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                                                                                                                                                            Número 44
                                                                                                                                                            ISSN 0103-6777


                                                                                                                                                            EDITORIAL
                                                                                                                                                                                   04
                                                                                                                                                            Antonio Carlos Pannunzio

                                                                                                                                                            EDUCAÇÃO
                                                                                                                                                                                   06
                                                                                                                                                            Helgio Trindade

                                                                                                                                                            ANÁLISE
                                                                                                                                                            Everaldo de Oliveira
                                                                                                                                                                                   10
                                                                                                                                                            Andrade




                                                                             Mãe, 1955. Candido Portinari. Pintura a óleo/madeira compensada. 160 x 110cm
                                                                                                                                                            OPINIÃO
                                                                                                                                                                                     14
                                                                                                                                                            Enrique Amayo Zevallos

                                                                                                                                                            ENSAIO
                                                                                                                                                                                     18
                                                                                                                                                            Sergio Guerra

                                                                                                                                                            ARTE
                                                                                                                                                                                     24
                                                                                                                                                            Eduardo Rascov

                                                                                                                                                            CRÍTICA
                                                                                                                                                                                   32
                                                                                                                                                            Julia P. Herzberg

GOVERNADOR
GERALDO ALCKIMIN
                                                                 REVISTA NOSSA AMÉRICA

                                                                 DIRETOR
                                                                                                                                                            CULTURA
                                                                                                                                                                                   37
SECRETÁRIO DA CULTURA
ANDREA MATARAZZO                                                 ANTONIO CARLOS PANNUNZIO                                                                   Leonor Amarante


                                                                                                                                                                                   40
                                                                 EDITORA EXECUTIVA/DIREÇãO DE ARTE
FUNDAÇÃO MEMORIAL                                                LEONOR AMARANTE
DA AMÉRICA LATINA                                                                                                                                           POLÍTICA
                                                                 EDITORA ADJUNTA
CONSELHO CURADOR                                                 ANA CANDIDA VESPUCCI                                                                       Rubens Barbosa
PRESIDENTE



                                                                                                                                                                                   43
ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO                                  ASSISTENTE DE REDAÇãO
                                                                 MÁRCIA FERRAZ
SECRETÁRIO DA CULTURA                                                                                                                                       REFLEXÃO
ANDREA MATARAZZO                                                 DIAGRAMAÇãO (ESTAGIÁRIO)
                                                                 FELIPE DE PAULA LOPES
SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CIÊNCIA E
TECNOLOGIA
                                                                                                                                                            Ibis Hernández Abascal
PAULO ALEXANDRE BARBOSA                                          REVISãO (ESTAGIÁRIO)



                                                                                                                                                                                   46
                                                                 ELIAS CASTRO
REITOR DA USP
JOãO GRANDINO RODAS
                                                                                                                                                            ECONOMIA
                                                                 DIAGRAMAÇãO E ARTE
                                                                 ESTAÇãO DAS ARTES/SILVIA SATO
REITOR DA UNICAMP
FERNANDO FERREIRA COSTA                                                                                                                                     Maria Lucia Fattorelli
                                                                 TRADUÇãO E REVISãO
                                                                 ESTAÇãO DAS ARTES/DEISE ANNE RODRIGUES/


                                                                                                                                                                                   52
REITOR DA UNESP (em exercício)
JÚLIO CEZAR DURIGAN                                              FERNANDA LIMA
                                                                                                                                                            ELEIÇÕES
PRESIDENTE DA FAPESP
                                                                 COLABORARAM NESTE NÚMERO
CELSO LAFER                                                      Helgio Trindade, Everaldo de Oliveira Andrade, Enrique
                                                                 Amayo Zevallos, Sergio Guerra, Eduardo Rascov, Julia
                                                                                                                                                            Luis Fernando Ayerbe
REITOR DA FACULDADE ZUMBI DOS PALMARES
                                                                 P. Herzberg, Leonor Amarante, Rubens Barbosa, Ibis


                                                                                                                                                                                   56
JOSÉ VICENTE
                                                                 Hernández Abascal, Maria Lucia Fattorelli, Luis Fernando
PRESIDENTE DO CIEE                                               Ayerbe, Reynaldo Damazio, Bruno Perón Loureiro, Dario                                      LIVRO
RUI ALTENFELDER SILVA                                            Pignotti.

DIRETORIA EXECUTIVA                                              CONSELHO EDITORIAL                                                                         Reynaldo Damazio
                                                                 Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi


                                                                                                                                                                                   59
DIRETOR PRESIDENTE
                                                                 Arrigucci Jr., Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis
ANTONIO CARLOS PANNUNZIO
                                                                 Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga                                      DEBATE
DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA        Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano,
ADOLPHO JOSÉ MELFI                                               Roberto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa,
                                                                 Ulpiano Bezerra de Menezes.                                                                Bruno Peron Loureiro
DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS
FERNANDO CALVOZO


                                                                                                                                                                                   62
                                                                 NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral da Fundação
DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO (em exercício)               Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares                                   COMENTÁRIO
ANGELO DE JESUS FERREIRA LOPES                                   de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil.
                                                                 Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.
CHEFE DE GABINETE
IRINEU FERRAZ
                                                                 Internet: http://www.memorial.sp.gov.br                                                    Dario Pignotti
                                                                 Email: publicacao@fmal.com.br.



DIRETOR PRESIDENTE
MARCOS ANTONIO MONTEIRO
                                                                 Os textos são de inteira responsabilidade dos autores, não
                                                                 refletindo o pensamento da revista. É expressamente proibida
                                                                 a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista.
                                                                                                                                                            AGENDA
                                                                                                                                                                                   65
                                                                                                                                                            Da Redação
DIRETOR INDUSTRIAL




                                                                                                                                                                                   66
TEIJI TOMIOKA
DIRETOR FINANCEIRO                                                                                                                                          POESIA
MARIA FELISA MORENO GALLEGO
                                                                                                                                                            Xavier Villarrutia
DIRETOR DE GESTãO DE NEGÓCIOS
JOSÉ ALEXANDRE PEREIRA DE ARAÚJO                                                                                                                            Gonzáles

                                                                                                                                                              3
EDITO
        Neste número inaugural de          conciliadoras, segundo o historiador
2012, a revista Nossa América registra     Enrique Amayo Zevallos.
o passo significativo que o Brasil está           Na esfera das artes plásticas, qua-
dando para a integração latino-ameri-      tro temas. Um deles, Nossa América foi
cana. Trata-se da Unila (Universidade      buscar na Colômbia: convidou a crítica
Federal da Integração Latino-Ameri-        norte-americana Júlia P. Herzberg para
cana), em Foz do Iguaçu, na Tríplice       escolher quatro talentos do país e regis-
Fronteira. A instituição já está em ati-   trar sua opinião sobre a importância de-
vidade, em sede provisória, e quem ex-     les no cenário contemporâneo. Outro é
plica os propósitos da iniciativa é seu    a exposição de obras de Portinari, que o
reitor Helgio Trindade. No outro ex-       Memorial realiza entre fevereiro e abril,
tremo do Continente corre a seguinte       com uma seleção dos mais importantes
questão: o que o presidente boliviano      momentos do autor. Já o ensaio foto-
Evo Morales pode fazer pelas comuni-       gráfico desta edição reúne imagens de
dades indígenas. Na opinião do histo-      Sérgio Guerra, “baiano” que mora em
riador Everaldo de Oliveira Andrade,       Angola, com o intuito de lembrar a re-
pode fazer muito, com sua política de      levância dos afrodescendentes, cujo ani-
promoção de um Estado plurinacional.       versário foi comemorado no ano pas-
Por sua vez, Ollanta Humala, presi-        sado. Por fim, um panorama da Bienal
dente do Peru, também ganha avalia-        Vento Sul de Curitiba, traçado por Leo-
ção positiva com seu governo de ações      nor Amarante, editora de Nossa América,

4
ORIAL
 para quem o evento carrega o mérito da      ner, “provada” e aprovada pelo eleitor
 persistência.                               com uma quantidade de votos insus-
        Um assunto bastante atual: gradu-    peitada. A análise é do especialista Luís
 almente o Brasil aumenta sua presença       Fernando Ayerbe.
 no exterior, ao se tornar um dos maio-             Para encerrar, uma resenha do li-
 res doadores de assistência técnica e fi-   vro Responsabilidade do Estado, de Sô-
 nanceira a países menos desenvolvidos,      nia Sterman, dissertação de mestrado da
 artigo de Rubens Barbosa, ex-embaixa-       autora, já em segunda edição. E um ar-
 dor do Brasil em Washington. Também         tigo do jornalista Bruno Perón Loureiro
 pertinente é a questão da geoestética da    sobre a reserva de lítio de Uyuni, conhe-
 visualidade caribenha, que Ibis Hernán-     cida como a Pérola dos Andes. Além da
 dez Abascal desenvolve a partir do nexo     agenda, sobre eventos realizados pelo
 com a área etnocultural.                    Memorial, e a tradicional poesia que fe-
        Como a inflação afeta o “sistema     cha a edição, neste número assinada por
 da dívida” brasileira? Quem responde é      Xavier Villarrutia Gonzáles.
 Maria Lucia Fattoreli, colaboradora do             Boa leitura!
 Le Monde Diplomatique, que defende a
 redução das taxas de juros e a adoção
 de outros mecanismos de controle infla-
 cionário. No país vizinho, a Argentina,     Antonio Carlos Pannunzio
 a questão é o fenômeno Cristina Kirsh-      Presidente do Memorial da América Latina


                                                                                        5
EDUCAÇÃO




Unila
    Universidade federal da integração latino-americana




                      Helgio Trindade




P
                 ara promover a integração, o desenvolvimen-
                 to e a cooperação solidária entre os países da
                 América Latina, a partir do conhecimento e
                 da formação de recursos humanos de alto
                 nível, o Ministério da Educação do Brasil
                 (MEC) enviou ao presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, em dezembro de 2007, o Projeto de Lei de Criação da
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)
que foi sancionado por meio da Lei 12.189, de 12 de janeiro
de 2010.Trata-se de uma proposta inédita, que pela primeira
vez no contexto latino-americano previu a criação de uma uni-
versidade nacional dirigida à integração do Continente, com o
princípio de trabalhar de forma programada a vocação integra-
cionista das instituições de educação superior. Presidida pelo
professor Hélgio Trindade, ex-reitor da Universidade Federal do

6
Rio Grande do Sul (UFRGS), ex-mem-          (português e espanhol). Alem disso, tem         A universidade já
bro do Conselho Nacional de Educa-          como objetivo a formação de redes de           funciona em prédio
ção (CNE), a Comissão de Implantação        cooperação com universidades de toda          provisório e deve ser
(CI) da Unila, formada e investida pelo     a América Latina.                            transferida para um
                                                                                          complexo projetado
MEC, com 13 especialistas em educa-                A localização da cidade de Foz do    por Oscar Niemeyer.
ção superior e integração, trabalhou por    Iguaçu, na Tríplice Fronteira, foi fator
dois anos no desenvolvimento e na es-       determinante por dois aspectos. De um
truturação do plano político- pedagógi-     lado correspondente à política do atu-
co da Universidade.                         al governo, de expansão superior e in-
       Apesar de a Unila ser uma univer-    teriorização até as regiões de fronteira.
sidade do sistema federal de educação       Também por ser fronteira trinacional, o
superior do Brasil, sua especificidade      que sem dúvida enriquece o projeto e o
decorre de sua missão própria: a inte-      caráter multiétnico da formação histó-
gração latino-americana. Nesta pers-        rica da região. A hidrelétrica de Itaipu
pectiva está a sua vocação institucional    Binacional apoiou a criação da Unila,
original. Financiada pelo MEC, como as      doando uma área de 40 hectares para
demais universidades federais, seu olhar    a construção do futuro campus e coo-
esta voltado de forma prioritária para      perou na elaboração do projeto arquite-
a América Latina, com o objetivo de         tônico de Oscar Niemayer. Atualmente
desenvolver uma cooperação solidária        o PTI abriga a sede provisória da Unila
com os países na região. O seu campus       até a conclusão do Campus, que está em
deverá ser um local de experiência da       fase de construção.
integração em termos acadêmicos, cien-             O fato de que Niemayer tenha
tíficos e culturais, por meio do convívio   desenhado o projeto do campus foi
entre professores e alunos.                 uma grata surpresa, pois a ideia inicial
       O Anteprojeto estipula que a me-     era ter do arquiteto somente o prédio
tade dos 10.000 alunos previstos e dos      da biblioteca. Seu projeto para a Uni-
500 professores seja selecionada nos        la é majestoso, como são todas as suas
diversos países latino-americanos e a       obras, e os seus traços simbolizam a
outra metade no Brasil. Para promover       integração latino-americana. No total,
esta integração, a Unila será bilíngue      serão cerca de 150 mil metros quadra-

