idêntica ás que ela punha ao lume, e
eu fingia que cozinhava. Para não estragar a roupa que eu trazia, toda ela muito cuidada,
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alguma bordada pela minha mãe, fazem-me umas peças de roupa simples para eu usar
lá em casa.
O meu pai anda preocupado com os projectos para a casa de cima, que é assim que ele
lhe começa a chamar. Não me pode dar grande atenção, mas todos os dias me conta
histórias e de vez em quando leva-me ao palheiro para me explicar como será a nova
casa. Claro que eu não consigo imaginar nada. Fico apenas com a ideia de que irá ser
bonita. Uma das vezes leva-me até ao ribeiro para onde estavam a ser conduzidas as
canalizações para os esgotos. Não sei bem quanto tempo decorreu entre essa ida e a
minha crise de paludismo. Na TERRA, e em tempos mais remotos,        era relativamente
frequente as pessoas adoecerem com paludismo- sezões, como lhe chamavam. Por vezes
bastava uma ida ao rio ou a um dos vários ribeiros, onde deveriam existir mosquitos do
género “anopheles”. Quando comecei com muitas tremuras e períodos de muita febre, o
meu pai mandou o António Joaquim à Vila falar com o Dr. Sebastião, um homem
extremamente generoso, um autêntico João Semana. Em face das explicações do
António Joaquim, o Dr. Sebastião imaginou logo do que se tratava. Apareceu munido
com quinino e preparado para fazer uma recolha de sangue para análise. Comecei logo a
tomar o quinino. Posteriormente a análise confirmou que eu estava com paludismo. Não
sei quanto tempo estive doente. Passei todo o tempo na casa da Sr.ª Felismina. Lembro-
me de que sempre que abria os olhos via à cabeceira da cama, o meu pai, a Mininha e a
Sr.ª Felismina. A Germana e a Balbina passavam os dias a chorar.
       Ai que se “bai” o nosso anjinho.
Pediram licença ao meu pai para fazer uma promessa a Sto Estevão. Se eu curasse, iria
vestida de anjo na procissão da festa de Maio. É que Sto Estevão tem duas festas - a de
Setembro e a de Maio, apenas com a parte religiosa. O meu pai anuiu. Faria tudo para
me ver boa. As vestes foram alugadas em Viana. Foi assim que eu “fui de anjo”. A
minha mãe só soube de tudo isto, tempos mais tarde. A TIA e o tio Justino souberam
mais cedo porque apareciam com frequência. Aliás foram eles que trataram de alugar as
vestimentas. O TIO também vinha à TERRA de vez em quando tal como eu e o meu pai
íamos por vezes a Lisboa. A minha mãe é que não viria à TERRA durante mais de um
ano, precisamente o tempo de construir a casa de cima.




11
A minha mãe regressou à TERRA em Agosto de 1955. O tio Justino estava de férias pelo
que se pôde contar com o apoio da TIA na difícil tarefa de criar condições para a
adaptação da minha mãe. Desta vez, ao chegar, o choque não foi tão grande. Para isso
contribuíram vários factores. Um deles foi a viagem.     O meu pai tinha comprado um
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automóvel, um Sinca em segunda mão         e,    à sua custa, mandado    dar um jeito ao
caminho entre a Vila e a TERRA. Foi de automóvel, e não de carro de machos, que a
viagem foi feita desta vez. Por outro lado, a minha mãe já sabia com o que contava.
Sabia ainda que existia a casa de cima com outro conforto.
Para a casa de cima, que confina com duas ruas, entra-se por uns grandes portões em
ferro que dão acesso a um pátio descoberto- o pátio de cima- mais tarde coberto por
uma ramada. Esse pátio dá acesso a um outro,           fechado- o pátio de baixo-     que
comunica com a outra rua. Este pátio, por cima do qual está um terraço,         dá para a
adega que tem uma outra porta, para a rua. O pátio de cima dá ainda acesso ao quarto
da costura, ao pio do vinho, também este com um outro acesso a partir da rua, e às
escadas para o piso superior. Neste há uma cozinha grande (se bem que muito menor
que a da Casa) com uma lareira, uma sala, dois quartos, o escritório do meu pai e uma
casa de banho. Por cima da cozinha há um depósito para onde era elevada a água. Esta
era transportada,    desde a fonte,   em cântaros dentro das cangalhas      no dorso dos
machos. No pátio de baixo foi colocado um pequeno gerador de energia eléctrica. Não
havia nem forno, nem galinheiro, nem cortelho de porcos, nem loja para os animais. O
meu pai sabia que, nessa áreas, jamais iria poder contar com a minha mãe. Quando a
minha mãe chegou não havia móveis, à excepção de duas camas de ferro. O meu pai
iria deixar   a tarefa da decoração para a minha mãe, na esperança de que isso lhe
criasse um envolvimento com a casa. As ordens médicas eram no sentido de a ocupar
em tarefas, nas quais se sentisse envolvida.
Como a casa de cima não tinha móveis, apenas lá dormíamos. O dia passávamo-lo na
CASA. Eu adorava. A CASA com todas aquelas escadas, com o Lar e o forro, com os
escanos e as preguiças exercia sobre mim grande fascínio. As refeições eram
confeccionadas sob a supervisão da TIA. A minha mãe ia assistindo e aprendendo. Ainda
hoje acho estranho como é que sendo a TIA tão intolerante com certas práticas, tão
conservadora, aceitou tão bem a minha mãe, apesar de casada apenas civilmente. Nunca
se referia a isso, embora a situação a desgostasse. Quando alguma pessoa levantava o
problema ela limitava-se a dizer:
       São outras terras com outros usos. Que lhe havemos de fazer?
Já no que respeita aos problemas decorrentes da dificuldade de adaptação da minha
mãe, aí era totalmente sincera quando dizia:
       Não me admiro nada. Para quem vem duma terra onde há de tudo, deve ser
       muito difícil gostar disto. Isso é para nós que temos aqui as nossas raízes.
Quando a minha mãe manifestou a intenção de começar a bordar,            a TIA pôs-lhe à
disposição peças de linho, que ainda estavam intactas nos baús, linhas, agulhas, dedais
e bastidores.


                                            36
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À tarde, a Mininha vinha fazer companhia à minha mãe enquanto eu ia fazer companhia
à Sr.ª Felismina, o que     me dava sempre imenso prazer.    Já ensaiava uns pontos de
meia, que ela me tinha ensinado. Eu tinha como objectivo fazer uns meiotes para o Sr.
Pedro, obra que nunca concluí, não sei se devido à minha inabilidade se à morte do Sr.
Pedro dois anos depois. A Mininha, tal como a TIA, ficava admirada porque a minha mãe
bordava sem “risco”. Imaginava o que ia bordar e a partir daí as mãos trabalhavam com
as agulhas e as linhas. Também os motivos bordados nada tinham a ver com aquilo a
que a TIA e a Mininha estavam habituadas- eram araras,          tucanos, colibris, sabiás,
papagaios, catatuas, tatus; eram goiabas, jaboticabas, caquis, mangas, mamões. E tudo
isto envolvido num colorido que me encantava.
Os encontros da minha mãe com a Mininha, em que participava a TIA sempre que estava
na TERRA, ficariam sempre marcados na minha memória, especialmente a partir do
momento em que a minha mãe recomeçou a cantar. Também aí houve aprendizagem
dos dois lados: enquanto a minha mãe aprendia        as modinhas da Terra,     a TIA e a
Mininha aprendiam      modinhas brasileiras, que a   minha mãe cantaria sempre com
sotaque, mesmo depois de praticamente o perder. Eu gostava muito das que falavam
daquele outro mundo de além-mar, que eu já quase esquecera. Uma delas era uma
canção com que a minha mãe me embalara .


              Bicho Tatu
              saia do telhado
              deixe o “minino “
              dormir sossegado
              Dorme neném
              que a cuca vem “pegá”
              mamãe foi na roça
              papai no “cafezá”.
Eu crescia assim entre dois mundos. Mas a adaptação da minha mãe não estava a ser
fácil. De vez em quando ficava muito triste e com o olhar muito distante como daquela
vez em que ensinava à Mininha uma canção da sua terra que dizia:
              Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá
              As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.
Não conseguiu a acabar o último verso. Começou a chorar. Acho que a canção traduzia o
que lhe ia na alma. Mas fazia sempre por reagir, ocupando-se. Empenhou-se na
decoração da casa. Os móveis, escolhidos por ela, eram simples mas com a marca do
seu bom gosto. Foi ela quem depois confeccionou as cortinas com o linho da CASA que
bordou, muitas vezes com a ajuda da Mininha. Agora passávamos a maior parte do
tempo na casa de cima e outra das suas ocupações foi ensinar-me a ler, mesmo antes
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de ir para a escola. Tentou também ensinar a ler a Germana e a Balbina que não
passaram da escrita do nome. Comigo teve mais sucesso. Quando cheguei à escola, em
Outubro de 1956, já sabia ler, escrever e fazer contas de somar e subtrair. Entrei
directamente para a segunda classe. A aritmética foi-me ensinada pelo meu pai. Não sei
se por isso, quando mais tarde chegou a hora de decidir qual o curso a seguir, a minha
mãe sugeria- me as Letras e o meu pai, as Ciências.




12
Guardo algumas recordações da escola mas nenhuma do meu primeiro dia de aulas.
Também guardo muito poucas recordações da professora que tive nesse ano- a D.
Cremilde. Curiosamente lembro-me mais dos seus três filhos, duas meninas e um
menino, com idades entre os dois e os cinco anos, e do marido que recordo sempre
montado num fogoso cavalo branco. A D. Cremilde vivia na casa da escola, se é que casa
se lhe podia chamar. Na verdade a escola era um edifício muito velho, um pouco em
ruínas, onde já tinha estudado o meu avô Álvaro. Consistia em duas salas- uma era a
sala de aulas que albergava simultaneamente as quatro classes e a outra era a casa da
professora, onde a D. Cremilde criou dois compartimentos, improvisando uma separação
com uns cortinados de chita. Eu, tal como os outros alunos, conhecia a casa porque a D.
Cremilde, como tinha as crianças pequenas, ia muitas vezes a essa        zona.   Por isso
deslocávamo-nos lá, com frequência, para mostrar a conta, a cópia ou qualquer outro
trabalho. Toda a gente sabia que a D. Cremilde detestava estar na TERRA; há muito que
almejava ser colocada na sua aldeia que distava    mais    de 20 km. Era lá que vivia o
marido que, de vez em quando, a vinha visitar. No meu segundo ano de escola, ou seja,
na terceira classe, a escola passou a posto escolar, segundo se dizia à boca cheia, por
influência da D. Cremilde, que assim conseguiu ser colocada mais próximo da sua aldeia.
Passámos então a ter como professora uma regente escolar- a menina Celeste- de quem
também me lembro pouco. Lembro-me no entanto de que a menina Celeste trocava os
bês pelos vês. Assim dizia-nos:
       Meninos vamos ao “travalho”.
Creio que estas gafes da menina Celeste resultavam da sua extrema preocupação em
não trocar os vês pelos bês como acontece ainda hoje na TERRA. Quando um dia o meu
pai comentava este episódio com o TIO este aproveitou logo para dizer:
       Mais uma bela obra do “Botas”. Fecha as Escolas Normais, cria os postos
       escolares. Quanto mais ignorantes formos, melhor.


