O principio fundamental_da_dignidade_humana_e_sua_concretizacao_judicial
O fundamento jurídico do dano moral: dignidade ou punição
1. O FUNDAMENTO JURÍDICO DO DANO MORAL: PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA OU PUNITIVE DAMAGES?
THE JURIDICAL FOUNDATIONN OF MORAL DAMAGE:
PRINCIPLE OF DIGNITY OF THE HUMAN BEING OR PUNITIVE
DAMAGES?
Adriano Stanley Rocha Souza1
Resumo
A Constituição da República de 1988 reconheceu a existência do dano moral, determinando,
em seu artigo 5º, V, que “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além
de indenização por dano material, moral ou à imagem”. Esta tutela acaba por prestigiar a
proteção efetiva ao princípio constitucional da dignidade de pessoa humana, consagrada no
artigo 1º desta mesma constituição.
Portanto, as indenizações por dano moral em nosso país, deveriam se pautar pela proteção a
este princípio. Entretanto, o que se percebe é uma vergonhosa situação: os nossos tribunais
têm copiado o sistema anglo-saxão de responsabilidade por dano moral, baseado na técnica
dos punitive damages. Técnica esta em que, o que se busca, é a punição para o ofensor, e não
a reparação de um direito de personalidade ofendido. Além de não guardar qualquer relação
com a escola romano-germânica de onde se origina o nosso direito.
O presente trabalho tem, portanto, a finalidade de apontar as conseqüências funestas em
adotarmos aquela técnica em nossa realidade jurídica.
Palavras chave: dano moral, dignidade da pessoa humana, punitive damages
Introdução
Antes, o assunto era restrito a uma pequena parte da doutrina que defendia o seu
cabimento. Após a promulgação da Constituição da República de 1988 (que reconheceu a sua
procedência, pacificando o assunto em nossos tribunais superiores), as indenizações por danos
morais se tornaram corriqueiras em nosso país, levantando, inclusive, sustentações veementes
1
Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1996), Mestrado em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1999), Doutorado em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (2003) e Pós-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do
Paraná. Cursou disciplinas isoladas no Programa de Doutorado da Universidad de Deusto, em Bilbao
(Espanha). Atualmente é professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
colaborador da Escola Superior de Advocacia - OAB/MG. O professor é orientador de diversos projetos de
iniciação científica da PUCMINAS e coordenador do projeto de extensão, naquela mesma instituição,
denominado "Cidadania no Beira Linha". Autor de vários artigos jurídicos, capítulos de livros e dos Livros
"Direito das Coisas" (manual integrante da Coleção Direito Civil da Editora Del Rey), e "Tutelas de Urgência
na Reparação do Dano Moral". Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil, atuando
principalmente nos seguintes temas: direito civil, propriedade, responsabilidade civil, dano moral e meio
ambiente.
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2. (e não menos corretas) de que a sociedade brasileira alimenta uma verdadeira “indústria do
dano moral”.
De fato, passamos de um extremo ao outro: saímos de uma situação de negação
absoluta de reparação do dano moral, que tinha como seu principal argumento, o fato de que a
moral não tem valor pecuniário (sendo absolutamente estéril, portanto, buscar qualquer tipo
de reparação econômica), até chegarmos ao reconhecimento de que a moral pode ser objeto,
sim, de reparação, uma vez que se trata de um bem jurídico e, como tal, merece ser reparado
toda vez que agredido.
Ao se eleger o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como um dos fundamentos
da República, o constituinte não poderia deixar de reconhecer o cabimento à reparação pelo
dano moral. E assim o fez expressamente, conforme disposto no artigo 5º, V, em que se lê:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo,
além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
O presente trabalho tem por finalidade discutir o fundamento jurídico para a
reparação do dano moral no Brasil. Demonstraremos que, no que tange à reparação do dano
moral, o judiciário brasileiro vem negando as suas raízes históricas. Abandonou o sistema
romano-germânico (que constitui a nossa história na construção de nosso direito) e sem
qualquer embasamento jurídico ou filosófico, mas simplesmente guiado, talvez, pelo
american way of life, vem utilizando-se do sistema anglo-saxão denominado punitive
damages para fundamentar as reparações por danos morais.
