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Disciplina: Teologia do Antigo Testamento
                                      Prof. Dr. Nelson Kilpp



Primeiro tema:

As origens da fé em Javé, o Deus de Israel


1. Uma primeira questão: Teologia do Antigo Testamento ou História da Religião de Israel?

Uma questão preliminar a ser clareada é a seguinte: que queremos fazer? Uma teologia do Antigo
Testamento (AT) ou uma história da religião de Israel? Qual é a diferença? Quais são as
implicações? O que está em jogo?

A fé do povo de Israel não caiu do céu. Ela não permanece a mesma desde o início até o fim da
época do AT. Ela mudou no decorrer dos tempos. Isso se pode dizer também da religião de outros
povos. A fé se transforma com as mudanças históricas. Não se pode, portanto, desvincular um
estudo das expressões de fé do povo de Israel de sua caminhada histórica.

Além disso, ao contrário de outros povos, Israel quase não desenvolveu uma literatura mítica – que
tenta sistematizar e perenizar o saber teológico – por estar consciente de que seu Deus se manifesta
na história de pessoas e não através do mito. Os olhos da fé de Israel vêem Deus no decurso da
história. A fé de Israel fala a partir e para dentro de um contexto histórico. Uma conseqüência disso
são os muitos textos de cunho histórico no Antigo Testamento (p.ex., Gn, Êx, Nm, Js até 2 Rs, Cr,
Ed-Ne); além disso, grande parte dos livros proféticos inicia com a ambientação histórica da
atuação do profeta (p.ex., Is 1.1; Jr 1.1-3, etc.). Quando os autores sagrados escrevem uma história,
eles não querem simplesmente fixar fatos curiosos ou interessantes do passado, mas estão fazendo
teologia (“teologia narrativa”), pois interpretam teologicamente os fatos, tornando-os relevantes,
significativos e válidos para a atualidade do autor. Em outras palavras: pretendem transmitir uma
mensagem.

Por causa dessa íntima relação entre teologia e história, existem atualmente duas tendências de
estudar as expressões de fé do povo de Israel, a saber: por um lado, sistematizá-las em uma teologia
do AT, ou, por outro lado, descrevê-las dentro de uma história da religião de Israel.

As principais diferenças dessas duas abordagens são as seguintes:



HISTÓRIA DA RELIGIÃO                           TEOLOGIA DO AT
 explica os fenômenos religiosos a partir da     explica os fenômenos em seu conjunto
 história (diacronia: descreve em ordem          (sincronia); vê uma unidade no todo das
 cronológica); dinâmica ou as mudanças na        manifestações; busca ver a continuidade no
 história são importantes                        decorrer e nas mudanças da história
 coloca lado a lado diversas religiões,          afunila o estudo em uma só religião; as outras
 fazendo comparações entre elas                  religiões só são importantes na medida em
                                                 que ajudam a entender o AT
 compara com outras religiões e destaca o        compara com outras religiões e destaca o que
 que é comum a todas                             é particular, distinto, próprio
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel            2

 não toma partido em favor de uma religião,       procura uma “verdade” na fé de Israel que
 tenta permanece neutro na análise; não           também tenha validade para nós; identifica-se
 “confessa sua fé”, não se identifica com         com o AT como sendo algo próprio
 uma religião
 observa a religião a partir de fora, numa        Volta-se para o AT como para a “própria”
                                                  religião, pesquisador se identifica com ela e
 distância crítica; “neutralidade”                se envolve com ela
 estrutura o estudo de forma cronológica          estrutura o estudo de forma sistemática
                                                  (dogmática), às vezes em torno de conceitos
                                                  centrais (como aliança, etc.)



Ambas as abordagens não precisam ser excludentes; elas geralmente se complementam. Quem
pensa em história, pensa geralmente no novo, no diferente, no que ainda não existia antes. Quem
fala em teologia geralmente pensa na continuidade (no que permanece igual) entre as diversas fases
da história e as diversas expressões de fé do povo. Mas o velho está sempre ao lado do novo: o falar
passado sobre Deus que se encontra sob a forma de tradição ou lei permanece válido também
quando irrompe uma nova manifestação de Deus, p.ex., na profecia. No Antigo Testamento, em
todo caso, sempre existem ambas as dimensões lado a lado ou uma dentro da outra: continuidade e
discontinuidade (o novo) com o passado. Dito de forma simplificada: as expressões de fé do povo
de Israel mudam, mas Deus permanece sempre o mesmo.

Tanto a teologia do AT quanto a história da religião comparam a fé de Israel com a fé de outras
nações. Ambas estudam as influências mútuas entre Israel e as religiões de seu entorno. Israel, sem
dúvida, adota muito de seus vizinhos também em termos de religião (novas expressões de fé;
discontinuidade). Por outro lado, Israel também rejeita muita coisa, porque usa critérios de fé
legados pela tradição (continuidade). Ainda outros conceitos só são adotados por Israel após
passarem por sensíveis alterações. Cada religião no antigo Oriente – também a do povo de Israel –
tem suas particularidades, apesar das inúmeras semelhanças.

A proposta a seguir é fazer uma teologia do AT respeitando basicamente as grandes fases da
história de Israel, uma vez que concepções teológicas estão sempre vinculadas a experiências
concretas. Isso respeita o fato de que a teologia de Israel conheceu mudanças. Contudo, deve-se
evitar, nessa empreitada, dois perigos: a) o perigo de pensar que há um contínuo progresso da
religião de Israel, desde rudes inícios animistas, desde a existência de uma pluralidade de deuses e
de pouco valor moral até uma fase avançada da ética e da espiritualidade que culmina em Jesus
Cristo; b) o perigo de pensar o contrário, ou seja, que há um contínuo regresso: no início estava a fé
inocente e espontânea, a fidelidade irrestrita a Deus; mas esta passou por diversos estágios de
apostasia, deteriorando-se gradualmente até desembocar no judaísmo tardio, legalista e exclusivista,
que Jesus teve que combater. Ambas as perspectivas – a progressista e a regressista – não conferem
com a realidade, ainda que haja, na fé de Israel, altos e baixos.

Se quisermos respeitar, na elaboração de uma teologia do AT, o fator histórico, devemos atentar
para as fases mais importantes da história do povo de Israel e vincular as expressões de fé com as
mesmas. Geralmente se adota a seguinte classificação:

1. As origens da fé de Israel
1.1 O Deus dos pais e das mães
1.2 O Deus do êxodo
1.3 O Deus do Sinai
1.4 O Deus da conquista e do Israel tribal
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel           3

  2. A fé de Israel no período monárquico
  2.1 O antigo culto israelita
  2.2 A teologia do Sião
  2.3 Concepções teológicas cananéias
  2.4 Concepções teológicas vinculadas ao rei
  2.5 A Sabedoria
  2.6 A Lei
  2.7 O profetismo pré-exílico
  3. A fé de Israel na época do exílio babilônico
  3.1 Os profetas do fim e do reinício
  3.2 A teologia entre os remanescentes
3.3 A teologia entre os exilados
  4. A fé de Israel na época pós-exílica
  4.1 O reinício em torno do templo e da cidade
  4.2 A consolidação do judaísmo
  4.3 A Sabedoria recente de Israel
  4.4 A apocalíptica
  4.5 A revolta armada



 2. Os inícios da fé em Javé – as dificuldades


 Tanto os inícios da história de Israel quanto os inícios de seu falar sobre Deus se encontram nas
 mais profundas trevas. Não temos elementos para dizer que Israel era, no início, animista (ou seja,
 que tinha uma fé em coisas animadas: espíritos ou poderes em árvores, pedras, etc.). O antigo
 Oriente já havia passado para a era mítica, ou seja, para uma fé em divindades pessoais que se
 encontravam no “céu”. Também não temos motivos suficientes para dizer que Israel se desligou
 lentamente de seu paganismo ou politeísmo; tampouco podemos dizer que Israel teve no início uma
 fé pura que se corrompeu gradativamente.

 Mas que diz o próprio Israel de sua história de fé?

 O Salmo 136 nos dá uma amostra de como Israel entende a sua fé no decurso da história. O Sl é um
 canto de louvor e agradecimento da comunidade em forma de liturgia responsiva, ou seja, o liturgo
 ou cantor (profissional) canta as metades dos versículos que lembram os feitos de Javé e a
 comunidade respondia: “Porque a sua misericórdia dura para sempre”. Os feitos de Javé são (a
 partir do v.4): criação, tirar o povo da escravidão do Egito, guiá-lo pelo deserto, dar-lhe a terra,
 libertá-lo de seus inimigos. O v. 25, finalmente, conclui: Javé é “aquele que dá pão a toda a carne”.
 O salmista constata a continuidade do mesmo Deus nas diversas épocas da história (passado
 distante e próximo). E o agir de Deus no passado é importante para nós por causa de sua atualidade:
 Javé é aquele que nos dá o pão no presente. Deus é o mesmo; existe uma continuidade no seu agir
 em favor do povo que perdura até os dias de hoje.

 Outro texto elucidativo é Dt 26.5-11. Este texto relata que o agricultor israelita que colhe as
 primícias de sua colheita deve colocá-las num cesto e levá-las ao sacerdote “no lugar que Javé, teu
 Deus, escolheu para aí fazer habitar o seu nome”. O sacerdote colocará, então, o cesto diante do
 altar e o agricultor confessará a sua fé em Javé. Também nesta confissão se constata que o Deus da
 história passada é o mesmo que dá, nos dias de hoje, os frutos da terra.
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel          4

Ambos os textos (Sl 136 e Dt 26) apresentam diversas fases da história de Israel com o seu Deus,
Javé. As experiências religiosas iniciais e decisivas se encontram antes da sedentarização do povo
na Palestina, antes da chamada “conquista” da terra prometida: na época dos “pais” (ou patriarcas) e
na época da opressão no Egito. As origens da fé em Javé possivelmente se encontram fora da
Palestina. Isso é confirmado pelo que as três fontes ou tradições do Pentateuco afirmam sobre os
inícios a fé em Javé.

1) Gn 4.6 afirma que a adoração de Javé iniciou bem antes da existência de Israel, a saber, entre os
descendentes de Sete (tradição javista);

2) De acordo com Êx 3.1ss, a adoração de Javé iniciou na época de Moisés, no monte Horebe, onde
Deus se manifesta a Moisés e lhe dá a conhecer o seu nome (tradição eloísta);

3) Conforme Êx 6.2-8, a adoração a Javé iniciou com Moisés, no Egito (tradição sacerdotal).

Épocas e lugares são diferentes. Como combinar estas “memórias”? Talvez as diferentes tendências
de localizar o início do culto a Javé contenham uma parte da verdade. Poderíamos, então, inferir
que havia uma adoração de Javé antes de Moisés e antes da existência de Israel (Gn 4), e que Israel
conheceu Javé no Egito através de Moisés (Êx 6) ou no Horebe/Sinai (Êx 3; talvez em território dos
midianitas).

A seguir tentamos buscar as diversas vertentes dessa fé em Javé.


3. O Deus dos pais e das mães

Apesar da centralidade teológica do êxodo e da importância da Lei no Pentateuco e para o
judaísmo, os textos constatam que, antes das experiências da libertação do Egito e da manifestação
de Deus no Sinai, havia a fé dos pais e das mães de Israel, no ciclo dos patriarcas, Gn 12-50.
Também conforme Mt 3.9, o pai da fé é Abraão e não Moisés.

Como era a religião destes pais e destas mães?

O texto de Js 24 relata sobre a chamada assembléia de Siquém, onde as doze tribos, depois da
conquista e distribuição da terra prometida sob a liderança de Josué, aceitam seguir ao Deus Javé.
Conhecida é a palavra de Josué: “Eu e minha casa serviremos ao Senhor (=Javé)” (Js 24.15). O
texto é uma reflexão teológica, com marcas da teologia deuteronomista, e, de acordo com muitos
pesquisadores, não preserva muitos dados históricos. Ele preserva, no entanto, uma lembrança
muito importante: a de que os antepassados de Israel – a saber: de Abraão – adoravam outras
divindades (v.2). O texto de Gn 35.2-4 tem lembrança de uma antiga tradição: a de sepultar as
imagens de divindades (do lar). Existe a consciência de que Jacó se apartou de antigas divindades, -
enterradas sob o carvalho sagrado de Siquém – talvez por ocasião da construção de altar em Betel.