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  • 1. Regina Gouveia Estórias com sabor a Nordeste
  • 2. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia Prefácio No Prefácio de “O Fogo e as Cinzas” Manuel da Fonseca diz: Ficção constrói-se com o que fica do passado. Revive-o. É um pouco esse reviver do passado, de uma vida de mais de meio século, que emerge em Estórias com sabor a Nordeste. As personagens podem ter sido inspiradas por personagens reais que conheci no Nordeste Transmontano, mas também em tantos outros lugares por onde tenho passado e /ou viajado, por personagens reais ou imaginárias de que ouvi falar à volta da lareira, nos serões ainda iluminados à luz do petromax, ou simplesmente por personagens que entram em nossas casa através dos jornais, do ecrã da televisão, dos livros que lemos. Também os cenários, embora virtuais, são inspirados em locais reais. Não será difícil reconhecer no Rio, o rio Sabor, que Stº Estêvão teve como inspiração o Stº Antão da Barca, que a Terra nos transporta para a freguesia de Parada e que a Vila teve como inspiração Alfândega da Fé. Com cenários e personagens fui construindo estórias, ou melhor, recriando histórias e estórias que foram passando, algumas de geração em geração, quem sabe, “assopradas” pelo vento cieiro…. Mas porquê esse reviver do passado? Um dos meus passatempos favoritos é, desde criança, a leitura O gosto pela leitura foi- me incutido principalmente pelo meu pai. Desde sempre me lembro de o ouvir ler-me excertos de textos ou poesias (Camões, Guerra Junqueiro, Júlio Dinis, Camilo, Victor Hugo…) . Não sei se lia bem ou mal, sei que ouvi-lo me fascinava e comovia ao mesmo tempo. Um dia decidi aventurar-me na escrita, que foi secreta até há cerca de três anos. Em 2000 tinha sido editado, pela mão da Areal Editores, um livro da minha autoria “ Se eu não fosse professora de Física. Algumas reflexões sobre prática lectivas” Um dia, a Drª Maria do Carmo Cruz, em conversa, disse-me que já tinha oferecido o meu livro a várias pessoas. Fiquei um pouco intrigada. Por que razão uma pessoa licenciada em Germânicas, oferecia um livro que falava do percurso e da experiência de uma 1 professora de Física? A resposta vou buscá - la directamente a um texto seu: E uma obra sua explicando como se tinha tornado professora, entretanto publicada, mostrava como a sua prosa era igualmente poética. Não podia deixar de lhe perguntar por que não escrevia Poesia…..:" E quem lhe disse que não escrevo? " Tinha que a ler e em breve tive o prazer e a honra de ter em mãos os seus escritos. Li-os com um certo 1 (Extractos do texto de apresentação da autoria da Drª Maria do Carmo Cruz e que consta da colectânea Tempera(Mental), na qual foram incluídos seis poemas meus) 2
  • 3. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia espanto: eram tão reais, falavam das coisas de todos os dias e, ao mesmo tempo, mostravam-nas de uma forma que nos permitia vê-las como se pela primeira vez. É, pois, em primeiro lugar, à Drª Maria do Carmo Cruz que devo o ter ganho coragem para dar a conhecer a minha escrita. Comecei por participar em duas colectâneas de poesia e por fim decidi-me a publicar sozinha. Foi assim que surgiu, em 2002, o meu primeiro livro de poemas “Reflexões e Interferências”, em co-edição com a Editora Palavra em Mutação. Incentivada pela aceitação que os meus poemas tiveram, muito para além daquilo que eu esperava, ganhei coragem para continuar a escrever/publicar poesia e dar a conhecer a prosa. È assim que surgem Estórias com sabor a Nordeste. Poderá parecer estranho que tendo começado a publicar tão tardiamente, surjam agora várias publicações próximas no tempo A explicação, se é que existe, talvez possa ser encontrada num poema de Manuel Alegre. …. E no entanto o tempo agora é de corrida contra o tempo se corre contra o tempo contra o tempo se corre e assim se morre em frente ao mar olhando a desmedida distância entre a tão curta vida e o amor dela….. e todo o tempo agora é contra o tempo e mesmo sem correr só há corrida. (Canção do tempo que passa, in Alegre, A.(2001), Livro do Português Errante, D. Quixote) Porto, 12 de Abril de 2004 3
  • 4. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia À memória: • de meus pais, muito em particular à de minha mãe, • dos meus tios Cândida, António e Júlio. Ao Fernando, a minha segunda memória, ao Miguel, ao Nuno, à Teresa e à Rita. Ainda aos meus irmãos e à memória duma nossa antepassada castelhana que inspirou uma das personagens que atravessam estas estórias 4
  • 5. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia Debaixo dos sobreiros Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite. Miguel Torga , em “ Um Reino Maravilhoso” 5
  • 6. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia Esta é a estória de uma família. Dela existem vários testemunhos. Alguns são tão simples como um lenço bordado, um hissope ou uma luva desgarrada, mas há dois que se destacam: a CASA e o chão debaixo dos sobreiros. Chamo-lhe estória porque as personagens são fruto da imaginação. Isso não impede, porém, que esta família tenha a sua árvore genealógica. 6
  • 7. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia 7
  • 8. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia 1 Meu pai tinha fama de aventureiro. Quando novo, viajara por três continentes, em situações por vezes rocambolescas. No entanto não foi esse aventureiro que eu conheci mas sim um homem sem a mínima vontade de sair para qualquer lado. Era lá na TERRA que ele se sentia bem. E acontecia o mesmo com os seus irmãos. Referiam-se sempre à aldeia como a TERRA e quando falavam dela era de uma forma tão enlevada que me confundia. Apercebia-me quando o meu pai tinha que se ausentar por uns dias; ficava ansioso, tenso e no seu olhar, sempre expressivo, eu notava inquietude que por vezes me parecia insegurança. Quando regressava a nossa casa, a tranquilidade regressava ao seu olhar e dizia: Há lá dinheiro que pague esta paz. Lembra-me a CASA. Sempre que o meu pai ou os meus tios se referiam à casa que tinha sido dos avós e depois dos pais, chamavam-lhe a CASA. Por vezes o meu pai acrescentava: Daqui só para debaixo dos sobreiros. Referia-se deste modo ao cemitério, que está rodeado de sobreiros. Também os meus tios tinham uma relação singular com o cemitério. O TIO, que vivia em Lisboa, sempre que vinha à TERRA dizia: Não se esqueçam que eu depois quero vir para debaixo dos sobreiros. Creio ter entendido esta relação com o cemitério muitos anos mais tarde. A sepultura da família ficava mesmo em frente ao portão. Quando o cemitério se tornou demasiado pequeno, foi preciso ampliá-lo. Nas obras de ampliação foi incluída a criação de uma “alameda” central, pelo que o jazigo teve que ser mudado. Nessa altura já o meu pai e o TIO estavam suficientemente esclerosados para poderem tomar qualquer decisão; coube à TIA escolher o local para onde a campa deveria ser mudada. Achou que era importante consultar-me bem como aos meus primos, filhos do TIO. Para nós era indiferente a nova localização da campa, mas a TIA queria a nossa opinião. A seu pedido, acabei por me deslocar à TERRA. Indicou-me os lugares por que poderíamos optar e quando sugeri um deles a TIA disse: Não. Os vizinhos do lado direito não são lá muito boa gente. A uma outra sugestão, ripostou: Aí ? Tão ensombrado ? Não, tem que ser um lugar mais soalheiro. Percebi então que a TIA tinha uma concepção muito própria sobre a vida depois da morte e admiti que essa concepção seria comum aos irmãos. Para eles, “debaixo dos sobreiros”, deveria representar em morte, o mesmo que a CASA representara em vida. Debaixo dos sobreiros está toda a família: os meus avós Álvaro e Marta, os irmãos desta, os meus tios Clara, Pedro e Adélia, os meus pais, o TIO, a TIA e o marido - o tio Justino. A tia Laura, mulher do TIO, alfacinha de quatro costados, essa quis ser sepultada no 8
  • 9. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia jazigo da família, no Alto de S. João. Debaixo dos sobreiros estão também os meus bisavós: Isabel Castelhana e Luís Engrácio. Foram eles os primeiros a ocupar o jazigo. 2 Nunca conheci os meus bisavós mas a sua história sempre me fascinou. A minha bisavó terá chegado a Portugal, juntamente com um irmão, por volta de 1865. Eram refugiados políticos. Durante quase todo o século XIX a Espanha viveu uma terrível convulsão política muitas vezes caracterizada pela brutalidade. Por volta de 1830 opõem-se duas facções rivais- cristinistas e carlistas. Os primeiros apoiam a terceira esposa de D. Fernando, Maria Cristina, regente do Reino em nome de sua filha Isabel II; os segundos apoiam D. Carlos, irmão do rei. As guerrilhas carlistas prolongar-se-iam até quase finais do século XIX. Não sei qual das facções a minha bisavó e o irmão apoiavam, apenas sei que se chamavam Isabel e Diego e tinham como apelido, Rodriguez. Parece que terão vindo de Castela, pelo que a minha bisavó foi sempre conhecida por Isabel Castelhana. Os dois irmãos ter-se-ão disfarçado de sombreireiros. Como da arte não percebiam nada, sempre que em alguma terra por onde passavam alguém lhes pedia para consertar um sombreiro eles alegavam ter pressa pois tinham de chegar ainda com dia ao lugar do destino. Num dia frio de Dezembro, terão chegado famintos e cansados às margens do Rio, precisamente quando Luís Engrácio varejava uma das quatro únicas oliveiras que tinha herdado de seus pais, numa nesga de terra, junto ao Rio, num local designado por Zimbro. Luís Engrácio era ainda jovem (23 anos), mas já marcado por uma vida de trabalho. Ficara órfão de mãe aos 6 anos e de pai aos 10. Dos seus pais herdara apenas a nesga de terra no Zimbro, o casebre onde vivia e a alcunha por que era conhecido. O seu nome era Luís Pereira, mas como a mãe se chamava Engrácia, foi sempre conhecido pelo Luís Engrácio. Luís Engrácio tinha as mãos engaranhadas com o frio pelo que resolveu acender uns guissos para as aquecer. Foi nesse momento que viu surgir Isabel e Diego. Boas tardes nos dê Deus. Queçam-se aí - terá dito. Foram estas as primeiras palavras que aquele que seria o meu bisavô Luís Engrácio dirigiu àqueles que viriam a ser a minha bisavó Isabel Castelhana e o meu tio bisavô Diego Rodriguez. O frio, o cansaço e a fome eram tantos que Isabel e Diego devem ter esquecido o pavor que sempre os assaltou pelo caminho - serem identificados, denunciados e apanhados pelas hostes da facção rival. Em silêncio chegaram-se à beira do simulacro de fogueira. Comeram ainda da parca merenda que Luís Engrácio levara com ele- um cibo de pão com azeitonas e cebola. Casebre que chega p´ra um, chega p´ra três. Passados tantos dias, Isabel e Diego tiveram algo parecido com um tecto para se acolherem, numa aldeia transmontana que 9
  • 10. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia nunca tinham sonhado conhecer e a que mais tarde os seus netos chamariam a TERRA. A presença dos dois irmãos, falando arrevesado, levantou uma onda de curiosidade na aldeia à mistura com alguma suspeita. Seguiu-se-lhes mais tarde um misto de admiração e respeito, em boa parte graças à estima que todo o povo tinha por Luís Engrácio. Mas ao povo, não parecia bem Isabel estar a viver no casebre de Luís. Isabel, decidida dizia: Hombre, que hay! Yo no estoy haciendo nada de malo. Não sei se para calar as bocas do povo, se para arranjar quem lhe fizesse o caldo, se por amor, ou se por ter descoberto que Isabel e Diego tinham conseguido trazer com eles ouro e dinheiro, Luís Engrácio resolveu casar com Isabel. Na época, um homem para casar deveria envergar um capote, mas Luís Engrácio não tinha dinheiro para comprá-lo. Isabel pretendeu oferecer-lho mas Luís não aceitou. Enquanto não casarmos o dinheiro é só teu. Foi assim que o Padre Pimentel casou Isabel Rodriguez com Luís Engrácio, este de capote emprestado. Os padrinhos foram Diego Rodriguez e Maria Clemente que mais tarde viria a casar com Diego. Luís Engrácio era um homem habituado ao trabalho; o ouro e o dinheiro de Isabel deram uma ajuda. A nesga de terra no Zimbro começou a aumentar, por compra das terras vizinhas. O número de oliveiras crescia. Juntavam-se-lhe agora amendoeiras, sobreiros, laranjeiras, vinha, terras de pão, hortas e lameiros. Isabel cria bichos da seda e Luís Engrácio abelhas. São agora um casal de lavradores abastados. Engrácio fala com orgulho de Isabel. É uma mulher sabida- referia, querendo significar que a mulher não era analfabeta. Nunca passara pela cabeça de Luís Engrácio, analfabeto, ter um dia uma mulher que tão bem soubesse ler, escrever, e fazer contas. O casebre, esse já há muito que dera lugar à CASA. 3 A transformação do casebre em casa foi gradual. Disso são bem evidentes as escadas que sobem e descem para os mais variados compartimentos e o passadiço sobre a canelha. Também não restam dúvidas que a primeira parte da casa a ser construída foi a cozinha. Trata-se de um compartimento muito amplo a que se tem acesso da rua, por umas escadas de xisto, com corrimão de madeira. Ao cimo das escadas existe o balcão a que se segue uma porta com um postigo. Num dos cantos da cozinha tínhamos o lar. Ao lar tinha-se acesso por uma portinha de madeira que se prolongava por um conjunto de escanos que rodeavam a lareira propriamente dita. Em dois dos escanos havia 10