Demonstraremos que, tal opção judicante, é que vem fomentando a chamada
“indústria do dano moral”, além de trazer um malefício ainda maior: ao se adotar técnica
totalmente desconhecida de nossa tradição jurídica, as sentenças que fundamentam as
reparações por danos morais são, em sua esmagadora maioria, desprovidas de critérios
lógicos. O que tem levado o nosso Poder Judiciário a situações verdadeiramente
constrangedoras, vexatórias e paradoxais, com condenações completamente díspares para
situações praticamente idênticas.
Começaremos nosso estudo conceituando o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana e o instituto dos Punitive Damages, que constituem o cerne de toda a questão que
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3. será aqui abordada, para posteriormente demonstrarmos o erro em se adotar este último nas
reparações por danos morais.
1. Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
1.1. O conceito filosófico de dignidade
Conforme já destacado por nós na introdução deste trabalho, o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana constitui um dos fundamentos da República brasileira,
conforme expressamente disposto no artigo 1º, III de nossa Constituição. Mas enfim: o que é
dignidade?
A professora MARIA CELINA BODIN DE MORAES, em sua obra Danos à Pessoa
Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais 2 , apresenta-nos um profundo
estudo sobre o conceito filosófico do que seja dignidade. Como esta obra não tem por fim o
estudo do que seja dignidade, não nos deteremos por muito tempo neste ponto. Trataremos
apenas de conceituá-la, já que não poderíamos tratar sobre a dignidade da pessoa humana
como fundamento do dano moral sem conceituar o que seja dignidade.
Informa-nos MORAES3 que “a raiz etimológica da palavra ‘dignidade’ provém do
latim dignus – ‘aquele que merece estima e honra, aquele que é importante”.
Palavra que, no decorrer da Antigüidade, conta-nos a autora, era referida apenas à
espécie humana como um todo, sem que tenha havido qualquer personificação.
“Foi o cristianismo que, pela primeira vez, concebeu a idéia de uma dignidade
pessoal, atribuída a cada indivíduo” (MORAES, p. 77)
E é em KANT que encontramos uma passagem, realmente, bastante interessante que
ora abordamos. Da obra de MORAES:4
“De acordo com KANT, no mundo social existem duas categorias de
valores: o preço e a dignidade. Enquanto o preço representa um valor
exterior (de mercado) e manifesta interesses particulares, a dignidade
representa um valor interior (moral) e de interesse geral. As coisas
têm preço; as pessoas, dignidade. O valor moral se encontra
infinitamente acima do valor de mercadoria, porque, ao contrário
deste, não admite ser substituído por equivalente. (...) Em
2
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos
morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
3
Op. cit. p. 77
4
Op. cit. p. 81
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4. conseqüência, a legislação elaborada pela razão prática, a vigorar no
mundo social, deve levar em conta, como sua finalidade suprema, a
realização do valor intrínseco da dignidade humana” (grifos nossos).
1.2. A expressão jurídica da dignidade humana
A conceituação do que seja dignidade, necessariamente se dá com o recurso à
filosofia.
“O respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento do imperativo categórico
kantiano, de ordem moral, tornou-se um comando jurídico no Brasil com o advento da
Constituição Federal de 1988, do mesmo modo que já havia ocorrido em outras partes”.
(MORAES, p. 82).
Portanto, a dignidade da pessoa humana não é criação da ordem constitucional,
embora seja por ela protegida. “A Constituição consagrou o princípio e, considerando a sua
eminência, proclamou-o entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor supremo de
alicerce da ordem jurídica democrática” (MORAES, p. 83).
Assim, trata-se a dignidade da pessoa humana de um conceito filosófico, importado
pelo nosso ordenamento constitucional, tendo por fim alicerçar a defesa do indivíduo, centro
das atenções do nosso Estado democrático de direito.
2. Dos Punitive Damages. Conceito e objetivos.
Punitive damages, ou danos punitivos, são as punições que o direito anglo-saxão
impõe ao causador de um dano. Não precisa ser este dano, necessariamente, moral. O seu
fundamento não é outro senão, como diz o próprio nome, servir de punição ao ofensor.
“Danos punitivos, algumas vezes chamados de danos exemplares ou
vingativos, ou ainda, de ‘dinheiro esperto’, consiste em uma soma
adicional, além da compensação ao réu pelo mal sofrido, que lhe é
concedida com o propósito de punir o acusado, de admoestá-lo a não
repetir o ato danoso e para evitar que outros sigam o seu exemplo”
(W. PROSSER; J. WADE; V. SCHWARTZ, apud MORAES, p. 7)
E qual o objeto dos punitive damages?
