O crescimento econômico sustentável como chave do progresso
1. Economia, motor do progresso
BOUTROS BOUTROS-GHALI
O crescimento econômico é o motor do conjunto do desenvolvimento. Sem crescimento
econômico, não pode haver um aumento continuado do consumo individual ou coletivo,
da formação de capital privado ou público e dos níveis de saúde, de previdência social e
de segurança. Nas sociedades pobres, independentemente dos processos que regem as
escolhas em matéria de distribuição dos bens, a margem de manobra está seriamente
acoplada ao crescimento econômico. Os progressos alcançados em outros aspectos do
desenvolvimento - paz, meio ambiente, sociedade e democracia - terão um efeito
positivo sobre o crescimento econômico.
É necessário um crescimento econômico mais rápido,
para alargar a base dos recursos e permitir, assim, a
mudança econômica, tecnológica e social. Esse
crescimento pode não garantir por si só uma distribuição
equitativa das riquezas ou a proteção do ambiente. No
entanto, sem ele, faltarão os recursos materiais requeridos
para pôr termo à degradação do meio ambiente e não será
possível realizar programas sociais a longo prazo. A
vantagem do crescimento econômico é que aumenta o número de opções ao alcance dos
indivíduos.
Não basta, porém, fazer do crescimento econômico um fim em si mesmo. É importante
que seja continuado e sustentável. Deve promover o pleno emprego e a redução da
pobreza e procurar melhorar a estrutura de distribuição dos rendimentos, graças a uma
maior igualdade de oportunidades.
Se a pobreza persistir ou aumentar, e se não se prestar suficiente atenção ao destino dos
seres humanos, as tensões políticas e sociais acabarão por pôr em perigo a estabilidade.
A redução da pobreza requer um desenvolvimento em que o acesso aos frutos do
progresso econômico seja tão amplo quanto possível, em vez de estar excessivamente
concentrado em certas localidades, certos setores ou certos grupos da população.
A melhoria da educação, da saúde e da habitação, aliada ao aumento das verdadeiras
possibilidades de emprego, contribuirá diretamente para atenuar a pobreza e suas
conseqüências. Além de serem objetivos desejáveis por si mesmos, a educação, a saúde
e a habitação são também indispensáveis para a existência de uma mão-de-obra
produtiva e, por conseguinte, para o crescimento econômico. A eliminação da fome e da
desnutrição deveria ser um fim em si mesmo.
O crescimento sustentável requer duas condições: um ambiente nacional positivo e um
clima internacional favorável. Sem políticas nacionais apropriadas, a assistência
bilateral ou internacional, independentemente do seu volume, não conduzirá ao
crescimento duradouro. Pelo contrário, a assistência fornecida nessas circunstâncias
pode reforçar a dependência em relação ao mundo exterior. Sem um clima internacional
favorável, as reformas internas serão difíceis de realizar, o que ameaçará o êxito das
mesmas e acentuará as privações da população.
O crescimento econômico
sustentável, aquele que
não agride a natureza, é a
chave do combate ao
subdesenvolvimento.
2. Os êxitos econômicos nacionais devem apoiar-se em políticas pragmáticas. A
necessidade de tirar partido da eficácia dos mercados não deve impedir o
reconhecimento da necessidade de intervenção do estado, quando os mercados não são
capazes de fornecer todas as respostas.
Já não se pode partir do princípio de que o estado é o agente econômico supremo. Recai,
no entanto, sobre ele a responsabilidade de fornecer um enquadramento normativo que
permita o funcionamento eficaz de uma economia de mercado competitiva. Investir em
infra-estrutura, promover o desenvolvimento dos setores produtivos, criar um contexto
favorável ao êxito da iniciativa privada, garantir a existência de meios adequados de
previdência social, investir no capital humano e proteger o ambiente são tarefas da
responsabilidade do estado. Este deve fornecer um enquadramento que permita que os
indivíduos façam projetos a longo prazo.
A divisão das funções do estado e do setor privado não deve obedecer a um esquema
pré-concebido. A atribuição de fundos públicos não exclui o recurso ao financiamento
privado. Neste campo, a relação entre o estado e o setor privado caracteriza-se mais pela
complementaridade do que pela exclusão. As políticas governamentais destinadas a
promover um contexto macroeconômico saudável são essenciais para assegurar um
crescimento sustentável da economia. Todavia, para assegurar uma atribuição eficaz dos
recursos, essas políticas macroeconômicas devem assentar em bases sólidas, em escala
microeconômica. Nestas circunstâncias, a intervenção do estado justifica-se quando os
mercados não desempenham as suas funções ou o fazem sem eficácia. Contudo, as
políticas e os programas dos poderes públicos podem também falhar; nesses casos, a
intervenção do setor privado pode revelar-se decisiva.