                                                                                   7
dos, divididos em seis edifícios: prédio
central, biblioteca, anfiteatro, restau-
rante universitário e dois edifícios para
aulas e laboratórios. Foi decidida pela
Comissão de Implantação a utilização
múltipla dos espaços, e procurou-se
adaptar o projeto para uma maior con-
vivência entre alunos e professores.
        O projeto de uma Biblioteca de
referência na América Latina (Biunila)
sobre integração regional e compara-
da prevê um moderno centro de do-
cumentação e informação virtual, com
capacidade para 300 mil volumes. A
biblioteca estará integrada com o Ins-
tituto Mercosul de Estudos Avançados
(Imea). Este é um centro interdiscipli-
nar de pesquisa e pós-graduação que
atualmente atua por meio de Cátedras
Latino-Americanas nos diferentes
campos do saber. Já com o apoio da
Associação de Universidade do Grupo
de Montevidéu (AUGM), pretende-se
formar uma rede de pesquisas avança-
das que se organize a partir da integra-
ção do Imea. A proposta da Biunila e
do Imea tem o apoio do governo brasi-
leiro por meio do Focem (Fundo para
a Convergência Estrutural e Fortaleci-       distintas de contratação para professo-
mento Institucional do Mercosul). A          res doutores seniores e jovens doutores.
Biunila e o Imea deverão atender a re-       Os docentes são contratados por seu
gião e ser referência em pesquisa sobre      perfil como professores visitantes tem-
a América Latina.                            porários, recrutados de acordo com sua
        Quanto à seleção de alunos brasi-    capacidade nos outros países da Améri-
leiros e estrangeiros, esta é realizada de   ca Latina. Este formato permite maior
forma diferenciada. Os brasileiros são       flexibilidade na contratação e na per-
selecionados por meio do Enem (Exa-          manência dos especialistas estrangeiros,
me Nacional do Ensino Médio) enquan-         provendo uma maior circulação destes
to os estrangeiros são selecionados em       professores, o que cremos ser benéfico
seus países de origem de acordo com          para a instituição. Deve-se destacar que
critérios definidos pela Unila em acordo     haverá um desenvolvimento progressi-
com os seus Ministérios da Educação.         vo do tamanho da Universidade até que
        O corpo docente brasileiro (250      alcance a meta de 500 professores e 10
professores) é selecionado por meio          mil alunos. A concretização do projeto
de concurso público, como se faz em          deverá ser alcançada até o ano de 2017.
qualquer outra universidade federal bra-            A Unila já oferece cursos inter
sileira, mas com banca internacional.        e transdisciplinares, áreas inovadoras,
Entretanto, foram criadas modalidades        afastando-se das carreiras clássicas. Ini-

8
ciou com uma oferta de 12 cursos de          no resultado de uma consulta interna-                               O conjunto terá
graduação, e está implementando pro-         cional realizada com mais de uma cente-                           prédio central, bi-
gramas de pós-graduação. A ênfase é          na de especialistas.                                            blioteca, anfiteatro,
dada aos cursos considerados estratégi-             Há uma grande receptividade do                             restaurante e dois
cos para a integração, como formação         projeto da Unila, em âmbito nacional e                        edifícios para aulas e
                                                                                                                     laboratórios.
de professores, recursos naturais, rela-     internacional. No Congresso Nacional
ções internacionais, processos culturais     a criação da Unila recebeu aprovação
e outros. A proposta é dirigida a estabe-    unânime e conta atualmente com alu-
lecer ciclos de formação: o ciclo básico,    nos de vários países da América Latina
o ciclo profissional e o ciclo de integra-   (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Para-
ção latino-americana. Porém, deve-se         guai, Peru e Uruguai). Em 2012, a Uni-
destacar que a questão da integração         la receberá alunos de toda a América
regional deverá permear toda a forma-        do Sul e de alguns países da América
ção do aluno, constituindo o princípio       Central e do Caribe.
da instituição. Esta proposta é resultado
do trabalho da Comissão de implanta-
ção da Unila, que realizou um diagnósti-
co da oferta de cursos de graduação na       Helgio Trindade é cientista político e atual presidente
América Latina para evitar a reprodução      da Comissão para a Instalação da Universidade
dos mesmos cursos e também se apoiou         Federal da Integração Latino- Americana (Unila).


                                                                                                       9
ANÁLISE




  EVO
MORALES
     e as comUnidades indÍgenas



              Everaldo de Oliveira Andrade




H
                     á uma história ancestral no mundo andi-
                     no que a ascensão de Evo Morales pare-
                     ce ter projetado novamente para a luz. O
                     mundo andino foi marcado pela sobrevi-
                     vência ao longo de séculos de resistência
                     das comunidades indígenas aymarás e
qhéchuas, entre outras, que sobreviveram à colonização es-
panhola e aos anos conturbados que se seguiram às indepen-
dências no século XIX. O genial e precoce pensador peruano
José Carlos Mariátegui já havia notado uma profunda socie-
dade indígena remanescente e entranhada na própria terra,
um elo de ligação entre a solidariedade comunitária e um fu-
turo libertário para a América Latina com que sonhava. Na
Bolívia, nem sempre esse laço de solidariedade previsto por
Marátegui entre os de baixo foi claro. Mesmo os proletários

10
mineiros que se enfrentaram nas dé-      cidadania liberal, da propriedade in-    Os líderes indígenas
cadas de 1940 e 1950 com os mine-        dividual e da liberdade. Isso cravou     esperam um diálogo
radores, sob as bandeiras socialistas,   novas feridas na sociedade boliviana,      que Evo Morales
pouca atenção deram ao mundo in-         ainda mal curadas. O sociólogo boli-
                                                                                      acena conduzir.
dígena. Uma fragilidade que a His-       viano René Zavaleta Mercado chegou
tória não deixou de cobrar seu pre-      a forjar o conceito de “sociedade abi-
ço. A revolução de 1952 e sua quase      garrada”, para tentar entender uma
esquecida e pálida reforma agrária       nação junta, mas não unida, em que
buscaram, sob a liderança dos nacio-     conviviam em um mesmo quadro so-
nalistas reformistas, desestruturar as   cial setores sociais quase incomunicá-
comunidades indígenas em nome da         veis. Isso está mudando?


                                                                            11
Durante os anos 1970, quan-         cosmético, pode fortalecer o regionalis-
do vigorava uma ditadura militar no        mo e a fragmentação social dos setores
poder desde 1964, um vigoroso mo-          populares e do tradicional e combativo
vimento indigenista buscou recons-         movimento operário do país. E, dessa
truir, ou trazer para a superfície, uma    forma, favorece a antiga Bolívia dividida
Bolívia silenciada ou apartada. Era o      e submissa à ingerência externa, aquela
movimento katarista, que em sua face       que sempre foi obstáculo no caminho
mais radical beirou o fanatismo racis-     que levou Evo Morales ao poder. O
ta dos índios contra os brancos. Esse      choque entre etnias e grupos da própria
movimento indigenista crescia na es-       base social de Evo é também parte da
teira do silenciamento do combativo        dinâmica em desenvolvimento de frag-
movimento operário pelos militares.        mentação étnica, regionalista e auto-
De fato, parecia haver um constante        nomista que ameaça destruir a grande
ressurgir histórico do mundo andino        conquista política do seu governo, a
ancestral, dos laços sociais e econômi-    unidade política em torno da soberania
cos das comunidades indígenas, mar-        nacional traduzida nas ações contrárias
cados pela quase impermeabilidade da       ao separatismo regional.
modernidade ocidental, expressando               O mundo das comunidades in-
muitas vezes quase um mundo à parte,       dígenas só tem sentido e vigor, ga-
ou uma história vivida em outro ritmo      nhando uma dimensão política maior
paralelo, em outra camada da história      na arena de uma nação boliviana ple-
silenciosa. Em momentos de grande          namente soberana e independente. A
tensão social e econômica, esses tem-      fragmentação enfraquece as próprias
pos históricos vividos em outro ritmo,     comunidades. O regionalismo e o au-
essas camadas mais profundas da so-        tonomismo, expressos recentemente
ciedade parecem se reencontrar para        nos choques relacionados à constru-
buscar acertar seus ritmos, como se        ção da estrada para ligar os depar-
uma história caudalosa e profunda se       tamentos de Pando e Cochabamba,
tornasse repentinamente visível à su-      mostram uma dinâmica preocupante,
perfície, como protagonista das con-       se prevalecer uma dinâmica política
junturas e dos eventos mais corriquei-     isolacionista e não nacional. A posi-
ros. Evo Morales certamente unificou,      ção do governo Evo de dialogar e ne-
ou expressou, um movimento social          gociar com as comunidades indígenas
profundo e unificado de defesa da so-      da região é positiva, mas está longe de
berania e autodeterminação da nação        resolver as questões. As cicatrizes que
boliviana como nunca houve no país.        separaram e contiveram a Bolívia du-
Estamos vivendo um novo ressurgir,         rante séculos ainda estão abertas.
um reencontro da nação boliviana?
       A tão celebrada Nova Constitui-
ção Política do Estado Boliviano, apro-
vada em janeiro de 2009, foi exaustiva-
mente negociada com os setores que
defenderam abertamente o separatismo
do país. Foi celebrada a formulação de
                                           Everaldo de Oliveira Andrade é historiador, pós-
um Estado plurinacional, intercultural,
                                           doutorando na Universidade de São Paulo (USP)
descentralizado e com autonomias re-       e professor na Universidade Guarulhos (UNG).
gionais. Porém, essa suposta conquista     Acaba de lançar o livro Bolívia: democracia e
do estado plurinacional, longe de ser um   revolução – a Comuna de La Paz de 1971.

12
O mundo indígena só tem vigor
   se ganhar dimensão política
              dentro da nação.




     13
OPINIÃO




HUMALA e amÉrica latina



                  Enrique Amayo Zevallos




c
                    ontexto: No dia 5 de junho de 2011, Ollanta
                    Humala, no segundo turno, foi eleito Presiden-
                    te do Peru: obteve 53% dos votos, contra 47%
                    de Keiko Fujimori. Esta, é filha do ex-presi-
                    dente (1990-2000) Alberto Fujimori, que aca-
                    bou governando de forma ditatorial. O men-
tor e braço direito de Fujimori foi Vladimiro Montesinos - chefe
do Sistema de Inteligência Nacional (SIN). Ambos estão presos
em Lima, submetidos a julgamentos por haverem cometido cri-
mes políticos juntos. Até hoje, Fujimori foi condenado a 25 anos e
Montesinos a quase 10. Analistas sérios, como Mario Vargas Llosa
(que apoiou Humala por considerar que a vitória de Keiko signifi-
caria que seu pai, representante de um novo fascismo, retornaria
ao poder), concordam que a “presidente” Keiko libertaria pai e
associados. Ações de Fujimori realizadas no ano 2000 levaram