Os textos de Êx 3.6,16 e Êx 6.2s identificam o Deus que se manifesta a Moisés como sendo o
mesmo Deus que se revelou a Abraão, Isaque e Jacó, mesmo que sob outro nome. Esta certamente é
a visão que predomina na atual configuração do AT: o Deus da época dos pais, em Gn 12-50, é o
mesmo que o Deus de Êx 1ss. Há, no entanto, alguns indícios, nestes mesmos textos, de que as
experiências de fé dos pais eram um tanto diferentes das experiências que o povo no Egito tinha
com Javé. 1) Javé é diferente antes de Moisés; aí ele se manifesta sob outro nome; 2) usa-se uma
formulação diferente: Deus (El) de X (nome de uma pessoa: Abraão, Isaque, Jacó) ou, então, El
Shadday (traduzido geralmente por “todo-poderoso”); a forma “El de X”, estranhamente, não ocorre
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel           5

em textos recentes (também não existe um “Deus de Moisés”); 3) as tradições dos pais refletem
uma história de famílias com seus problemas específicos. É de se supor que a fé no âmbito da
família tenha características peculiares, distintas, p.ex., de uma teologia urbana do Sião, vinculada
ao templo de Jerusalém.

Elucidativo é o texto de Gn 31.51-54: Parece que o texto descreve um acordo de demarcação de
território entre arameus (Labão) e israelitas (grupo de Jacó). A divisa se encontra no monte Gileade
(na Transjordânia). Do acordo faz parte uma refeição sagrada diante da divindade; os dois partidos
invocam, cada um, seu Deus, para que sejam juízes sobre o acordo – o acordo necessita de sanção
divina: Jacó invoca o “Deus de Abraão” e Labão, o “Deus de Naor” (v.53). Um acréscimo posterior
(que ainda falta na versão grega do Antigo Testamento, a Septuaginta) tenta harmonizar,
identificando as duas divindades (“Deus dos pais deles”). Esse texto atesta que tanto entre arameus
quanto entre israelitas se invocava, em ocasiões solenes, um Deus vinculado a um ancestral famoso.

Além disso, podemos observar que diversos textos lêem, em vez de “El abi” (Deus de meu pai) ou
“El Abraham/Yitshaq/Yaaqob” (Deus de Abraão/Isaque/Jacó), um outro nome:

Em Gn 31.42,53, encontramos a expressão “Pahad Yitshaq” = “terror de Isaque” (ou “parente de
Isaque”); em Gn 49.24 (cf. Sl 132.2,5), lemos “Abbir Yaaqob” = “o poderoso/forte de Jacó”; e em
Gn 17.1, aparece a expressão “El Shadday” (“Deus todo-poderoso”, conforme a versão grega;
significado original de Shadday, no entanto, incerto). Esses diversos epítetos (atributos) divinos
representam as diferentes experiências que os ancestrais e os respectivos grupos patriarcais tiveram
com o seu Deus. Bem no início, esse “Deus do pai” provavelmente ainda não era identificado com
Javé, o Deus do povo de Israel – este povo, aliás, ainda não existia. Essa identificação só ocorreu
posteriormente (como atestam os textos de Êx 3;6).

Para a teologia do AT é importante constatar as características desse “Deus dos pais e das mães”

A forma (“Deus de X”) expressa claramente que esse Deus está vinculado a uma pessoa e, por
extensão, ao seu grupo familial. Os textos do ciclo dos patriarcas mostram que esse Deus se
preocupa com a sobrevivência e a proteção da família (p.ex., Abraão e Sara no Egito, em Gn 12).
Deus garante a continuidade da família, dando fertilidade a mulheres estéreis (promessa de um
filho; p.ex., Gn 18) ou impedindo que uma criança seja sacrificada (Gn 22). Cada chefe de família
(patriarca) deve ter tido a sua experiência própria com o Deus protetor de sua família (cf. as
designações “parente” ou “poderoso” acima).

Os grupos dos patriarcas aparentemente eram pastoralistas semi-nômades, ou seja, migravam atrás
de pastagens e água para o seu rebanho. O Deus desses pastores acompanha o grupo migrante, já
que está vinculado ao seu grupo (e não a uma localidade ou a um fenômeno da natureza). Deus
acompanha o grupo para onde quer que vá, como se expressa na fórmula: “estarei contigo para onde
quer que fores”. Neste caso, não havia necessidade de fazer peregrinações a um determinado local
de culto ou santuário. O Deus dos pais não se encontra em um santuário, mas é peregrino. Por isso,
os patriarcas constroem altares por onde passam. Os próprios patriarcas também realizam os ritos
religiosos necessários (ainda não há necessidade de sacerdotes).

Os grupos de pastores semi-nômades não têm, em geral, propriedade imóvel (de acordo com Gn 23,
Abraão compra uma sepultura para Sara, pois não tem nenhum imóvel para sepultar sua esposa).
Neste contexto, Deus é aquele que promete um pedaço de terra aos grupos patriarcais (p.ex., Gn
28.13). Posteriormente, a promessa de um pedaço de terra se amplia para a promessa de toda a
“terra prometida” (Gn 15.18).
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel          6

O Deus dos pais é um Deus da promessa: a promessa de um filho para garantir a continuidade da
família e a promessa de um pedaço de chão para garantir a sobrevivência da família. Dessa forma,
esse Deus remete os olhares para um futuro melhor; o presente não é definitivo; o povo está
constantemente a caminho em direção do cumprimento da promessa no futuro. A contrapartida
humana a essa promessa é a fé (= confiança na promessa de Deus; cf. Gn 12.1-4; 15). Essa fé
implica um constante desalojar-se (“Sai da tua terra...!” Gn 12.1).

O Deus dos pais não é um Deus guerreiro nem agressivo; ele tem características “inclusivas”, pois
aceita manifestações religiosas não estritamente vinculadas aos grupos patriarcais. Tradições
cananéias podem, p.ex., ser incorporadas à fé dos pais. Por exemplo, a antiga saga de origem
cananéia narrada em Gn 28.10-22 quer explicar por que motivos o santuário de Betel (“casa de
Deus”) é um lugar sagrado. A antiga narrativa pré-israelita (Betel era um santuário cananeu antes da
existência de Israel) já constatava que a pedra erguida (matseba = estela) é considerada a “morada
de Deus” (Bet-El) ou, pelo menos, “porta (de entrada) dos céus” (v.17; através da escada, v.12), e
também explicava por que a pedra era ungida (v.18) e por que os peregrinos deviam pagar o dízimo
(v.22). Na atual configuração, é Jacó que descobre o lugar e é o Deus de Israel que se revela em
Betel. Que significa isso? Ao entrar em contato com a região de Betel, os israelitas adotaram a
história cananéia, pois identificaram o Deus de Betel (El Betel) com o seu próprio Deus, e adotaram
o próprio lugar sagrado dos cananeus, que se tornou lugar sagrado também para os grupos
patriarcais em torno de Jacó. Assim podemos concluir que a religião dos pais de Israel acolhia as
tradições religiosas de outras expressões de fé quando estas não colidiam com a sua própria
convicção.


4. O Deus do êxodo

O acontecimento central da fé de Israel, de acordo com a sua própria confissão, é a libertação do
povo escravizado no Egito. Ele se tornou o evento fundante do povo e de sua fé em Javé. Conforme
o testemunho de Êx 1-2, Israel se torna povo no Egito, em meio à opressão. Conforme duas
tradições mencionadas no início (eloísta e sacerdotal), o povo de Israel também conhece o Deus
Javé somente por ocasião do cativeiro egípcio. Neste contexto, Javé é experimentado como o Deus
da libertação.

A tradição do êxodo marcou de tal forma a fé do povo que ela perpassa toda a história do povo.
Oséias vê na experiência do Egito o início do relacionamento amoroso entre Javé e Israel: “Quando
Israel era um menino eu o amei, e do Egito chamei meu filho” (11.1s). O anônimo profeta exílico
denominado pela pesquisa de Dêutero-Isaías afirma: “Assim diz o Senhor, o que outrora preparou
um caminho no mar e nas águas impetuosas [...] Não vos lembreis das coisas passadas, nem
considereis as antigas. Eis que faço coisa nova [...] Eis que porei um caminho no deserto e rios, no
ermo” (Is 43.16-18). O evento do êxodo serve de modelo para a esperança futura de retorno dos
exilados à pátria. Até hoje, quando um pai de família judeu recita o relato da Páscoa no seio da
família, está atualizando o evento passado e confessa que Deus não abandona o oprimido. A
consciência de que o Deus do êxodo toma o partido dos fracos e oprimidos sempre motivou pessoas
a lutar contra a injustiça e a transformar situações de injustiça através da organização popular.

O Deus que se revela no evento do Sinai é um Deus que toma o partido dos fracos; não é, portanto,
um Deus neutro. Esse Deus dos oprimidos é poderoso. A história das pragas mostra claramente que
os representantes da religião egípcia não podem competir com os representantes de Javé; chega o
momento em que os magos têm que admitir: “Isso é o dedo de Deus” (Êx 8.19). Até as forças da
natureza obedecem a esse Deus quando é necessário salvar os perseguidos (Êx 14). A manifestação
do poder e da glória de Deus diante da superpotência egípcia é o alvo de todos esses grandes
“sinais” (Êx 14.4).
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel           7


A confissão de que Deus se manifesta em atos políticos concretos em favor das minorias oprimidas
é uma confissão aberta para o futuro; isto é, ela pode ser repetida por gerações futuras em situações
semelhantes de opressão. Essa confissão também teve, em Israel, conseqüências éticas, como
mostra a legislação, em especial a introdução ao Decálogo (Dez Mandamentos): “Eu sou Javé (o
Senhor), teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão” (Êx 20.2). Essa introdução
quer alertar para o fato de que a obediência aos mandamentos representa a garantia da preservação
da liberdade concedida por Deus. A libertação dos escravos em Israel, ao sétimo ano de servidão, é
fundamentada pela libertação da escravidão no Egito (Dt 15.12-15). Da mesma forma, o descanso
no sétimo dia é motivado, na versão de Dt 5.14-15, pelo fato de Israel ter sido servo no Egito.

De acordo com o Sl 114.1s, o povo de Israel entende que, no evento do êxodo, foi chamado por
Javé para ser seu povo: “Quando Israel saiu do Egito e a casa de Jacó do meio de um povo de fala
estranha, Judá se tornou o seu santuário e Israel o seu domínio” (cf. Os 11). Essa consciência de
povo eleito acompanhará o povo durante toda a sua história. O já mencionado profeta Dêutero-
Isaías utiliza um verbo do âmbito jurídico, “resgatar, remir, redimir”, usado na “recompra” de um
membro da família escravizado, para designar a libertação do povo do Egito e a libertação futura do
cativeiro babilônico: “Não temas, porque eu te remi!” (Is 43.1; 44.6,24: Deus é o “redentor”).


5. O Deus do Sinai


O êxodo foi a ação divina decisiva para a fé israelita; o Sinai tornou-se a revelação privilegiada da
vontade de Deus. Na atual configuração do Pentateuco, a ação libertadora de Deus (Êx 2-15)
antecede a revelação da vontade divina em forma de Lei (Êx 19ss). A atuação graciosa de Deus
precede, portanto, a exigência da Lei. A Lei pode ser entendida, então, como resposta ou
conseqüência de uma relação ou comunhão entre o povo de Israel e Deus, iniciada por este (cf. a
introdução ao Decálogo mencionada acima).