Encontrar o justo equilíbrio entre a direção da economia pelo estado e o incentivo à
iniciativa privada é, talvez, a principal dificuldade que o desenvolvimento econômico
enfrenta hoje. Este problema não diz respeito unicamente às economias em
desenvolvimento ou em transição. A procura de um equilíbrio satisfatório entre
centralização e laissez-faire diz respeito a todos os países. Devido à recessão continuada
e à persistência de taxas de desemprego elevadas, os principais países de economia de
mercado também são confrontados com esse desafio.
O aumento da interdependência entre as nações acelera a transmissão dos impulsos de
crescimento positivos e dos choques negativos. Conseqüentemente, em nível nacional,
os problemas econômicos devem agora ser analisados num contexto mundial. A
distinção entre políticas econômicas nacionais e internacionais está desaparecendo.
Nenhum país, independentemente do seu êxito, pode furtar-se aos problemas
demográficos, ecológicos, econômicos, sociais e militares com que o mundo inteiro é
confrontado. Os efeitos das privações, da doença e dos conflitos num ponto do globo
fazem-se sentir em toda a parte. Não podem ser vencidos, enquanto não houver
desenvolvimento mundial.
Todos os países fazem parte de um sistema econômico internacional, mas, enquanto
muitos estão ainda imperfeitamente integrados nele, outros são excessivamente
vulneráveis à sua instabilidade. O desenvolvimento é dificultado pelos problemas da
dívida externa, da diminuição do fluxo de recursos procedentes do estrangeiro, da forte
deterioração das condições das trocas comerciais e do número crescente de obstáculos
ao acesso aos mercados. Uma insuficiente cooperação tecnológica impediu muitos
3. países de tirar pleno partido dos seus recursos, o que os torna menos competitivos no
plano internacional e trava ainda mais a sua integração na economia mundial.
A expansão do comércio internacional é essencial para o crescimento econômico e é
uma parte integrante da dimensão econômica do desenvolvimento. Ninguém pode
contestar os benefícios do aumento do comércio: menor custo das transações,
perspectivas econômicas mais amplas, aumento das trocas e uma maior confiança e
segurança.
A dificuldade de acesso ao sistema comercial mundial constitui um enorme obstáculo
ao desenvolvimento. Atualmente, esse sistema exerce, amiúde, uma discriminação
contra o mundo em desenvolvimento: enquanto o preço de numerosos produtos
primários apresentou tendência de baixa, o sistema mundial tende a limitar a vantagem
que uma mão-de-obra barata proporciona ao mundo em desenvolvimento.
A internacionalização da atividade econômica, a confiança crescente concedida às
forças do mercado, o reconhecimento generalizado de que a iniciativa privada é uma
força poderosa de crescimento econômico, os esforços maciços dos países em
desenvolvimento e em transição, com vista à liberalização das trocas, exigem um
sistema comercial aberto e transparente, cujas regras e disciplinas sejam respeitadas por
todos. Assim, quando os países têm uma vantagem comparativa nítida numa
determinada atividade econômica e investem nela, é preciso que, justamente quando o
seu investimento começa a produzir frutos e o seu produto penetra noutros mercados,
não sejam confrontados com novas medidas protecionistas.
Mas a interdependência econômica torna-se rapidamente algo mais do que um simples
fator comercial e financeiro. É também forte a tendência para uma maior abertura na
circulação de capitais, de pessoas e de idéias, em escala mundial. Isto incentivou os
governos a criar um ambiente nacional que atraia o investimento externo.
A realização de políticas macroeconômicas responsáveis, em escala mundial, por países
cujo poder econômico determina o panorama econômico internacional, é um elemento
fundamental de todos os esforços em prol do desenvolvimento. O papel das grandes
potências econômicas nas finanças mundiais continua a ser preponderante. Suas
políticas em matéria de taxas de juros, de inflação e de estabilidade das taxas de câmbio
revestem-se de especial importância. A volatilidade das taxas de câmbio agrava
consideravelmente o problema da dívida, em conseqüência do seu efeito sobre as taxas
de juros, sobre os ganhos e as reservas de divisas e sobre o serviço da dívida. As
políticas internas das grandes potências econômicas assumem uma importância decisiva
num mundo que se caracteriza cada vez mais por mercados de capitais mundiais.
A cooperação internacional eficaz em prol do desenvolvimento só pode ter êxito se as
grandes potências econômicas fizerem dela um objetivo próprio. Até hoje, não existe,
no entanto, qualquer mecanismo que permita levar esses países a introduzir na sua
própria economia modificações estruturais benéficas ou a adotar políticas que traduzam
melhor as suas responsabilidades no campo econômico, financeiro e monetário, em
nível mundial.