14
o Peru a uma situação caótica: os abusos     outros governos, rumo ao Uruguai e a
de Fujimori para reeleger-se pela terceira   todos os países do Mercosul. Depois,
vez, contra o que a Constituição manda-      aos países andinos vizinhos do Peru.
va, desencadearam, apesar da brutal re-      E também aos Estados Unidos (sendo
pressão do SIN, protestos massivos que       recebido por Barack Obama e Hillary
terminaram obrigando-o a fugir para o        Clinton), Venezuela (reunindo-se com
Japão; o Peru entrou em caos.                Chávez), México e Cuba (dialogando
       Algo semelhante teria ocorrido        com Raul Castro e Fidel). Isso parece
se Keiko libertasse seu pai, já que ela      ser parte essencial da política exterior do
não decide nada sem consultá-lo, além        governo de Humala. O Ministro das Re-
de seu círculo decisório ser constituído     lações Exteriores que ele escolheu, Ra-
pelos membros do governo de Fujimo-          fael Roncagliogo, continua fiel à decla-
ri que não foram presos. A vitória de        ração que fez ao saber de sua nomeação:
Keiko significaria, assim, o retorno de      a política externa “vai ser uma política
Fujimori ao poder com seu corolário:         de integração com todos os países da re-
protestos, repressão e caos.                 gião, sem distinção nem preconceitos de
       Desde que Ollanta Humala assu-        tipo ideológico”. O governo de Humala
miu o poder, em 28 de julho de 2011,         quer manter relações com os países da
passou-se pouco tempo. Assim, ain-           América do Sul (abrangendo a América
da não é possível julgar seu governo; é      Latina e o Mundo), “sem distinções” e
possível, sim, descrever algumas de suas     com fins de ”igualdade”.
decisões tomadas nesse período, o que               A nomeação de Roncagliogo foi
permitiria perceber tendências.              um êxito de Humala, evidenciado em
       Em 2006, quando Humala foi can-       seu bom recebimento por quase todas
didato a Presidente e perdeu para Alan       as forças econômicas, sociais e políticas
García, era pró-Chávez. Mas nas elei-        do Peru. Bem recebida porque Ronca-
ções de 2011, Humala se distanciou do        gliogo desempenhou papéis-chave na
Presidente da Venezuela. Provavelmen-        história política peruana recente. Miguel
te, Humala entendeu que Chávez não é         Castilla, Ministro da Economia e Finanças,
um bom exemplo, e que sua proximida-         escolhido por Humala, ao contrário de
de não ajuda. Em treze anos como pre-        Roncagliogo, gerou discórdia: críticas dos
sidente (desde 1998), Chávez foi incapaz     progressistas e esquerdistas que tornaram
de resolver os principais problemas eco-     possíveis seu triunfo e apoio do mundo
nômicos e sociais de seu país. Venezue-      empresarial e dos mercados. Castilla, com
la, gigante petroleiro, com grande renda     mestrado em Harvard e Ph.D. na Univer-
provinda desse combustível (renda que        sidade John Hopkins, economista ortodo-
nos anos de Chávez aumentou enorme-          xo com sólida experiência, até o dia de sua
mente pela alta dos preços do petróleo),     nomeação por Humala, era vice-ministro
deveria ter os mais altos níveis econômi-    da Fazenda de Alan García. Igual discór-
cos e sociais da América Latina, mas não     dia gerou a ação de Humala que aceitou
os tem; e seu crescimento econômico          manter Julio Velarde no cargo de presi-
está entre os mais baixos do continente.     dente do Banco Central.
A imprensa peruana sugere que foi por               Humala aproxima sua administra-
realismo que Humala substituiu o cha-        ção à do governo PT de Lula: pretende
vismo pela aproximação com o Brasil,         continuar a política econômica de Gar-
do Partido dos Trabalhadores (PT).           cía (assim como Lula fez em seu primei-
       Mas Humala não se limitou ao          ro mandato, ao assumir, sem admitir, a
Brasil: continuou aproximando-se de          política econômica de seu antecessor).

                                                                                     15
Mas, simultaneamente, há uma diferen-         projetos, especialmente na Amazônia
ça: Humala jamais falou em “herança           peruana, que estavam sendo realizados
maldita” e, ao contrário, “pratica aberta-    sem consulta prévia.
mente a continuação”, o que se eviden-               Altos Lucros de Minerais: o
cia nas figuras-chave que escolheu para       Peru é um grande produtor e expor-
a direção econômica de seu governo (fi-       tador mundial de minerais, dentre os
guras importantes de seu antecessor).         quais, os preciosos. Em função da crise
       Como o Peru inteiro, Humala não        mundial, os preços dos metais aumen-
quer pôr em risco o alto crescimento          taram muito. Por exemplo, o preço da
econômico de seu país, um dos maio-           onça troy de ouro, na última década,
res da América Latina na última década.       passou de mais ou menos 300 dólares
Isso explicaria a manutenção de Castilla      a quase 2.000 dólares. Os altos lucros
e Velarde como seus gestores econômi-         não dependem de inovações tecnológi-
cos. Mas Humala quer que esse cresci-         cas ou de investimentos maiores, mas
mento seja distribuído, sobretudo entre       simplesmente de inflexões de mercado.
os mais pobres, para diminuir as dife-        Os altos lucros favoreciam os donos
renças sociais.                               das empresas mineradoras, mas não o
       Aqui só é possível mencionar ra-       Estado peruano, porque a maioria dos
pidamente algumas decisões tomadas            contratos de exploração foi firmada
por Humala:                                   com o corrupto governo de Fujimori,
       Lei da Consulta Prévia: o Acordo       que lhes deu vantagens, pois a crise, até
n°.169 da Organização Internacional           então, não havia elevado os preços às
do Trabalho sobre Povos Indígenas e           alturas. Como candidato, Alan García
Tribaisconcede a esses povos o direito        prometeu renegociar esses contratos,
de consulta e aceitação prévias por eles      mas como presidente disse que era im-
(usando suas formas de consulta tradi-        possível fazê-lo; assim, solicitou a essas
cionais) sobre qualquer obra que pos-         empresas uma doação voluntária (óbo-
sa causar impacto em seus territórios         lo) que foi de 500 milhões de soles (mo-
históricos. Em setembro de 2011, Hu-          eda nacional peruana que, pelo câmbio
mala transformou esse acordo em lei,          atual de 2.75 por dólar, daria aproxi-
promulgando-a em Bagua. Esta cidade           madamente 180 milhões de dólares).
amazônica peruana tem poder simbó-            Quando Humala assumiu o poder, de
lico: ali ocorreram, em junho de 2009,        imediato, iniciou a renegociação; as em-
violentos confrontos entre a polícia e a      presas, sem muita dificuldade, aceitaram
população, sobretudo nativa, que causa-       pagar três milhões de soles, ou seja, seis
ram a morte de 34 pessoas. Os indíge-         vezes mais. Dinheiro que será utilizado
nas protestaram contra o então gover-         para cumprir promessas de campanha,
no de García, que negava a Consulta           como o Programa Social Renda 65, que
Prévia. Humala, ao promulgar essa lei,        significa: salário mínimo (aproximada-
obteve apoio quase consensual da po-          mente 100 dólares mensais) para a po-
pulação indígena nacional e do país in-       pulação com idade mínima de 65 anos,
teiro, o qual se refletiu em altas taxas de   sem renda fixa.
aprovação de seu governo(hoje cerca de               Lei contra a Corrupção: o gover-
65%). Também foi muito bem recebido           no de Humala enviou ao Congresso um
pelos meios internacionais preocupados        projeto de lei para declarar imprescrití-
com a causa indígena e a preservação.         veis os delitos graves de corrupção de
Isso porque, uma das consequências            funcionários públicos, impondo san-
imediatas dessa lei foi a paralisação de      ções aos corruptos; foi aprovada.

16
A lei de Consulta
                                                                                         Prévia pode transfor-
                                                                                        mar Ollanta Humala
                                                                                          em líder das causas
                                                                                                    indígenas.




      Concluindo: Humala está to-           Humala, por força das circunstâncias,
mando decisões conservadoras na eco-        no líder das causas indígenas do con-
nomia, progressistas no social, e inde-     tinente com bases poderosas em sua
pendentes na política exterior. Políticas   população nativa.
de centro-esquerda que têm gerado, até
agora, respostas positivas das maiorias
peruanas e do exterior, até dos Estados     Enrique Amayo Zevallos é professor de História
Unidos. E o impacto da lei de Consulta      Econômica e Estudos Internacionais Latino-
Prévia poderia acabar transformando         Americanos - Universidade Estadual Paulista.


                                                                                             17
ENSAIO




raÍZes        do Brasil
     ENSAIO DO FOTÓGRAFO BAIANO SERGIO
        GUERRA EM TERRAS AFRICANAS




o
                        impacto da escravidão não conseguiu conter
                        as manifestações culturais dos escravos tra-
                        zidos de diversos pontos da África. A sim-
                        biose das várias vertentes etnológicas deu
                        origem a novos simbolismos e formatos,
                        enriquecendo substancialmente o modo de
ser dos brasileiros. Internacionalmente, o ano de 2011 foi dedica-
do aos afrodescendentes, e a revista Nossa América estende ainda
neste ano as homenagens a esse povo, que tanto adensou a cultura
brasileira. O ensaio do fotógrafo pernambucano Sergio Guerra,
que se auto-intitula baiano e vive em Luanda, capital de Ango-
la, remete-nos a imagens poéticas, dramáticas, singelas e raras de
comunidades distantes da região. A forte presença dos africanos
no Brasil pode ser avaliada no censo de 1810, quando eles eram
mais de 30% da população do Brasil, porcentagem que decresceu
a partir de 1931. A população afrodescendente nos provou que,
sem seu universo, o mundo seria monótono, triste e sem a trilha
sonora do rock, do jazz, do hip hop, do reaggae e de tantos outros
ritmos fundamentais da contemporaneidade.
18
19
20
21
22
23
gUerra
     Eduardo Rascov

24
e PaZ
    25
Acima,
PlantandoBananeira,
1955 - Candido Portinari.
Desenho a lápis de cor/
cartolina 9.5 x 8.5cm




          26
Após seis anos de guerra total,       na ONU. Paz, do mesmo tamanho, olha
o mundo descansou. Em 1945, o sur-            e é olhado por quem sai. A mensagem
gimento da Organização das Nações             é inequívoca: é possível ao engenho hu-
Unidas enchia de esperança os crédu-          mano resolver seus problemas.
los. Esqueciam o fracasso da Liga das                Como Di Cavalcanti, Jorge Amado,
Nações, anos antes. Surgida dos escom-        Mário Schemberg, Carlos Drummond de
bros da Primeira Guerra Mundial, a            Andrade, enfim, boa parte da intelectuali-
Liga das Nações havia sido incapaz de         dade e artistas da sua geração, Portinari era
impedir outra conflagração planetária.        comunista filiado ao PCB, por quem con-
Mas agora a paz precisava ser celebrada.      correu a deputado constituinte em 1945
Uma comissão internacional de arquite-        e a senador em 1947. Sua insistência em
tos seria formada para construir a sede       presentear o mundo com a sua arte pun-          Menino com Diabolô,
                                                                                              1955 Candido Portinari
da ONU, em Nova York. O projeto do            gente, como que clamando por um tempo           Desenho a grafite e lápis de
mestre franco-suíço Le Corbusier seria        utópico em que não houvesse a explora-          cor/papel 21 x 15.5cm
o escolhido, com a colaboração de Os-
car Niemeyer.
        O conjunto arquitetônico da ONU
foi inaugurado em 1952. Era preciso em-
belezá-lo com obras de arte de grandes
artistas. O Brasil ganha o privilégio de se
ocupar do hall de entrada da Assembleia
Geral das Nações Unidas. Getúlio Vargas
escolhe Cândido Portinari (1903-1962)
para a tarefa e este põe mãos à obra. Entre
1952 e 1956, Portinari trabalha sofrega-
mente para atender o pedido do governo
brasileiro. Apesar da recomendação médi-
ca que evitasse o uso de tinta a óleo, cujo
chumbo o intoxicava, o artista encara a
encomenda como missão. Com os olhos
e as pinceladas voltadas para a eternidade,
ele passa a pintar os painéis Guerra e Paz,
cuja superfície total de 280 metros qua-
drados ultrapassa a do Juízo Final (Capela
Sistina), de Miguel Ângelo.
        O resultado é um dos mais belos
e impactantes testemunhos da loucura
humana e resume como nada o dilema
da ONU até hoje: É possível se livrar da
guerra? Há guerra justa? A paz tem pre-
ço? O que é preciso para conquistá-la?
Portinari retrata a guerra não por meio
de soldados ou equipamento bélico, mas
por meio de suas vítimas, especialmen-
te aquela que sofre a dor maior - a mãe
que perde o filho, imolado à (i)raciona-
lidade dos poderosos. Guerra, painel de
14X10m, toma a visão de quem entra