Constatam-se três temas na perícope do Sinai (Êx 19 a Nm 10):

–   a teofania, ou seja, a revelação de Deus (Êx 19)
–   a aliança com o povo (Êx 24; 34)
–   as leis (Êx 20-23; 25-30; 35-40; Lv; Nm 1-10)

Existe uma certa lógica na seqüência destes três aspectos: Javé se revela no monte sagrado, faz uma
aliança com seu povo e dá as leis ao povo para fortalecer e preservar essa aliança. O cumprimento
das leis é a resposta do povo à atuação libertadora e à solicitude de Deus. No entanto, as leis nem
sempre fizeram parte da tradição do Sinai. Encontramos, no bloco do Sinai, diversos códigos de leis
destacáveis do seu contexto (Decálogo, Código da Aliança, Lei Sacerdotal, Lei da Santidade). Além
disso, conhecemos uma revelação no Horebe/Sinai sem nenhuma legislação (Êx 3). É quase
consenso, atualmente, que as Leis do bloco do Sinai provêm de diversas épocas, tendo sido, por
ocasião do surgimento do Pentateuco, colocadas no lugar privilegiado da revelação divina no Sinai,
uma vez que todas as leis eram consideradas explicitação dessa vontade divina manifestada no
Sinai. (As leis não serão apresentadas neste capítulo.)

Inicio com a teofania de Êx 19. O cerne do relato encontra-se em 19.16-20. O texto não é coeso:
menciona-se “Javé” (18,20) ao lado de “Elohim” (17,19); além disso, aparecem duas concepções
distintas do modo como ocorreu a revelação.
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel           8

A primeira tradição se encontra nos v.18 e 20; faz uso de Javé (Senhor). Os fenômenos que
acompanham a teofania são a “fumaça” no monte e o “fogo” no qual o Senhor desce; além disso, há
um “tremor da montanha” (a LXX fala em “tremor do povo”). De acordo com essa primeira
tradição, Deus parece manifestar-se em um fenômeno vulcânico. Pergunta-se, então, se o Sinai teria
sido originalmente um vulcão. Esta visão é compartilhada por textos como Êx 24.17, que menciona
fogo no cume do monte, e Dt 4.11s; 5.23s; 9.15, que falam que o monte queima em fogo e que há
nuvens e escuridão. Também somos lembrados da “coluna de fogo” e da “coluna de nuvens” que
acompanham o povo através do deserto (Êx 13.21s; 14.19,24) – seriam elas um reflexo de
fenômenos vulcânicos vinculados ao Sinai? Também a história da peregrinação de Elias ao Horebe
(1 Rs 19) parece pressupor fenômenos vulcânicos: o monte se fendia, tremia e havia fogo nele. Em
todos esses casos, no entanto, Javé “desce” sobre o monte. Portanto, ele não reside no monte;
somente se manifesta nele.

A segunda tradição se encontra nos v.16-17,19; usa Elohim e retrata aparentemente uma
tempestade: relâmpagos, trovões e nuvens pesadas (v.16). O trovão parece estar sendo comparado
com o som de trombetas (chifres de carneiro) que convidava (posteriormente) para o culto (usa-se o
mesmo termo para som da trombeta e trovão: qol). Relâmpagos e trovões são formas conhecidas da
manifestação divina nas religiões orientais (p.ex., Baal Hadade, o deus da tempestade).
Provavelmente a versão vulcânica deve ser considerada a mais antiga, porque é menos conhecida; a
Palestina não conhece vulcões, mas conhece tempestades. Neste caso, a fé javista teria adotado, na
Palestina, características de outras religiões para expressar a sua experiência com a manifestação
divina.

Na teofania o povo experimenta Deus como mysterium tremendum. O povo está apavorado diante
da manifestação desse Deus. Este aspecto, presente em quase todas as experiências do sagrado, não
é muito destacado nos textos bíblicos fora do complexo do Sinai. Além de apavorante, esse Deus
parece ter vínculos especiais com um monte sagrado, onde não (mais) reside, mas onde se revela em
meio a manifestações da natureza.

Mas a teofania não é um fim em si mesma; Deus se manifesta com um propósito: a teofania
inaugura ou ratifica uma relação entre Deus e o povo. Ex 19 exige, portanto, uma continuação. Essa
continuação se encontra provavelmente em Êx 24.1-11, o relato da aliança.

Também Êx 24.1-11 é um texto que reúne duas tradições. A ordem do v.1 (“Sobe ao...”) somente se
cumpre no v.9 (“E subiram...”). O relato que inicia nos v.1-2 continua, de fato, somente nos v. 9-11:
este trecho narra um acontecimento em cima do monte (primeira tradição). Os v. 3-8, por outro
lado, narram um acontecimento ao pé do monte (segunda tradição). A primeira tradição parece
conservar uma memória muito antiga, pois Moisés ainda não é o mediador exclusivo. Com ele estão
os anciãos como representantes do povo. Um aspecto bem antigo nessa tradição parece ser a
afirmação, no v.10, de que os anciãos “viram o Deus de Israel”. (De acordo com Êx 33.20, quem vê
Deus tem que morrer; este último deve ser, portanto, um texto teologicamente mais refletido.) Na
teofania de Êx 19, Deus não era visível; somente os fenômenos que acompanhavam a sua
manifestação podiam ser vistos. Em Êx 24, ele aparentemente é visível; no entanto, ele não é
descrito. Descreve-se somente o chão que Deus pisa: ele é azul e límpido como safira, ou seja, ele é
um reflexo no céu.

Também o v.11 contém uma tradição bastante antiga. A visão de Deus não é o objetivo último; o
objetivo é a “ceia” em comum: “eles comeram e beberam”. Os anciãos viram a Deus e comeram na
sua presença. Essa refeição sagrada, na qual se crê que Deus esteja presente, tem por objetivo
formar ou fortalecer a comunhão com Deus e entre os participantes. O Deus transcendente e
“tremendo” se condescende e se digna a participar de uma refeição terrena, ao lado de seus fiéis.
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel              9

Essa é a forma mais forte da comunhão com a divindade: sua misteriosa e muda presença durante a
refeição em um lugar sagrado.

Num relato mais recente, presente nos v.3-8 (segunda tradição), tudo transcorre ao pé do monte.
Aqui se fala de uma aliança que ocorre dentro de um ritual que inclui a leitura da Lei e um
comprometimento do povo a essa Lei. Moisés é aqui o mediador. A Lei parece existir já de forma
escrita (v.7: “livro da aliança”). A moldura narrativa incorpora duas tradições: o sacrifício (v.4s) e o
ritual de sangue (v. 6,8). A aspersão do povo com o sangue de um sacrifício, assim como é relatado
aqui, é única no AT. (Como analogia pode ser considerado o ritual de investidura do sacerdote,
conforme Êx 29.20s; Lv 8.23s.) Após o sacrifício, realizado por representantes (“jovens”) do povo,
Moisés asperge a metade do sangue no altar – que simboliza a presença de Deus – e a outra metade
sobre o povo. (Nos sacrifícios geralmente todo o sangue – sede da vida – é derramado no altar,
simbolizando a devolução da vida a Deus!) O sangue representa, neste ritual, o elo de união entre
Deus e o povo. A comunhão é ratificada pelo que há de mais precioso: o sangue. Esse ritual podia
facilmente ser interpretado como um ritual mágico que garante a salvação, a presença de Deus ou a
sobrevivência. O texto, no entanto, evita que o ritual seja compreendido assim. Pois o povo deve
comprometer-se, na celebração, a cumprir as leis estabelecidas no “livro da aliança”. (Por este
motivo, a coletânia Êx 20.22-23.19 é designada, na pesquisa, de Código da Aliança!)

Conclusão: O Deus dos patriarcas é um Deus peregrino, que acompanha as pessoas e lhes promete
um futuro melhor. O Deus do êxodo é o Deus da libertação, que interfere na história política e toma
partido pelos que sofrem a opressão; também é um Deus que acompanha o povo, guiando-o pelo
deserto até a terra da promessa. O Deus do Sinai é um Deus que se vincula a um monte, mesmo que
as tradições não mais o entendam como morando nesse monte. Em todo caso, ele aí se manifesta, e
as pessoas sobem ao monte para ter comunhão com ele. Dois outros textos (antigos) pressupõem
que o Deus de Israel está vinculado ao Sinai. Trata-se de Jz 5.5; Sl 68.9 (Almeida/SBB: Sl 68.8),
que contêm uma estranha expressão para caracterizar Javé: zeh sinai – “aquele/este/o do Sinai!”

As tradições mais antigas do Sinai falam de um Deus que se revela no monte santo e de uma
comunhão com esse Deus através do comer e beber em local sagrado. Essa comunhão com Deus
pode ser chamada de “aliança” e pode ser fortalecida ou confirmada através de um ritual de sangue
e um compromisso do povo. Esta noção provavelmente deu origem ao processo de inserir no
contexto do Sinai grande parte das leis de Israel, já que eram tendidas como expressão da vontade
divina, à qual o povo se compromete.

Javé se revela em fenômenos naturais, mas não é identificado com nenhum deles. Os fenômenos
são conseqüência de sua revelação. O Deus que faz “tremer” é, no entanto, um Deus que busca a
comunhão com as pessoas.

6. Era antigamente Javé o Deus dos midianitas?

Dada a probabilidade de o Deus Javé ter sido originalmente o Deus de um monte santo em território
dos midianitas ou em seu âmbito de peregrinação (cf. Êx 3), existe a possibilidade de Javé ter sido o
Deus dos midianitas antes de ser o Deus de Israel. Essa hipótese não pode ser totalmente
comprovada, mas também não pode ser descartada definitivamente, pois existem alguns indícios
textuais que apontam nessa direção. Os textos mais importantes são Êx 18.1-12, Êx 3 e Êx 4.24-26.
Conforme Êx 18.1-12, quem oferece o sacrifício de agradecimento a Javé é Jetro e não, como se
esperaria, Moisés, o líder vocacionado por Javé, nem Arão, o ancestral dos sacerdotes. O sacerdote
Jetro é, portanto, o anfitrião nessa celebração do monte Sinai; por isso, Javé já deve ter sido o Deus
de Jetro antes dessa ocasião. De acordo com Êx 3, Moisés é vocacionado “no monte de Deus”, que
se localiza em território midianita, enquanto pastoreava o rebanho de seu sogro Jetro. Também o
obscuro texto Êx 4.24-26 pode ser entendido como indício de que Javé era, na origem, o Deus dos
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel          10

midianitas. Quando Javé ataca Moisés, é Zípora, sua esposa midianita, que toma a iniciativa para
salvá-lo, certamente porque sabia como lidar com Javé, pois era o seu Deus.


7. O Deus da conquista e da época tribal


Este capítulo vai tentar abordar alguns textos teologicamente bastante controvertidos por causa da
violência que retratam. Muitos textos dos livros de Js e Jz causam espanto e horror por causa dos
massacres realizados em nome de Deus. Muitas pessoas, na antiguidade e na atualidade, já
perderam a sua fé por causa desses capítulos. Geralmente esses capítulos são evitados nos
compêndios de teologia do AT bem como nos estudos bíblicos e nas pregações. Para melhor
compreensão desses textos “violentos” devem ser destacadas, em especial, duas concepções: o Deus
guerreiro e o Deus “nacional”.

7.1. Javé, o Deus guerreiro.

A tomada da terra é relatada no livro de Josué como tendo sido uma grande conquista militar do
povo de Israel. Cidades grandes e importantes como Jericó, Ai e Hazor são totalmente destruídas (Js
6-7;11), uma forte coalizão de reis cananeus é derrotada (Jz 4-5). Todas essas maravilhosas
conquistas e vitórias têm, no fundo, um motivo teológico: em última análise, foi Javé que
conquistou a terra prometida e a deu ao seu povo eleito. A terra não foi conquistada pelo povo, mas
lhe foi dada de presente. Essa é a também a confissão de Dt 26.9: a terra prometida é dádiva de
Deus. Js 2.24 confirma essa confissão: “Certamente Javé nos deu toda esta terra nas nossas mãos,
e todos os moradores estão desmaiados diante de vós.” Esse é o motivo teológico por que toda a
“conquista” (ou dádiva) é descrita como se fosse uma seqüência de milagres: Jericó cai ao mero
som das trombetas (Js 6), sol e lua param no céu até que se consuma a vitória israelita (Js 10), etc.