  • 11. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia preguiças2. Um dos escanos estava encostado a uma parede e em frente a ele existia um outro, de costas muito altas, por trás das quais funcionava, por baixo a cantareira onde se colocavam os cântaros da água e por cima o louceiro. Provavelmente terá sido esta a primeira versão da CASA. Posteriormente o meu bisavô terá comprado alguns casebres contíguos e a casa foi crescendo. Num dos lados da cozinha abriram-se duas portas que dão acesso a um quarto e a uma sala com varanda para a rua; construíram-se ainda duas escadas: uma que dá lugar ao forro - designação dada ao sótão- e outra que dá acesso a um quarto a um nível ligeiramente inferior e que foi, durante muito tempo, o quarto dos bichos da seda. Mais tarde, do outro lado da cozinha construíram-se umas escadas que davam acesso a três quartos, a um nível ligeiramente superior. Um desses quartos constitui o passadiço sobre a canelha debaixo do qual ficavam a lenha e os carros. Em baixo, a loja (dos bois, dos machos, do cavalo e do burro), a adega, o pio do vinho, o cortelho dos porcos, o forno e o galinheiro. Não sei ao certo quantos anos mediaram entre o casamento dos meus bisavós e o nascimento da primeira filha- a minha avó Marta, mas quando a minha avó nasceu o casebre já tinha dado lugar à CASA, provavelmente não na sua versão final, mas pelo menos na sua primeira etapa de construção. A seguir à avó Marta nasceram mais três filhos - o João que morreu ainda menino, e de quem o meu pai viria a herdar o nome, a Matilde e o Afonso. O meu pai foi o primeiro neto dos meus bisavós. Com eles viveu em criança. Com eles, com a tia Matilde, o tio Afonso e os criados Pepe, António e Artúrio, que substituiu António quando este morreu. Pepe e António eram galegos e se alguém quisesse ver a minha bisavó zangada era dizer-lhe que os criados eram da sua terra. Hombre, yo soy castellana, no gallega. Pepe fumava muito e tinha com o tabaco uma relação quase sensual. O meu pai ficava fascinado ao vê-lo enrolar a mortalha para fazer um cigarro. Uma vez deu um a fumar a meu pai, tinha ele oito anos. Ficou tão mal disposto que tossiu e vomitou o dia inteiro. Ficou vacinado para toda a vida. Nunca fumou. Por isso dizia que tinha ficado a dever um favor a Pepe. Artúrio era da TERRA e o seu nome era Artur. Foi a mãe, por não saber dizer o nome, que lhe criou a alcunha. O Artúrio fazia os piões com que o meu pai brincava. O Artúrio e também o tio Afonso com quem o meu pai sempre manteve uma relação no mínimo, ambivalente. Penso que o meu pai via o tio Afonso mais como um companheiro mais velho, do que como tio. Lembro-me de discutirem muitas vezes, a ponto de ficarem incompatibilizados temporariamente. O tema podia ser política, futebol, religião, agricultura, ou qualquer outro, mas se era dia de dar para o torto, tínhamos discussão pela certa. Por vezes o tio Afonso terminava aos berros. 2 tábuas que giram em torno de um eixo e podem funcionar como mesas de apoio 11
  • 12. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia Lembra-te de que eu sou teu tio. O fascínio do meu pai pela CASA e pela TERRA vinha desde aquela fase da sua vida, quando menino. Gostava de recordar os cheiros, as cores, os gostos: do pão acabado de fazer, do mel, das compotas no Outono, das torradas (de unto e de azeite, no lagar), do fumeiro (as alheiras, os salpicões, os bulhos, as chouriças, os chouriços doces com mel e amêndoa), das sanchas, das rocas e dos roquelhos guisados, dos míscaros assados na brasa, dos espargos fritos com ovos, das doçarias de Natal (as rabanadas, as filhoses, os milhos, o arroz doce, a aletria, os fritos de jerimum), dos folares na Páscoa (os de carne e os doces), das sopas de tomate da tia Matilde, das casulas com bulho, do leite das cabras acabadas de ordenhar, do queijo, do soro, da coalhada e dos requeijões, das “tortillas”, das “empanadas”, dos “gaspachos” e das “yemas bentas” da avó, das frutas ao longo de todo o ano (no Outono as peras, as maçãs, as romãs, os diospiros, os medronhos; no Inverno e na Primavera, as laranjas; em Junho as amoras de amoreira, as cerejas, as ginjas, os figos lampos, os pêssegos de S. João, as malapas; no Verão as amoras de silva, os melões, as melancias, os figos, as uvas). Gostava de recordar os sons: do toque a rezar3, da escacha da amêndoa, do crepitar da lenha na lareira, do chiar dos carros de bois e do passar dos machos na rua, dos homens a pisar o vinho, do ferrador a ferrar os machos, do ferreiro a malhar o ferro, dos sinos da Igreja na Páscoa e nos casamentos, das vozes na rua ao lusco- fusco, do azeite a estalar nas sopas de xis, do chiar do porco na matança, do cantar do cuco na primavera. Gostava de recordar os animais: os bois (o castanho e o manso), os machos (o carriço e o amarelo que faziam brrrrrrrrrr na loja, por baixo do seu quarto), os porcos e os leitões no cortelho, as galinhas, os perús e os galos no galinheiro, o gato Simeão e a gata Baronesa, o cão preto e o cão grande, as andorinhas que faziam os ninhos debaixo da varanda da sala. Gostava de recordar as suas brincadeiras de menino: pendurado nas engarelas dos carros, jogando ao pião, à rodinca e ao espiche, trepando às árvores para apanhar os ninhos, apanhando formigas de asa para montar as costelas aos pássaros, trincando o carambelo nos dias de muito frio, correndo atrás das canas dos foguetes na festa de Sto Estevão. Gostava de recordar os rituais, particularmente o da matança do porco. Gostava de recordar a feitura do pão, do fumeiro, dos folares, do queijo, do azeite, do vinho, da aguardente e do sabão com soda e borras de azeite. O seu amor à TERRA foi-lhe incutido, antes de tudo, pelo avô que ele adorava. Nunca ia ao Zimbro que não dissesse com os olhos rasos de lágrimas: 3 toque das Trindades 12
  • 13. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia Quantas vezes vim aqui com ele. Aos doze anos eu já sabia podar, enxertar, crestar. A sua relação com a avó era mais distante. Quando lhe perguntava por que razão tinha vindo de Espanha ela, que nunca se acostumou a dizer o seu nome em português, respondia: Juan, no me gusta hablar de eso. Dela lembrava essencialmente que lhe ensinou as primeiras letras e que era quem o castigava quando fazia tolices. Quando era castigado, o avô sofria mais que ele. Quantas vezes, ao sair para o campo voltava atrás e dizia: Isabel, tu não ralhes com o menino. Quando o meu pai tinha doze anos, morreu o meu bisavô e logo depois a minha bisavó. Dizia o meu pai que morreram de desgosto com a morte da tia Matilde. A tia Matilde era, no dizer de meu pai, a rapariga mais bonita das redondezas, mas era doente. Tinha um problema de coração. Aos 19 anos começou a namorar com Luciano Almeida, um jovem da aldeia. Consciente da sua doença, resolveu ir consultar um médico ao Porto, onde minha avó Marta vivia com o meu avô Álvaro, ajudante de escrivão de Finanças. A viagem era penosa. O meu bisavô levou a tia Matilde, a cavalo, até ao Pocinho para apanhar o combóio. No Porto, era suposto estar o meu avô na estação, à espera da cunhada. O meu avô não pôde ir pelo que pediu a um colega que lhe fizesse esse favor. A tia Matilde ficou muito aflita quando não viu o cunhado e mais ainda quando se viu acompanhada por um desconhecido numa terra, que só pelo tamanho já era de si assustadora. Fosse pelo cansaço da viagem, fosse pela angústia da chegada, no dia seguinte à mesma, a tia Matilde faleceu com um ataque cardíaco. A avó Marta, que estava grávida pela quinta vez, perdeu a criança e a tia Matilde, em vida, não chegou a regressar à aldeia para casar com Luciano Almeida. 4 A avó Marta casou com o avô Álvaro Matias em 1898. O avô Álvaro era de uma aldeia vizinha. Filho de um sapateiro analfabeto, teria sido um continuador do pai se o Padre Pimentel, pároco de várias aldeias, entre elas as dos meus avós, não se tivesse apercebido que o rapaz era muito inteligente e não tivesse convencido o meu bisavô a deixá-lo ir à escola. A aldeia de Álvaro não tinha escola pelo que percorria a pé todos os dias os 5 km que separavam a sua aldeia da TERRA. Fez com distinção o exame de segundo grau, que era assim que se chamava a quarta classe. A sua paixão era a leitura. À falta de qualquer livro em casa, um dia em que acompanhou o pai à feira, na Vila, com os poucos trocados que tinha amealhado, comprou um Borda d´ Água. De 13
  • 14. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia tanto ler e reler as antevisões do tempo, os conselhos aos lavradores, as anedotas, já sabia de cor, quer os conteúdos, quer as páginas onde se encontravam. Cedo o pai se apercebeu de que o filho não tinha grande queda nem para a lavoura nem para a arte de sapateiro. Aos 15 anos mandou-o para o Porto. Aí tinha um primo que lhe arranjou o emprego de marçano numa loja de fazendas. Mais tarde, um cliente da loja, secretário de finanças, apercebeu-se das capacidades do rapaz e arranjou-lhe o emprego de ajudante de escrivão. Aos 28 anos o ajudante de escrivão de Finanças, regressou pela primeira vez a casa em gozo de férias. Resolveu ir à TERRA visitar o Padre Pimentel, agora já muito surdo e trôpego. Foi o Padre Pimentel que lhe sugeriu para esposa a minha avó Marta. Foi ainda o Padre Pimentel quem os casou, seis meses depois. O casamento foi por procuração pois o meu avô tinha regressado ao Porto e não era fácil deslocar-se à TERRA para casar. Passados dois meses a minha avó, aproveitando a companhia do farmacêutico da Vila que tinha que deslocar-se ao Porto, foi ter com o marido. No Porto nasceram os 4 primeiros filhos do casal - João, José, Clara e Pedro. Teriam sido cinco não fosse o aborto na sequência da morte da tia Matilde. A minha avó ficou grávida do tio José pouco tempo depois de meu pai nascer. Por isso, desde pequenino, e até à morte dos meus bisavós, o meu pai viveu com eles na TERRA. Após a morte dos meus bisavós, o meu tio avô Afonso continuou a morar na CASA, acompanhado do Artúrio que entretanto casara e vivia lá com a mulher, Zefa, e os dois filhos: o António Joaquim e a Germana. Quando o tio Afonso casou com a tia Teresa, filha única, os pais impuseram-lhe ir viver com eles. Mas Artúrio continuou a viver na CASA com a sua família, que entretanto cresceu com o nascimento da Balbina. Os meus avós raramente ali iam, pois naquele tempo a viagem do Porto à TERRA era difícil, especialmente com filhos pequenos. O meu avô sempre desejara aproximar-se da TERRA. Em 1915 conseguiu ser transferido para a Vila (era assim que era conhecida a sede do Concelho), onde nasceram Adélia e Matilde. A transferência do meu avô para a Vila permitia-lhe ir com frequência à TERRA. Na época da caça sempre que podia, lá estava caído. O meu avô era um grande caçador. O que ele gostava era de ir à perdiz mas também ia ao coelho, à lebre, às rolas, aos tordos. A minha avó, no Outono, por altura de fazer as compotas, no Inverno, por altura de fazer o fumeiro e na Páscoa, época de folares, mudava-se de armas e bagagens par a CASA e aí permanecia por um tempo cada vez mais dilatado. Por esse tempo já a CASA pertencia aos meus avós. Com a reforma do meu avô em 1932, a família regressa definitivamente à CASA que vai continuar a partilhar com os filhos do Artúrio, o António Joaquim, a Germana e a Balbina que se encarregam fundamentalmente das lides do campo. Nesta altura, apenas a TIA vivia com os pais. O TIO, que entretanto tinha cumprido o serviço militar, ingressara na força aérea e casara com uma jovem de Lisboa. O meu pai, dedicava-se a explorar o 14