Atualmente, a coordenação das políticas econômicas entre as grandes potências
econômicas centra-se no grupo dos sete países mais industrializados, o G-7. Os esforços
4. repetidos do mundo em desenvolvimento, como a atual tentativa de criar uma ligação
entre o G-7 e o G-15 (grupo de mais alto nível para as consultas e a cooperação sul-sul)
falharam. Agora que se reconhece que o crescimento dos países mais industrializados
não é o único motor do desenvolvimento mundial, convém introduzir as mudanças
necessárias para que os processos de coordenação das políticas econômicas beneficiem-
se de uma base mais ampla.
Os mecanismos para integrar as políticas econômicas em escala mundial e o
crescimento no nível nacional não estão ainda inteiramente em funcionamento. Deve-se
dar prioridade às medidas tendentes a reduzir o fardo esmagador da dívida internacional
e às políticas que visam a desincentivar as tendências para o protecionismo e garantir
que o mundo em desenvolvimento se beneficie das vantagens trazidas pela nova
Organização Mundial do Comércio (OMC).
A falta de recursos financeiros necessários para o desenvolvimento econômico é
exacerbada pela crise da dívida, que agrava dramaticamente uma situação já por si
difícil. Durante a última década, os países em desenvolvimento endividados tiveram de
transferir em média de 2 a 3% de seu produto interno bruto (PIB) para o estrangeiro; em
certos casos, as transferências representaram 6% ou mais do PIB. Trata-se de um
fenômeno perverso, uma vez que certos países em desenvolvimento se tornaram, agora,
exportadores líquidos de recursos financeiros.
O problema da dívida tem muitas facetas. Alguns países devem somas consideráveis a
bancos comerciais. Muitos países de fracos rendimentos devem somas elevadas a
credores bilaterais e multilaterais. Realizaram-se esforços para reestruturar a dívida
comercial e, em certos casos, para perdoar a dívida bilateral. Mas até agora não foram
suficientes os esforços empreendidos para aliviar o fardo da dívida multilateral ou para
ajudar os países que, apesar de um serviço da dívida muito pesado, não faltam aos seus
compromissos.
Não existe uma fórmula única para gerar o crescimento econômico, mas, depois de
cinqüenta anos acreditando que o desenvolvimento constitui um campo de reflexão
autônomo, reconhece-se agora que, para alcançar esse objetivo, são indispensáveis
certas condições fundamentais. Em primeiro lugar, é necessária uma decisão estratégica
a favor do desenvolvimento. O estado deve ter vontade política de agir.
As decisões sobre o desenvolvimento não são tomadas no vazio. Todas as sociedades
devem ter em consideração as escolhas precedentes nessa matéria, os parâmetros
políticos, as estruturas de produção, as relações com o exterior, os valores e as
expectativas culturais. A configuração do crescimento econômico dependerá, em grande
medida, da influência desses fatores e dos compromissos que implicam.
A experiência dos países que alcançaram um desenvolvimento rápido nos últimos anos
é considerada como o resultado de uma opção consciente do estado: a opção de dar
prioridade estratégica ao desenvolvimento. De fato, a influência das políticas do estado,
por exemplo, ao incentivar a investigação e o desenvolvimento ou ao dar apoio, em
termos de infra-estrutura e educação, foi crucial. Contudo, isto não quer dizer que o
desenvolvimento se produza sempre através das instituições oficiais. O estado dá um
impulso ao crescimento; mas é a economia que precisa crescer, e não o estado.
5. É o estado que deve dar ao crescimento formas aceitáveis para o cidadão.
Independentemente do modo de produção adotado, um crescimento duradouro que
dependa da acumulação de capital - físico, humano e institucional - imporá certos
sacrifícios em termos de consumo atual. A decisão de deferir o consumo em favor dos
benefícios esperados no futuro reflete uma escolha política e, ao mesmo tempo, a
decisão de poupar por parte dos indivíduos.
A grande lição das últimas décadas continua a ser válida; tal como as condições,
circunstâncias e capacidades próprias de cada país, também os mecanismos geradores
de crescimento diferem. O crescimento exige um empenho e um projeto políticos. A
Organização das Nações Unidas (ONU) pode intervir, facultando meios e orientação e
desempenhando o papel de interlocutor. Mas não se pode substituir o esforço dos
diversos estados e de seus parceiros nacionais e internacionais.
Agenda para o desenvolvimento. Lisboa, Centro de Informação das Nações Unidas,
1994, pp. 18-25.Boutros.
Boutros-Ghali é diplomata egípcio e foi secretário geral da ONU de janeiro de 1992 a
dezembro de 1996