A noção por trás de grande parte dessas histórias é a noção de que o Deus Javé é um Deus
guerreiro, que peleja pelo seu povo. Um texto bastante antigo (Js 10.14) afirma: “Não houve dia
semelhante a este, nem antes nem depois dele, tendo Javé, assim, atendido a voz de um homem;
porque Javé pelejou por Israel!” Esta noção do Javé guerreiro corresponde ao nome do povo:
Israel (Yisra'el) significa “El (Deus) peleja” (ou, então, “El governa”). As guerras travadas por
Israel são guerras de Javé, muitas vezes também denominadas “guerras santas”. Nessas guerras
não é o povo que luta por sua fé ou pelo seu Deus, mas é o próprio Deus que luta pelo seu povo.

As características da guerra santa são:

o toque de trombeta (Js 6.20; Jz 7.18) (= a voz de Javé?);
sacrifícios a Javé (1 Sm 7.9);
consultas a Javé (Jz 20.23-28);
pureza ritual do acampamento (Dt 23.9-14);
abstinência sexual (2 Sm 11.6-11);
jejum (1 Sm 14.24; a força provém somente de Javé);
os medrosos não participam da batalha (Jz 7.3);
a vitória vem de Javé (Jz 7; por isso só poucos soldados são necessários);
o pavor de Javé confunde os inimigos (Js 2.9; Jz 7.21s);
Javé é quem peleja, as tribos vêm em seu auxílio (Jz 5.23);
os despojos de guerra pertencem a Javé (= são destruídos: Js 7)
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel           11

O texto de Jz 7, a batalha de Gideão contra os midianitas, é um ótimo exemplo dessa noção de
guerra de Javé: o grande exército é reduzido primeiramente de 32.000 para 10.000 (22.000
medrosos voltaram para casa), depois para 300 (que bebiam água levando a mão à boca). Este
número foi considerado suficiente. O ataque se dá enquanto ainda é noite. Mas, na verdade, não
existe nenhum combate, pois o barulho das trombetas e da quebradeira da cerâmica infunde tanto
pavor no inimigo, que este se destrói a si mesmo. Nas palavras do texto: “O Senhor entregou o
arraial dos midianitas nas vossas mãos” (v.15). Os soldados apenas vêm em auxílio a Deus (fazendo
barulho e perseguindo os midianitas fugitivos).

A característica mais marcante da guerra santa é o chamado “anátema” (haram). É o aspecto mais
escandaloso e cruel da guerra. Como Deus é considerado o comandante do exército na batalha e o
responsável pela vitória, é a ele que pertence todo o despojo; tudo deve, portanto, ser devotado a ele
(= destruído), inclusive as vidas humanas. De acordo com a narrativa de Js 6.17-25, todos os
habitantes de Jericó devem, de acordo com essa noção, ser exterminados (com exceção da família
de Raabe). Todos os despojos materiais (prata, ouro, roupas e armas) devem ser separados para o
“tesouro do Senhor” (v.19). Um eventual desrespeito à lei do anátema terá conseqüências fatais,
como se descreve em Js 7. 1-26: um israelita apropriou-se indevidamente de parte dos despojos da
batalha por Jericó (v.21) e causou, dessa forma, uma derrota militar ao exército de Israel (v.2-5). O
infrator e toda a sua família são exterminados.

A noção de “guerra santa” não é exclusividade de Israel. Outras nações do antigo Oriente a
conheciam. Também aí os deuses “lutavam” nas batalhas em favor de seus seguidores. Os generais
de outras nações também dedicavam suas vitórias a seus respectivos deuses. O faraó Ramsés III,
por exemplo, afirma que unicamente Amun-Re é responsável por suas vitórias. O rei moabita
Mesha atribui sua vitória ao Deus Kamosh. Israel não é diferente de seu entorno. É, por assim dizer,
filho de seu tempo e de sua geografia. Portanto, a guerra santa não pode ser considerada, em Israel,
como expressão típica da fé em Javé.

Específico de Israel talvez sejam dois elementos vinculados à guerra de Javé: o líder “carismático”
e a arca. O líder carismático (na Bíblia denominado “juiz”) é um líder que nasce na emergência,
quando o povo está sendo ameaçado. Sente-se vocacionado por Deus e cheio de seu Espírito (por
isso “carismático”); reúne um exército dentre os homens aptos dos clãs e das famílias israelitas;
prepara e motiva esse exército improvisado para a batalha. Exemplos desse tipo de liderança militar
são Gideão, Jefté, Sansão, Débora e Baraque, Samuel e, finalmente, Saul. O vocacionado tem o
“espírito” de Javé (1 Sm 11.5s); após a batalha, o líder e os soldados voltam a seus afazeres
costumeiros. O líder carismático desaparece com o advento da monarquia.

A arca da aliança aparece no contexto da história do povo que migra no deserto: Nm 10.33-36. Ela
representa a presença protetora de Deus, em especial nas batalhas. Com a arca, o Javé guerreiro
marcha para a batalha. Na origem, a arca talvez tenha sido apenas um recipiente para guardar
objetos sagrados. Talvez por esse motivo ela era tida como poderoso paládio nas batalhas.
Conforme a tradição, estava depositada, por um tempo, no santuário de Silo e era levada à batalha
quando necessário (1 Sm 4-6). Após uma derrota contra os filisteus, a arca foi levada à Filistéia,
onde fez enormes estragos. Davi traz a arca a Jerusalém para valorizar a sua nova capital com um
símbolo sagrado (especialmente nas tribos de Efraim e Manassés). Na época da monarquia, a arca
se encontra no santo dos santos do templo de Jerusalém até ser destruída juntamente com o mesmo,
em 586.

Com a arca possivelmente se relaciona o título Javé dos exércitos (Yahweh Tsebaot;1 Sm 4.4; 2
Sm 6.2 ). Javé pode ser considerado general do exército humano/israelita (Nm 10.35s; 1 Sm 17.45).
Mais tarde, no entanto, foi também entendido como o Deus das milícias celestiais (Js 4.13-15; Sl
104.21; 148.2). Com a arca também está relacionada outra expressão. De acordo com 1 Sm 4.4; 2
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel            12

Sm 6.2, Javé está entronizado sobre/entre os querubins. Talvez a arca tenha sido imaginada como
o pedestal de um trono invisível, sobre o qual se assentava Deus. No antigo Oriente, figuras de
querubins (seres alados com cabeças humanas e corpos de animais) formavam com freqüência as
bases e os braços dos tronos reais. De acordo com Êx 25.17-22, os querubins fazem parte da tampa
da arca (transformado em “propiciatório”- kapporet pelo Escrito Sacerdotal; Lv 16).

A noção do Deus guerreiro e da guerra santa é extremamente problemática para os cristãos: como
pode Deus ser violento, vingativo e exigir a morte dos vencidos? A maioria dos cristãos (e também
dos judeus) não pode admitir um Deus como este! Por causa desses textos violentos muitas pessoas
– cristãs e não-cristãs – rejeitaram o Antigo Testamento e o seu Deus. O uso inadequado desses
textos fez com que muitos colonizadores cristãos, imbuídos do espírito da guerra santa,
legitimassem o massacre de tribos aborígenes. Como lidar com essa teologia?
Diversas abordagens buscam explicar – e, assim, pelo menos amenizar – a imagem desse Deus
“violento”:

a) Explicação histórica: na verdade, os eventos não aconteceram exatamente como são narrados nos
textos; na realidade não houve tantas conquistas e extermínios; os exageros devem-se à tendência de
engrandecer os feitos do povo. Mas, ainda que a realidade histórica tenha sido menos traumática, os
autores dos relatos não deixam de admitir que Deus, em si, permitiria o derramamento de sangue.
b) Explicação psicológica: a partir dos pedidos de vingança contidos nos Salmos, procura-se ver nos
textos violentos um tipo de vazão emocional. Quem ora a Deus pedindo vingança dos inimigos
desiste de fazer justiça com as próprias mãos e despeja diante de Deus toda a sua raiva. Mas será
que todos os relatos são apenas expressão de emoções contidas? Será que não houve, de fato,
também derramamento de sangue – mesmo que não nas dimensões relatadas – posteriormente
justificado como vontade de Deus?
c) Israel é filho de seu tempo: apesar de ser um povo com características religiosas próprias, Israel
também compartilhava de um imaginário oriental, que, às vezes, adotou sem muita reflexão. A
guerra santa é um desses conceitos adotados. Assim, não precisamos comungar esse conceito, pois
ele não é fruto da fé de Israel. A reflexão teológica futura leva, então, o povo a mudar esse conceito.

De fato, o profeta Amós ousa contrariar a expectativa corrente do povo. De acordo com Am 5.20, o
dia de Javé era entendido pelo povo como o dia em que Israel se vingaria de seus inimigos. Para
Amós, no entanto, o dia de Javé será um dia de trevas para o próprio Israel. Por ser um Deus da
justiça, Javé pode voltar-se contra o próprio povo.

Também é verdade que Israel reflete sobre a sua relação com os seus inimigos a partir de sua fé e
teologia. No final do Império Persa, a proposta do autor do livro de Jonas a respeito dos inimigos de
Israel é diametralmente oposta à teologia oficial: Deus quer que até mesmo Nínive, a cidade inimiga
e assassina por excelência, seja poupada.

7.2 Javé, o Deus nacional de Israel

Uma segunda noção muito presente já na época anterior à monarquia é a de que Israel é o povo de
Javé (Jz 5.13) e Javé é o Deus de Israel (Jz 5.3). Os inimigos do povo são, portanto, também os
inimigos de Javé (Jz 5.31). Também esta noção não é exclusividade de Israel. Conforme Nm 21.29,
por exemplo, Moabe é povo do Deus Kamosh. Essa vinculação de um povo com seu Deus (ou vice
versa) culmina, na Assíria, com o uso de um mesmo termo para designar três (ou quatro) grandezas
distintas: Assur/Ashur pode ser o nome do povo, do território, (da capital) e do Deus desse povo ou
território. Esses três elementos – povo, país e Deus – formam também uma unidade na consciência
primitiva de Israel.
Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel           13

De acordo com Rt 1.15s, é normal que, quando se muda para um outro país, adora-se também um
outro Deus: “o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus” (v.16). O texto de 2 Rs 5.17 relata
um fato estranho. Após ter sido curado da lepra pelo “homem de Deus”, Eliseu, Naamã diz: “Seja
dado ao teu servo uma carga de terra de dois burros; pois o teu servo não mais oferecerá
holocaustos e sacrifícios a outros deuses senão a Javé.” Para poder oferecer sacrifícios a Javé no
estrangeiro, deve-se ter, portanto, na opinião corrente da época, um pouco da terra (território) sobre
a qual o respectivo Deus é responsável. Também Gn 4.14 expressa algo semelhante: ao ser expulso
da terra cultivada, Caim está longe da presença de Javé.

A visão de que um Deus está vinculado ao território do respectivo povo que o adora é, portanto,
comum ao antigo Oriente. Não é uma contribuição específica da fé de Israel. O texto de Dt 32.8s
mostra como Israel lida com essa noção!

O Senhor do universo – chamado Elyon, “altíssimo” - divide a humanidade em povos, colocando os
limites dos seus territórios; a cada povo corresponde um “filho de El” (leia-se, no v. 8, “filhos de
El/Deus”, de acordo com LXX, em vez de “filhos de Israel”; cf. Bíblia de Jerusalém); ou seja, cada
povo tem o seu Deus. A Javé cabe o povo de Jacó/Israel. Evidentemente, para Israel, Elyon, o Deus
supremo, é identificado com Javé, seu próprio Deus; os filhos de El são degradados a seres
celestiais (o texto massorético evita o elemento mítico) a serviço de Javé. O nosso texto ganha,
assim, um novo sentido: Javé, o Deus supremo, dá aos “filhos de El” os outros povos, reservando
para si o povo de Israel como sua propriedade. Dessa forma, Javé se torna Deus sobre as outras
divindades; e Israel torna-se o povo preferido de Javé.