                                                                                        27
ção do homem pelo homem, custou-lhe
caro. Portinari praticamente se auto-emu-
lou , tornando-se, mais que um artista, um
herói trágico da humanidade. Guerra e Paz
foram os últimos grandes painéis pintados
por ele. Depois disso, adoeceu pouco a
pouco até morrer em 1962, vítima das tin-
tas que para ele eram arma.
        Os quadros foram finalmente ins-
talados na ONU, em 1957. Por ser comu-
nista, Portinari não obteve autorização
do governo americano para ir à inaugu-
ração da sua obra. Niemeyer também já
não tinha acesso ao prédio que ajudou a
criar. O “Comitê de Atividades Antiame-
ricanas”, criado pelo senador Joseph Mc-
Carthy, estava ativíssimo. Nos primeiros
anos, o público tinha acesso ao hall da
ONU onde estão os painéis Guerra e Paz.
Mas, com o tempo, por motivo de segu-
rança, o acesso a ele ficou restrito aos de-
legados oficiais. Segundo João Cândido
Portinari, filho do pintor, 95% da obra
de seu pai está fechada em coleções par-
ticulares. Por isso, quando soube que as
instalações da ONU passariam por refor-
ma entre 2010 e 2013, tanto fez que con-
seguiu a guarda da obra por esse período.
Era a oportunidade dos painéis Guerra e
Paz percorrerem o mundo e - finalmente
- serem conhecidos pelo povo. Em con-
trapartida, eles deveriam voltar devida-
mente restaurados, como previa o con-
trato entre a ONU e o governo brasileiro
dos anos 50. Para essa empreitada, João
Candido Portinari obteve o apoio do go-
verno brasileiro, por meio do BNDES, e
de outras entidades públicas e privadas.
        Os painéis foram restaurados no
Rio de Janeiro, em ateliê aberto ao pú-
blico, montado no Palácio Gustavo Ca-
panema, por iniciativa do Projeto Porti-
nari, no início de 2011. Antes disso, eles
tinham ficado expostos por alguns dias
no palco do Teatro Municipal carioca.
Mais de 40 mil pessoas foram visitá-lo.
        A mostra no Memorial inclui cer-
ca de cem esboços originais de Guerra e

28
Desmontagem dos painéis
Guerra e Paz de Portinari,
 na ONU, em Nova York.




                             29
Estudos para
                         Guerra e Paz. Mãos
                        Entrelaçadas, 1955.
                          Desenho a grafite e
                        crayon colorido/papel
                         10 x 10cm. Cabeça
                           de Mulher, 1955.
                          Desenho a grafite e
                       crayon colorido/papel.
                                 16 x 16cm.




Paz, que nunca foram expostos conjunta-         por meu pai um pouco antes, em 1949,
mente e audiovisuais contando a aventu-         com quem Guerra e Paz dialogam muito
ra de remover obras de arte gigantescas,        bem.” E, complementa o filho que faz da
transportá-las para o Brasil e restaurá-        sua vida uma espécie de sacerdócio pela
las, bem como documentários sobre a             memória, preservação e divulgação da
vida e a obra do pintor. Para o Memorial,       obra de seu pai, “o Memorial é o lugar
é significativo ter os famosos painéis, que     ideal para o público ver as cores intensas
há 54 anos estão em Nova York, com-             dessas pinturas de meu pai, pois ambos
partilhando temporariamente o espaço            têm um significado irmanado. O que é o
com outra obra de Portinari não menos           painel Tiradentes, já instalado no Salão de
importante, o painel Tiradentes que, con-       Atos, senão um grito de repúdio à violên-
forme explica João Candido, “foi pintado        cia similar aos painéis Guerra e Paz?”

30
Meninos no Balanço,
                                                                                                  1955. Desenho a
                                                                                                  grafite e lápis de cor
                                                                                                  papel. 25 x 24.5cm.
                                                                                                  Fotos de Portinari no
                                                                                                  ateliê e com o filho João
                                                                                                  Candido.




       Visionário, sonhador, maluco        do Brics, Rússia, China, Índia e Áfri-
(algo a ver com seu pai?), João Candi-     ca do Sul. Até agosto de 2013, quando
do Portinari afirma que, depois de São     eles voltam para o hall da ONU, iman-
Paulo, Guerra e Paz devem percorrer o      tados pelo olhar compreensivo de mi-
mundo. Com o esperado apoio do Ita-        lhões de pessoas.
maraty, os painéis de Candido Portina-
ri, espera o filho, vão levar sua mensa-   Exposição Guerra e Paz, de Portinari. A partir
gem dramática e de esperança a cidades     de fevereiro no Memorial da América Latina.
emblemáticas, como Hiroshima e Oslo,       Para mais informações, consulte nosso site: www.
                                           memorial.sp.gov.br Tel.: (11) 3823 4600
por ocasião da entrega do Prêmio No-
bel da Paz em dezembro de 2012. E,         Eduardo Rascov é jornalista e editor do site do
por que não, às potências emergentes       Memorial da América Latina


                                                                                             31
CRÍTICA




     QUatro artistas
COLOMBIANOS:
        Uma introdUção




          Julia Hertzberg




32
Antes de partir para Bogotá, Co-       esquerda. Em 11 de março de 2010, o                       À esquerda, Juan
lômbia, para ver a Feira ArtBo e as ati-      artista foi convidado para ir à cidade ru-            Manuel Echavarría,
vidades de arte estendidas ao redor do        ral Mampujan, na região montanhosa de                Silencio con frutas
evento, pediram-me para escrever sobre        Montes de Maria, para a comemoração do              (série La O). C-print,
                                                                                                   40 x 60 in. Cortesia
quatro artistas colombianos emergentes.       décimo aniversário do dia em que os mo-            do artista e da Galeria
Contemplando a arte e refletindo sobre        radores foram forçados a deixar suas casas                Sextante, Bogotá.
ela, conversando com artistas em mu-          e terra pelas forças paramilitares, “Heroes           Nesta página, Miler
seus de exposições e nos estúdios do Es-      de los Montes de Maria”. Tal aldeia nunca               Lagos, Red-Blue,
                                                                                                       (série Inukshuk),
pacios Las Nieves, ficou claro para mim       foi reocupada. No decorrer do dia, Echa-                2011. Giclée print,
que três dos quatro artistas que escolhi      varría encontrou uma escola deteriorada                 55 x 81 cm (21 ¾
não eram emergentes, mas sim maduros          na qual as vogais a, e, i e u estavam escritas          x 32 in.). Cortesia
talentos, cujos trabalhos extremamente        em uma parede ao lado do quadro-negro.                  do artista e da AB
convincentes mereciam ser mais conhe-         O tempo havia gasto o o, a letra que se                   Projects, Toronto.
cidos para além da Colômbia. A seleção        tornaria o título da série La O.
inclui: Juan Manuel Echavarría, cujo tra-            Echavarría voltaria quinze vezes
balho eu tenho acompanhado e escrito          às cidades e às aldeias abandonadas em
a respeito, Miler Lagos, Miguel Ángel         Montes de María, em suas contínuas jor-
Rojas e Catalina Mejía, cuja obra é nova      nadas antropológicas. Uma descoberta
para mim. Em linguagens diversas, seus        surpreendente levou a outra. Uma série
trabalhos abordam questões comuns e           de quadros-negros silenciosos, como
pessoais, o político e o poético.             me refiro a eles, inclui Silencio con frutas
       Por mais de quinze anos, Juan Ma-      e Silencio 1,2,3,4. Silencio con frutas foi fil-
nuel Echavarría viajou por aldeias rurais     mado através de uma abertura para uma
(veredas) e cidades da Colômbia, foto-        janela na parede externa, em consequên-
grafando os traços da guerra civil em an-     cia emoldurando a lousa (a qual é ver-
damento, travada por narco-traficantes,       de agora) ao mesmo tempo capturando
paramilitares de direita e guerrilheiros de   o apagamento de duas paredes em pé


                                                                                          33
Miguel Ángel              (ilustração). Os cinco quadros-negros         e 114.13 graus de longitude), nos ter-
Rojas, Economía           silenciosos compartilham característi-        ritórios do Nordeste do Canadá. A
intervenida, 2011.        cas pictóricas e temáticas. Formalmente,      jornada era na verdade uma residência
Pó de folha de coca,      eles recordam pinturas abstratas, telas       orgznizada por Astrid Bastin, uma co-
camada de ouro e
alumínio, 110 x 163
                          gestuais nas quais diferentes camaradas       lombiana que dirige a AB Projects em
cm (43 5/16 x 62          de pigmentos foram sobrepostas. Clima         Toronto. Durante a primeira residên-
in.); vídeo e som, 15     e tempo alteraram as suas cores e mate-       cia de Lagos, no AB Projects (2010),
min. 30 seg. Cortesia     riais originais, transmitindo uma espécie     seu trabalho foi baseado na exploração
do artista e da Sicardi   de pertubadora beleza romantizada.            ambiental. Considerando seu interesse
Gallery, Houston.
                                 Precisamos nos lembrar, todavia,       pela natureza e pelas relações da huma-
                          que esses quadros-negros, com ou sem le-      nidade para com ela, Bastin propôs a
                          tras e números, não são usados para edu-      Lagos que fosse a uma área remota do
                          car crianças. As crianças, juntamente com     Ártico canadense, onde exploradores
                          seus pais, foram deslocadas à força de ci-    polares navegaram no século XIX.
                          dade a cidade; enquanto algumas fugiram              Lagos e Bastin voaram para
                          e se salvaram, outras encontraram seu         Yellow Knife, onde o pequeno hidropla-
                          silêncio final. A questão do artista é: es-   no os levou a Red Rock Lake, perto de
                          sas fotografias de lousas vão avivar a me-    Coppermine River, lugar da expedição
                          mória acerca da violência prolongada que      de Sir John Franklin (1819-1822). Por
                          vitimou tantas pessoas por tanto tempo?       12 dias, durante o final de julho e o iní-
                                 Miler Lagos fez uma peque-             cio de agosto de 2011, Lagos fotografou
                          na série de belas fotografias e vídeos        e filmou entre 11:30 pm e 2h30 am, as
                          com som, durante uma viagem ao Red            horas entre o pôr e o nascer do sol. As
                          Rock Lake (65.31 graus de latitude N          fotografias entituladas Red, Blue, and Red-

                          34
Blue e o vídeo Lat 65.31 N Long 114.13       século XIX, que registravam o sublime.
W são da série Inukshuk, uma palavra         Seus trabalhos são como meditações na
inuíta que se refere a um marco de pe-       cor, luz, e tranquilidade antes do frio
dra, construído por mãos humanas, que        do Ártico transformar a região em gelo
funciona como um ponto de referência         branco, escuridão e vento.
para rotas de viagem, lugares de venera-           Miguel Ángel se aproxima da eco-
ção e de caça, dentre outros usos. Na li-    nomia, da política, e das realidades sociais
nha de árvore em um cenário de marcos        de seu país, de uma perspectiva diferente
de pedra (assemelhando-se a esculturas),     em relação à de Juan Manuel Echavarría.
Lagos colocou chifres de veado em uma        Economía intervenida, de Roja, é uma confi-
das pedras e depois suspendeu pequenas       guação da tempestade de padrões, visual-
pedras nos chifres (ilustração). O artista   mente definidos por pequenos quadrados
fotografou e filmou apenas a luz solar e     dourados, cercados por um campo de             Catalina Mejía, You
as condições climáticas do lugar. A bele-    quadrados levemente maiores de folhas          you you you, 2010.
za desolada de uma paisagem do Ártico,       de coca. O efeito geral é um padrão de          Grafite no papel, 38
com seus dias de 24 horas e ventos que       superfície abstrata de linhas douradas on-     x 56 cm (12 x 14 in).
                                                                                              Cortesia do artista.
variam, fez com que Lagos se lembrasse       dulantes, aparecendo em pequeno relevo              Fotógrafo: Oscar
das pinturas românticas de paisagem do       contra o chão cinzento em uma superfície                  Monsalve.