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5. Como todos sabemos, o comom law possui inúmeros pontos que o distinguem de
nosso sistema (civil law). Entre eles, a possibilidade da transação penal. Por aquele instituto, é
possível a transação penal entre o Estado, a vítima do dano e o seu ofensor.
Portanto, naquele sistema, a tutela penal não se encontra de maneira tão exclusiva
nas mãos do Estado, como ocorre em nosso sistema.
Outra diferença, é que a vítima de um dano pode buscar a punição do seu ofensor na
própria esfera civil, ao invés de recorrer, necessariamente, à via penal. Neste caso, o Estado
fixará uma pena para a reparação do dano (restitutio in integro) e uma outra de cunho
punitivo. Estes são os punitive damages.
Várias razões podem levar a vítima de um dano a fazer esta escolha. Senão vejamos:
1) um processo penal pode terminar por lançar o nome do réu no rol dos culpados, o que
acarretaria para este, a perda da primariedade, por exemplo. O que por qualquer razão pode
não ser o desejo da vítima de um dano; 2) no processo penal, o animus puniendi é do Estado,
não restando à vítima do dano qualquer tipo de vantagem pessoal.
Os punitive damages ocorrem no direito norte-americano. Um sistema jurídico bem
diferente do nosso. Diferentemente dos países de tradição romano-germânica, este sistema
jurídico não se desenvolveu sobre as mesmas bases que o nosso. O sistema jurídico norte-
americano admite algo absolutamente impensável para o nosso sistema: conjugar em uma
mesma sentença, uma condenação de caráter civil (reparação) e uma condenação de caráter
penal (punição).
Portanto, os valores estratosféricos que atingem os danos morais nos Estados Unidos
guardam todo o sentido com as bases jurídicas do direito daquele país.
Por lá, os altos valores a que são condenados a pagar aqueles que praticam o dano
moral a suas vítimas servirão como, além de indenização do ofendido, punição ao ofensor (daí
o nome punitive damages) e para que funcione como desestímulo para que outras pessoas
pratiquem o mesmo ato. Esta condenação poderia ser, portanto, dividida em: 1) reparação do
dano sofrido pela vítima; 2) punição do ofensor; 3) caráter pedagógico.
Assim, aquele que obtivesse a reparação na esfera cível, não teria mais o interesse
em propor outra ação no âmbito penal, uma vez que o seu ofensor já seria condenado,
civilmente, ao pagamento de uma indenização de tal monta que, de uma só vez, além de lhe
servir de punição (objetivo do direito penal) serviria também à vítima, com uma gorda quantia
que eventualmente lhe seria mais útil do que uma ação penal contra o seu ofensor.
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6. Os punitive damages, portanto, não se pautam em nenhuma construção filosófica,
como o nosso princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Pelo contrário, são bastante
pragmáticos. O fundamento de sua existência é pura e simplesmente a ocorrência de um dano.
Reparar este dano, punir o seu autor e passar para a sociedade o desistímulo à sua repetição.
Eis aí a tripla função dos punitive damages.
3. Do descabimento dos punitive damages no Brasil
Sabemos que o Brasil adota o sistema dualista, em que, aquele que pratica um ilícito,
poderá ser condenado civil e penalmente. Corolário do Princípio da Inconfundibilidade dos
Juízos Cível e Criminal.
A sentença cível é de caráter eminentemente individual. O seu objetivo é reparar o
dano sofrido pela vítima do ilícito, devolvendo-a o seu status quo ante.
Por outro lado, a sentença criminal tem por fim a tutela de toda a sociedade. De
caráter eminentemente estatal, o seu objetivo é restabelecer a paz social afetada pelo ilícito
praticado. Em outras palavras: a esfera cível cuida do interesse do particular que foi lesado, e
busca restabelecer o seu status quo ante patrimonial; a esfera penal cuida do interesse do
Estado, em manter a paz social e fazer com que o agressor, pelo cumprimento da pena, seja
readaptado ao convívio social. Esta última, diferentemente da sentença cível, também tem o
caráter pedagógico, já que se espera que a sociedade se sinta desestimulada a praticar aquele
ato, frente à pena sofrida pelo seu autor.
Portanto, diferentemente do que ocorre no sistema anglo-saxão, a nossa sentença
cível não pode cumular a função punitiva. Caso isto ocorresse, haveria um verdadeiro bis in
idem, já que o causador do dano estaria sendo condenado a pagar duas vezes por um mesmo
fato.