Essa relação estreita pode ser designada de eleição. A noção salienta que a ação divina precede
qualquer ação humana. Locus teológico privilegiado da noção de eleição é Dt 7.6-8. Outro termo
utilizado para designar esta relação especial é aliança.

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As origens da fé em Javé no Antigo Testamento

  • 1. Disciplina: Teologia do Antigo Testamento Prof. Dr. Nelson Kilpp Primeiro tema: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 1. Uma primeira questão: Teologia do Antigo Testamento ou História da Religião de Israel? Uma questão preliminar a ser clareada é a seguinte: que queremos fazer? Uma teologia do Antigo Testamento (AT) ou uma história da religião de Israel? Qual é a diferença? Quais são as implicações? O que está em jogo? A fé do povo de Israel não caiu do céu. Ela não permanece a mesma desde o início até o fim da época do AT. Ela mudou no decorrer dos tempos. Isso se pode dizer também da religião de outros povos. A fé se transforma com as mudanças históricas. Não se pode, portanto, desvincular um estudo das expressões de fé do povo de Israel de sua caminhada histórica. Além disso, ao contrário de outros povos, Israel quase não desenvolveu uma literatura mítica – que tenta sistematizar e perenizar o saber teológico – por estar consciente de que seu Deus se manifesta na história de pessoas e não através do mito. Os olhos da fé de Israel vêem Deus no decurso da história. A fé de Israel fala a partir e para dentro de um contexto histórico. Uma conseqüência disso são os muitos textos de cunho histórico no Antigo Testamento (p.ex., Gn, Êx, Nm, Js até 2 Rs, Cr, Ed-Ne); além disso, grande parte dos livros proféticos inicia com a ambientação histórica da atuação do profeta (p.ex., Is 1.1; Jr 1.1-3, etc.). Quando os autores sagrados escrevem uma história, eles não querem simplesmente fixar fatos curiosos ou interessantes do passado, mas estão fazendo teologia (“teologia narrativa”), pois interpretam teologicamente os fatos, tornando-os relevantes, significativos e válidos para a atualidade do autor. Em outras palavras: pretendem transmitir uma mensagem. Por causa dessa íntima relação entre teologia e história, existem atualmente duas tendências de estudar as expressões de fé do povo de Israel, a saber: por um lado, sistematizá-las em uma teologia do AT, ou, por outro lado, descrevê-las dentro de uma história da religião de Israel. As principais diferenças dessas duas abordagens são as seguintes: HISTÓRIA DA RELIGIÃO TEOLOGIA DO AT explica os fenômenos religiosos a partir da explica os fenômenos em seu conjunto história (diacronia: descreve em ordem (sincronia); vê uma unidade no todo das cronológica); dinâmica ou as mudanças na manifestações; busca ver a continuidade no história são importantes decorrer e nas mudanças da história coloca lado a lado diversas religiões, afunila o estudo em uma só religião; as outras fazendo comparações entre elas religiões só são importantes na medida em que ajudam a entender o AT compara com outras religiões e destaca o compara com outras religiões e destaca o que que é comum a todas é particular, distinto, próprio
  • 2. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 2 não toma partido em favor de uma religião, procura uma “verdade” na fé de Israel que tenta permanece neutro na análise; não também tenha validade para nós; identifica-se “confessa sua fé”, não se identifica com com o AT como sendo algo próprio uma religião observa a religião a partir de fora, numa Volta-se para o AT como para a “própria” religião, pesquisador se identifica com ela e distância crítica; “neutralidade” se envolve com ela estrutura o estudo de forma cronológica estrutura o estudo de forma sistemática (dogmática), às vezes em torno de conceitos centrais (como aliança, etc.) Ambas as abordagens não precisam ser excludentes; elas geralmente se complementam. Quem pensa em história, pensa geralmente no novo, no diferente, no que ainda não existia antes. Quem fala em teologia geralmente pensa na continuidade (no que permanece igual) entre as diversas fases da história e as diversas expressões de fé do povo. Mas o velho está sempre ao lado do novo: o falar passado sobre Deus que se encontra sob a forma de tradição ou lei permanece válido também quando irrompe uma nova manifestação de Deus, p.ex., na profecia. No Antigo Testamento, em todo caso, sempre existem ambas as dimensões lado a lado ou uma dentro da outra: continuidade e discontinuidade (o novo) com o passado. Dito de forma simplificada: as expressões de fé do povo de Israel mudam, mas Deus permanece sempre o mesmo. Tanto a teologia do AT quanto a história da religião comparam a fé de Israel com a fé de outras nações. Ambas estudam as influências mútuas entre Israel e as religiões de seu entorno. Israel, sem dúvida, adota muito de seus vizinhos também em termos de religião (novas expressões de fé; discontinuidade). Por outro lado, Israel também rejeita muita coisa, porque usa critérios de fé legados pela tradição (continuidade). Ainda outros conceitos só são adotados por Israel após passarem por sensíveis alterações. Cada religião no antigo Oriente – também a do povo de Israel – tem suas particularidades, apesar das inúmeras semelhanças. A proposta a seguir é fazer uma teologia do AT respeitando basicamente as grandes fases da história de Israel, uma vez que concepções teológicas estão sempre vinculadas a experiências concretas. Isso respeita o fato de que a teologia de Israel conheceu mudanças. Contudo, deve-se evitar, nessa empreitada, dois perigos: a) o perigo de pensar que há um contínuo progresso da religião de Israel, desde rudes inícios animistas, desde a existência de uma pluralidade de deuses e de pouco valor moral até uma fase avançada da ética e da espiritualidade que culmina em Jesus Cristo; b) o perigo de pensar o contrário, ou seja, que há um contínuo regresso: no início estava a fé inocente e espontânea, a fidelidade irrestrita a Deus; mas esta passou por diversos estágios de apostasia, deteriorando-se gradualmente até desembocar no judaísmo tardio, legalista e exclusivista, que Jesus teve que combater. Ambas as perspectivas – a progressista e a regressista – não conferem com a realidade, ainda que haja, na fé de Israel, altos e baixos. Se quisermos respeitar, na elaboração de uma teologia do AT, o fator histórico, devemos atentar para as fases mais importantes da história do povo de Israel e vincular as expressões de fé com as mesmas. Geralmente se adota a seguinte classificação: 1. As origens da fé de Israel 1.1 O Deus dos pais e das mães 1.2 O Deus do êxodo 1.3 O Deus do Sinai 1.4 O Deus da conquista e do Israel tribal
  • 3. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 3 2. A fé de Israel no período monárquico 2.1 O antigo culto israelita 2.2 A teologia do Sião 2.3 Concepções teológicas cananéias 2.4 Concepções teológicas vinculadas ao rei 2.5 A Sabedoria 2.6 A Lei 2.7 O profetismo pré-exílico 3. A fé de Israel na época do exílio babilônico 3.1 Os profetas do fim e do reinício 3.2 A teologia entre os remanescentes 3.3 A teologia entre os exilados 4. A fé de Israel na época pós-exílica 4.1 O reinício em torno do templo e da cidade 4.2 A consolidação do judaísmo 4.3 A Sabedoria recente de Israel 4.4 A apocalíptica 4.5 A revolta armada 2. Os inícios da fé em Javé – as dificuldades Tanto os inícios da história de Israel quanto os inícios de seu falar sobre Deus se encontram nas mais profundas trevas. Não temos elementos para dizer que Israel era, no início, animista (ou seja, que tinha uma fé em coisas animadas: espíritos ou poderes em árvores, pedras, etc.). O antigo Oriente já havia passado para a era mítica, ou seja, para uma fé em divindades pessoais que se encontravam no “céu”. Também não temos motivos suficientes para dizer que Israel se desligou lentamente de seu paganismo ou politeísmo; tampouco podemos dizer que Israel teve no início uma fé pura que se corrompeu gradativamente. Mas que diz o próprio Israel de sua história de fé? O Salmo 136 nos dá uma amostra de como Israel entende a sua fé no decurso da história. O Sl é um canto de louvor e agradecimento da comunidade em forma de liturgia responsiva, ou seja, o liturgo ou cantor (profissional) canta as metades dos versículos que lembram os feitos de Javé e a comunidade respondia: “Porque a sua misericórdia dura para sempre”. Os feitos de Javé são (a partir do v.4): criação, tirar o povo da escravidão do Egito, guiá-lo pelo deserto, dar-lhe a terra, libertá-lo de seus inimigos. O v. 25, finalmente, conclui: Javé é “aquele que dá pão a toda a carne”. O salmista constata a continuidade do mesmo Deus nas diversas épocas da história (passado distante e próximo). E o agir de Deus no passado é importante para nós por causa de sua atualidade: Javé é aquele que nos dá o pão no presente. Deus é o mesmo; existe uma continuidade no seu agir em favor do povo que perdura até os dias de hoje. Outro texto elucidativo é Dt 26.5-11. Este texto relata que o agricultor israelita que colhe as primícias de sua colheita deve colocá-las num cesto e levá-las ao sacerdote “no lugar que Javé, teu Deus, escolheu para aí fazer habitar o seu nome”. O sacerdote colocará, então, o cesto diante do altar e o agricultor confessará a sua fé em Javé. Também nesta confissão se constata que o Deus da história passada é o mesmo que dá, nos dias de hoje, os frutos da terra.
  • 4. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 4 Ambos os textos (Sl 136 e Dt 26) apresentam diversas fases da história de Israel com o seu Deus, Javé. As experiências religiosas iniciais e decisivas se encontram antes da sedentarização do povo na Palestina, antes da chamada “conquista” da terra prometida: na época dos “pais” (ou patriarcas) e na época da opressão no Egito. As origens da fé em Javé possivelmente se encontram fora da Palestina. Isso é confirmado pelo que as três fontes ou tradições do Pentateuco afirmam sobre os inícios a fé em Javé. 1) Gn 4.6 afirma que a adoração de Javé iniciou bem antes da existência de Israel, a saber, entre os descendentes de Sete (tradição javista); 2) De acordo com Êx 3.1ss, a adoração de Javé iniciou na época de Moisés, no monte Horebe, onde Deus se manifesta a Moisés e lhe dá a conhecer o seu nome (tradição eloísta); 3) Conforme Êx 6.2-8, a adoração a Javé iniciou com Moisés, no Egito (tradição sacerdotal). Épocas e lugares são diferentes. Como combinar estas “memórias”? Talvez as diferentes tendências de localizar o início do culto a Javé contenham uma parte da verdade. Poderíamos, então, inferir que havia uma adoração de Javé antes de Moisés e antes da existência de Israel (Gn 4), e que Israel conheceu Javé no Egito através de Moisés (Êx 6) ou no Horebe/Sinai (Êx 3; talvez em território dos midianitas). A seguir tentamos buscar as diversas vertentes dessa fé em Javé. 3. O Deus dos pais e das mães Apesar da centralidade teológica do êxodo e da importância da Lei no Pentateuco e para o judaísmo, os textos constatam que, antes das experiências da libertação do Egito e da manifestação de Deus no Sinai, havia a fé dos pais e das mães de Israel, no ciclo dos patriarcas, Gn 12-50. Também conforme Mt 3.9, o pai da fé é Abraão e não Moisés. Como era a religião destes pais e destas mães? O texto de Js 24 relata sobre a chamada assembléia de Siquém, onde as doze tribos, depois da conquista e distribuição da terra prometida sob a liderança de Josué, aceitam seguir ao Deus Javé. Conhecida é a palavra de Josué: “Eu e minha casa serviremos ao Senhor (=Javé)” (Js 24.15). O texto é uma reflexão teológica, com marcas da teologia deuteronomista, e, de acordo com muitos pesquisadores, não preserva muitos dados históricos. Ele preserva, no entanto, uma lembrança muito importante: a de que os antepassados de Israel – a saber: de Abraão – adoravam outras divindades (v.2). O texto de Gn 35.2-4 tem lembrança de uma antiga tradição: a de sepultar as imagens de divindades (do lar). Existe a consciência de que Jacó se apartou de antigas divindades, - enterradas sob o carvalho sagrado de Siquém – talvez por ocasião da construção de altar em Betel. Os textos de Êx 3.6,16 e Êx 6.2s identificam o Deus que se manifesta a Moisés como sendo o mesmo Deus que se revelou a Abraão, Isaque e Jacó, mesmo que sob outro nome. Esta certamente é a visão que predomina na atual configuração do AT: o Deus da época dos pais, em Gn 12-50, é o mesmo que o Deus de Êx 1ss. Há, no entanto, alguns indícios, nestes mesmos textos, de que as experiências de fé dos pais eram um tanto diferentes das experiências que o povo no Egito tinha com Javé. 1) Javé é diferente antes de Moisés; aí ele se manifesta sob outro nome; 2) usa-se uma formulação diferente: Deus (El) de X (nome de uma pessoa: Abraão, Isaque, Jacó) ou, então, El Shadday (traduzido geralmente por “todo-poderoso”); a forma “El de X”, estranhamente, não ocorre