  • 15. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia mundo. Isso até 1934. Em 1935 a TIA casa com o tio Justino, rapaz da aldeia que era funcionário público em Viana do Castelo. Todos os Natais, quase sempre na Páscoa, e na altura das vindimas, a TIA e o tio Justino regressavam à CASA. O TIO, nem sempre, e quando ia, ia só. A tia Laura foi apenas três vezes à TERRA, duas delas para dar a conhecer aos avós os meus primos Afonso e Gonçalo e a terceira no casamento da TIA. Dos meus tios só conheci a tia Matilde e o tio José, a quem sempre chamei simplesmente TIA e TIO, e os respectivos cônjuges. Os outros morreram cedo: o tio Pedro, em menino, com a pneumónica, a tia Clara e a tia Adélia, na flor da idade, tuberculosas. Também não conheci os meus avós. A minha avó faleceu em 1936 e o meu avô em 1938. Deixaram aos filhos a CASA praticamente como a tinham recebido dos meus bisavós. Apenas lhe tinham sido introduzidas três pequenas alterações: uma delas consistia numa espécie de quarto de banho, com uma sanita em madeira que dava directamente para a loja dos machos; as outras duas consistiam em dois nichos (a que na CASA chamavam pilheiras), um grande e um pequeno, numa das paredes da varanda e quatro cabides, um pouco toscos, numa das paredes da cozinha. O nicho maior destinava-se a colocar o jornal e o livro que o meu avô estivesse a ler, o outro destinava-se à caixinha do rapé. Soube da função dos nichos pelo António Joaquim, que mantendo a tradição de família viveu sempre na CASA. Foi também por ele que soube da função dos cabides. Cada cabide era para seu capote. O do seu avô, o do seu pai, o do seu tio e o do Sr. Padre Marcos que vinha todas as noites para conversar com o avô. O do seu pai, pouco usado por ele, foi depois destinado ao seu tio Justino. 5 O casamento da TIA com o Tio Justino não foi, de início, motivo de grande alegria para os meus avós. Não que não gostassem do tio Justino. Antes pelo contrário. Se há homem bom está ali- dizia a minha avó. Mas o casamento iria implicar longas separações e a CASA já estava muito vazia. Talvez pressentindo isso, a TIA, após o casamento, foi adiando sucessivamente a sua ida para Viana. O tio Justino vivia numa pensão e vinha à Terra sempre que lhe era possível. Com a morte da minha avó, em 1936, a ida da TIA para Viana ficou ainda mais complicada. Como deixar o pai, para mais tão combalido depois da morte da mãe? O tio Justino lá se ia resignando a continuar a viver no quarto da pensão, vindo à TERRA sempre que podia. E foi assim até à morte do meu avô em 1938. Só então a TIA se decidiu a acompanhar o marido. 15
  • 16. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia O tio Justino era de facto um homem bom. Coxeava um pouco de uma perna na sequência de uma tuberculose óssea, mal curada em menino. Por vezes tinha muitas dores mas não se impacientava. Nunca o vi zangado. O meu pai comentava: Só mesmo a paciência do Justino para aturar a ranzinza da minha irmã. A paciência do tio Justino manifestava-se nas mais pequenas coisas. Era sempre ele que deitava a canela no arroz doce. Começava por fazer, num papel, um estudo do desenho que queria fazer no prato. Depois colocava a canela na ponta do cabo de um garfo ou colher que segurava com a mão esquerda, enquanto, com a mão direita dava pequeninos toques nesse mesmo cabo. Era um trabalho de minúcia mas cujo efeito era surpreendente. Nunca vi pratos de arroz doce mais bem decorados, e quem diz arroz doce diz aletria ou milhos. Foi ainda o tio Justino quem me ensinou a nadar no Rio. E que paciência ele teve que ter! Ainda hoje está dependurado de uma das traves da adega, o colete de placas de cortiça, ligadas entre si por tiras de pano, que ele construiu para as minhas lições. Eu adorava-o. A TIA era uma boa pessoa, sempre pronta a ajudar, mas o que ela dissesse era lei e ai de quem a contrariasse. Vivia sempre preocupada com a opinião dos outros. Cuidado que isso parece mal; o povo pode falar. Muito religiosa, explicava todos os factos invocando a intervenção divina. Se uma pessoa bondosa morria de repente, praticamente sem sofrimento, a TIA comentava: É que Deus não dorme e sabe muito bem quem merece a Sua protecção. Mas se outra boa alma morria depois de um longo sofrimento a TIA justificava: O Senhor escolhe os bons para os pôr à prova. A sua maior fé era em Sto Estevão para todos apenas o Santo- o padroeiro da Terra. A festa do Santo ocorre no primeiro domingo de Setembro, pelo que genericamente o dia é de Sol, geralmente intenso. Todos os anos a TIA comentava: Sto Estevão fez o milagre. Esteve um dia lindo. Só me lembro de ter chovido uma vez, na festa do Santo. Também dessa vez a TIA achou que tinha sido milagre. Foi um milagre e dos grandes. Aquela chuvinha serviu para assentar o pó. Creio que a TIA, após sair da escola, nunca leu qualquer outra coisa que não fossem missais, bíblias ou pagelas religiosas, que coleccionava, bem como terços. Já a colecção do tio Justino era de outra natureza. Coleccionava objectos relacionados com as lides do linho. Eram cardas, espadelas, maças, rocas, fusos, dobadoiras. Até o jipe teve que compartilhar o seu lugar na garagem, por baixo do passadiço da CASA, agora fechado, com um tear que comprou numa aldeia vizinha. Também coleccionava termos usados na TERRA, pelo que andava sempre com um bloquinho no bolso e sempre que ouvia uma palavra já em desuso ou mal pronunciada, lá ia ele anotá-la. Esta mania de procurar 16
  • 17. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia coisas, fossem elas objectos ou palavras, levou a que o TIO lhe chamasse por brincadeira, o procurador. O TIO gostava de chamar as pessoas por alcunhas, algumas que só ele usava. A um filho do António Joaquim, que em criança passava a vida dentro de uma espécie de gaiola improvisada, idêntica ao que costumamos chamar de parques, chamou sempre Afonso VI. À TIA chamava-a de agulhinha porque o seu passatempo preferido era fazer renda, muito particularmente os panos de cinco agulhas. A mim, por ser um pouco irrequieta, chamava-me piãozinho. Mas a par destas alcunhas carregadas de ternura, havia as que, pela forma como eram ditas, faziam transparecer um sentimento bem diferente. Uma delas era “O Botas”, quando se referia a Salazar. Lembro-me das grandes discussões que havia entre o meu pai e o TIO, sempre por causa da política. O meu pai era salazarista e para se justificar invocava sempre o mesmo argumento. Eu saí daqui em 1919 e sei bem a bagunça que se vivia. Agora está tudo calmo. O TIO respondia-lhe então: Especialmente em Peniche e em Caxias. E a partir daqui a conversa subia habitualmente de tom e acabava quase sempre do mesmo modo. O TIO dizia-lhe: Não há pior cego que aquele que não quer ver. Ao que o meu pai respondia: Sim, sim tu falas, mas cagas no prato onde comes. Tenho vergonha de ser teu irmão. Isto tudo era da boca para fora pois se havia sentimento que o meu pai nutria pelo irmão não era o de vergonha mas o de orgulho, particularmente na sua bela carreira militar. As opções políticas do meu pai começaram a ficar um pouco abaladas após as eleições de 1958. O TIO conhecia Humberto Delgado com quem tinha trabalhado, e tinha por ele uma grande consideração que se reflectia na imagem com que o descrevia. Talvez por isso, o meu pai nutria alguma simpatia pelo General. Mas o seu voto foi, naturalmente, para o Almirante. No dia 14 de Maio de 1958, dia em que o general passou pelo Porto em campanha, o meu pai estava lá casualmente e viu. Por isso, quando foram anunciados os resultados das eleições de 8 de Junho, terá comentado: Aqui houve marosca. Isso, no entanto, não o impediu de continuar a elogiar o homem de S. Bento e a ter em lugar de destaque, na sua estante, o livro “Salazar na Intimidade”. Em 1960 o TIO é passado à reserva compulsivamente. Fui eu quem entregou ao meu pai a carta do TIO que trazia a notícia. O meu pai começou a ler a carta e eu fiquei ali à espera daquele trecho habitual: “Como vai o piãozinho ? Diz-lhe que já estou com saudades”. 17
  • 18. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia Mas não foi isso que ouvi. Vi o rosto do meu pai crispar-se e pela primeira vez ouvi-o dizer um palavrão na minha frente. Grandes filhos da puta. Não entendi a quem se referia, mas se usou o plural não se refere ao TIO, pensei, e saí de imediato sem que o meu pai desse conta. Creio, no entanto, que o maior golpe nas suas convicções políticas foi dado em 1965, quando o General foi assassinado. O TIO passava agora mais tempo na TERRA. Um dia, na varanda da CASA, pegou num jornal que se referia à morte do general, como tendo sido obra dos seus correligionários. Comentou em voz alta: A quem eles pensam que enganam? Quem o matou foi a “Pevide”. Como visse o meu olhar atónito o TIO achou que era tempo de eu abrir os olhos. Foi essa a primeira sessão de esclarecimento político que tive na vida. À noite, talvez um pouco para provocar o meu pai, comentei que fora a Pide a responsável pela morte do General. Esperava uma reacção violenta mas fiquei surpreendida quando ouvi o meu pai comentar com algum desalento : Já não digo nada. Não posso localizar a data em que “Salazar na Intimidade” deixou de ocupar a estante do meu pai, nem sei que sumiço o livro levou. O certo é que no espólio nunca apareceu. 6 Após a morte dos meus bisavós, o meu pai, com 12 anos, foi viver para o Porto com os pais e os irmãos (à data José, Pedro e Clara). Tinha feito o exame do primeiro grau com distinção, mas como o professor Bernardo tinha falecido, a TERRA ficara sem escola e os seus estudos tinham terminado aí. Era uma criança um pouco selvagem pois os cuidados disciplinadores da avó não tinham surtido o efeito desejado, face à complacência do avô aliada à cumplicidade do Pepe, do António, do Artúrio e da Zefa. A casa dos pais era uma casa cheia de regras. Horas para levantar, horas para deitar, horas para comer, horas para rezar, horas para ler, regras para estar à mesa. Tudo isto era demais para uma criança que nem sabia pegar nos talheres. A sua vida, até aí despreocupada, transformou-se num inferno. Por um lado os castigos do pai quando alguma regra era infringida, por outro a chacota dos irmãos para quem era praticamente um estranho. Só a mãe parecia apoiá-lo. Para agravar tudo isto o pai achou que ele devia completar a instrução primária. O irmão José frequentava o segundo grau e tinha um professor conhecido pelo seu elevado grau de exigência mas também pela sua barbaridade. Foi aos cuidados desse professor - Germano Vicente Dias - que o meu avô entregou o meu pai. O meu pai era inteligente pelo que em breve se tornou o melhor aluno da classe. Isso valeu-lhe a consideração do irmão, em quem passou a ter um aliado. Parecia assim mais 18
  • 19. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia fácil de suportar a disciplina do pai. As coisas ter-se-iam arranjado se o professor Germano não tivesse dado um golpe de misericórdia em toda a situação. O professor passou uma prova para os alunos fazerem e o meu pai foi o único que resolveu tudo correctamente. Então Germano Vicente Dias passou-lhe a palmatória para a mão e disse-lhe: Hoje és tu que vais castigar os colegas ; o primeiro será o teu irmão a quem terás que aplicar dez palmatoadas, cinco em cada mão - duas por cada erro, mais quatro por cada conta mal feita. O irmão estendeu cada uma das mãos e o meu pai aplicou-lhe os 10 “bolos” com bastante suavidade, não fosse ele o seu irmão. Então, o professor tirou-lhe a palmatória das mãos. Eu vou mostrar-te como se usa a palmatória. As mãos do meu pai jorraram sangue mas não chorou. À noite, enquanto a mãe com lágrimas nos olhos lhe tratava as mãos, o pai comentava : Só assim te farás homem. No dia seguinte de manhã o meu pai não estava na cama. Tinha saído, pé ante pé, direito à estação, onde se meteu no combóio do Douro. Expulso do combóio sempre que era descoberta a sua clandestinidade, fazia troços do percurso a pé, sempre junto à linha férrea, comendo o que encontrava pelos campos onde passava e assim, ao fim de vários dias, cheio de fome, sujo e exausto chegou à Vila. Procurou o boticário a quem se identificou e em casa de quem dormiu, depois de uma boa ceia. Nesse mesmo dia, um mensageiro levou a notícia ao meu tio avô Afonso que, no dia seguinte, em pessoa, foi buscar o sobrinho. Aproveitou para telegrafar para o Porto a sossegar a família desesperada, que já imaginava o filho afogado no mar ou vítima de qualquer outra fatalidade. Passa então a viver na CASA com o tio Afonso, o Artúrio e a família deste. Ajuda nas lides do campo e tem como principal divertimento acompanhar o tio nas peixadas que faziam no Rio. Aprende a deitar as redes e as chumbeiras e a pôr o embude nas locas , para obrigar os peixes a sair. Os homens metiam-se no Rio, todos nus, mesmo em pleno inverno. Ele ainda quase menino, um pouco envergonhado, lá ia também. Peixes apanhados, era preparar a fogueira para os assar. Para ele sobrava ir buscar a lenha e atiçar o lume. Os peixes, assados pelos homens, eram acompanhados com aquele pão que ninguém fazia tão bem como a Zefa, e servidos com aquele molho que, só de lembrar, fazia crescer água na boca. Guarda dessa altura recordações felizes. Quando, após a transferência do meu avô, os meus avós foram viver para a Vila, o meu pai foi viver com eles, mas não conseguiu adaptar-se, apesar de cada vez serem mais fortes os laços com os irmãos, particularmente com José. Por isso passava a maior parte do tempo na CASA, mesmo depois do casamento do tio Afonso. O Artúrio proporciona-lhe 19