Imaginemos, por exemplo, alguém que tendo difamado outrem, é condenado, na
esfera penal, a três meses de prisão. Posteriormente, a vítima comparece em juízo e pede,
ainda, a reparação pelo dano moral, face ao constrangimento por ela sofrido.
Pois bem. A sentença cível deverá buscar, tão somente, a devolução do status quo
ante do ofendido. Nada mais. Esta reparação, como já dizia Carnelutti em sua obra “Diritto e
Processo nella Teoria delle Obligacioni, in studi in onore di Giuseppe Chiovenda”, deverá
buscar precisamente aquilo que obteria o autor se a obrigação fosse cumprida pessoalmente
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7. pelo réu, convertendo-se a prestação em pecúnia (perdas e danos), somente no caso em que a
prestação se fizesse impossível na sua forma específica.
Caso ocorra de maneira diferente, ou seja, o julgador cível condene o ofensor ao
pagamento de uma quantia, fundamentando a sua decisão no sentido de que aquela
condenação sirva de punição ao agressor por sua prática e sirva de exemplo para a sociedade,
desestimulando tal ato, então, este agressor terá sido apenado duas vezes pelo mesmo fato:
prisão de 3 meses (condenação do juízo penal) e pagamento de alto valor (condenação do
juízo cível). E esta sentença estará usurpando as funções do juízo penal.
Consistiria, ainda, em atentado ao princípio da tipicidade penal, haja vista que uma
sentença cível, com efeitos penais, poderia impor penas por práticas de atos não tipificados
como crime, o que resultaria em séria agressão às mais profundas bases de nosso ordenamento
jurídico.
Imaginemos um segundo exemplo para ilustrar a hipótese do parágrafo acima: uma
sentença cível que condenasse o réu a pagar danos morais ao autor por aquele ter passado com
o seu carro sobre uma poça de lama e despejando-a, intencionalmente, sobre o autor.
Ora. Ainda que se possa dizer que tal ato constitua ofensa à pessoa, pois a expôs a
uma situação constrangedora, este ato não chega a constituir crime. Assim, a sentença a ser
prolatada no juízo cível, se tivesse também o caráter punitivo, estaria punindo o réu por um
fato que não é tipificado como crime no ordenamento penal brasileiro: sujar alguém.
Sob o ponto de vista econômico, concordamos com o posicionamento da professora
Maria Celina Bodin de Moraes:“Sob o ponto de vista econômico, a vítima sairá, nesses casos,
‘enriquecida’, na medida em que estará recebendo necessariamente mais do que a
compensação demandaria” (MORAES, P. 33).
E continua aquela autora:
“Nos Estados Unidos, de onde os chamados ‘danos punitivos’ foram
importados, não há qualquer preocupação com o enriquecimento da
vítima, o qual, antes, é pressuposto. Isto ocorre porque lá se tem o
dano punitivo como justificado para que cumpra alguns objetivos de
pacificação social, próprios da cultura daquela sociedade. Ele serve
para: i) punir o ofensor por seu mau comportamento; ii) evitar
possíveis atos de vingança por parte da vítima; iii) desestimular,
preventivamente, o ofensor e a coletividade de comportamentos
social-mente danosos, quando o risco de ser obrigado a compensar o
dano não constituir remédio persuasivo suficiente; iv) remunerar a
vítima por seu empenho na afirmação do próprio direito, através do
qual se consegue um reforço geral da ordem jurídica”.
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8. Mais uma vez, chamamos a atenção para o fato de que no Brasil, vige o princípio da
inconfudibilidade dos juízos, ou seja: não se pode confundir o juízo cível com o juízo
criminal; a reparação com a punição:
“(...) na doutrina é corrente minoritária a que está a negar o caráter
punitivo da reparação do dano moral, baseando-se, essencialmente,
em princípios gerais trais como o da vedação ao enriquecimento sem
causa e o da inconfundibilidade dos juízos”. Além disso, em sistemas
como o nosso, reconhecer a existência de um caráter punitivo
representaria uma importante exceção ao princípio da equivalência
entre dano e reparação.