  • 5. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 5 em textos recentes (também não existe um “Deus de Moisés”); 3) as tradições dos pais refletem uma história de famílias com seus problemas específicos. É de se supor que a fé no âmbito da família tenha características peculiares, distintas, p.ex., de uma teologia urbana do Sião, vinculada ao templo de Jerusalém. Elucidativo é o texto de Gn 31.51-54: Parece que o texto descreve um acordo de demarcação de território entre arameus (Labão) e israelitas (grupo de Jacó). A divisa se encontra no monte Gileade (na Transjordânia). Do acordo faz parte uma refeição sagrada diante da divindade; os dois partidos invocam, cada um, seu Deus, para que sejam juízes sobre o acordo – o acordo necessita de sanção divina: Jacó invoca o “Deus de Abraão” e Labão, o “Deus de Naor” (v.53). Um acréscimo posterior (que ainda falta na versão grega do Antigo Testamento, a Septuaginta) tenta harmonizar, identificando as duas divindades (“Deus dos pais deles”). Esse texto atesta que tanto entre arameus quanto entre israelitas se invocava, em ocasiões solenes, um Deus vinculado a um ancestral famoso. Além disso, podemos observar que diversos textos lêem, em vez de “El abi” (Deus de meu pai) ou “El Abraham/Yitshaq/Yaaqob” (Deus de Abraão/Isaque/Jacó), um outro nome: Em Gn 31.42,53, encontramos a expressão “Pahad Yitshaq” = “terror de Isaque” (ou “parente de Isaque”); em Gn 49.24 (cf. Sl 132.2,5), lemos “Abbir Yaaqob” = “o poderoso/forte de Jacó”; e em Gn 17.1, aparece a expressão “El Shadday” (“Deus todo-poderoso”, conforme a versão grega; significado original de Shadday, no entanto, incerto). Esses diversos epítetos (atributos) divinos representam as diferentes experiências que os ancestrais e os respectivos grupos patriarcais tiveram com o seu Deus. Bem no início, esse “Deus do pai” provavelmente ainda não era identificado com Javé, o Deus do povo de Israel – este povo, aliás, ainda não existia. Essa identificação só ocorreu posteriormente (como atestam os textos de Êx 3;6). Para a teologia do AT é importante constatar as características desse “Deus dos pais e das mães” A forma (“Deus de X”) expressa claramente que esse Deus está vinculado a uma pessoa e, por extensão, ao seu grupo familial. Os textos do ciclo dos patriarcas mostram que esse Deus se preocupa com a sobrevivência e a proteção da família (p.ex., Abraão e Sara no Egito, em Gn 12). Deus garante a continuidade da família, dando fertilidade a mulheres estéreis (promessa de um filho; p.ex., Gn 18) ou impedindo que uma criança seja sacrificada (Gn 22). Cada chefe de família (patriarca) deve ter tido a sua experiência própria com o Deus protetor de sua família (cf. as designações “parente” ou “poderoso” acima). Os grupos dos patriarcas aparentemente eram pastoralistas semi-nômades, ou seja, migravam atrás de pastagens e água para o seu rebanho. O Deus desses pastores acompanha o grupo migrante, já que está vinculado ao seu grupo (e não a uma localidade ou a um fenômeno da natureza). Deus acompanha o grupo para onde quer que vá, como se expressa na fórmula: “estarei contigo para onde quer que fores”. Neste caso, não havia necessidade de fazer peregrinações a um determinado local de culto ou santuário. O Deus dos pais não se encontra em um santuário, mas é peregrino. Por isso, os patriarcas constroem altares por onde passam. Os próprios patriarcas também realizam os ritos religiosos necessários (ainda não há necessidade de sacerdotes). Os grupos de pastores semi-nômades não têm, em geral, propriedade imóvel (de acordo com Gn 23, Abraão compra uma sepultura para Sara, pois não tem nenhum imóvel para sepultar sua esposa). Neste contexto, Deus é aquele que promete um pedaço de terra aos grupos patriarcais (p.ex., Gn 28.13). Posteriormente, a promessa de um pedaço de terra se amplia para a promessa de toda a “terra prometida” (Gn 15.18).
  • 6. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 6 O Deus dos pais é um Deus da promessa: a promessa de um filho para garantir a continuidade da família e a promessa de um pedaço de chão para garantir a sobrevivência da família. Dessa forma, esse Deus remete os olhares para um futuro melhor; o presente não é definitivo; o povo está constantemente a caminho em direção do cumprimento da promessa no futuro. A contrapartida humana a essa promessa é a fé (= confiança na promessa de Deus; cf. Gn 12.1-4; 15). Essa fé implica um constante desalojar-se (“Sai da tua terra...!” Gn 12.1). O Deus dos pais não é um Deus guerreiro nem agressivo; ele tem características “inclusivas”, pois aceita manifestações religiosas não estritamente vinculadas aos grupos patriarcais. Tradições cananéias podem, p.ex., ser incorporadas à fé dos pais. Por exemplo, a antiga saga de origem cananéia narrada em Gn 28.10-22 quer explicar por que motivos o santuário de Betel (“casa de Deus”) é um lugar sagrado. A antiga narrativa pré-israelita (Betel era um santuário cananeu antes da existência de Israel) já constatava que a pedra erguida (matseba = estela) é considerada a “morada de Deus” (Bet-El) ou, pelo menos, “porta (de entrada) dos céus” (v.17; através da escada, v.12), e também explicava por que a pedra era ungida (v.18) e por que os peregrinos deviam pagar o dízimo (v.22). Na atual configuração, é Jacó que descobre o lugar e é o Deus de Israel que se revela em Betel. Que significa isso? Ao entrar em contato com a região de Betel, os israelitas adotaram a história cananéia, pois identificaram o Deus de Betel (El Betel) com o seu próprio Deus, e adotaram o próprio lugar sagrado dos cananeus, que se tornou lugar sagrado também para os grupos patriarcais em torno de Jacó. Assim podemos concluir que a religião dos pais de Israel acolhia as tradições religiosas de outras expressões de fé quando estas não colidiam com a sua própria convicção. 4. O Deus do êxodo O acontecimento central da fé de Israel, de acordo com a sua própria confissão, é a libertação do povo escravizado no Egito. Ele se tornou o evento fundante do povo e de sua fé em Javé. Conforme o testemunho de Êx 1-2, Israel se torna povo no Egito, em meio à opressão. Conforme duas tradições mencionadas no início (eloísta e sacerdotal), o povo de Israel também conhece o Deus Javé somente por ocasião do cativeiro egípcio. Neste contexto, Javé é experimentado como o Deus da libertação. A tradição do êxodo marcou de tal forma a fé do povo que ela perpassa toda a história do povo. Oséias vê na experiência do Egito o início do relacionamento amoroso entre Javé e Israel: “Quando Israel era um menino eu o amei, e do Egito chamei meu filho” (11.1s). O anônimo profeta exílico denominado pela pesquisa de Dêutero-Isaías afirma: “Assim diz o Senhor, o que outrora preparou um caminho no mar e nas águas impetuosas [...] Não vos lembreis das coisas passadas, nem considereis as antigas. Eis que faço coisa nova [...] Eis que porei um caminho no deserto e rios, no ermo” (Is 43.16-18). O evento do êxodo serve de modelo para a esperança futura de retorno dos exilados à pátria. Até hoje, quando um pai de família judeu recita o relato da Páscoa no seio da família, está atualizando o evento passado e confessa que Deus não abandona o oprimido. A consciência de que o Deus do êxodo toma o partido dos fracos e oprimidos sempre motivou pessoas a lutar contra a injustiça e a transformar situações de injustiça através da organização popular. O Deus que se revela no evento do Sinai é um Deus que toma o partido dos fracos; não é, portanto, um Deus neutro. Esse Deus dos oprimidos é poderoso. A história das pragas mostra claramente que os representantes da religião egípcia não podem competir com os representantes de Javé; chega o momento em que os magos têm que admitir: “Isso é o dedo de Deus” (Êx 8.19). Até as forças da natureza obedecem a esse Deus quando é necessário salvar os perseguidos (Êx 14). A manifestação do poder e da glória de Deus diante da superpotência egípcia é o alvo de todos esses grandes “sinais” (Êx 14.4).
  • 7. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 7 A confissão de que Deus se manifesta em atos políticos concretos em favor das minorias oprimidas é uma confissão aberta para o futuro; isto é, ela pode ser repetida por gerações futuras em situações semelhantes de opressão. Essa confissão também teve, em Israel, conseqüências éticas, como mostra a legislação, em especial a introdução ao Decálogo (Dez Mandamentos): “Eu sou Javé (o Senhor), teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão” (Êx 20.2). Essa introdução quer alertar para o fato de que a obediência aos mandamentos representa a garantia da preservação da liberdade concedida por Deus. A libertação dos escravos em Israel, ao sétimo ano de servidão, é fundamentada pela libertação da escravidão no Egito (Dt 15.12-15). Da mesma forma, o descanso no sétimo dia é motivado, na versão de Dt 5.14-15, pelo fato de Israel ter sido servo no Egito. De acordo com o Sl 114.1s, o povo de Israel entende que, no evento do êxodo, foi chamado por Javé para ser seu povo: “Quando Israel saiu do Egito e a casa de Jacó do meio de um povo de fala estranha, Judá se tornou o seu santuário e Israel o seu domínio” (cf. Os 11). Essa consciência de povo eleito acompanhará o povo durante toda a sua história. O já mencionado profeta Dêutero- Isaías utiliza um verbo do âmbito jurídico, “resgatar, remir, redimir”, usado na “recompra” de um membro da família escravizado, para designar a libertação do povo do Egito e a libertação futura do cativeiro babilônico: “Não temas, porque eu te remi!” (Is 43.1; 44.6,24: Deus é o “redentor”). 5. O Deus do Sinai O êxodo foi a ação divina decisiva para a fé israelita; o Sinai tornou-se a revelação privilegiada da vontade de Deus. Na atual configuração do Pentateuco, a ação libertadora de Deus (Êx 2-15) antecede a revelação da vontade divina em forma de Lei (Êx 19ss). A atuação graciosa de Deus precede, portanto, a exigência da Lei. A Lei pode ser entendida, então, como resposta ou conseqüência de uma relação ou comunhão entre o povo de Israel e Deus, iniciada por este (cf. a introdução ao Decálogo mencionada acima). Constatam-se três temas na perícope do Sinai (Êx 19 a Nm 10): – a teofania, ou seja, a revelação de Deus (Êx 19) – a aliança com o povo (Êx 24; 34) – as leis (Êx 20-23; 25-30; 35-40; Lv; Nm 1-10) Existe uma certa lógica na seqüência destes três aspectos: Javé se revela no monte sagrado, faz uma aliança com seu povo e dá as leis ao povo para fortalecer e preservar essa aliança. O cumprimento das leis é a resposta do povo à atuação libertadora e à solicitude de Deus. No entanto, as leis nem sempre fizeram parte da tradição do Sinai. Encontramos, no bloco do Sinai, diversos códigos de leis destacáveis do seu contexto (Decálogo, Código da Aliança, Lei Sacerdotal, Lei da Santidade). Além disso, conhecemos uma revelação no Horebe/Sinai sem nenhuma legislação (Êx 3). É quase consenso, atualmente, que as Leis do bloco do Sinai provêm de diversas épocas, tendo sido, por ocasião do surgimento do Pentateuco, colocadas no lugar privilegiado da revelação divina no Sinai, uma vez que todas as leis eram consideradas explicitação dessa vontade divina manifestada no Sinai. (As leis não serão apresentadas neste capítulo.) Inicio com a teofania de Êx 19. O cerne do relato encontra-se em 19.16-20. O texto não é coeso: menciona-se “Javé” (18,20) ao lado de “Elohim” (17,19); além disso, aparecem duas concepções distintas do modo como ocorreu a revelação.