  • 20. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia alguns encontros com raparigas e mulheres da TERRA e assim se faz a sua iniciação. Aos 18 anos apaixona-se por Luísa, com 16, de quem toda a vida guardará um lenço bordado. Mas Luisa morre com a gripe pneumónica. Não houve uma só família na TERRA que não tivesse ficado de luto devido à pneumónica. O meu tio Pedro, ainda menino, morre também vítima da epidemia. Estava-se no rescaldo da Grande Guerra e em Portugal vivia-se uma tremenda instabilidade política. A pneumónica tinha espalhado dor e luto à sua volta. Provavelmente tudo isto, aliado às marcas deixadas pela morte dos avós e à dificuldade de relacionamento com o pai, terá pesado na decisão que o meu pai tomou. Decidiu partir, mas nem ele próprio sabia concretamente porque partia tal como não sabia muito bem para onde ia. Tinha então 19 anos de idade. A viagem era, de si, uma história fantástica; infelizmente não consegui guardar a maior parte dos pormenores pois o meu pai não gostava muito de recordá-la. Saiu de casa ainda noite escura. Num pequeno saco levava a pouca bagagem que tinha e, numa taleiga, a merenda que Zefa lhe tinha arranjado, convencida que o meu pai ia para uma festa, numa aldeia um pouco distante. Só levava uma intenção, atravessar a fronteira. Subiu e desceu ladeiras até chegar ao Douro, que atravessou a nado. Ao fim de alguns dias foi ter a Medina Del Campo onde foi acolhido por uma família de lavradores, muito hospitaleira, para quem trabalhou durante cerca de um ano e meio. Mas o seu espírito inquieto não o deixou parar por lá mais tempo. Conhece Denis, um jovem francês que se tinha acolhido em Espanha durante a Grande Guerra e que vai regressar a casa em Bedous, nos Pirinéus, relativamente perto de Lourdes. Parte com ele. Vai a Lourdes com Denis. Reza pela primeira vez, depois de tanto tempo. Nas suas orações, num misto de português e castelhano, pois fora assim que as aprendera, lembra os mortos, os vivos, a TERRA e a CASA. No regresso a Bedous, passam por Pau onde Denis lhe apresenta a sua prima Monique. Monique parece-se imenso com Luisa, o que perturba o meu pai. Nasce assim a segunda grande paixão da sua vida. Disposto a remover montanhas e com a ajuda de Denis o meu pai aproxima-se da família de Monique. O pai, Mr. Dupont, é marceneiro e tem uma oficina em Pau. O meu pai vai trabalhar com ele. Aprende o ofício e trabalha empenhadamente, por um lado para impressionar o pai de Monique, por outro porque o trabalho lhe dá prazer. Gostava de usar as plainas, as garlopas, as enxós. Gostava do cheiro da madeira e do serrim, da resina da madeira de pinho ainda verde. Com Monique limita-se a trocar olhares que são correspondidos. Parecia que finalmente iria reencontrar a paz há tanto perdida. Espera toda a semana pelo domingo. Ao entrar na Igreja faz por entrar logo a seguir a Monique para receber das mãos dela o hissope de água-benta. E assim passa mais de um ano. Quando Mr. Dupont se apercebe das intenções do meu pai chama-o e diz-lhe: 20
  • 21. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia Meu rapaz, não tenhas ilusões. A Monique está prometida a um primo que presentemente vive na Argélia. Logo que regresse casar-se-ão. Nessa mesma noite o meu pai arruma as trouxas e prepara-se para partir. Por baixo da porta da marcenaria deixa um envelope dirigido a Mademoiselle Monique. Lá dentro uma mensagem curta, aliás a única mensagem de amor que trocou com ela, para além dos olhares e da passagem do hissope. Il faut que je parte mais je t´aimerai toujours. Passa pela igreja. Entra e pede perdão a Deus pela falta que irá cometer. Passa junto da pia de água-benta e rouba o hissope. Não sabe bem porquê, leva um destino- Marselha - de que Denis lhe falara. Está-se em 1921, depois da guerra, e arranjar trabalho não é fácil. Consegue uns biscates na estiva do porto. Conhece marinheiros e com a ajuda de um deles consegue partir como clandestino para Dakar, no Senegal. Não faz a mínima ideia de onde fica o Senegal, mas ao consultar o mapa, apercebe-se que é perto da Guiné, a colónia portuguesa de que ouvira falar nos tempos de escola. Durante a viagem decide que não ficará em Dakar. Decide que é para a Guiné que há-de ir. Pensava que uma vez no Senegal seria fácil chegar à Guiné, pois dominava razoavelmente a língua francesa. Só que ignorava que a maior parte da população falava nas suas línguas nativas e o francês de pouco lhe serviria. Atravessou parte do Senegal com Infali, um gila4 guineense. Foi assim que conseguiu chegar à Guiné. Durante a viagem com Infali toma corpo a ideia de montar um pequeno comércio, com o pouco dinheiro que conseguira juntar ao longo dos últimos três anos. Estabelece-se em Bafatá. Pela sua vida passam várias mulheres, uma delas a crioula Cesária. Pela primeira vez escreve para casa, depois de quase três anos e meio sem dar notícias. A carta encontrou-a por acaso a TIA, esquecida no meio de umas peças de linho que herdou da mãe. Achou que eu devia ser a sua depositária e por isso veio parar às minhas mãos. Bafatá, 2 de Dezembro de 1922 Querida Mãe: Escrevo-lhe da Guiné, em África. Não é tão longe como Angola ou Moçambique, mas mesmo assim demoram-se muitos dias a cá chegar, de barco. Imagino quantas aflições não terão passado por minha causa. Mas, como coisa ruim não tem perigo, encontro-me são e salvo. Quando saí de Portugal fui para Espanha, e daí para França. Não imagina as saudades que tive da CASA e de todos, e o número de vezes que pensei em voltar. Eu sei que a mãe não consegue entender por que razão parti. Se calhar nem eu sei. Mas eu sou assim. Só estou bem onde não estou. Na CASA sinto-me bem, mas a mãe sabe que eu e o pai não nos 4 contrabandista que faz o comércio transfronteiriço 21
  • 22. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia conseguimos entender. Sei que a culpa é minha que sou rebelde. Acredite mãe, eu gostava de mudar, mas não consigo. Tanto só estou bem onde não estou, que da França vim para aqui, sem eu mesmo saber porquê. Acho que alguém guia os meus passos, mesmo sem eu querer, mas também não sei quem. Mas não se preocupe. Estou bem. Aqui é tudo muito diferente. As pessoas são pretas, como a mãe deve saber, mas mesmo assim diferentes. Há assim como que uma espécie de raças dentro da raça. Há os manjacos, os balantas, os mandingas, os fulas, os futa-fulas, os saracolés, os papéis e muitos outros. Não falam português e cada uma dessa espécie de raças fala uma língua diferente das outras. Mas há uma língua que muitos falam -o crioulo. É nessa língua que eu lhes falo. É engraçado o crioulo, mãe. Bó quer dizer tu, cá, quer dizer não, jubi é ver, obi é ouvir. Vivem numa espécie de aldeias a que chamamos tabancas. Os homens geralmente vivem com mais que uma mulher, todos na mesma casa. As casas são redondas, com um só compartimento e cobertas de palha. Alguns, principalmente os fulas, criam gado, umas vacas muito magrinhas, mas grande parte vive da agricultura. O que mais cultivam é o arroz mas também um pouco de milho e mancarrra (amendoim). No amanho da terra não usam arados, nem charruas mas sim uma espécie de sachos de madeira. O arroz é cultivado nas bolanhas (uma espécie de charcos) e o trabalho é essencialmente feito por mulheres que, enquanto trabalham, carregam os filhos ás costas presos com um pano. Aqui faz sempre calor. De Novembro a Maio quase que não chove. Nos outros meses cai cada aguaceiro, que de repente a água nos dá pelos joelhos. Mas não molhamos as calças porque aqui andamos de calções - os brancos, porque os pretos andam com uns balandraus até aos pés. Isso os homens, porque as mulheres andam com o peito destapado e usam uns panos compridos coloridos, enrolados na cintura e que vão quase até ao chão. Andam todos descalços e as mulheres usam muitos penduricalhos, geralmente ao pescoço e nos tornozelos. São muito boa gente mas têm costumes muito diferentes dos nossos a começar pela religião Não são da nossa religião e a maior parte são muçulmanos. Também acreditam em Deus, só que Lhe chamam Alá. Moisés é um profeta e Jesus Cristo também. Dizem que o último profeta foi Maomé, que deixou as leis sagradas que respeitam, e que estão no Alcorão, que é assim como a Bíblia para nós. Não comem carne de porco nem bebem vinho. O seu dia Santo não é o domingo, mas a sexta. Às igrejas, que são diferentes das nossas, chamam mesquitas, mas em muitas tabancas não há mesquitas. Mas eles rezam sempre cinco vezes ao dia. Lavam-se antes de rezar e rezam de joelhos ,com a cabeça encostada ao chão, virados para Meca que é a terra onde nasceu Maomé, e que fica muito longe daqui. Todos os anos, durante um mês fazem jejum total do nascer ao pôr- do- sol. Chamam-lhe o mês do 22
  • 23. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia Ramadão. A música deles também é muito diferente da nossa, e os instrumentos também. Usam muitos, feitos por eles com cabaças, peles de macaco, troncos de árvores - são tambores, uma espécie de bandolins, e muitos outros que não lhe sei explicar. Eu gosto muito de ver as danças que fazem ao som dessa música. Como nem todos são muçulmanos, há quem beba vinho, mas é vinho de palma. Não se faz com uvas mas com seiva de palmeiras que são umas árvores muito altas. Aqui há árvores muito esquisitas. Há umas muito grandes que parecem ter ratos pendurados, mas não são - são uns frutos que não comemos. E por falar em frutos há aqui alguns que eu nunca tinha visto. O que mais estranhei foram uns que sabem a resina. Agora já me estou a acostumar ao gosto, mas foi custoso. Também não comem batatas e couves como nós. Quase só comem arroz. A terra também não é como a nossa. É vermelha e não há serras. Há rios muito cheios de curvas e maiores que o nosso. Há peixes, mas também não sabem como os nossos. Um animal que às vezes aparece nos rios é o crocodilo. Já ouviu falar mãe? É como um lagarto muito grande e que come animais grandes, mesmo pessoas. Por falar em animais, há aqui muitos macacos que trepam pelas árvores, lagartos, pássaros, alguns muito bonitos, e muitos morcegos, tantos, que à noite urinam em cima da gente. Há muitas moscas, muito mais que aí. São tantas que a gente já as não enxota. Habitua-se e anda com elas pela cara, pelos braços, pelas pernas. Há também muito mosquito, osgas, e baratas- grandes que eu sei lá. Os cheiros aqui são muito diferentes, mas gosto deles. Não tanto como dos nossos, já se vê. Aqui há poucos portugueses mas os poucos que somos juntamo- nos de vez em quando, para jogar uma suecada e lembrar as nossas terras. Eu tenho um pequeno soto onde vendo de tudo. Quando preciso de comprar coisas, por vezes vou de barco a Bolama que é a terra mais importante, e que fica junto do mar. Mas também tenho um amigo, o Infali, que é uma espécie de contrabandista e que me abastece. Os nomes, como vê, também são diferentes - Infali, Mamadu, Bonco, Sajuma, Kumba, Braima, Binta. Pus-me para aqui a contar tudo e nem perguntei por todos. Como estão ? O Pai continua a caçar? O José já fez a tropa? A Clara já tem namorado ? E as meninas? Já devem estar grandes. E o tio Afonso ? O Artúrio e a Zefa estão bem ? Diga-lhes que, quando for Fevereiro, colham uns galhos de amendoeira em flor e os ponham na sepultura dos avós. Ou eles ou os filhos. Mãe, vou-me despedir. Como o Natal se aproxima desejo-lhes um Santo Natal. Aqui não tem grande graça. Para mim é triste porque me lembro muito dos Natais na CASA. Recomende-me a todos, que eu qualquer dia volto. A sua benção, mãe 23
  • 24. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia João Quando a minha avó recebeu esta carta, já a tia Clara não fazia parte do rol dos vivos; tinha falecido vítima de tuberculose. A carta está um pouco esborratada. Dizia a TIA que já tinha chegado assim e que a minha avó reconhecera nela duas lágrimas de meu pai. Talvez essas duas se tenham misturado com outras, vertidas pela minha avó que durante aqueles três anos e meio tinha sofrido calada. Ao marido não podia falar da sua dor pois ele, indignado com a partida do filho, nem sequer no seu nome queria ouvir falar. O meu pai manter-se-ia em Bafatá por mais uns anos e escreveria mais cartas para casa, mas delas não ficou qualquer registo. Da sua passagem pela Guiné, para além desta carta, resta apenas uma foto desbotada ao lado da Cesária, em frente a uma palhota, possivelmente aquela onde viviam. Durante esse tempo morrerão a sua irmã Adélia, o Artúrio e a Zefa, José cumprirá o serviço militar, ingressará na força aérea, casará e terá dois filhos, e Matilde ficará noiva do tio Justino. A sua estada na Guiné foi bruscamente interrompida quando, em 1934, adoece gravemente com tifo. Regressa à TERRA, segundo ele, para morrer. Mas não era esse o seu destino. 7 Quando o barco atraca no cais o TIO aguarda ansioso o irmão. Recebera a carta que lhe escrevera, já com muita dificuldade, num dos momentos em que a febre abrandara um pouco. Em poucas linhas, com uma letra tremida dizia que estava muito doente e embarcava para Portugal onde esperava chegar ainda com vida para depois ser sepultado debaixo dos sobreiros. O TIO receava já não reconhecer o irmão pois tinham passado 15 anos. Mas quando viu descer um homem envelhecido, com aspecto cadavérico, amparado e muito trémulo, teve como que uma intuição. Quando chegou perto dele perguntou: És o João ? O meu pai já não respondeu. Caiu inanimado nos braços do irmão. Por isso, quando naquele dia abriu os olhos, não conseguiu perceber onde estava. Não identificou o quarto nem o rosto da mulher que o fitava. Sou a sua cunhada Laura , mulher do José. Teve alguma dificuldade em apreender o significado daquelas palavras. Durante um mês não dera conta do que se passava à sua volta. Nos seus delírios frequentes chamara pelo avô, pela mãe, pela avó, por Luisa e por Monique. Um dia, alagado em suor grita aflito: José perdoa-me mas foi o Sr. Professor que me obrigou. 24