Cumpre, pois, examinar essa questão à luz dos fenômenos jurídicos
atuais. Especialmente, cumpre examiná-la à luz da definitiva
mudança ocorrida no núcleo do sistema de Direito Civil, em que a
codificação civil perdeu a centralidade de outrora como sede dos
princípios gerais – enfraquecendo-se, em conseqüência, a ótica
predominantemente patrimonialista que presidia o código Civil. Com
o advento da Constituição de 1988, fixou-se a prioridade à proteção
da dignidade da pessoa humana e, em matéria de responsabilidade
civil, tornou-se plenamente justificada a mudança de foco, que, em
lugar da conduta (culposa ou dolosa) do agente, passou a enfatizar a
proteção à vítima de dano injusto – daí o alargamento das hipóteses
de responsabilidade civil objetiva (...)” (MORAES, p. 29).
Note que, como já dito acima, as funções pedagógica e punitiva são exclusivas (em
nosso sistema jurídico) do juízo penal. Não cabe ao juízo cível cumular tais funções.
Outra diferença entre o sistema anglo-saxão e o nosso: o nosso sistema não admite a
transação penal, o que é muito comum no sistema anglo-saxão. Note-se, portanto, que nosso
sistema dualista separa de maneira bastante clara a tutela penal (de interesse do Estado), da
tutela cível (de interesse do indivíduo), o que não ocorre no sistema anglo-saxão.
Daí porque os punitive damages estão em absoluta sintonia com aquele sistema, mas
não têm o menor cabimento por aqui.
Chama-nos, portanto, a atenção a prática corriqueira de nossos tribunais em adotar os
punitive damages como se estes tivessem sido criados idealmente para o nosso país. Nossos
julgadores de primeira instância e nossos tribunais superiores têm ignorado os pontos acima
destacados. E o que vemos, são decisões absolutamente díspares, para casos praticamente
iguais. Situações paradoxais e, não raro, constrangedoras. Citando MORAES5:
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9. “A função punitiva na reparação do dano moral, todavia, insere-se
numa problemática mais específica e tortuosa: a da avaliação e
liquidação do dano moral. Ensejando perplexidades entre os
operadores do Direito e, mais do que isto, gerando graves distorções e
contradições teleológicas devidas à disparidade de tratamento entre
acontecimentos homólogos ou semelhantes, a fixação de uma parcela
punitiva no quantum debeatur da indenizção pelo dano moral tem
representado um importante obstáculo à ‘certeza do direito’, por
causar grave insegurança, dada a completa imprevisibilidade das
decisões judiciais em matéria.”
4. Sugestões para as condenações em pedido de dano moral
Como vimos, o dano moral, no Brasil, tem por função a tutela dos direitos de
personalidade. Este é o fundamento constitucional para a existência da reparação do dano
moral.
Ora. Partindo-se do princípio da especificidade que norteia o nosso ordenamento
jurídico, em que, em um processo judicial, o autor deve obter especificamente aquilo que
obteria se a obrigação fosse cumprida pessoalmente pelo réu; e onde a converção desta
prestação em pecúnia (perdas e danos), somente seria desejável no caso em que a prestação se
fizesse impossível na sua forma específica, então há uma grande anomalia na maioria das
sentenças que condenam por danos morais.
Dano moral, no Brasil, está intimamente ligado à idéia de pagamento de um
determinado valor. Daí porque dissemos, na introdução do presente trabalho, que sustentações
veementes (e não menos corretas) vêm ocorrendo no sentido de que a sociedade brasileira
alimenta uma verdadeira “indústria do dano moral”.
Com efeito, qual é o argumento lógico para defender que, alguém que tendo sido
lesado em sua honra, terá o seu status quo ante devolvido com o recebimento de um valor
pecuniário?6 Afinal, a cultura jurídica nacional não tem em Kant um de seus ícones? Então
devemo-nos lembrar de que, “o respeito à dignidade da pessoa humana, constitui fundamento
do imperativo categórico kantiano”, segundo o qual, “no mundo social existem duas
categorias de valores: o preço e a dignidade. Enquanto o preço representa um valor exterior
(de mercado) e manifesta interesses particulares, a dignidade representa um valor interior
(moral) e de interesse geral. As coisas têm preço; as pessoas, dignidade. O valor moral se
5
Op. cit. p. 31
6
A menos que tal lesão não possa ser anulada, ou ao menos atenuada por uma obrigação de fazer.