                                                                                      35
retilínea. O vídeo, inserido na montagem,    em textos para inscrever suas pinturas e
destaca folhas de coca voando fora das       desenhos com palavras que empregam
páginas de listas telefônicas.               a primeira e a segunda pessoas (“eu” e
        Rojas fala da realidade da Co-       “você”) para transmitir tristeza, desilusão
lômbia, que por anos tem enriquecido         e raiva. As superfícies de pintura das telas,
com o dinheiro do narcotráfico e mais        juntamente com os desenhos magistral-
recentemente com a mineração ilegal          mente compostos de grafite revelam os
de ouro, ambos produzindo “uma eco-          estados emocionais da artista por meio
nomia mediada”. Para a montagem,             de palavras, a maioria delas apagada.
o artista empregou tanto altas quanto                A escrita gestual expressionista
baixas tecnologias, uma total maestria       anima as superfícies desses trabalhos
de vocabulários figurativos e abstratos,     abstratos em sua maioria, ao declarar a
um apelo visual e significativo de dois      especificidade dos estados emocionais
produtos para o discurso econômico e         da artista. A pintura Carta de Amor, de-
social de seu país.                          clara obsessivamente momentos, atos, e
        O processo artístico, trabalho       sentimentos íntimos por meio de pala-
intenso e repetitivo, exigiu grande des-     vras como queimar, ligar, chorar, negar,
treza em colocar centenas de pequenos        apreciar, excitar, sentir, esquecer, perdo-
quadrados de folhas de coca cortados         ar, foder, beijar. Outra tela inclui lam-
a laser, e ouro em um apoio acrílico. O      ber, perder, possuir, prometer, lembrar,
artista primeiro secou as folhas de coca,    tocar, confiar, desejar. You you you you é
triturou-as até obter uma consistência       configurada como um esboço no qual a
de pó, misturou-as com um agente de          maior parte da prosa está apagada (ilus-
serigrafia à base de água , e usou o pó      tração). No queda nada é uma das poucas
(folha de coca) como se fosse tinta em       pinturas nas quais elementos da natu-
serigrafia. O satélite da tempestade de      reza estão esquematicamente definidos
padrões, baixado da Internet, foi im-        em uma superfície ricamente colorida.
presso em papel do tamanho do traba-         “N a d a” é o que está escrito na parte
lho final. Rojas usou o impresso como        inferior direita, evocando o vazio, a so-
uma referência para a montagem final,        lidão, o nada.
que ele fez desenhando uma grade so-                 O apreço de Mejia por Cy Twom-
bre o acrílico, colocando pontos para        bly e por Jean Michel Basquiat é evidente
indicar a tempestade de padrões, e fi-       na qualidade gráfica das linhas pintadas e
nalmente aplicando as folhas de coca e       desenhadas, na organização pictórica do
os quadrados de ouro, um por um, em          espaço e na fusão das fronteiras entre a
um padrão de mosaico. A riqueza esma-        pintura e o desenho. Olhando para trás,
gadora da cocaína e da mineração ilegal      para dois importantes artistas e professo-
de ouro está causando uma preocupa-          res, ela se lembra que Miguel Ángel Rojas
ção renovada na sociedade colombiana.        lhe ensinou a importância de expressar a
De forma hábil, Rojas fez alusão a essas     catarse, enquanto Luís Camnitzer lhe en-
complexas realidades nas quais os mate-      sinou a importância de ordenar a emoção.
riais têm contribuído para uma econo-
mia mediadora.
        Desastres del Corazón, de Catalina
Mejía, elucida a dor sentida em um re-       Julia P. Herzberg, Ph.D, é curadora, especialista sênior
lacionamento amoroso que deu errado.         da Fulbright, e também ministra palestras e publica
Mejía referiu-se ao título de Goya, Disas-   constantemente sobre artistas contemporâneos nos
ters of War, assim como uso do Espanhol      Estados Unidos e no exterior.


36
ARTE




cUritiBa
firma sUa Bienal




                                  Adonis Flores,
                            Incubación, 2009.
                           Impressão 80x120 cm
    Leonor Amarante
                      37
o
                                                crítico    argentino      mor ele nos reporta aos desequilíbrios de
                                                Jorge Glusberg cos-       nossa realidade permanente. E lembra
                                                tuma dizer que, se        do período em que combateu em An-
                                                uma bienal tem pelo       gola, como soldado internacionalista, co-
                                                menos duas obras          baia da complexidade humana.
                                                inesquecíveis, ela já é   Normalmente as bienais são salas
                          um sucesso. A Bienal Vento Sul de Curi-         de espetáculos para encenar grandes
                          tiba tem o mérito da persistência, da ten-      obras, grande parte com caráter cênico.
                          tativa de superar-se e de conseguir desen-      Um dos trunfos dessa edição é mos-
                          volver um discurso crítico consistente.         trar que obras sutis como as de Lilian
                          O tema Além da Crise foi oportuno e Tí-         Porter podem ter alta potencialidade,
                          cio Escolar, que divide a curadoria com         capaz de dialogar com instalações po-
                          Alfons Hughs, trabalha o conceito de que        tentes como as de Nelson Felix.
                          a arte contemporânea tem suas próprias          A sexta edição segue as conquistas de
                          crises e, uma delas é a da representação.       outras edições, potencializa seu espaço
                          Quem pode exemplificar o discurso é o           expositivo com a ocupação do Museu
                          cubano Adonis Flores, artista convoca-          de Arte Oscar Niemeyer MON. Os
                          do para a “comissão de frente” que nos          paradigmas estéticos emanados dos
                          recebe no Museu Oscar Niemeyer com              centros hegemônicos Europa e Esta-
                          sua série de Caveiras. Com crítica e hu-        dos Unidos parecem ter perdido a for-
                                                                          ça. Os desenhos eróticos e sensuais do
                                                                          uruguaio Ricardo Lanzarini nos dão a
                                                                          sensação de que os artistas estão atentos
                                                                          na desconstrução de estereótipos sobre
                                                                          produção dos países latino-americanos.
                                                                          Interessante é que o encontro de críti-
                                                                          cos de formações tão diferentes chegou
                                                                          ao denominador comum de que a arte
                                                                          tem sua autonomia, mas sofre com as
                                                                          crises que atingem muitos países.
                                                                          A atualidade do tema, mais do que além
                                                                          da crise, se reforça em muitas obras na
                                                                          percepção crítica de Hughs, para quem
                                                                          há hoje uma mudança estética de para-
                                                                          digmas “Obras difíceis e invendáveis, fei-
                                                                          tas de material precário, que se esquivam
                                                                          à lógica do mercado, ganham cada vez
                                                                          mais terreno.” Esse é um dos vieses des-
                                                                          sa mostra, que no conjunto reforça como
                                                                          um dos polos de reverberação da produ-
                                                                          ção brasileira. Mesmo sem uma vitrina
                                                                          internacional, que deveria ser colocada
                                                                          como meta para as próximas edições, a
   Angelo Luz, intervenção                                                Bienal Vento Sul é uma realidade.
urbana na praça tiradentes,
                     2011.
                                                                          Leonor Amarante é editora da Revista Nossa
                                                                          América.


                          38
ada como meta para as próximas edições,
a Bienal Vento Sul é uma realidade.

                                                     Sem título, 2010.
                                             Instalação. Ferro, resina,
                                                          Em um edifício
                                            acrílico,arrojado, a marca é a
                                                      150x150x60 cm
                                          I Cortesia internacionalização.
                                                      Boers Li Gallery,
                                                               Pequim é a
                                                                 marca
                                                    internacionalização.


                                          39
POLÍTICA




Brasil         Um dos maiores doadores e Prestadores

                    de assistência tÉcnica e financeira




                                Rubens Barbosa




a
                   assistência técnica e fi-          Sem chamar muito a atenção, e gra-
                   nanceira prestada pelo      dualmente aumentando sua presença no
                   Brasil a dezenas de pa-     exterior, o Brasil está se tornando um dos
                   íses, especialmente da      maiores doadores e prestadores de assis-
                   África e da América La-     tência técnica e financeira para os países
                   tina, é um dos aspectos     com menor desenvolvimento relativo. Por
da política externa que pouco tem mere-        meio de diversas formas de ajuda, o Brasil,
cido a atenção de analistas e estudiosos.      somente em 2010, teria se comprometido
Trata-se de um dos desdobramentos da           com mais de US$4,5 bilhões.
política Sul-Sul, desenvolvida nos últimos            Quais as motivações dessa ação
oito anos pelo governo brasileiro.             governamental no exterior, o volume e

40
as fontes dos recursos transferidos aos       assento permanente no conselho de segu-
países mais pobres?                           rança da Organização das Nações Unidas
       Reforçar a solidariedade com gestos    (ONU) e interesses comerciais de abertu-
políticos do Brasil no mundo é a explica-     ra de mercado para serviços de empresas
ção oferecida pelo Itamaraty. Na realidade,   brasileiras na competição com o governo e
algumas das motivações que explicam a di-     companhias, sobretudo da China.
plomacia da generosidade na América La-              Como ocorre com a China, o Bra-
tina e na África durante o governo passado    sil não impõe condições aos países que
foram: a busca de prestígio para o Brasil e   recebem a ajuda, mas também não leva
para o presidente Lula; o esforço a fim de    em consideração valores que defende-
obter apoio para a nossa pretensão de um      mos internamente, como democracia e

                                                                                    41
direitos humanos, deixando prevalecer       a Convergência Estrutural do Merco-
a ideia de que “negócios são negócios”.     sul, que sobe hoje a US$470 milhões,
       Segundo informações coligidas        acrescido de US$100 milhões por ano,
em 2011 pelo The Economist, os recur-       70% representados por contribuições
sos utilizados nessa ação externa sobem     do Brasil.
a US$1,2 bilhões, superando o Canadá               Por outro lado, além de créditos
e a Suécia, tradicionais doadores e pres-   de difícil recuperação concedidos a al-
tadores de ajudas aos países em desen-      guns países africanos, a Cuba e a Ve-
volvimento. Os recursos são oriundos        nezuela, o governo brasileiro, nos últi-
da Agência Brasileira de Cooperação         mos anos, perdoou dívidas do Congo,
do Itamaraty, com cerca de US$52 mi-        de Angola, de Moçambique, da Bolívia,
lhões em 2010. De outras instituições       do Equador, do Paraguai, de Suriname e
de cooperação técnica, como a Empre-        agora da Tanzânia.
sa Brasileira de Pesquisa Agropecuária             Até dezembro de 2010, coincidin-
(Embrapa), e a Companhia Nacional de        do com o final do governo anterior, se-
Abastecimento (Conab), saem US$440          gundo se noticiou, o governo brasileiro
milhões; para ajuda humanitária a países    vai doar US$300 milhões em alimentos
afetados por desastres naturais, US$30      (milho, feijão, arroz, leite em pó) para,
milhões; recursos para a United Nations     entre outros, Sudão, Somália, Níger e
Development Programme (UNDP) das            nações africanas de língua portuguesa.
Nações Unidas, US$25 milhões; para          Serão igualmente beneficiados a faixa
o programa de alimentação da Food           de Gaza, El Salvador, Haiti e Cuba. Se-
and Agriculture Organization (FAO),         gundo a Coordenação Geral de Ações
US$300 milhões; de ajuda para a faixa       Internacionais de Combate à Fome do
de Gaza, US$10 milhões e para o Hai-        governo federal, também receberam
ti, US$350 milhões. Implantamos escri-      ajuda brasileira, África do Sul, Jamaica,
tório de pesquisas agrícolas em Gana;       Armênia, Mali, El Salvador, Quirguis-
fazenda-modelo de algodão no Mali; fá-      tão, Saara Ocidental, Mongólia, Iraque
brica de medicamentos antirretrovirais      e Sri Lanka.
em Moçambique e centros de formação                No tocante à assistência técnica e
profissional em cinco países africanos      à abertura de créditos para obras públi-
       Os empréstimos do Banco Na-          cas em países africanos e sul-americanos,
cional do Desenvolvimento (BNDES) e         a exemplo do que ocorre com os países
agora do Banco do Brasil para os países     desenvolvidos, as empresas brasileiras
em desenvolvimento, de 2008 ao pri-         poderão vir a se beneficiar, ganhando
meiro trimestre de 2010, subiram para       concorrências para a prestação de servi-
mais de US$3,5 bilhões, em projetos na      ços e exportando produtos brasileiros.
América do Sul, no Haiti, em Guiné-                Essa vertente da política externa
Bissau, em Cabo Verde, na Palestina, no     reforça o soft power do Brasil, a principal
Camboja, em Burundi, no Laos e em           característica da crescente projeção ex-
Serra Leoa. De 2003 a 2010, o BNDES         terna do país.
concedeu US$5,3 bilhões para projetos
de infraestrutura na América Latina.
       O Tesouro Nacional, por outro        Rubens Barbosa, diplomata de longa trajetória, foi
                                            embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na
lado, aumentou sua exposição com o
                                            Inglaterra, é considerado um dos maiores especialistas
incremento da contribuição do Bra-          em comércio internacional do Itamaraty e é autor de
sil na Corporação Andina de Fomento         América Latina e perspectiva: a integração
para US$300 milhões e no Fundo para         regional da retórica à realidade, entre outros livros.