  • 8. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 8 A primeira tradição se encontra nos v.18 e 20; faz uso de Javé (Senhor). Os fenômenos que acompanham a teofania são a “fumaça” no monte e o “fogo” no qual o Senhor desce; além disso, há um “tremor da montanha” (a LXX fala em “tremor do povo”). De acordo com essa primeira tradição, Deus parece manifestar-se em um fenômeno vulcânico. Pergunta-se, então, se o Sinai teria sido originalmente um vulcão. Esta visão é compartilhada por textos como Êx 24.17, que menciona fogo no cume do monte, e Dt 4.11s; 5.23s; 9.15, que falam que o monte queima em fogo e que há nuvens e escuridão. Também somos lembrados da “coluna de fogo” e da “coluna de nuvens” que acompanham o povo através do deserto (Êx 13.21s; 14.19,24) – seriam elas um reflexo de fenômenos vulcânicos vinculados ao Sinai? Também a história da peregrinação de Elias ao Horebe (1 Rs 19) parece pressupor fenômenos vulcânicos: o monte se fendia, tremia e havia fogo nele. Em todos esses casos, no entanto, Javé “desce” sobre o monte. Portanto, ele não reside no monte; somente se manifesta nele. A segunda tradição se encontra nos v.16-17,19; usa Elohim e retrata aparentemente uma tempestade: relâmpagos, trovões e nuvens pesadas (v.16). O trovão parece estar sendo comparado com o som de trombetas (chifres de carneiro) que convidava (posteriormente) para o culto (usa-se o mesmo termo para som da trombeta e trovão: qol). Relâmpagos e trovões são formas conhecidas da manifestação divina nas religiões orientais (p.ex., Baal Hadade, o deus da tempestade). Provavelmente a versão vulcânica deve ser considerada a mais antiga, porque é menos conhecida; a Palestina não conhece vulcões, mas conhece tempestades. Neste caso, a fé javista teria adotado, na Palestina, características de outras religiões para expressar a sua experiência com a manifestação divina. Na teofania o povo experimenta Deus como mysterium tremendum. O povo está apavorado diante da manifestação desse Deus. Este aspecto, presente em quase todas as experiências do sagrado, não é muito destacado nos textos bíblicos fora do complexo do Sinai. Além de apavorante, esse Deus parece ter vínculos especiais com um monte sagrado, onde não (mais) reside, mas onde se revela em meio a manifestações da natureza. Mas a teofania não é um fim em si mesma; Deus se manifesta com um propósito: a teofania inaugura ou ratifica uma relação entre Deus e o povo. Ex 19 exige, portanto, uma continuação. Essa continuação se encontra provavelmente em Êx 24.1-11, o relato da aliança. Também Êx 24.1-11 é um texto que reúne duas tradições. A ordem do v.1 (“Sobe ao...”) somente se cumpre no v.9 (“E subiram...”). O relato que inicia nos v.1-2 continua, de fato, somente nos v. 9-11: este trecho narra um acontecimento em cima do monte (primeira tradição). Os v. 3-8, por outro lado, narram um acontecimento ao pé do monte (segunda tradição). A primeira tradição parece conservar uma memória muito antiga, pois Moisés ainda não é o mediador exclusivo. Com ele estão os anciãos como representantes do povo. Um aspecto bem antigo nessa tradição parece ser a afirmação, no v.10, de que os anciãos “viram o Deus de Israel”. (De acordo com Êx 33.20, quem vê Deus tem que morrer; este último deve ser, portanto, um texto teologicamente mais refletido.) Na teofania de Êx 19, Deus não era visível; somente os fenômenos que acompanhavam a sua manifestação podiam ser vistos. Em Êx 24, ele aparentemente é visível; no entanto, ele não é descrito. Descreve-se somente o chão que Deus pisa: ele é azul e límpido como safira, ou seja, ele é um reflexo no céu. Também o v.11 contém uma tradição bastante antiga. A visão de Deus não é o objetivo último; o objetivo é a “ceia” em comum: “eles comeram e beberam”. Os anciãos viram a Deus e comeram na sua presença. Essa refeição sagrada, na qual se crê que Deus esteja presente, tem por objetivo formar ou fortalecer a comunhão com Deus e entre os participantes. O Deus transcendente e “tremendo” se condescende e se digna a participar de uma refeição terrena, ao lado de seus fiéis.
  • 9. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 9 Essa é a forma mais forte da comunhão com a divindade: sua misteriosa e muda presença durante a refeição em um lugar sagrado. Num relato mais recente, presente nos v.3-8 (segunda tradição), tudo transcorre ao pé do monte. Aqui se fala de uma aliança que ocorre dentro de um ritual que inclui a leitura da Lei e um comprometimento do povo a essa Lei. Moisés é aqui o mediador. A Lei parece existir já de forma escrita (v.7: “livro da aliança”). A moldura narrativa incorpora duas tradições: o sacrifício (v.4s) e o ritual de sangue (v. 6,8). A aspersão do povo com o sangue de um sacrifício, assim como é relatado aqui, é única no AT. (Como analogia pode ser considerado o ritual de investidura do sacerdote, conforme Êx 29.20s; Lv 8.23s.) Após o sacrifício, realizado por representantes (“jovens”) do povo, Moisés asperge a metade do sangue no altar – que simboliza a presença de Deus – e a outra metade sobre o povo. (Nos sacrifícios geralmente todo o sangue – sede da vida – é derramado no altar, simbolizando a devolução da vida a Deus!) O sangue representa, neste ritual, o elo de união entre Deus e o povo. A comunhão é ratificada pelo que há de mais precioso: o sangue. Esse ritual podia facilmente ser interpretado como um ritual mágico que garante a salvação, a presença de Deus ou a sobrevivência. O texto, no entanto, evita que o ritual seja compreendido assim. Pois o povo deve comprometer-se, na celebração, a cumprir as leis estabelecidas no “livro da aliança”. (Por este motivo, a coletânia Êx 20.22-23.19 é designada, na pesquisa, de Código da Aliança!) Conclusão: O Deus dos patriarcas é um Deus peregrino, que acompanha as pessoas e lhes promete um futuro melhor. O Deus do êxodo é o Deus da libertação, que interfere na história política e toma partido pelos que sofrem a opressão; também é um Deus que acompanha o povo, guiando-o pelo deserto até a terra da promessa. O Deus do Sinai é um Deus que se vincula a um monte, mesmo que as tradições não mais o entendam como morando nesse monte. Em todo caso, ele aí se manifesta, e as pessoas sobem ao monte para ter comunhão com ele. Dois outros textos (antigos) pressupõem que o Deus de Israel está vinculado ao Sinai. Trata-se de Jz 5.5; Sl 68.9 (Almeida/SBB: Sl 68.8), que contêm uma estranha expressão para caracterizar Javé: zeh sinai – “aquele/este/o do Sinai!” As tradições mais antigas do Sinai falam de um Deus que se revela no monte santo e de uma comunhão com esse Deus através do comer e beber em local sagrado. Essa comunhão com Deus pode ser chamada de “aliança” e pode ser fortalecida ou confirmada através de um ritual de sangue e um compromisso do povo. Esta noção provavelmente deu origem ao processo de inserir no contexto do Sinai grande parte das leis de Israel, já que eram tendidas como expressão da vontade divina, à qual o povo se compromete. Javé se revela em fenômenos naturais, mas não é identificado com nenhum deles. Os fenômenos são conseqüência de sua revelação. O Deus que faz “tremer” é, no entanto, um Deus que busca a comunhão com as pessoas. 6. Era antigamente Javé o Deus dos midianitas? Dada a probabilidade de o Deus Javé ter sido originalmente o Deus de um monte santo em território dos midianitas ou em seu âmbito de peregrinação (cf. Êx 3), existe a possibilidade de Javé ter sido o Deus dos midianitas antes de ser o Deus de Israel. Essa hipótese não pode ser totalmente comprovada, mas também não pode ser descartada definitivamente, pois existem alguns indícios textuais que apontam nessa direção. Os textos mais importantes são Êx 18.1-12, Êx 3 e Êx 4.24-26. Conforme Êx 18.1-12, quem oferece o sacrifício de agradecimento a Javé é Jetro e não, como se esperaria, Moisés, o líder vocacionado por Javé, nem Arão, o ancestral dos sacerdotes. O sacerdote Jetro é, portanto, o anfitrião nessa celebração do monte Sinai; por isso, Javé já deve ter sido o Deus de Jetro antes dessa ocasião. De acordo com Êx 3, Moisés é vocacionado “no monte de Deus”, que se localiza em território midianita, enquanto pastoreava o rebanho de seu sogro Jetro. Também o obscuro texto Êx 4.24-26 pode ser entendido como indício de que Javé era, na origem, o Deus dos
  • 10. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 10 midianitas. Quando Javé ataca Moisés, é Zípora, sua esposa midianita, que toma a iniciativa para salvá-lo, certamente porque sabia como lidar com Javé, pois era o seu Deus. 7. O Deus da conquista e da época tribal Este capítulo vai tentar abordar alguns textos teologicamente bastante controvertidos por causa da violência que retratam. Muitos textos dos livros de Js e Jz causam espanto e horror por causa dos massacres realizados em nome de Deus. Muitas pessoas, na antiguidade e na atualidade, já perderam a sua fé por causa desses capítulos. Geralmente esses capítulos são evitados nos compêndios de teologia do AT bem como nos estudos bíblicos e nas pregações. Para melhor compreensão desses textos “violentos” devem ser destacadas, em especial, duas concepções: o Deus guerreiro e o Deus “nacional”. 7.1. Javé, o Deus guerreiro. A tomada da terra é relatada no livro de Josué como tendo sido uma grande conquista militar do povo de Israel. Cidades grandes e importantes como Jericó, Ai e Hazor são totalmente destruídas (Js 6-7;11), uma forte coalizão de reis cananeus é derrotada (Jz 4-5). Todas essas maravilhosas conquistas e vitórias têm, no fundo, um motivo teológico: em última análise, foi Javé que conquistou a terra prometida e a deu ao seu povo eleito. A terra não foi conquistada pelo povo, mas lhe foi dada de presente. Essa é a também a confissão de Dt 26.9: a terra prometida é dádiva de Deus. Js 2.24 confirma essa confissão: “Certamente Javé nos deu toda esta terra nas nossas mãos, e todos os moradores estão desmaiados diante de vós.” Esse é o motivo teológico por que toda a “conquista” (ou dádiva) é descrita como se fosse uma seqüência de milagres: Jericó cai ao mero som das trombetas (Js 6), sol e lua param no céu até que se consuma a vitória israelita (Js 10), etc. A noção por trás de grande parte dessas histórias é a noção de que o Deus Javé é um Deus guerreiro, que peleja pelo seu povo. Um texto bastante antigo (Js 10.14) afirma: “Não houve dia semelhante a este, nem antes nem depois dele, tendo Javé, assim, atendido a voz de um homem; porque Javé pelejou por Israel!” Esta noção do Javé guerreiro corresponde ao nome do povo: Israel (Yisra'el) significa “El (Deus) peleja” (ou, então, “El governa”). As guerras travadas por Israel são guerras de Javé, muitas vezes também denominadas “guerras santas”. Nessas guerras não é o povo que luta por sua fé ou pelo seu Deus, mas é o próprio Deus que luta pelo seu povo. As características da guerra santa são: o toque de trombeta (Js 6.20; Jz 7.18) (= a voz de Javé?); sacrifícios a Javé (1 Sm 7.9); consultas a Javé (Jz 20.23-28); pureza ritual do acampamento (Dt 23.9-14); abstinência sexual (2 Sm 11.6-11); jejum (1 Sm 14.24; a força provém somente de Javé); os medrosos não participam da batalha (Jz 7.3); a vitória vem de Javé (Jz 7; por isso só poucos soldados são necessários); o pavor de Javé confunde os inimigos (Js 2.9; Jz 7.21s); Javé é quem peleja, as tribos vêm em seu auxílio (Jz 5.23); os despojos de guerra pertencem a Javé (= são destruídos: Js 7)
