O documento discute o comércio internacional ilegal de resíduos tóxicos, onde países industrializados enviam grandes quantidades de lixo perigoso para países em desenvolvimento, colocando em risco a saúde e o meio ambiente. O caso do navio Khian Sea, que vagou por anos sem encontrar um lugar para descarregar suas cinzas tóxicas, é destacado. Embora convenções tenham sido assinadas para regular o comércio, a exportação de resíduos permanece sendo um grande problema global.
1. O comércio internacional de lixo
"Os Estados têm... a responsabilidade de assegurar que as atividades dentro de sua
jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou áreas
além dos limites de sua jurisdição nacional."
Norma 21: Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, Estocolmo,
Suécia, junho de 1972.
Como resultado dos grandes desastres tóxicos, como os de Seveso, na Itália, e o de
Love Canal, nos Estados Unidos, os países industrializados têm adotado dispendiosas
regulamentações para a eliminação de resíduos sólidos e perigosos. A fim de evitar tais
regulamentações, muitos produtores desses resíduos têm optado por uma forma mais
barata e fácil de se desfazer desse perigoso lixo. Simplesmente o enviam a países que
têm leis ambientais menos rigorosas.
A infame saga do navio cargueiro Khian Sea ilustra até
que ponto os comerciantes de lixo são capazes de chegar,
a fim de encontrar novos locais para seus resíduos
tóxicos. A viagem deste sinistro navio carregado de cinzas
começou em agosto de 1986, ao tentar, em vão, despejar
seu carregamento em uma ilha das Bahamas. Em seguida,
pôs-se a vagar pelo mar do Caribe, procurando um lugar
para descarregar.
Em 26 de outubro de 1987, o Departamento de Comércio
do Haiti emitiu uma licença de importação para engrais
pour du sol, ou seja, para fertilizantes do Khian Sea. No
entanto, a verdadeira carga do navio era constituída de
13.476 toneladas de cinzas tóxicas, provenientes do
incinerador municipal da cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos. As cinzas foram
despejadas numa praia em Gonaives, Haiti. Quando o governo haitiano descobriu a
natureza da carga, ordenou ao Khian Sea que retirasse as cinzas da praia. O navio,
então, escapou durante a noite, abandonando algo entre 2.000 e 4.500 toneladas de
cinzas tóxicas em Gonaives.
O Khian Sea terminou sua viagem no final de 1988. Ao longo de sua jornada, países de
cinco continentes rejeitaram sua carga, entre os quais: Bahamas, Bermudas, Cabo
Verde, Chile, Costa Rica, República Dominicana, Guiné, Guiné-Bissau, Haiti,
Honduras, Indonésia, Filipinas, Senegal, Sri-Lanka e Iugoslávia. Finalmente, a carga foi
descarregada em algum lugar da região do oceano Índico. Quanto às cinzas despejadas
no Haiti, continuam nessa ilha do Caribe, contaminando o ar, a terra e o mar, a cada vez
que venta ou chove.
Desde essa épica viagem para tráfico de lixo, a organização ambientalista Greenpeace
documentou mais de mil tentativas de exportação de resíduos por todo o globo. Os
comerciantes de lixo ao redor do mundo já propuseram enviar cerca de 160 milhões de
toneladas de resíduos a quase todos os países do globo. Os resíduos vão desde lodo de
esgoto, resíduos hospitalares, lixo radioativo, a cinzas de incineradores industriais e
municipais. O comércio de lixo tem resultado no despejo de milhares de toneladas de
Roteiro do Khian Sea,
navio carregado de lixo
tóxico que vagou pelos
oceanos durante mais de
dois anos.
2. produtos tóxicos em locais tão diversos como Cato Ridge, na África do Sul; Koko, na
Nigéria, Beirute, no Líbano; Bangcoc, na Tailândia; e Bukowka, na Polônia.
Envenenando os pobres
Os excessos do mundo industrializado e o tráfico de lixo tóxico daí resultante vêm
envenenando irreversivelmente muitos dos países do terceiro mundo. Os comerciantes
de lixo têm oferecido aos países menos industrializados centenas de milhões de dólares
em troca de milhões de toneladas de lixo.
Esse foi o caso, por exemplo, de Guiné-Bissau, país do oeste africano. Os traficantes de
lixo ofereceram uma soma quatro vezes superior ao seu produto interno bruto (duas
vezes a dívida externa do país), para descartar quinze milhões de toneladas de resíduos
industriais em seu território, num período de cinco anos. Entretanto, ao perceber os reais
perigos à saúde e ao meio ambiente, inerentes ao negócio de importação de lixo, o
governo de Guiné-Bissau decidiu rejeitar a proposta. Esse episódio ilustra a posição
injusta em que se encontram os países menos industrializados: escolher entre o veneno e
a pobreza.