42
REFLEXÃO




GEOESTÉTICA
comPleXidade em discUssão




                        Ibis Hernandez




Q
                      uando, há algum tempo, fui convidada a par-
                      ticipar do segundo seminário Geoestéticas
                      do Caribe, tive a preocupação que interpre-
                      tei, no início, como uma sorte de causalida-
                      de geográfica operando no terreno da arte.
                      Tendo em conta o nível de complexidade
e caráter multifacetado dos fenômenos que incidem no com-
portamento das práticas artísticas no Caribe, imaginei que seria
difícil abordar essa produção desde que acreditei ser uma pers-
pectiva reducionista. Mas quando recebi uma cópia dos textos
apresentados na primeira edição desse seminário, vislumbrei a
possibilidade de focar o tema manejando uma noção múltipla
do território que, além do cenário que provê a geografia do Cari-
be, permitisse compreender, desde a perspectiva da arte, à apro-
priação do território caribenho, que empreenderam indivíduo

                                                               43
e sociedade durante os últimos quinhen-      cial metafórico tem se convertido em
tos anos. Seria esta uma noção de terri-     recurso eficaz para adentrar-se aos do-
tório que ultrapassa os limites impostos     mínios da psicogeografia especial e ex-
pela Geografia e adiciona um bem feno-       plorar as sensações e estados de ânimo
menológico que compreende as inscri-         que provoca “a maldita circunstância da
ções deixadas pelo sujeito que o ocupa       água por todas as partes”, a que se refe-
e faz história.                              ria o escritor cubano Virgilio Piñera em
       De igual modo, acreditei ser per-     seu poema La isla en peso . Insularidade,
tinente mencionar a existência de vários     fronteira e migração são temas que se
critérios, tanto no referente à delimita-    transpassam e podem compartilhar um
ção geográfica desta região, como a sua      repertório comum de significantes. O
delimitação cultural. São diversos os au-    mar, a embarcação e a cartografia têm
tores que têm se referido a esta questão,    sido três dos ícones mais recorrentes e é,
mas a multiplicidade de argumentos ter-      na realidade, a ideia de que a viagem está
mina apontando, definitivamente, até o       indissoluvelmente ligada às condições
Caribe (lugar), e/ou Caribe como uma         geográficas e à história da região. Um
construção sócio-histórica e cultural que    exemplo são os passeios de canoa nos
muda segundo o lugar de enunciação, o        bairros nativos, as viagens de Colombo,
período histórico e a posição ideológica     o trânsito dos navios negreiros - de onde
deste se define, dentre outros aspectos.     teve origem a aventura do “abismo”, a
       Dada a superposição de cartogra-      que se refere Glissant -; os movimen-
fias existentes em relação com o Caribe,     tos de corsários e piratas, dentre outros.
decidi circunscrever a análise da obra de    Agora no terreno da arte, a imagem da
artistas que vivem e/ou trabalham nos        embarcação não só reproduz as viagens
territórios do arco insular e do resto da-   históricas, como abordam também mi-
quela região, considerando também os         grações e traslados mais recentes, pois
países que integram a Extensão Centro-       não se pode esquecer que navegam nes-
Americana, de acordo com o padrão in-        sas águas azuis, luxuosos cruzeiros e pre-
clusivo aplicado já por alguns eventos que   cárias balsas. De igual modo, os remos,
têm versado sobre a arte na zona. Em         pontes e portos têm revelado o desejo
termos temporais, o recorte abarcaria as     de buscar novos horizontes, a sensação
duas últimas décadas, recordando que,        de medo ou a insegurança experimenta-
justo nos anos de 1990, emergiu no Cari-     da na travessia. A arte edifica, assim, um
be uma vanguarda que, imersa na batalha      território de constantes deslocamentos,
pela conquista de uma identidade artística   de margens imprecisas e flutuantes que,
contemporânea, explorou novos cami-          não por renegar a norma imposta pelo
nhos formais e conceituais de tendência,     mapa geográfico, consegue desmarcar-
ao modificar os clichês advindos dos em-     se das circunstâncias e a paisagem real
blemas regionais, ativando, de um modo       na qual irremediavelmente se inscreve.
inédito, a cena artística de um bom nú-             Em sua densidade metafórica, o
mero de países. Dentro deste panorama,       mapa geográfico tem tido também uma
foi possível detectar algumas orientações    presença destacada nas artes visuais do
que se conectam ao tema da geoestética.      Caribe. Em Cuba, chegou a converter-
       Digamos, por exemplo, que o mar,      se em um dos ícones mais versáteis da
associado ao tema da paisagem, como          plástica dos anos 1990, dentre as poéticas
motivo de pesquisa plástica ou em qua-       que deram continuidade ao debate crítico
lidade de metáfora, atravessa parte do       iniciado na década anterior, agora, desde
imaginário visual da Região. Seu poten-      um hedonismo simulador que encontrou

44
nesta metáfora geográfica um código           zona geocultural do Caribe; não menos                         Na página
eficaz para prolongar, de forma astuta, a     importantes seriam aquelas que con-                     anterior, Mapas
discussão sobre tópicos cadentes da re-       templam o nexo com o etnocultural, ou                       (detalhe) de
alidade social. No solitário, multiplicado,   as práticas de inserção social nas comu-              Ibrahim Miranda
                                                                                                      (Cuba). Acima,
desdesenhado ou sobredimensionado;            nidades fixas transterritoriais, no espa-                Cinco Carosas
transformando em balsa, cesta, jaula, ra-     ço das urbes modernas, e nas zonas de                  para la Historia,
bisco, homem ou animal; ocupando seu          assentamento ilegal e dos bares. Expe-                1991, instalación
lugar no mapa-múndi ou transladado a          riências desse porte se estendem com                    (técnica mixta),
uma oficina de reparações, o mapa da          alcance desigual por vários países da                    de Marcos Lora
                                                                                                      Read (República
ilha estendeu seu enorme potencial se-        área e merecem igual atenção, ainda que                   Dominicana).
mântico ao se descobrir como território       tenhamos pretendido visualizar apenas                        Foto David
de aspirações, frustrações, utopias, me-      um pequeno recorte de tudo quanto po-                        Damoison.
mórias, migrações, batalhas, vicissitudes     deria abarcar o tema.
e identidades, em um dos momentos
mais difíceis da história de Cuba.
       Muitas outras linhas de trabalho       Ibis Hernández Abascal é pesquisadora e curadora do
dão conta da relação arte-território na       Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam, de Cuba.


                                                                                             45
ECONOMIA




          o sistema da dÍvida e a


inflação
           no Brasil
                   Maria Lucia Fattorelli




a
                   atual crise financeira mundial teve início em
                   2008, localizada nas maiores instituições fi-
                   nanceiras do mundo que corriam risco de
                   quebra devido à utilização desenfreada de
                   diversos produtos financeiros sem lastro,
                   especialmente os derivativos. Apesar de nu-
merosas denúncias de fraudes, as nações mais ricas do mundo
decidiram “salvar” tais instituições com a emissão de grandes
volumes de dívida pública. Tal procedimento escancarou a uti-
lização do endividamento público às avessas, ou seja, a dívida
pública deveria servir para aportar recursos ao Estado e não
o contrário. Dessa forma, a crise atual expôs as entranhas do
que batizamos de “Sistema da Dívida”, isto é, a utilização do
instrumento do endividamento público como um sistema de
desvio de recursos públicos em direção so sistema financeiro.
46
Para operar, esse sistema conta com ar-      transferência de recursos públicos ao
cabouço de privilégios de ordem legal,       setor financeiro.
política, financeira e econômica, que               Os trabalhos da CPI e da Audito-
visam a garantir prioridade absoluta         ria Cidadã da Dívida têm comprovado
aos pagamentos financeiros, em detri-        que também em nosso país o “Sistema
mento de direitos humanos e sociais de       da Dívida” conta com privilégios de toda
toda a Nação.                                ordem, especialmente com uma superes-
       No Brasil, apesar de a Constitui-     trutura legal que parte da Constituição
ção Federal prever a realização da au-       Federal: reafirma-se na Lei de Diretrizes
ditoria da dívida, tal dispositivo nunca     Orçamentárias, na Lei de Responsabi-
foi cumprido. As recentes investigações      lidade Fiscal e na legislação que rege o
da Comissão Parlamentar de Inquérito         chamado “Regime de Metas de Infla-
(CPI) da Dívida Pública revelaram a          ção”, dentre outras normas, afetando di-
absoluta necessidade da realização da        retamente a vida de toda a sociedade.
auditoria da dívida, tendo em vista a               No presente artigo menciono de
comprovação de numerosos indícios e          forma resumida como um conjunto de
evidências de ilegalidades, ilegitimidades   normas legais nacionais tem garantido
e, especialmente, a utilização do endivi-    prioridade absoluta à remuneração dos
damento público como instrumento de          detentores de títulos da dívida brasilei-

                                                                                   47
ra por meio de elevadas taxas de juros,      represente ônus financeiro ao orçamen-
favorecendo ainda o crescimento con-         to da União terá, obrigatoriamente, que
tínuo do estoque da própria dívida pú-       indicar a fonte de recursos suficiente
blica, com a emissão continuada e até        para tal gasto, exceto os gastos com a
inconstitucional de dívida para pagar        dívida pública. Dessa forma, se o Banco
esses elevados juros.                        Central eleva as taxas de juros sob a jus-
       O mais grave é que todo esse apa-     tificativa de conter a inflação, por exem-
rato “legal” que favorece o setor finan-     plo, e gera a necessidade de mais recur-
ceiro surgiu no campo jurídico de forma      sos para pagar tais juros, não ocorre a
tortuosa e demanda aprofundamento de         necessidade de indicar de onde sairão os
estudos e investigações.                     recursos para tanto: o remédio aplicado
       Paira sob o art. 166, § 3º., II “b”   tem sido emitir dívida para pagar dívida.
da Constituição Federal, robusta de-                 O referido remédio conflita com
núncia de que tal dispositivo jamais         outro dispositivo constitucional – art.
chegou a ser votado pelos parlamen-          167, III - que estabelece a proibição de
tares constituintes, tendo sido incluído     emissão de dívida para pagar despesas
no texto final como um contrabando,          correntes, rubrica que compreende os
segundo especialistas do Congresso           juros da dívida. As investigações reali-
Nacional à época – Anatomia de uma           zadas durante a CPI da Dívida Pública
Fraude à Constituição.                       revelaram a contabilização irregular de
       Tal dispositivo excetua os gastos     grande parte dos juros como se fos-
com a dívida pública da regra geral apli-    sem amortizações, o que representa
cada aos demais gastos, isto é, qualquer     mais uma flagrante evidência de burla à
proposta de gasto ou investimento que        Constituição e ilegalidade no tratamen-
                                             to dos gastos da dívida.
                                                     Além do indício de desobediên-
                                             cia ao dispositivo constitucional, tal fato
                                             revela o encobrimento do efetivo custo
                                             dos juros da dívida, aliviando seu peso
                                             quando comparado, por exemplo, com
                                             as despesas de Pessoal, Previdência e
                                             outras, que acabam sendo traduzidas
                                             em grandezas distintas. Enquanto os
                                             dispêndios com Pessoal ou Previdên-
                                             cia englobam a variação de preço neles
                                             embutidos (por exemplo, reajustes sala-
                                             riais decorrentes de inflação, atualização
                                             de tabelas dos serviços de saúde, atua-
                                             lização de benefícios previdenciários,
                                             reajuste do salário mínimo decorrente
                                             da inflação, dentre outros), o valor dos
                                             “Juros e Encargos da Dívida” considera
                                             somente a parcela dos juros que supera
                                             a inflação. Tal fato decorre da metodo-
                                             logia utilizada no Balanço Orçamentário
                                             da União, que tem considerado como
                                             “Juros” somente a parcela que supera a
                                             inflação indicada por índices (IGP-M), e