  • 25. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia Após o incidente no desembarque, o TIO levou o meu pai para sua casa e chamou o Doutor Silveira, médico da família, que o examinou cuidadosamente. Então Doutor? Perguntou o TIO. Só por milagre se salvará- respondeu o Doutor Silveira. O TIO comunicou então para a TERRA o estado em que estava o irmão. As notícias não os apanharam de surpresa pois já anteriormente tinha escrito a dar conta do conteúdo da carta do meu pai. Desde esse dia que a minha avó e a TIA passavam a maior parte do tempo na igreja, onde as velas não se apagavam. Na CASA, todos faziam promessas a todos os Santos, particularmente a Sto Estevão. Voltas de joelhos à capela, uma toalha de linho bordada para cada altar, razões de trigo, dias de jejum. Até o meu avô fez uma promessa, ele que não era muito para essas coisas. Como já de há muito se falava na necessidade de construir um coreto par as festas em honra de Sto Estevão, o meu avô prometeu que se o filho se salvasse mandaria construir não um, mas dois coretos junto da capela do Santo. Fosse pelas promessas e rezas, fosse pelos cuidados que o TIO e a tia Laura tiveram, fosse por obra dos medicamentos receitados pelo Dr. Silveira, pouco a pouco o meu pai foi-se libertando das garras da morte. No primeiro dia em que se levantou para se sentar numa cadeira de braços no pequeno jardim da casa, foi amparado pela tia Laura e pelo TIO. Só nesse dia é que reparou nos rostos daqueles seus companheiros dos últimos tempos. O irmão era uma bela figura- alto e garboso, quando estava fardado ficava com um aspecto imponente. A cunhada não era bonita mas tinha uma presença agradável. Reparou então em duas crianças pequenas que brincavam num cavalinho de pau- os sobrinhos Afonso e Gonçalo que não conhecia, mas de quem o irmão já lhe falara por carta. Como era possível que durante todo este tempo não se tivesse apercebido das crianças ? O TIO e a tia Laura tinham-nas posto em casa dos avós maternos durante a doença do tio. Abraçou o irmão e chorou. Lembrou-se então que o pai dizia que um homem não chora, mas essa lembrança fê-lo chorar ainda mais. Passara-se mais um mês e o meu pai ia poder, finalmente, regressar à CASA. Interrogava-se várias vezes sobre como iria ser a sua relação com o pai e partiu com uma certa apreensão. O TIO acompanhou-o pois o seu estado de saúde era ainda precário. A viagem entre a Vila e a TERRA foi feita num carro de machos, todo enfeitado com ramos de árvores, e tocado pelo António Joaquim. Quando chegou ao fundo das escadas da CASA foi penetrado pelos cheiros que jamais esquecera. Mas o que mais lhe ficou na memória dos cheiros desse dia foi o dos milhos doces polvilhados com canela. No balcão, e continuando pela cozinha, estavam todos- o pai, a mãe, o tio Afonso, a irmã Matilde, o António Joaquim, a Germana e a Balbina. Estes últimos eram ainda muito novos quando partira pelo que já não os conhecia, embora desde logo tivesse adivinhado 25
  • 26. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia quem eram. Estavam também muitos vizinhos, entre eles um jovem que também não reconheceu. Começou por abraçar a mãe; preparava-se para cumprimentar o pai na forma habitual, uma vénia com o pedido da bênção. Mas o pai, com os olhos rasos de lágrimas estreitou-o nos braços. Seguiram-se os cumprimentos a todos os outros, uns mais efusivos que outros. Para o fim ficou o jovem que não reconhecera. Era Justino. O casamento da TIA com o tio Justino já tivera data marcada, mas logo que se soube do estado de saúde do meu pai a TIA disse-lhe: Temos que desmarcar o casamento por agora. O meu irmão João está muito mal e as esperanças são poucas. Não vou casar nestas condições. O meu pai recupera agora rapidamente. Passa a maior parte do tempo sentado na varanda. No nicho maior da parede há sempre o jornal e um ou outro livro. Não lhe apetece ler mas o pai vai-lhe dando conta dos principais acontecimentos. Por vezes, ao fim da tarde, os dois vão até à Fraga. De lá avista-se o Santo, onde já se iniciaram as obras dos coretos. Pai e filho aprendem a gostar-se mutuamente, tal qual são um e outro. Vai, com os pais e a irmã, conhecer Fátima. Vai também a Viana a e ao Bom Jesus em Braga. Os pais podem assim rever sítios que já não viam há muito, enquanto que ele e a irmã os conhecem pela primeira vez. Tudo parece ter voltado ao normal e a TIA casa finalmente com o tio Justino, no dia 5 de Agosto de 1935. O casamento foi na capela de Sto Estevão, já rodeada de dois belos coretos. A Capela de Sto Estevão não fica propriamente na TERRA. Fica à beira do Rio, no fundo de uma ladeira. Chegar lá não é muito difícil. O pior é regressar, pois a ladeira é muito íngreme. Vem-se de macho, é certo, mas para os animais a subida também não é fácil. O casamento foi celebrado pelo Padre Marcos e os padrinhos foram o TIO e a tia Laura. No fim da cerimónia religiosa e antes de se iniciar o almoço, a ti Idalina cantou as loas. Possivelmente como ainda as cantava, quando eu a conheci muitos anos mais tarde. “Biba o noibo mai-la noiba Bibam os pais que a criaram Bibam também os padrinhos que à igreja os lubaram” Seguiu-se o almoço. Peixes do rio, vitela, borrego e peru assados, arroz de vitela, presunto, folar de carne, bolo moreno, pão de ló, arroz doce, aletria, milhos doces, súplicas, económicos, e vinho à descrição. Também não podiam faltar o “vinho fino” e os tremoços, adoçados no Rio. Após o casamento da TIA todos estranharam a avó, mas atribuíram o seu ar abatido à apreensão que lhe causava a partida da filha, que supunha para breve. Infelizmente não era só isso. A Avó estava doente. Já passara por muito. A morte da irmã, dos pais e dos 26
  • 27. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia três filhos foram-na minando por dentro. A juntar a tudo isso, as aflições que passara por causa do meu pai. A doença que quase o levara, foi a gota de água. Morre em 1936, vítima de ataque cardíaco. A morte da avó abalou muito toda a família. Mas a vida não para. Na CASA vivem agora o avô, a TIA, o meu pai e o António Joaquim com as irmãs. O tio Justino está a trabalhar em Viana, mas sempre que pode aparece. Quando o meu pai partiu em 1919, a TIA tinha apenas dois anos pelo que praticamente não se conheciam. É nesta altura que se vão criar laços. Com a TIA e com o tio Justino, de quem o meu pai sempre dirá, tal como o dissera a mãe: Se há homem bom, está ali. Agora restabelecido, o meu pai assume-se pela primeira vez como lavrador. É ele que trata de todos os problemas da CASA, ajudado pela TIA. Quando é preciso contratar os ranchos para apanha da amêndoa e da azeitona, contratar os jeireiros para as diferentes tarefas, vender a amêndoa, o azeite ou o vinho é ele quem vai, depois de ouvir a opinião do pai, da TIA e do António Joaquim. Participa em todos os trabalhos sejam eles a lavra, a limpa, ou qualquer outro. Mas os que lhe dão especial prazer são a poda e a enxertia, que aprendeu em menino com o avô. Sempre que parece estar a restabelecer-se o equilíbrio na vida emocional do meu pai, surge algo desestabilizador. Em 1938, o meu avô morre. Para o meu pai, estranhamente, a morte do pai foi um golpe mais duro do que a morte da mãe. Talvez por se terem encontrado tão tarde, talvez porque mais um laço se rompia. A TIA vai finalmente para Viana. O meu pai decide partir, desta vez para o Brasil, onde vive o tio Filipe. O tio Filipe não era propriamente tio. Era um primo da minha avó, filho de Diego Rodriguez e Maria Clemente. Tendo ficado órfão bastante cedo, decidiu vender a herança e partir para o Brasil. A vida correu-lhe bem e tinha em S. Paulo uma firma, relativamente importante, de venda por grosso - a firma Rodriguez. Manteve sempre algum contacto com a família pelo que o meu pai partiu ao seu encontro, mas sem disso o prevenir. De tal modo se sentia que disse aos irmãos que desta vez partia para não voltar. Antes de partir vendeu ao TIO a sua parte na CASA. Entre a parca bagagem que levou iam um lenço bordado e um hissope. 8 Apesar da sua vida errante, uma das maiores cidades que o meu pai já tinha visto era Lisboa, que conhecia mal. Estivera lá apenas duas vezes. A primeira quando regressara 27
  • 28. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia doente da Guiné, e dessa vez pouco ou nada tinha visto. A segunda foi antes do embarque para o Brasil. Durante uma semana, com o irmão, tinha visitado os Jerónimos, a torre de Belém, o castelo de S. Jorge, tinha passeado pela Baixa, tinha entrado no Grandela e no Chiado. Quando chegou a S. Paulo, ficou um pouco assustado com o tamanho da cidade e teve alguma dificuldade em dar com a morada do tio Filipe. Quando chegou a casa do tio ficou estarrecido. Era uma bela casa, rodeada de um jardim. Tocou a campainha e apareceu uma empregada a quem se identificou. O tio Filipe não estava, mas estava a mulher, a tia Carlota, uma senhora brasileira, descendente de italianos, ainda nova. A tia Carlota, recebeu-o numa sala ricamente mobilada, cheia de cristais e pratas. Nunca o meu pai vira nada parecido. Na CASA não havia cristais nem pratas, à excepção da caixinha de rapé do pai, no nicho pequeno da varanda, e quanto aos móveis, eram muito simples- camas de ferro, várias arcas, dois roupeiros em mogno onde se acomodava a roupa de toda a família e na sala uma mesa com 12 cadeiras e um louceiro, também em mogno. As outras casas por onde tinha passado, eram ainda mais simples, à excepção da casa do irmão José em Lisboa, que em nada se comparava à casa do tio Filipe. Parecia assim confirmada a ideia de que o tio Filipe estava muito bem de vida. O tio Filipe não estava, mas não devia demorar. Esperou. Quando o tio chegou, acompanhado do primo Júlio, 10 anos mais novo que meu pai, este apresentou-se como o João, o filho mais velho da prima Marta. O tio Filipe nunca conhecera o João, pois saíra rapaz da Terra, ainda a prima Marta era solteira, mas com ela trocara sempre correspondência, pelo que estava um pouco a par da vida da família. O meu pai já não saiu dali. Ficou a viver em casa do tio e a trabalhar na firma Rodriguez, de início fazendo um pouco de tudo, mas logo depois como caixeiro viajante. O tio Filipe lembrava-lhe um pouco o pai, pois também pautava a sua vida por muitas regras. A sua e a dos que trabalhavam com ele. Uma das regras que lhe impôs foi: Aqui sou o tio Filipe, mas na firma sou o Sr. Rodriguez. Não sei se ao escolher para o meu pai a vida de viajante, o tio Filipe teve em conta a vida errante que ele até aí levara. Mas a escolha não poderia ter sido melhor. O meu pai representava a firma do tio nas principais povoações ao longo da Estrada de Ferro da Sorocabana: Avaré, Botucatu, Ourinhos, Presidente Prudente. Adorava a sua vida de viajante. Era muito responsável no seu trabalho, mas totalmente irresponsável no que dizia respeito à sua vida privada. Tinha uma mulher em cada uma das localidades por onde passava e gastava quanto ganhava, com carros, orgias e mulheres. Isto até conhecer Nair. 28
  • 29. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia Foi no Brasil que o meu pai teve uma vida social mais intensa. Torna-se sócio da ARCESP5, relacionando-se com muitos outros comerciantes, alguns deles portugueses (patrícios, como sempre lhes chamava). Juntamente com seu primo Júlio é sócio de várias associações culturais e recreativas, entre elas o clube de regatas Tietê. É precisamente nesse clube que ambos conhecem Nair. Desde logo Nair impressiona o meu pai. Lembra-lhe Luisa e Monique. Não sabe bem porquê. Estas eram relativamente altas, tinham lábios finos e cabelos castanhos. Nair é relativamente baixa, tem lábios grossos e olhos e cabelos negros. Nair não só impressionou o meu pai, como também o seu primo Júlio, mas foi este quem conquistou o coração de Nair. Não houve disputa entre os dois. Quando o meu pai se apercebeu de que Júlio gostava de Nair, retirou-se simplesmente de cena. Não seria justo roubar a mulher ao primo, filho do tio que tão bem o tinha acolhido. Durante anos viveu uma paixão em silêncio. Nair casou com Júlio em 1942. Meu pai foi, não só padrinho de casamento, como também padrinho dos dois filhos do casal- uma menina nascida em 1943 e um rapaz nascido em 1944. Júlio, partilhando uma mania comum a muitos brasileiros, de darem a todos os filhos nomes começados pela mesma letra, deu a ambos um nome começado por R: Renata e Ricardo. Renata e Ricardo irão sempre representar papel importante na vida afectiva do meu pai. De Nair guardará sempre, sem o primo e ela saberem, uma luva que um dia deixou esquecida no clube. Afinal, omitir este facto ao primo não deveria ser tão grave como roubar um hissope numa igreja de Pau. A partir do dia em que conheceu Nair, passou a levar uma vida mais regrada. Para isso também terá contribuído o fim da sua vida de viajante. Efectivamente o tio Filipe, cedo se apercebeu que meu pai tinha muito mais jeito para o negócio do que Júlio. Pensou, então, que a melhor maneira de garantir o futuro da firma após a sua morte, seria dar- lhe sociedade. O meu pai tornou-se então sócio minoritário da firma que passou a chamar-se Rodriguez e Matias. O que o tio Filipe nunca imaginou foi que, uns anos mais tarde, o meu pai venderia a sua quota ao primo Júlio, para regressar definitivamente à TERRA. Mas isso foi depois de conhecer Mariana. 9 Durante todo este tempo o meu pai raramente escreve aos irmãos que se queixam dos seus silêncios prolongados. Esses escrevem com mais frequência. Nas cartas, dão-lhe conta do que se vai passando. Numa delas o TIO fala-lhe entusiasticamente da festa de Sto Estevão em que ele, e mais alguns camaradas, acompanharam a procissão 5 Associação dos Representantes Comerciais do Estado de S. Paulo 29