Em 1988, cerca de oito mil barris de resíduos perigosos, contendo inclusive PCBs
(substâncias altamente tóxicas) provenientes dos Estados Unidos e da Europa ocidental,
foram descarregados em um parque municipal na Nigéria. Vários trabalhadores
contratados para a remoção dos barris foram hospitalizados em razão de diversas
enfermidades: graves queimaduras químicas, náuseas, vômitos sanguinolentos e
paralisia parcial. Pelo menos um dos trabalhadores entrou em coma.
Depósitos de lixo e incineração: o mito da eliminação sem riscos
Os comerciantes internacionais de lixo estão se tornando cada vez mais sofisticados,
apresentando, em suas propostas, incineradores ou aterros sanitários com "tecnologia de
última geração". O conhecido comerciante de lixo Arnold Andreas Kuenzler, falando a
respeito do seu plano de construir um enorme complexo de incineradores e aterros
sanitários em Angola, afirmou: "Se é bom o bastante para os suíços, é bom para os
negros!" Tais atitudes, além de colonialistas, simplesmente perpetuam o mito da
eliminação de lixo sem riscos.
De fato, ainda não se inventou um método para eliminação de lixo sem qualquer risco.
Todas as instalações criadas para descarte de resíduos liberam substância contaminantes
em nossos recursos mais preciosos: o ar, a água e o solo. Nenhum aterro ou incinerador
é seguro, apesar da confiança que o mundo industrializado tem nessas tecnologias.
Vários componentes dos resíduos industriais e domésticos são nocivos ao meio
ambiente e contribuem para uma vasta gama de problemas de saúde, entre eles o câncer,
desordens do sistema nervoso e defeitos congênitos.
Se esses resíduos são demasiadamente perigosos para serem manejados em países
altamente industrializados, certamente também o são para os menos industrializados,
onde o monitoramento ambiental, aplicação de leis para proteção ambiental,
equipamentos de proteção, planos de emergência e proteção da saúde pública são ainda
ineficientes ou inexistentes.
3. O mito da reciclagem do lixo tóxico
A tendência mais recente na indústria do tráfico de lixo é a de disfarçar esses negócios
como projetos de "reciclagem" ou "reutilização". Os comerciantes de lixo desenvolvem
esquemas de tráfico que se adaptem às necessidades específicas dos receptores.
Vários países do Caribe, por exemplo, sofrem por falta de energia elétrica e estradas.
Aproveitando-se disso, os comerciantes de lixo tentam convencer esses governos a
construir incineradores de lixo tóxico. Segundo eles, os incineradores produziriam
energia elétrica (juntamente com a emissão de gases tóxicos e cinzas) e as cinzas
resultantes da incineração (contaminadas com metais pesados e dioxinas) ainda
poderiam ser utilizadas na construção de estradas.
Apesar de existirem processos legítimos de reciclagem, o comércio de lixo para esse fim
representa em si um perigoso atalho, através do qual imensos volumes de produtos
tóxicos podem cruzar fronteiras. Freqüentemente essas operações de reciclagem são
empreendimentos nocivos, que não seriam permitidos nos países onde esses resíduos
são produzidos. Comumente, essas "usinas de reciclagem" deixam enormes quantidades
de resíduos tóxicos no país importador.
Países altamente industrializados enviam milhões de toneladas de lixo para serem
"recicladas" em fundições de metais na Ásia e na América Latina. O lixo tóxico é
fundido para dele se extrair metais selecionados. Mas esse lixo normalmente contém
altos níveis de metais pesados tóxicos e produtos químicos clorados, que são liberados
no ar ou depositados no solo na forma de resíduos da incineração.
A fundição da Thor Chemical na África do Sul, que processa resíduos de mercúrio da
Europa e da América do Norte, contaminou com mercúrio um riacho próximo em níveis
extraordinariamente altos.
Segundo o grupo ambientalista brasileiro OIKOS, uma fundição de chumbo localizada
perto de São Paulo, operada pela Produquímica, afetou seriamente a saúde de seus
trabalhadores. A OIKOS constatou, além de sangramentos pelo nariz e tosse com
sangramento em trabalhadores, óbitos causados por altos níveis de contaminação a que
esses estiveram expostos.
Em Formosa, até 1990, a Companhia Acme operava uma fundição de chumbo que
derretia baterias usadas, provenientes do Japão e dos Estados Unidos. Um médico local
constatou que entre os 64 operários da empresa, 31 apresentavam envenenamento por
chumbo. As emissões do material eram tão intensas que as crianças de uma escola
próxima eram obrigadas a usar máscaras de pano sobre a boca.
E em Almadén, Espanha, 10.000 toneladas de resíduos carregados de mercúrio foram
despejadas, sob o pretexto de que seriam eventualmente recicladas. Esses resíduos,
enviados por 25 companhias químicas estrangeiras, permanecem até hoje no local onde
foram despejados, uma área previamente designada pela Comunidade Européia como
importante para a preservação de aves.