48
computa a atualização monetária da dí-        a execução das “políticas necessárias para
vida pública juntamente com a rubrica         cumprimento das metas fixadas”.
“Amortização”.                                       Cabe observar mais uma desor-
       Evidencia-se, portanto, que a          dem legal, pois o citado decreto confli-
mesma “inflação” que serve de argu-           tua com a Lei 4.595 (art. 3º., II), da qual
mento terrorista para coibir e proibir        decorre, já que a utilização preponde-
reajustes automáticos para os salários,       rante das taxas de juros no controle da
aposentadorias e outros direitos sociais      inflação significa o descarte das demais
com base em sua variação, não vale para       medidas mencionadas na referida lei,
os juros da dívida, que têm a parcela da      necessárias para o controle da inflação,
inflação expurgada de seu custo e sequer      tais como a prevenção ou a correção de
computada nos juros, mas erradamente          depressões econômicas e outros dese-
como amortização.                             quilíbrios conjunturais. Além desse in-
       Desde 1999, com a edição do De-        dício de ilegalidade, a eleição das taxas
creto 3.088, foi instituído no Brasil o       de juros como praticamente o único ins-
regime de “Metas de Inflação”, que ele-       trumento de combate à inflação contém
geu a Política Monetária - taxas de juros     uma série de inconsistências que provo-
- como o principal instrumento de com-        cam repercussões econômicas e sociais.
bate à inflação, dado que o art. 2º. do De-          O Brasil já apresenta preocupan-
creto delegou ao Banco Central do Brasil      tes índices de desindustrialização e dados

                                                                                      49
oficiais comprovam que mais de 70%                  Esse mecanismo tem provocado
da inflação decorre dos grandes aumen-       megaprejuízos operacionais ao Banco Cen-
tos nos preços administrados (tarifas de     tral - R$ 147,7 bilhões em 2009 (http://
energia, telefone, combustível, transpor-    www.bcb.gov.br/htms/inffina/be200912/
tes, entre outros) que influenciam forte-    dezembro2009.pdf) e R$ 48,5 bilhões em
mente na formação dos preços.                2010 (http://www.bcb.gov.br/htms/in-
       As distorções que favorecem o Sis-    ffina/be201012/dezembro2010.pdf) - o
tema da Dívida prosseguem nas chamadas       que representa significativo dano ao patri-
“Operações de Mercado Aberto”, realiza-      mônio público, pois tal prejuízo é, por lei
das em grande volume pelo Banco Central      (11.803/2008, art. 6º.), coberto pelo Tesou-
sob a justificativa de combate à inflação    ro Nacional, ou seja, por todos nós.
e na prática representam dívida feita sem           A justificativa reiteradamente
autorização legislativa, em flagrante con-   apresentada pelo governo para a acumu-
flito com a Lei Complementar 101/2000,       lação de reservas internacionais (prote-
que proibiu a emissão de títulos pelo Ban-   ção do país de fugas de capital em crises
co Central. Tais operações estão servindo    financeiras globais) não se sustenta, dado
para trocar dólares especulativos que in-    que tal proteção seria feita de forma bem
gressam no país, sem controle, por títulos   mais eficiente por meio do controle so-
da dívida pública que pagam os juros mais    bre o fluxo de capitais financeiros, adota-
elevados do mundo, sob a justificativa de    do com sucesso por vários países.
controle da inflação mediante o enxuga-             O resultado tem sido o crescimento
mento da base monetária.                     explosivo da dívida pública, cujo montan-




50
te supera R$ 2,5 trilhões, e o pagamento     eficientes: redução da taxa de juros;
de juros e amortizações consumiu 45%         controle e redução dos preços admi-
dos recursos do orçamento federal em         nistrados; reforma agrária para garantir
2010, conforme mostra o gráfico a seguir.    a produção de alimentos não sujeitos
       Neste ano de 2011 a taxa de juros     à variação internacional dos preços de
Selic já subiu 5 vezes, saindo de 10,75% e   commodities; controle de capitais para
alcançando 12,5%. Recentemente ocor-         evitar o ingresso de “capitais abutres”,
reram duas reduções de apenas 0,5% e         meramente especulativos, e as fugas no-
a Selic está situada no elevado patamar      civas à economia real; adoção de medi-
de 11,5% ao ano, enquanto mais de 40         das tributárias apropriadas ao controle
países praticam taxas de juros inferio-      de preços. Para tanto, é necessário de-
res a zero. A prática de elevadas taxas      sarmar o Sistema da Dívida e corrigir os
de juros não tem servido para combater       rumos da política econômica.
o tipo de inflação que temos. Adicio-
nalmente, perpetua a concentração de
renda no Brasil , 7ª. economia mundial,
que ocupa a vergonhosa posição de 8º.
país mais injusto do mundo, segundo o
Índice de Gini, e é o 73º. no ranking de
respeito aos direitos humanos.               Maria Lucia Fattorelli é coordenadora da Auditoria
       Alternativas para o efetivo com-      Cidadã da Dívida desde 2001 e colaboradora do Le
bate à inflação existem e são muito mais     Monde Diplomatique.




                                                                                              51
ELEIÇÕES




     nÉstor e cristina
KIRCHNER
     afirmação do Peronismo




                   Luis Fernando Ayerbe




a
                    Argentina sai de um conflito interno de
                    amplas proporções a partir do colapso fi-
                    nanceiro de 2001, que levou à renúncia do
                    presidente Fernando de la Rúa, da Unión
                    Cívica Radical (UCR). Sob a presidência de
                    Eduardo Duhalde, nomeado pelo congres-
so, cristalizando um processo de normalização institucional.
Com Néstor e Cristina Kirchner com três mandatos sucessivos,
a partir de 2003, consolida-se a supremacia do peronismo na
política nacional, sob um quadro de forte crescimento da eco-
nomia e melhoria dos indicadores sociais. O governo de Nés-
tor Kirchner opera em um clima de relativa estabilidade eco-
nômica, com uma recuperação favorecida pela suspensão dos
pagamentos da dívida e sua posterior reestruturação, amplia-
ção do consumo pela expansão dos gastos de uma população
52
Revista Memorial América Latina
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Revista Memorial América Latina