  • 30. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia sobrevoando-a em aviões. Fala-lhe também de Majores e Coronéis que leva à TERRA e de uma homenagem que lhe prestaram na Vila. Conta-lhe vários episódios divertidos como aquele que aconteceu com a Germana, uma das vezes em que foi à TERRA com dois oficiais seus colegas, e a viúva de um outro, uma senhora suíça, a quem chamavam Madame Junqueira, por ser este o nome de família do falecido marido, e que já por várias vezes manifestara o desejo de conhecer a TERRA. Segundo ela, as descrições do TIO traziam-lhe à mente recordações da sua Suíça distante. Madame Junqueira não conseguiu conquistar a simpatia da Germana: “A Senhora D. Madama debe ser uma desabergonhada. Bem de Lisboa, só, com os homes, e fuma como eis”. Mas o meu pai tenta esquecer a TERRA, a CASA e tudo o que com elas se relaciona. Também durante todo este tempo só entrou três vezes numa igreja, aliás sempre a mesma, a Igreja de N. Sr.ª da Consolação, em S. Paulo. Foi no casamento de Júlio e nos baptizados de Renata e Ricardo. O coro da igreja acompanhou a cerimónia religiosa do baptizado de Ricardo. O meu pai reparou particularmente na solista, com uma linda voz de soprano. Estava decidido a conhecê-la. Seguiu-a várias vezes sem que ela desse por isso. Soube onde morava. Na rua havia uma estabelecimento de um patrício, “Seu” Antero, com o qual foi metendo conversa até saber pormenores da sua vida. Era uma jovem, descendente de italianos, de uma família simples, que vivia ali perto com os pais e os irmãos. O pai era contabilista na farmo-química Baldacci. A jovem, que se chamava Mariana, vivera até há pouco tempo com uns tios, numa fazenda do interior do estado. Foi “Seu” Antero quem apresentou Mariana ao meu pai. Quando o meu pai começou a fazer a corte a Mariana, ela comentou com a irmã mais velha. Aquele “Seu” João é bobo. Podia ser meu pai. Mas o meu pai, apesar de 20 anos mais velho que Mariana, era ainda um homem cativante. Muito vivo, bom contador de histórias, com uma vida social relativamente intensa e, na altura, com uma boa situação económica. Tudo isto terá contribuído para que a resistência de Mariana fosse progressivamente diminuindo. Casaram em 1945, mas só civilmente. Não sei se a iniciativa foi de ambos, ou de algum deles em particular, mas creio que os dois tinham a consciência que naquela relação havia grande probabilidade de insucesso. Mariana revelou-se uma caixinha de surpresas. Não só era uma mulher muito bonita como tinha uma série de predicados, para além daquele que tinha chamado a atenção do meu pai, no dia em que a conheceu - a sua bela voz de soprano. Bordava com mãos de fada e cozinhava divinamente. Nos primeiros anos de casamento tudo correu bem. Tinham uma vida despreocupada. Em casa havia de tudo e podiam divertir-se. Iam à ópera, ao cinema, ao clube, à praia; viajavam no Chevrolet que o meu pai tinha comprado, conviviam muito com amigos. Quando Mariana manifestou a vontade de ter 30
  • 31. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia um filho, aí as coisas complicaram-se. O meu pai disse frontalmente que não queria filhos. Já não tinha idade para ser pai e além disso era um homem que não gostava de amarras. Para crianças já tinha os afilhados a quem queria como filhos. Perante a insistência de minha mãe começam as desavenças no casal seguidas de curtas ausências de meu pai, cada vez mais frequentes. Quando em 1949 a minha mãe lhe anuncia que está grávida o meu pai propôs-lhe desfazer-se da criança, o que a minha mãe não aceita. O meu pai terá feito um ultimato à minha mãe: Ou ela, ou eu. Ao que a minha mãe terá respondido: Ela. As ausências do meu pai tornam-se agora prolongadas, para além de frequentes. A minha mãe sabe que voltou à vida desregrada que tinha quando era viajante. Mas está decidida. A criança irá nascer. Quando eu nasci em 10 de Janeiro de 1950, num dia de calor sufocante, o meu pai estava ausente já há uns dias. Regressou, por acaso, no dia 15 depois de ter passado por casa do primo Júlio onde lhe deram a notícia do meu nascimento. Quando soube que era uma menina terá apenas comentado: Um azar nunca vem só. Quando entrou em casa eu dormia no berço. Parece que nem para mim olhou. Sentou-se na sala onde eu e minha mãe nos encontrávamos. Foi a minha mãe quem falou primeiro. Vens para ficar? Ainda não sei- respondeu o meu pai. A minha mãe saiu por instantes e o meu pai aproximou-se do berço, creio que mais por curiosidade do que por qualquer outro sentimento. Olhou para mim e voltou a sentar-se. Quando a minha mãe regressou e após alguns minutos de silêncio, o meu pai perguntou- lhe: Já tem nome? Estava a pensar em Gabriela- respondeu a minha mãe Então o meu pai disse: Eu preferia que fosse Marta. Foi assim que nasceu o meu nome. Embora o meu pai não tivesse decidido ficar, agora são os períodos de presença que passam a ser cada vez mais frequentes e prolongados. Um dia, tinha eu já cinco meses, decidiu-se a ficar definitivamente. Nesse mesmo dia levou lá a casa os afilhados, Ricardo e Renata. Ter-nos-á apresentado assim: Esta menina chama-se Marta e é como se fosse vossa irmã. E para mim, que do mundo tinha começado a descobrir as minhas mãos, terá dito: Estes são a Renata e o Ricardo que são como teus irmãos. 31
  • 32. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia O meu pai tinha decidido aprender a gostar de mim, como em tempos tivera que aprender a gostar do pai. Até essa altura o meu pai praticamente nunca falara da TERRA nem da CASA com a minha mãe. Será a partir daqui que ele começará a fazê-lo criando na minha mãe uma imagem que só para ele era real. A CASA era o lugar mais acolhedor que alguma vez tivera conhecido. A TERRA era um lugar paradisíaco, com cheiros, cores, sons e sabores como não existiam em qualquer outra parte do mundo. Falava-lhe de estevas, urzes, arçãs, papoilas, alecrim; de andorinhas, melros, calhandras, cotovias, poupas, cucos, gaios. Descrevia as encostas do Rio, no fim do Inverno, com as amendoeiras em flor, como parecendo véus de noiva, em Junho com os seus tons de castanho, amarelo, verde e roxo, e em Outubro com os tons dados pelas folhas secas das árvores e das vinhas, lembrando telas dos melhores pintores. Falava-lhe das oliveiras no inverno, geladas, como lembrando árvores de prata, dos pingarelhos de gelo caindo dos beirais como lembrando peças de cristal. Falava-lhe também da capelinha de Sto Estevão, lá junto ao Rio, que corria preguiçoso nos dias cálidos de Verão e tumultuoso nos dias de invernia, como que ciumento da beleza das encostas que o ladeavam. Descrevia os vários tons do céu, cinza quase branco anunciando neve, cinza quase negro anunciando trovoada, azul sem igual, nos dias límpidos ou, em outros dias, azul manchado de branco pelos castelos de nuvens cuja sombra, nas encostas, se misturava com todos os seus tons tornando a paisagem ainda mais deslumbrante. O meu pai falava de tudo isto, mas omitia quão duras são a apanha da amêndoa sob um sol abrasador e a da azeitona, sob um frio de rachar, tal como omitia a inexistência de estrada entre a vila e a TERRA, a falta de luz eléctrica, de água canalizada, o pouco conforto da CASA. Creio que nestas omissões não havia intenção deliberada de enganar a minha mãe. Não, o meu pai via de facto a TERRA como o paraíso e a CASA como um palácio. A firma não vai lá muito bem desde a morte do tio Filipe em 1951. O primo Júlio, decididamente não tem jeito para o negócio. Também a situação política no Brasil vai de mal a pior. Todos estes factores aliados à saudade da TERRA e da CASA devem ter levado o meu pai a fixar o regresso como objectivo. Consegue convencer a minha mãe, inicialmente muito renitente. Nessa altura vende a sua quota ao primo. Felizmente o tio Filipe já cá não estava para ver. Regressa. Desta vez será definitivamente. Estávamos em 1954, o ano em que o presidente Getúlio Vargas se suicida. Parte para Portugal, apenas com uma mágoa- não poder levar consigo Renata e Ricardo. 10 32
  • 33. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia A viagem é feita de barco. Viemos em primeira classe. Eu sou a principal companhia do meu pai pois a minha mãe vem enjoada quase todo o tempo. O meu pai, sempre que contava a viagem, comentava com orgulho: Algumas vezes, a única “senhora” presente na sala de refeições era a Marta. Sei que fizemos escala nas Canárias. Não que me lembre, mas ainda guardo uma boneca que o meu pai lá me comprou. Ao chegar a Lisboa lá estava o TIO, no cais, para receber o irmão. Desta vez o irmão não vinha para morrer. Há muito que não amava tanto a vida. Logo que conheceu a minha mãe, o TIO apercebeu-se que a adaptação à TERRA e à CASA seria no mínimo difícil, senão impossível. Tenta convencer o meu pai a adiar a ida, e a procurar um modo de vida em Lisboa. Mas o meu pai estava decidido. Queria ir ver a TERRA e a CASA e o mais rapidamente possível. É certo que a CASA já não lhe pertencia. Vendera a sua parte ao irmão antes de partir, mas ele desde logo lhe dissera: É como se continuasse a ser tua. Fomos no Austin A40 que o TIO tinha recentemente comprado. Mas só até à Vila pois para a TERRA ainda não havia estrada. Na Vila aguardava-nos o António Joaquim com um carro de machos ricamente engalanado com galhos de amendoeira em flor. Estávamos em Março. Os bancos para nos sentarmos estavam cobertos com colchas de linho impecavelmente lavadas. Todos estes cuidados tinham estado a cargo da TIA e do tio Justino que tirou uns dias de licença par nos poder receber. A TIA, já uma semana antes da chegada fora com a Germana e a Balbina para o Rio, tratar da lavagem das colchas. Em sua opinião, só no Rio uma roupa podia ficar bem lavada. No dia da chegada o António Joaquim foi colher os ramos de amendoeira e depois, foi o trabalho de engalanar o carro. A imagem do carro impressionou a minha mãe mas não conseguiu tornar a viagem confortável. Quando entrou na TERRA a minha mãe estava maçada. Para além disso, sentia frio como nunca tinha sentido, mesmo quando, em menina, vivia na fazenda dos tios, onde por vezes as temperaturas chegavam aos 80C. Fosse por ter chegado ao lusco- fusco, fosse pelas vestes das pessoas, todas muito escuras, fosse porque, para além da CASA poucas casas eram caiadas, a minha mãe não conseguiu ver as tais cores fascinantes de que o meu pai lhe falara. Via tudo cinzento e triste. E quanto aos cheiros os que ela identificava não os achava agradáveis- o do estrume e o dos excrementos dos animais, nas ruas. Quando chegou à CASA, as desilusões continuaram. Ao entrar na cozinha o cheiro que mais identificou foi o de fumo, fumo esse que lhe fazia arder os olhos. A iluminação da CASA era feita através das mais variadas formas- candeias, lampiões, candeeiros de petróleo, gasómetros e um petromax. Por azar, nessa noite ninguém conseguiu pôr o petromax a funcionar e o cheiro do carboneto no gasómetro, incomodava a minha mãe. Tiveram que comer à luz de um candeeiro de petróleo. 33