Sob o pretexto da reciclagem são habilmente disfarçados os reais interesses econômicos
da exportação de lixo. A reciclagem, de modo geral, implica uma atividade sadia para o
4. meio ambiente. Mas, quando se trata de resíduos perigosos, é freqüentemente um
empreendimento sujo e mortal.
Prevenção do lixo: a única solução
A exportação de resíduos perigosos permite aos governos e indústrias não somente
evitar as regulamentações e custos para o descarte desse lixo, mas também evitar o
único remédio para a poluição tóxica: a implementação de uma indústria não-poluente e
de produtos seguros para o meio ambiente, que não produzam resíduos tóxicos.
A Greenpeace se opõe a todo movimento de resíduos perigosos que atravesse fronteiras.
Nós nos opomos à exportação de resíduos perigosos não apenas por razões morais, mas
também porque tais exportações evitam que os países assumam a tarefa de eliminar as
indústrias poluentes. A única forma segura de acabar com os danos ambientais e o
sofrimento humano causados por resíduos perigosos é deter a crescente dependência de
produtos químicos e tóxicos por parte da sociedade industrializada, através de processos
de produção limpos.
Torna-se cada vez mais evidente que a única maneira de evitar a propagação da
contaminação por resíduos nocivos é a produção limpa. Produtos obtidos através de
uma produção limpa são compatíveis com os ecossistemas e processos biológicos
durante todo o seu ciclo de vida, desde a concepção até o descarte. As indústrias do
primeiro mundo produzem anualmente mais de dois bilhões de toneladas de resíduos
industriais, municipais e nucleares. Em lugar de procurarmos novos locais para
esconder esse lixo, devemos encontrar formas que assegurem que ele nunca seja
produzido.
Uma proibição global ao comércio de lixo: um meio para um fim
O número de países que proibiram a importação de lixo passou de três, em 1986, para
33 em 1988, e noventa em 1992. Não é de se surpreender que todos esses países estejam
localizados fora da Europa ocidental e da América do Norte.
Já os países industrializados, produtores de resíduos, lamentavelmente têm feito pouco
para proibir suas exportações. Em vez disso, têm procurado estabelecer complicadas
regras de notificação e consentimento para o tráfico de lixo, o que não contribui em
nada para desestimular a produção e o comércio de resíduos perigosos.
Fracasso da Convenção de Basiléia. Em 22 de março de 1989, delegados das Nações
Unidas assinaram um tratado em Basiléia, Suíça, para estabelecer regras mundiais de
procedimentos para o comércio de resíduos perigosos. A Convenção de Basiléia
decepcionou muitos delegados de países menos industrializados, os quais haviam
proposto que a Convenção deveria, pelo menos, proibir as exportações de lixo dos
países mais industrializados para os menos industrializados. O que resultou, no entanto,
foi um frágil tratado que falhou em proibir a exportação de lixo para qualquer área do
mundo, com exceção da Antártica. Ao elaborar procedimentos para regular o comércio
de lixo ao invés de proibi-lo, a Convenção legaliza o que deveria ser considerado como
terrorismo tóxico.
5. A promessa da Convenção de Lomé IV. Em 1989, 68 países da África, Caribe e
Pacífico, conhecidos conjuntamente como países da ACP, uniram-se a membros oficiais
da Comunidade Econômica Européia (CEE) para proibir o comércio internacional de
resíduos perigosos. O acordo, conhecido como Convenção de Lomé IV, proíbe as
exportações de resíduos radioativos e perigosos da CEE a todos os países da ACP. Além
disso, os países da ACP concordaram em proibir a importação de lixo proveniente dos
demais países não-pertencentes à CEE.
A força da Convenção de Bamako. Em 29 de janeiro de 1991, ministros de estados
africanos reuniram-se em Bamako, Mali, e firmaram a Convenção de Bamako para a
proibição da importação, controle entre fronteiras e manejo de resíduos perigosos dentro
da África. Ao entrar em vigor, essa Convenção veda o continente a todas as formas de
resíduos perigosos. O tratado, elaborado sob os auspícios da Organização da Unidade
Africana (OUA), está aberto a todos os países africanos que desejarem assiná-lo, com
exceção da África do Sul, que não é membro da OUA.
É preciso que outras regiões proíbam o comércio de lixo. Infelizmente, ainda há
muitos países que não adotaram posições firmes para proteger sua população e meio
ambiente dos perigos inerentes ao comércio de lixo tóxico. A Greenpeace incentiva,
mundialmente, os participantes das convenções regionais sobre o meio ambiente a
adotarem uma legislação semelhante à da Convenção de Bamako. De fato, mo momento
em que os países altamente industrializados do mundo não tiverem mais onde despejar
seus resíduos letais, se verão forçados a substituir a produção de resíduos por uma
produção limpa.
O comércio internacional do lixo. Rio de Janeiro, Greenpeace, s.d.