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FERREIRA GULLAR: POEMAS
Fotos de Ferreira Gullar: por Lúcia Nemer, Suplemento Literário do Minas Gerais
PROFa. INESSACARRASCOPEREYRA
NemAí
Indiferente
ao suposto prestígioliterário
e ao trabalho
do poeta
à difícil faina
a que se entrega para
inventar o dizível,
sobre à mesa
o gatinho
se espreguiça
e deita-se e
adormece
em cima do poema
Na Vertigemdo Dia
Enquanto te enterravamno cemitériojudeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindoainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravamalegremente
que não dependemde nós
Uma Corola
Em algumlugar
Esplende uma corola
De cor vermelho-queimado
metálica
não está em nenhumjardim
em nenhumjarro
da sala
ou na janela
não cheira
não atraia abelhas
não murchará
apenas fulge
em alguma partealguma
Anoitecer em Outubro
A noite cai, chove manso lá fora
meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira
Numdia qualquer
não existirá mais
nenhumde nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuvaque eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier
Poemas Neoconcretos I
Não há vagas
O preçodo feijão não
cabeno poema.O preço
do arroz
não cabeno poema.
não cabemno poemao gás
a luzo telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionáriopúblico
comseu salário de fome
suavidafechada
emarquivos.
Comonãocabe no poema
o operário
que esmerilha seu dia de
Nas oficinasde aço e carvão
 porque o poema,senhores,
estáfechado:
"não há vagas"
Só cabeno poema
o homemsemestômago
a mulherde nuvens
a frutasem preço
O poema,senhores,
Não fede
nemcheira.
No Corpo
De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Juntocomo jornal velho pelos ares
O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apeloda noite
Agora são apenasesta
contração (esteclarão)
do maxilar dentro do rosto.
A poesia é o presente.
PoemaBrasileiro
No Piauí de cada 100crianças que nascem
78 morremantes de completar8 anosde idade
No Piauí
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Madrugada
Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite
a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido emclasses
Meupai
meupaifoi
ao Riose tratarde
umcâncer(que
o mataria)mas
perdeuos óculos
na viagem
quandolhelevei
os óculosnovos
compradosna Ótica
Fluminenseele
examinouo estojocom
o nomeda lojadobrou
a nota decompraguardou-a
no bolsoe falou:
querover
agoraqualé o
sacanaquevaidizer
queeununcaestive
no Riode Janeiro
Cantigaparanãomorrer
Quandovocêforse embora,
moçabrancacomoa neve,
meleve.
Seacasovocênão possa
mecarregarpelamão,
meninabrancade neve,
meleveno coração.
Seno coraçãonão possa
poracasomelevar,
moçade sonhoe de neve,
meleveno seulembrar.
E seaí tambémnãopossa
portantacoisaqueleve
já vivaemseupensamento, http://www.youtube.com/watch?v=ZP-vDcVVDyI
meninabrancade neve, (com Fagner)
meleveno esquecimento.
TRADUZIR-SE
Umapartede mim
é todomundo:
outraparteé ninguém:
fundosemfundo.
umapartede mim
é multidão:
outraparteestranheza
e solidão.
Umapartede mim
pesa,pondera:
outraparte
delira.
Umapartede mim
é permanente:
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sesabede repente.
Umapartede mim
é só vertigem:
outraparte,
linguagem.
Traduzir-seuma parte
na outraparte
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  • 1. FERREIRA GULLAR: POEMAS Fotos de Ferreira Gullar: por Lúcia Nemer, Suplemento Literário do Minas Gerais PROFa. INESSACARRASCOPEREYRA
  • 2.
  • 3. NemAí Indiferente ao suposto prestígioliterário e ao trabalho do poeta à difícil faina a que se entrega para inventar o dizível, sobre à mesa o gatinho se espreguiça e deita-se e adormece em cima do poema
  • 4.
  • 5. Na Vertigemdo Dia Enquanto te enterravamno cemitériojudeu do Caju (e o clarão de teu olhar soterrado resistindoainda) o táxi corria comigo à borda da Lagoa na direção de Botafogo as pedras e as nuvens e as árvores no vento mostravamalegremente que não dependemde nós
  • 6.
  • 7. Uma Corola Em algumlugar Esplende uma corola De cor vermelho-queimado metálica não está em nenhumjardim em nenhumjarro da sala ou na janela não cheira não atraia abelhas não murchará apenas fulge em alguma partealguma
  • 8.
  • 9. Anoitecer em Outubro A noite cai, chove manso lá fora meu gato dorme enrodilhado na cadeira Numdia qualquer não existirá mais nenhumde nós dois para ouvir nesta sala a chuvaque eventualmente caia sobre as calçadas da rua Duvivier
  • 11.
  • 12. Não há vagas O preçodo feijão não cabeno poema.O preço do arroz não cabeno poema. não cabemno poemao gás a luzo telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão O funcionáriopúblico comseu salário de fome suavidafechada emarquivos. Comonãocabe no poema o operário que esmerilha seu dia de Nas oficinasde aço e carvão  porque o poema,senhores, estáfechado: "não há vagas" Só cabeno poema o homemsemestômago a mulherde nuvens a frutasem preço O poema,senhores, Não fede nemcheira.
  • 13.
  • 14. No Corpo De que vale tentar reconstruir com palavras O que o verão levou Entre nuvens e risos Juntocomo jornal velho pelos ares O sonho na boca, o incêndio na cama, o apeloda noite Agora são apenasesta contração (esteclarão) do maxilar dentro do rosto. A poesia é o presente.
  • 15.
  • 16. PoemaBrasileiro No Piauí de cada 100crianças que nascem 78 morremantes de completar8 anosde idade No Piauí de cada 100crianças que nascem 78 morremantes de completar 8 anosde idade No Piauí de cada 100crianças que nascem 78 morrem antes de completar 8 anos de idade antes de completar 8 anos de idade antes de completar 8 anos de idade antes de completar 8 anos de idade antes de completar 8 anos de idade
  • 17.
  • 18. Madrugada Do fundo de meu quarto, do fundo de meu corpo clandestino ouço (não vejo) ouço crescer no osso e no músculo da noite a noite a noite ocidental obscenamente acesa sobre meu país dividido emclasses
  • 19.
  • 20. Meupai meupaifoi ao Riose tratarde umcâncer(que o mataria)mas perdeuos óculos na viagem quandolhelevei os óculosnovos compradosna Ótica Fluminenseele examinouo estojocom o nomeda lojadobrou a nota decompraguardou-a no bolsoe falou: querover agoraqualé o sacanaquevaidizer queeununcaestive no Riode Janeiro
  • 21.
  • 22. Cantigaparanãomorrer Quandovocêforse embora, moçabrancacomoa neve, meleve. Seacasovocênão possa mecarregarpelamão, meninabrancade neve, meleveno coração. Seno coraçãonão possa poracasomelevar, moçade sonhoe de neve, meleveno seulembrar. E seaí tambémnãopossa portantacoisaqueleve já vivaemseupensamento, http://www.youtube.com/watch?v=ZP-vDcVVDyI meninabrancade neve, (com Fagner) meleveno esquecimento.
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  • 24. TRADUZIR-SE Umapartede mim é todomundo: outraparteé ninguém: fundosemfundo. umapartede mim é multidão: outraparteestranheza e solidão. Umapartede mim pesa,pondera: outraparte delira. Umapartede mim é permanente: outraparte sesabede repente. Umapartede mim é só vertigem: outraparte, linguagem. Traduzir-seuma parte na outraparte  queé umaquestão de vidaou morte  seráarte?