  • 34. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia O jantar estava divino, mas Mariana já está demasiado confusa para percepcionar os gostos e os cheiros. À sobremesa come uma compota de ginja na qual parece detectar qualquer coisa estranha. Dizem-lhe que é assim mesmo. Mas no dia seguinte, à luz do dia, Mariana descobre que a ginjada está coberta de moscas que morreram coladas ao doce, vítimas da sua gula. A CASA tem andado de facto um pouco desleixada. Se a TIA ainda estivesse para controlar tudo, tal nunca teria acontecido. Mas a Germana e a Balbina, duas boas criaturas, dão pouca importância a certos aspectos de higiene. O meu pai, esse está deliciado com tudo. Parece ter regressado aos seus dias de menino. Nessa noite Mariana chora copiosamente e no dia seguinte decide não sair da cama. Nem no seguinte, nem nos vários que se lhe seguiram. Ignora-me, mas eu tenho muito quem cuide de mim- a TIA, a Germana, a Balbina e todas as vizinhas, particularmente a Sr.ª Felismina e a sua filha, Mininha. De tal modo eu ando de mão em mão que a Sr.ª Felismina me chamará sempre a pombinha da Catrina. A TIA e o tio Justino têm que regressar. A TIA ainda pensa ficar mas o tio Justino acha que o meu pai e a minha mãe têm um problema que tem que ser resolvido por eles e que qualquer interferência estranha pode ser negativa. O estado depressivo da minha mãe agrava-se de dia para dia e o TIO acha que a minha mãe tem que ser vista por um médico. Regressamos a Lisboa, mas já durante a viagem o meu pai vai arquitectando uma solução para o problema. Construir uma casa, com mais conforto, no palheiro que existe no cimo da aldeia. Fala nesta ideia ao irmão que o apoia. Com esta ideia em mente o meu pai quer voltar à TERRA o mais cedo que lhe for possível. O médico acha que a minha mãe está como que em estado de choque pelo que nem pensar em regressar. O meu pai pensa então em regressar só comigo, enquanto a minha mãe fica internada numa clínica. O TIO acha que é um disparate pois, embora a Balbina e a Germana sejam muito extremosas, não saberão cuidar duma criança com hábitos muito diferentes dos delas. Mas o meu pai é inflexível. Eu levo a Marta comigo. Não sei se ao tomar esta decisão, o meu pai já estava a contar com a colaboração da Sr.ª Felismina e da Mininha. A Sr.ª Felismina morava paredes meias com a CASA. Ela, o Sr. Pedro e a Mininha. O casal era já idoso e a Mininha, teria na altura os seus 35 anos. Foi com esta família que eu passei a maior parte daquele tempo. De início estranhei muito a falta de minha mãe (a mamãe, como eu dizia) mas pouco a pouco a sua imagem foi-se diluindo. Desses tempos guardo muito boas recordações. Nunca tinha brincado com um gato, nunca tinha feito festas a um cordeiro, nunca tinha pegado num pintainho ao colo e agora tinha um só para mim, que a Mininha me tinha dado e de que eu cuidava, com a sua ajuda. Também nunca tinha cozinhado. Mas a Srª Felismina arranjou-me uma panelinha de ferro de três pés, idêntica ás que ela punha ao lume, e eu fingia que cozinhava. Para não estragar a roupa que eu trazia, toda ela muito cuidada, 34
  • 35. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia alguma bordada pela minha mãe, fazem-me umas peças de roupa simples para eu usar lá em casa. O meu pai anda preocupado com os projectos para a casa de cima, que é assim que ele lhe começa a chamar. Não me pode dar grande atenção, mas todos os dias me conta histórias e de vez em quando leva-me ao palheiro para me explicar como será a nova casa. Claro que eu não consigo imaginar nada. Fico apenas com a ideia de que irá ser bonita. Uma das vezes leva-me até ao ribeiro para onde estavam a ser conduzidas as canalizações para os esgotos. Não sei bem quanto tempo decorreu entre essa ida e a minha crise de paludismo. Na TERRA, e em tempos mais remotos, era relativamente frequente as pessoas adoecerem com paludismo- sezões, como lhe chamavam. Por vezes bastava uma ida ao rio ou a um dos vários ribeiros, onde deveriam existir mosquitos do género “anopheles”. Quando comecei com muitas tremuras e períodos de muita febre, o meu pai mandou o António Joaquim à Vila falar com o Dr. Sebastião, um homem extremamente generoso, um autêntico João Semana. Em face das explicações do António Joaquim, o Dr. Sebastião imaginou logo do que se tratava. Apareceu munido com quinino e preparado para fazer uma recolha de sangue para análise. Comecei logo a tomar o quinino. Posteriormente a análise confirmou que eu estava com paludismo. Não sei quanto tempo estive doente. Passei todo o tempo na casa da Sr.ª Felismina. Lembro- me de que sempre que abria os olhos via à cabeceira da cama, o meu pai, a Mininha e a Sr.ª Felismina. A Germana e a Balbina passavam os dias a chorar. Ai que se “bai” o nosso anjinho. Pediram licença ao meu pai para fazer uma promessa a Sto Estevão. Se eu curasse, iria vestida de anjo na procissão da festa de Maio. É que Sto Estevão tem duas festas - a de Setembro e a de Maio, apenas com a parte religiosa. O meu pai anuiu. Faria tudo para me ver boa. As vestes foram alugadas em Viana. Foi assim que eu “fui de anjo”. A minha mãe só soube de tudo isto, tempos mais tarde. A TIA e o tio Justino souberam mais cedo porque apareciam com frequência. Aliás foram eles que trataram de alugar as vestimentas. O TIO também vinha à TERRA de vez em quando tal como eu e o meu pai íamos por vezes a Lisboa. A minha mãe é que não viria à TERRA durante mais de um ano, precisamente o tempo de construir a casa de cima. 11 A minha mãe regressou à TERRA em Agosto de 1955. O tio Justino estava de férias pelo que se pôde contar com o apoio da TIA na difícil tarefa de criar condições para a adaptação da minha mãe. Desta vez, ao chegar, o choque não foi tão grande. Para isso contribuíram vários factores. Um deles foi a viagem. O meu pai tinha comprado um 35
  • 36. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia automóvel, um Sinca em segunda mão e, à sua custa, mandado dar um jeito ao caminho entre a Vila e a TERRA. Foi de automóvel, e não de carro de machos, que a viagem foi feita desta vez. Por outro lado, a minha mãe já sabia com o que contava. Sabia ainda que existia a casa de cima com outro conforto. Para a casa de cima, que confina com duas ruas, entra-se por uns grandes portões em ferro que dão acesso a um pátio descoberto- o pátio de cima- mais tarde coberto por uma ramada. Esse pátio dá acesso a um outro, fechado- o pátio de baixo- que comunica com a outra rua. Este pátio, por cima do qual está um terraço, dá para a adega que tem uma outra porta, para a rua. O pátio de cima dá ainda acesso ao quarto da costura, ao pio do vinho, também este com um outro acesso a partir da rua, e às escadas para o piso superior. Neste há uma cozinha grande (se bem que muito menor que a da Casa) com uma lareira, uma sala, dois quartos, o escritório do meu pai e uma casa de banho. Por cima da cozinha há um depósito para onde era elevada a água. Esta era transportada, desde a fonte, em cântaros dentro das cangalhas no dorso dos machos. No pátio de baixo foi colocado um pequeno gerador de energia eléctrica. Não havia nem forno, nem galinheiro, nem cortelho de porcos, nem loja para os animais. O meu pai sabia que, nessa áreas, jamais iria poder contar com a minha mãe. Quando a minha mãe chegou não havia móveis, à excepção de duas camas de ferro. O meu pai iria deixar a tarefa da decoração para a minha mãe, na esperança de que isso lhe criasse um envolvimento com a casa. As ordens médicas eram no sentido de a ocupar em tarefas, nas quais se sentisse envolvida. Como a casa de cima não tinha móveis, apenas lá dormíamos. O dia passávamo-lo na CASA. Eu adorava. A CASA com todas aquelas escadas, com o Lar e o forro, com os escanos e as preguiças exercia sobre mim grande fascínio. As refeições eram confeccionadas sob a supervisão da TIA. A minha mãe ia assistindo e aprendendo. Ainda hoje acho estranho como é que sendo a TIA tão intolerante com certas práticas, tão conservadora, aceitou tão bem a minha mãe, apesar de casada apenas civilmente. Nunca se referia a isso, embora a situação a desgostasse. Quando alguma pessoa levantava o problema ela limitava-se a dizer: São outras terras com outros usos. Que lhe havemos de fazer? Já no que respeita aos problemas decorrentes da dificuldade de adaptação da minha mãe, aí era totalmente sincera quando dizia: Não me admiro nada. Para quem vem duma terra onde há de tudo, deve ser muito difícil gostar disto. Isso é para nós que temos aqui as nossas raízes. Quando a minha mãe manifestou a intenção de começar a bordar, a TIA pôs-lhe à disposição peças de linho, que ainda estavam intactas nos baús, linhas, agulhas, dedais e bastidores. 36
  • 37. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia À tarde, a Mininha vinha fazer companhia à minha mãe enquanto eu ia fazer companhia à Sr.ª Felismina, o que me dava sempre imenso prazer. Já ensaiava uns pontos de meia, que ela me tinha ensinado. Eu tinha como objectivo fazer uns meiotes para o Sr. Pedro, obra que nunca concluí, não sei se devido à minha inabilidade se à morte do Sr. Pedro dois anos depois. A Mininha, tal como a TIA, ficava admirada porque a minha mãe bordava sem “risco”. Imaginava o que ia bordar e a partir daí as mãos trabalhavam com as agulhas e as linhas. Também os motivos bordados nada tinham a ver com aquilo a que a TIA e a Mininha estavam habituadas- eram araras, tucanos, colibris, sabiás, papagaios, catatuas, tatus; eram goiabas, jaboticabas, caquis, mangas, mamões. E tudo isto envolvido num colorido que me encantava. Os encontros da minha mãe com a Mininha, em que participava a TIA sempre que estava na TERRA, ficariam sempre marcados na minha memória, especialmente a partir do momento em que a minha mãe recomeçou a cantar. Também aí houve aprendizagem dos dois lados: enquanto a minha mãe aprendia as modinhas da Terra, a TIA e a Mininha aprendiam modinhas brasileiras, que a minha mãe cantaria sempre com sotaque, mesmo depois de praticamente o perder. Eu gostava muito das que falavam daquele outro mundo de além-mar, que eu já quase esquecera. Uma delas era uma canção com que a minha mãe me embalara . Bicho Tatu saia do telhado deixe o “minino “ dormir sossegado Dorme neném que a cuca vem “pegá” mamãe foi na roça papai no “cafezá”. Eu crescia assim entre dois mundos. Mas a adaptação da minha mãe não estava a ser fácil. De vez em quando ficava muito triste e com o olhar muito distante como daquela vez em que ensinava à Mininha uma canção da sua terra que dizia: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá. Não conseguiu a acabar o último verso. Começou a chorar. Acho que a canção traduzia o que lhe ia na alma. Mas fazia sempre por reagir, ocupando-se. Empenhou-se na decoração da casa. Os móveis, escolhidos por ela, eram simples mas com a marca do seu bom gosto. Foi ela quem depois confeccionou as cortinas com o linho da CASA que bordou, muitas vezes com a ajuda da Mininha. Agora passávamos a maior parte do tempo na casa de cima e outra das suas ocupações foi ensinar-me a ler, mesmo antes 37
  • 38. Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia de ir para a escola. Tentou também ensinar a ler a Germana e a Balbina que não passaram da escrita do nome. Comigo teve mais sucesso. Quando cheguei à escola, em Outubro de 1956, já sabia ler, escrever e fazer contas de somar e subtrair. Entrei directamente para a segunda classe. A aritmética foi-me ensinada pelo meu pai. Não sei se por isso, quando mais tarde chegou a hora de decidir qual o curso a seguir, a minha mãe sugeria- me as Letras e o meu pai, as Ciências. 12 Guardo algumas recordações da escola mas nenhuma do meu primeiro dia de aulas. Também guardo muito poucas recordações da professora que tive nesse ano- a D. Cremilde. Curiosamente lembro-me mais dos seus três filhos, duas meninas e um menino, com idades entre os dois e os cinco anos, e do marido que recordo sempre montado num fogoso cavalo branco. A D. Cremilde vivia na casa da escola, se é que casa se lhe podia chamar. Na verdade a escola era um edifício muito velho, um pouco em ruínas, onde já tinha estudado o meu avô Álvaro. Consistia em duas salas- uma era a sala de aulas que albergava simultaneamente as quatro classes e a outra era a casa da professora, onde a D. Cremilde criou dois compartimentos, improvisando uma separação com uns cortinados de chita. Eu, tal como os outros alunos, conhecia a casa porque a D. Cremilde, como tinha as crianças pequenas, ia muitas vezes a essa zona. Por isso deslocávamo-nos lá, com frequência, para mostrar a conta, a cópia ou qualquer outro trabalho. Toda a gente sabia que a D. Cremilde detestava estar na TERRA; há muito que almejava ser colocada na sua aldeia que distava mais de 20 km. Era lá que vivia o marido que, de vez em quando, a vinha visitar. No meu segundo ano de escola, ou seja, na terceira classe, a escola passou a posto escolar, segundo se dizia à boca cheia, por influência da D. Cremilde, que assim conseguiu ser colocada mais próximo da sua aldeia. Passámos então a ter como professora uma regente escolar- a menina Celeste- de quem também me lembro pouco. Lembro-me no entanto de que a menina Celeste trocava os bês pelos vês. Assim dizia-nos: Meninos vamos ao “travalho”. Creio que estas gafes da menina Celeste resultavam da sua extrema preocupação em não trocar os vês pelos bês como acontece ainda hoje na TERRA. Quando um dia o meu pai comentava este episódio com o TIO este aproveitou logo para dizer: Mais uma bela obra do “Botas”. Fecha as Escolas Normais, cria os postos escolares. Quanto mais ignorantes formos, melhor. 38