  • 11. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 11 O texto de Jz 7, a batalha de Gideão contra os midianitas, é um ótimo exemplo dessa noção de guerra de Javé: o grande exército é reduzido primeiramente de 32.000 para 10.000 (22.000 medrosos voltaram para casa), depois para 300 (que bebiam água levando a mão à boca). Este número foi considerado suficiente. O ataque se dá enquanto ainda é noite. Mas, na verdade, não existe nenhum combate, pois o barulho das trombetas e da quebradeira da cerâmica infunde tanto pavor no inimigo, que este se destrói a si mesmo. Nas palavras do texto: “O Senhor entregou o arraial dos midianitas nas vossas mãos” (v.15). Os soldados apenas vêm em auxílio a Deus (fazendo barulho e perseguindo os midianitas fugitivos). A característica mais marcante da guerra santa é o chamado “anátema” (haram). É o aspecto mais escandaloso e cruel da guerra. Como Deus é considerado o comandante do exército na batalha e o responsável pela vitória, é a ele que pertence todo o despojo; tudo deve, portanto, ser devotado a ele (= destruído), inclusive as vidas humanas. De acordo com a narrativa de Js 6.17-25, todos os habitantes de Jericó devem, de acordo com essa noção, ser exterminados (com exceção da família de Raabe). Todos os despojos materiais (prata, ouro, roupas e armas) devem ser separados para o “tesouro do Senhor” (v.19). Um eventual desrespeito à lei do anátema terá conseqüências fatais, como se descreve em Js 7. 1-26: um israelita apropriou-se indevidamente de parte dos despojos da batalha por Jericó (v.21) e causou, dessa forma, uma derrota militar ao exército de Israel (v.2-5). O infrator e toda a sua família são exterminados. A noção de “guerra santa” não é exclusividade de Israel. Outras nações do antigo Oriente a conheciam. Também aí os deuses “lutavam” nas batalhas em favor de seus seguidores. Os generais de outras nações também dedicavam suas vitórias a seus respectivos deuses. O faraó Ramsés III, por exemplo, afirma que unicamente Amun-Re é responsável por suas vitórias. O rei moabita Mesha atribui sua vitória ao Deus Kamosh. Israel não é diferente de seu entorno. É, por assim dizer, filho de seu tempo e de sua geografia. Portanto, a guerra santa não pode ser considerada, em Israel, como expressão típica da fé em Javé. Específico de Israel talvez sejam dois elementos vinculados à guerra de Javé: o líder “carismático” e a arca. O líder carismático (na Bíblia denominado “juiz”) é um líder que nasce na emergência, quando o povo está sendo ameaçado. Sente-se vocacionado por Deus e cheio de seu Espírito (por isso “carismático”); reúne um exército dentre os homens aptos dos clãs e das famílias israelitas; prepara e motiva esse exército improvisado para a batalha. Exemplos desse tipo de liderança militar são Gideão, Jefté, Sansão, Débora e Baraque, Samuel e, finalmente, Saul. O vocacionado tem o “espírito” de Javé (1 Sm 11.5s); após a batalha, o líder e os soldados voltam a seus afazeres costumeiros. O líder carismático desaparece com o advento da monarquia. A arca da aliança aparece no contexto da história do povo que migra no deserto: Nm 10.33-36. Ela representa a presença protetora de Deus, em especial nas batalhas. Com a arca, o Javé guerreiro marcha para a batalha. Na origem, a arca talvez tenha sido apenas um recipiente para guardar objetos sagrados. Talvez por esse motivo ela era tida como poderoso paládio nas batalhas. Conforme a tradição, estava depositada, por um tempo, no santuário de Silo e era levada à batalha quando necessário (1 Sm 4-6). Após uma derrota contra os filisteus, a arca foi levada à Filistéia, onde fez enormes estragos. Davi traz a arca a Jerusalém para valorizar a sua nova capital com um símbolo sagrado (especialmente nas tribos de Efraim e Manassés). Na época da monarquia, a arca se encontra no santo dos santos do templo de Jerusalém até ser destruída juntamente com o mesmo, em 586. Com a arca possivelmente se relaciona o título Javé dos exércitos (Yahweh Tsebaot;1 Sm 4.4; 2 Sm 6.2 ). Javé pode ser considerado general do exército humano/israelita (Nm 10.35s; 1 Sm 17.45). Mais tarde, no entanto, foi também entendido como o Deus das milícias celestiais (Js 4.13-15; Sl 104.21; 148.2). Com a arca também está relacionada outra expressão. De acordo com 1 Sm 4.4; 2
  • 12. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 12 Sm 6.2, Javé está entronizado sobre/entre os querubins. Talvez a arca tenha sido imaginada como o pedestal de um trono invisível, sobre o qual se assentava Deus. No antigo Oriente, figuras de querubins (seres alados com cabeças humanas e corpos de animais) formavam com freqüência as bases e os braços dos tronos reais. De acordo com Êx 25.17-22, os querubins fazem parte da tampa da arca (transformado em “propiciatório”- kapporet pelo Escrito Sacerdotal; Lv 16). A noção do Deus guerreiro e da guerra santa é extremamente problemática para os cristãos: como pode Deus ser violento, vingativo e exigir a morte dos vencidos? A maioria dos cristãos (e também dos judeus) não pode admitir um Deus como este! Por causa desses textos violentos muitas pessoas – cristãs e não-cristãs – rejeitaram o Antigo Testamento e o seu Deus. O uso inadequado desses textos fez com que muitos colonizadores cristãos, imbuídos do espírito da guerra santa, legitimassem o massacre de tribos aborígenes. Como lidar com essa teologia? Diversas abordagens buscam explicar – e, assim, pelo menos amenizar – a imagem desse Deus “violento”: a) Explicação histórica: na verdade, os eventos não aconteceram exatamente como são narrados nos textos; na realidade não houve tantas conquistas e extermínios; os exageros devem-se à tendência de engrandecer os feitos do povo. Mas, ainda que a realidade histórica tenha sido menos traumática, os autores dos relatos não deixam de admitir que Deus, em si, permitiria o derramamento de sangue. b) Explicação psicológica: a partir dos pedidos de vingança contidos nos Salmos, procura-se ver nos textos violentos um tipo de vazão emocional. Quem ora a Deus pedindo vingança dos inimigos desiste de fazer justiça com as próprias mãos e despeja diante de Deus toda a sua raiva. Mas será que todos os relatos são apenas expressão de emoções contidas? Será que não houve, de fato, também derramamento de sangue – mesmo que não nas dimensões relatadas – posteriormente justificado como vontade de Deus? c) Israel é filho de seu tempo: apesar de ser um povo com características religiosas próprias, Israel também compartilhava de um imaginário oriental, que, às vezes, adotou sem muita reflexão. A guerra santa é um desses conceitos adotados. Assim, não precisamos comungar esse conceito, pois ele não é fruto da fé de Israel. A reflexão teológica futura leva, então, o povo a mudar esse conceito. De fato, o profeta Amós ousa contrariar a expectativa corrente do povo. De acordo com Am 5.20, o dia de Javé era entendido pelo povo como o dia em que Israel se vingaria de seus inimigos. Para Amós, no entanto, o dia de Javé será um dia de trevas para o próprio Israel. Por ser um Deus da justiça, Javé pode voltar-se contra o próprio povo. Também é verdade que Israel reflete sobre a sua relação com os seus inimigos a partir de sua fé e teologia. No final do Império Persa, a proposta do autor do livro de Jonas a respeito dos inimigos de Israel é diametralmente oposta à teologia oficial: Deus quer que até mesmo Nínive, a cidade inimiga e assassina por excelência, seja poupada. 7.2 Javé, o Deus nacional de Israel Uma segunda noção muito presente já na época anterior à monarquia é a de que Israel é o povo de Javé (Jz 5.13) e Javé é o Deus de Israel (Jz 5.3). Os inimigos do povo são, portanto, também os inimigos de Javé (Jz 5.31). Também esta noção não é exclusividade de Israel. Conforme Nm 21.29, por exemplo, Moabe é povo do Deus Kamosh. Essa vinculação de um povo com seu Deus (ou vice versa) culmina, na Assíria, com o uso de um mesmo termo para designar três (ou quatro) grandezas distintas: Assur/Ashur pode ser o nome do povo, do território, (da capital) e do Deus desse povo ou território. Esses três elementos – povo, país e Deus – formam também uma unidade na consciência primitiva de Israel.
  • 13. Teologia do Antigo Testamento: As origens da fé em Javé, o Deus de Israel 13 De acordo com Rt 1.15s, é normal que, quando se muda para um outro país, adora-se também um outro Deus: “o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus” (v.16). O texto de 2 Rs 5.17 relata um fato estranho. Após ter sido curado da lepra pelo “homem de Deus”, Eliseu, Naamã diz: “Seja dado ao teu servo uma carga de terra de dois burros; pois o teu servo não mais oferecerá holocaustos e sacrifícios a outros deuses senão a Javé.” Para poder oferecer sacrifícios a Javé no estrangeiro, deve-se ter, portanto, na opinião corrente da época, um pouco da terra (território) sobre a qual o respectivo Deus é responsável. Também Gn 4.14 expressa algo semelhante: ao ser expulso da terra cultivada, Caim está longe da presença de Javé. A visão de que um Deus está vinculado ao território do respectivo povo que o adora é, portanto, comum ao antigo Oriente. Não é uma contribuição específica da fé de Israel. O texto de Dt 32.8s mostra como Israel lida com essa noção! O Senhor do universo – chamado Elyon, “altíssimo” - divide a humanidade em povos, colocando os limites dos seus territórios; a cada povo corresponde um “filho de El” (leia-se, no v. 8, “filhos de El/Deus”, de acordo com LXX, em vez de “filhos de Israel”; cf. Bíblia de Jerusalém); ou seja, cada povo tem o seu Deus. A Javé cabe o povo de Jacó/Israel. Evidentemente, para Israel, Elyon, o Deus supremo, é identificado com Javé, seu próprio Deus; os filhos de El são degradados a seres celestiais (o texto massorético evita o elemento mítico) a serviço de Javé. O nosso texto ganha, assim, um novo sentido: Javé, o Deus supremo, dá aos “filhos de El” os outros povos, reservando para si o povo de Israel como sua propriedade. Dessa forma, Javé se torna Deus sobre as outras divindades; e Israel torna-se o povo preferido de Javé. Essa relação estreita pode ser designada de eleição. A noção salienta que a ação divina precede qualquer ação humana. Locus teológico privilegiado da noção de eleição é Dt 7.6-8. Outro termo utilizado para designar esta relação especial é aliança.