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10. encontra infinitamente acima do valor de mercadoria, porque, ao contrário deste, não admite
ser substituído por equivalente” (op. cit. p. 81)
Se é verdade que em algumas situações envolvendo danos morais a devolução à
situação anterior se faz impossível (e aí sim, se justificaria a condenação do autor do dano ao
pagamento de uma importância pecuniária), na maior parte dos casos a vítima poderia sim,
por meio de uma obrigação de fazer, por parte de seu ofensor, ter devolvida a sua paz interior,
perdida naquela agressão perpetrada contra a sua honra. Aliás, tal obrigação de fazer, seria
muito mais útil à vítima do dano moral, do que uma eventual importância pecuniária. Aquela
primeira, certamente, traria de volta o conforto perdido.
A título de exemplo, trataremos de uma das causas que poderia ser citada como uma
das que mais tem sido apresentada em nossos tribunais como ensejadora de danos morais: o
protesto indevido do nome junto aos serviços de proteção ao crédito. Por acaso, não existiria
nenhuma obrigação de fazer que pudesse ser imposta ao causador do dano moral, que fosse
capaz de devolver a paz interior e/ou retratar a honra maculada da vítima daquele ato?
É claro que existe! E se, ao invés de se condenar o causador do dano ao pagamento
de um valor pecuniário, condenasse-o, por exemplo, a comparecer à imprensa, escrita e
falada, e a publicar uma nota de desagravo ao ofendido, retratando-se, e assumindo o erro
daquele ato? Tal medida não seria muito mais eficaz na recuperação da imagem da vítima, do
que o recebimento por parte desta de um dado valor pecuniário qualquer? Não estaríamos,
assim, efetivamente, protegendo os Direitos da Personalidade?
Tal solução seria a mais adequada até mesmo para aqueles que, diferentemente de
nós, acreditam que a sentença que reconhece o dano moral deve ter a função punitiva.
Ora. Todos sabemos que as empresas gastam verdadeiras fábulas em marketing, a
fim de que a sua imagem seja sempre bem recebida no mercado. A publicação de tal nota de
desagravo, em que uma empresa reconhece o seu erro, reconhecendo o prejuízo moral que
causou a alguém, implicaria em jogar por terra todo o investimento em marketing até então
realizado. E, repita-se: seria muito mais útil e satisfatório à vítima do dano moral, na defesa de
seus direitos da personalidade.
Enfim: os julgadores brasileiros devem se atentar para a regra de que, a condenação
pecuniária é o último meio a se recorrer na solução de um processo. Só deverá ocorrer quando
já não for mais possível a reparação do dano na sua forma específica.
Devemos banir do sistema brasileiro a utilização dos punitive damages, como
referencial para o arbitramento do dano moral. Devemos resgatar a condenação in natura.
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11. Somente assim, deixaremos de ficar expostos a este sem número de decisões que desafiam a
nossa inteligência e a credulidade no Poder Judiciário, ao julgar casos praticamente idênticos
com condenações tão díspares.
A partir do momento em que nossos julgadores proferirem suas decisões centrados na tutela
dos direitos da personalidade, na defesa do princípio da dignidade da pessoa humana, e não
mais tomando por base os punitive damages, em que se busca valores pretensamente ideais
para esta ou aquela situação, poderemos dizer que teremos superado a tormentosa missão de
se adivinhar “qual o valor ideal a se pagar para a honra de alguém”.
Abstract
The 1988’s Constitution of the Republic recognized the existence of moral damage, which
determined on its article #5 that the right of response is assured, proportional to the offense,
beyond the indemnification by moral, property or image damages. This tutelage ends up in
giving prestige to the effective protection in contrast to the constitutional principle of the
dignity of the human being, which is consecrated in the article#1 of the same constitution.
Hence, the indemnification by moral damages, in our country, should be supported by the
protection of this principle. However, what is seen is a shameful situation: our courts have
copied the Anglo-Saxon system of responsibility for moral damage based on the technique of
punitive damages. The so-called technique does not maintain any relation with the Anglo-
Saxon School of Law where the law itself is originated.
The present paper aims to point some disastrous consequences when this technique is
adopted in our juridical reality.
Key words: moral damages, dignity of the human being, punitive damages
REFERÊNCIAS
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Revista da Faculdade Mineira de Direito, v.13, n. 26, jul./dez. 2010 – ISSN 1808-9429. 89
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seventh edition, New York: Fundation Press, 1982.
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Revista da Faculdade Mineira de Direito, v.13, n. 26, jul./dez. 2010 – ISSN 1808-9429. 90