  • 1. Nossa Revista do Memorial da América Latina N°44 - Ano 2012 | 1º trimestre - R$9,00 GUERRa E PaZ pORtInARI nO MEMORIAl InflaÇÃO E DÍVIDA públIcA BRaSIl, uM pAÍs DOADOR REElEIÇÃO DE cRIstInA KIRcHnER
  • 2. Faça aqui seu evento! www.memorial.sp.gov.br Informações: 3823-4618
  • 3. Nossa Revista do Memorial da América Latina N°44 - Ano 2012 | 1º trimestre - R$8,00 Número 44 ISSN 0103-6777 EDITORIAL 04 Antonio Carlos Pannunzio EDUCAÇÃO 06 Helgio Trindade ANÁLISE Everaldo de Oliveira 10 Andrade Mãe, 1955. Candido Portinari. Pintura a óleo/madeira compensada. 160 x 110cm OPINIÃO 14 Enrique Amayo Zevallos ENSAIO 18 Sergio Guerra ARTE 24 Eduardo Rascov CRÍTICA 32 Julia P. Herzberg GOVERNADOR GERALDO ALCKIMIN REVISTA NOSSA AMÉRICA DIRETOR CULTURA 37 SECRETÁRIO DA CULTURA ANDREA MATARAZZO ANTONIO CARLOS PANNUNZIO Leonor Amarante 40 EDITORA EXECUTIVA/DIREÇãO DE ARTE FUNDAÇÃO MEMORIAL LEONOR AMARANTE DA AMÉRICA LATINA POLÍTICA EDITORA ADJUNTA CONSELHO CURADOR ANA CANDIDA VESPUCCI Rubens Barbosa PRESIDENTE 43 ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO ASSISTENTE DE REDAÇãO MÁRCIA FERRAZ SECRETÁRIO DA CULTURA REFLEXÃO ANDREA MATARAZZO DIAGRAMAÇãO (ESTAGIÁRIO) FELIPE DE PAULA LOPES SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA Ibis Hernández Abascal PAULO ALEXANDRE BARBOSA REVISãO (ESTAGIÁRIO) 46 ELIAS CASTRO REITOR DA USP JOãO GRANDINO RODAS ECONOMIA DIAGRAMAÇãO E ARTE ESTAÇãO DAS ARTES/SILVIA SATO REITOR DA UNICAMP FERNANDO FERREIRA COSTA Maria Lucia Fattorelli TRADUÇãO E REVISãO ESTAÇãO DAS ARTES/DEISE ANNE RODRIGUES/ 52 REITOR DA UNESP (em exercício) JÚLIO CEZAR DURIGAN FERNANDA LIMA ELEIÇÕES PRESIDENTE DA FAPESP COLABORARAM NESTE NÚMERO CELSO LAFER Helgio Trindade, Everaldo de Oliveira Andrade, Enrique Amayo Zevallos, Sergio Guerra, Eduardo Rascov, Julia Luis Fernando Ayerbe REITOR DA FACULDADE ZUMBI DOS PALMARES P. Herzberg, Leonor Amarante, Rubens Barbosa, Ibis 56 JOSÉ VICENTE Hernández Abascal, Maria Lucia Fattorelli, Luis Fernando PRESIDENTE DO CIEE Ayerbe, Reynaldo Damazio, Bruno Perón Loureiro, Dario LIVRO RUI ALTENFELDER SILVA Pignotti. DIRETORIA EXECUTIVA CONSELHO EDITORIAL Reynaldo Damazio Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi 59 DIRETOR PRESIDENTE Arrigucci Jr., Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis ANTONIO CARLOS PANNUNZIO Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga DEBATE DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, ADOLPHO JOSÉ MELFI Roberto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes. Bruno Peron Loureiro DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS FERNANDO CALVOZO 62 NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral da Fundação DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO (em exercício) Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares COMENTÁRIO ANGELO DE JESUS FERREIRA LOPES de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604. CHEFE DE GABINETE IRINEU FERRAZ Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Dario Pignotti Email: publicacao@fmal.com.br. DIRETOR PRESIDENTE MARCOS ANTONIO MONTEIRO Os textos são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo o pensamento da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista. AGENDA 65 Da Redação DIRETOR INDUSTRIAL 66 TEIJI TOMIOKA DIRETOR FINANCEIRO POESIA MARIA FELISA MORENO GALLEGO Xavier Villarrutia DIRETOR DE GESTãO DE NEGÓCIOS JOSÉ ALEXANDRE PEREIRA DE ARAÚJO Gonzáles 3
  • 4. EDITO Neste número inaugural de conciliadoras, segundo o historiador 2012, a revista Nossa América registra Enrique Amayo Zevallos. o passo significativo que o Brasil está Na esfera das artes plásticas, qua- dando para a integração latino-ameri- tro temas. Um deles, Nossa América foi cana. Trata-se da Unila (Universidade buscar na Colômbia: convidou a crítica Federal da Integração Latino-Ameri- norte-americana Júlia P. Herzberg para cana), em Foz do Iguaçu, na Tríplice escolher quatro talentos do país e regis- Fronteira. A instituição já está em ati- trar sua opinião sobre a importância de- vidade, em sede provisória, e quem ex- les no cenário contemporâneo. Outro é plica os propósitos da iniciativa é seu a exposição de obras de Portinari, que o reitor Helgio Trindade. No outro ex- Memorial realiza entre fevereiro e abril, tremo do Continente corre a seguinte com uma seleção dos mais importantes questão: o que o presidente boliviano momentos do autor. Já o ensaio foto- Evo Morales pode fazer pelas comuni- gráfico desta edição reúne imagens de dades indígenas. Na opinião do histo- Sérgio Guerra, “baiano” que mora em riador Everaldo de Oliveira Andrade, Angola, com o intuito de lembrar a re- pode fazer muito, com sua política de levância dos afrodescendentes, cujo ani- promoção de um Estado plurinacional. versário foi comemorado no ano pas- Por sua vez, Ollanta Humala, presi- sado. Por fim, um panorama da Bienal dente do Peru, também ganha avalia- Vento Sul de Curitiba, traçado por Leo- ção positiva com seu governo de ações nor Amarante, editora de Nossa América, 4
  • 5. ORIAL para quem o evento carrega o mérito da ner, “provada” e aprovada pelo eleitor persistência. com uma quantidade de votos insus- Um assunto bastante atual: gradu- peitada. A análise é do especialista Luís almente o Brasil aumenta sua presença Fernando Ayerbe. no exterior, ao se tornar um dos maio- Para encerrar, uma resenha do li- res doadores de assistência técnica e fi- vro Responsabilidade do Estado, de Sô- nanceira a países menos desenvolvidos, nia Sterman, dissertação de mestrado da artigo de Rubens Barbosa, ex-embaixa- autora, já em segunda edição. E um ar- dor do Brasil em Washington. Também tigo do jornalista Bruno Perón Loureiro pertinente é a questão da geoestética da sobre a reserva de lítio de Uyuni, conhe- visualidade caribenha, que Ibis Hernán- cida como a Pérola dos Andes. Além da dez Abascal desenvolve a partir do nexo agenda, sobre eventos realizados pelo com a área etnocultural. Memorial, e a tradicional poesia que fe- Como a inflação afeta o “sistema cha a edição, neste número assinada por da dívida” brasileira? Quem responde é Xavier Villarrutia Gonzáles. Maria Lucia Fattoreli, colaboradora do Boa leitura! Le Monde Diplomatique, que defende a redução das taxas de juros e a adoção de outros mecanismos de controle infla- cionário. No país vizinho, a Argentina, Antonio Carlos Pannunzio a questão é o fenômeno Cristina Kirsh- Presidente do Memorial da América Latina 5
  • 6. EDUCAÇÃO Unila Universidade federal da integração latino-americana Helgio Trindade P ara promover a integração, o desenvolvimen- to e a cooperação solidária entre os países da América Latina, a partir do conhecimento e da formação de recursos humanos de alto nível, o Ministério da Educação do Brasil (MEC) enviou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em dezembro de 2007, o Projeto de Lei de Criação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) que foi sancionado por meio da Lei 12.189, de 12 de janeiro de 2010.Trata-se de uma proposta inédita, que pela primeira vez no contexto latino-americano previu a criação de uma uni- versidade nacional dirigida à integração do Continente, com o princípio de trabalhar de forma programada a vocação integra- cionista das instituições de educação superior. Presidida pelo professor Hélgio Trindade, ex-reitor da Universidade Federal do 6
  • 7. Rio Grande do Sul (UFRGS), ex-mem- (português e espanhol). Alem disso, tem A universidade já bro do Conselho Nacional de Educa- como objetivo a formação de redes de funciona em prédio ção (CNE), a Comissão de Implantação cooperação com universidades de toda provisório e deve ser (CI) da Unila, formada e investida pelo a América Latina. transferida para um complexo projetado MEC, com 13 especialistas em educa- A localização da cidade de Foz do por Oscar Niemeyer. ção superior e integração, trabalhou por Iguaçu, na Tríplice Fronteira, foi fator dois anos no desenvolvimento e na es- determinante por dois aspectos. De um truturação do plano político- pedagógi- lado correspondente à política do atu- co da Universidade. al governo, de expansão superior e in- Apesar de a Unila ser uma univer- teriorização até as regiões de fronteira. sidade do sistema federal de educação Também por ser fronteira trinacional, o superior do Brasil, sua especificidade que sem dúvida enriquece o projeto e o decorre de sua missão própria: a inte- caráter multiétnico da formação histó- gração latino-americana. Nesta pers- rica da região. A hidrelétrica de Itaipu pectiva está a sua vocação institucional Binacional apoiou a criação da Unila, original. Financiada pelo MEC, como as doando uma área de 40 hectares para demais universidades federais, seu olhar a construção do futuro campus e coo- esta voltado de forma prioritária para perou na elaboração do projeto arquite- a América Latina, com o objetivo de tônico de Oscar Niemayer. Atualmente desenvolver uma cooperação solidária o PTI abriga a sede provisória da Unila com os países na região. O seu campus até a conclusão do Campus, que está em deverá ser um local de experiência da fase de construção. integração em termos acadêmicos, cien- O fato de que Niemayer tenha tíficos e culturais, por meio do convívio desenhado o projeto do campus foi entre professores e alunos. uma grata surpresa, pois a ideia inicial O Anteprojeto estipula que a me- era ter do arquiteto somente o prédio tade dos 10.000 alunos previstos e dos da biblioteca. Seu projeto para a Uni- 500 professores seja selecionada nos la é majestoso, como são todas as suas diversos países latino-americanos e a obras, e os seus traços simbolizam a outra metade no Brasil. Para promover integração latino-americana. No total, esta integração, a Unila será bilíngue serão cerca de 150 mil metros quadra- 7
  • 8. dos, divididos em seis edifícios: prédio central, biblioteca, anfiteatro, restau- rante universitário e dois edifícios para aulas e laboratórios. Foi decidida pela Comissão de Implantação a utilização múltipla dos espaços, e procurou-se adaptar o projeto para uma maior con- vivência entre alunos e professores. O projeto de uma Biblioteca de referência na América Latina (Biunila) sobre integração regional e compara- da prevê um moderno centro de do- cumentação e informação virtual, com capacidade para 300 mil volumes. A biblioteca estará integrada com o Ins- tituto Mercosul de Estudos Avançados (Imea). Este é um centro interdiscipli- nar de pesquisa e pós-graduação que atualmente atua por meio de Cátedras Latino-Americanas nos diferentes campos do saber. Já com o apoio da Associação de Universidade do Grupo de Montevidéu (AUGM), pretende-se formar uma rede de pesquisas avança- das que se organize a partir da integra- ção do Imea. A proposta da Biunila e do Imea tem o apoio do governo brasi- leiro por meio do Focem (Fundo para a Convergência Estrutural e Fortaleci- distintas de contratação para professo- mento Institucional do Mercosul). A res doutores seniores e jovens doutores. Biunila e o Imea deverão atender a re- Os docentes são contratados por seu gião e ser referência em pesquisa sobre perfil como professores visitantes tem- a América Latina. porários, recrutados de acordo com sua Quanto à seleção de alunos brasi- capacidade nos outros países da Améri- leiros e estrangeiros, esta é realizada de ca Latina. Este formato permite maior forma diferenciada. Os brasileiros são flexibilidade na contratação e na per- selecionados por meio do Enem (Exa- manência dos especialistas estrangeiros, me Nacional do Ensino Médio) enquan- provendo uma maior circulação destes to os estrangeiros são selecionados em professores, o que cremos ser benéfico seus países de origem de acordo com para a instituição. Deve-se destacar que critérios definidos pela Unila em acordo haverá um desenvolvimento progressi- com os seus Ministérios da Educação. vo do tamanho da Universidade até que O corpo docente brasileiro (250 alcance a meta de 500 professores e 10 professores) é selecionado por meio mil alunos. A concretização do projeto de concurso público, como se faz em deverá ser alcançada até o ano de 2017. qualquer outra universidade federal bra- A Unila já oferece cursos inter sileira, mas com banca internacional. e transdisciplinares, áreas inovadoras, Entretanto, foram criadas modalidades afastando-se das carreiras clássicas. Ini- 8
  • 9. ciou com uma oferta de 12 cursos de no resultado de uma consulta interna- O conjunto terá graduação, e está implementando pro- cional realizada com mais de uma cente- prédio central, bi- gramas de pós-graduação. A ênfase é na de especialistas. blioteca, anfiteatro, dada aos cursos considerados estratégi- Há uma grande receptividade do restaurante e dois cos para a integração, como formação projeto da Unila, em âmbito nacional e edifícios para aulas e laboratórios. de professores, recursos naturais, rela- internacional. No Congresso Nacional ções internacionais, processos culturais a criação da Unila recebeu aprovação e outros. A proposta é dirigida a estabe- unânime e conta atualmente com alu- lecer ciclos de formação: o ciclo básico, nos de vários países da América Latina o ciclo profissional e o ciclo de integra- (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Para- ção latino-americana. Porém, deve-se guai, Peru e Uruguai). Em 2012, a Uni- destacar que a questão da integração la receberá alunos de toda a América regional deverá permear toda a forma- do Sul e de alguns países da América ção do aluno, constituindo o princípio Central e do Caribe. da instituição. Esta proposta é resultado do trabalho da Comissão de implanta- ção da Unila, que realizou um diagnósti- co da oferta de cursos de graduação na Helgio Trindade é cientista político e atual presidente América Latina para evitar a reprodução da Comissão para a Instalação da Universidade dos mesmos cursos e também se apoiou Federal da Integração Latino- Americana (Unila). 9
  • 10. ANÁLISE EVO MORALES e as comUnidades indÍgenas Everaldo de Oliveira Andrade H á uma história ancestral no mundo andi- no que a ascensão de Evo Morales pare- ce ter projetado novamente para a luz. O mundo andino foi marcado pela sobrevi- vência ao longo de séculos de resistência das comunidades indígenas aymarás e qhéchuas, entre outras, que sobreviveram à colonização es- panhola e aos anos conturbados que se seguiram às indepen- dências no século XIX. O genial e precoce pensador peruano José Carlos Mariátegui já havia notado uma profunda socie- dade indígena remanescente e entranhada na própria terra, um elo de ligação entre a solidariedade comunitária e um fu- turo libertário para a América Latina com que sonhava. Na Bolívia, nem sempre esse laço de solidariedade previsto por Marátegui entre os de baixo foi claro. Mesmo os proletários 10
  • 11. mineiros que se enfrentaram nas dé- cidadania liberal, da propriedade in- Os líderes indígenas cadas de 1940 e 1950 com os mine- dividual e da liberdade. Isso cravou esperam um diálogo radores, sob as bandeiras socialistas, novas feridas na sociedade boliviana, que Evo Morales pouca atenção deram ao mundo in- ainda mal curadas. O sociólogo boli- acena conduzir. dígena. Uma fragilidade que a His- viano René Zavaleta Mercado chegou tória não deixou de cobrar seu pre- a forjar o conceito de “sociedade abi- ço. A revolução de 1952 e sua quase garrada”, para tentar entender uma esquecida e pálida reforma agrária nação junta, mas não unida, em que buscaram, sob a liderança dos nacio- conviviam em um mesmo quadro so- nalistas reformistas, desestruturar as cial setores sociais quase incomunicá- comunidades indígenas em nome da veis. Isso está mudando? 11
  • 12. Durante os anos 1970, quan- cosmético, pode fortalecer o regionalis- do vigorava uma ditadura militar no mo e a fragmentação social dos setores poder desde 1964, um vigoroso mo- populares e do tradicional e combativo vimento indigenista buscou recons- movimento operário do país. E, dessa truir, ou trazer para a superfície, uma forma, favorece a antiga Bolívia dividida Bolívia silenciada ou apartada. Era o e submissa à ingerência externa, aquela movimento katarista, que em sua face que sempre foi obstáculo no caminho mais radical beirou o fanatismo racis- que levou Evo Morales ao poder. O ta dos índios contra os brancos. Esse choque entre etnias e grupos da própria movimento indigenista crescia na es- base social de Evo é também parte da teira do silenciamento do combativo dinâmica em desenvolvimento de frag- movimento operário pelos militares. mentação étnica, regionalista e auto- De fato, parecia haver um constante nomista que ameaça destruir a grande ressurgir histórico do mundo andino conquista política do seu governo, a ancestral, dos laços sociais e econômi- unidade política em torno da soberania cos das comunidades indígenas, mar- nacional traduzida nas ações contrárias cados pela quase impermeabilidade da ao separatismo regional. modernidade ocidental, expressando O mundo das comunidades in- muitas vezes quase um mundo à parte, dígenas só tem sentido e vigor, ga- ou uma história vivida em outro ritmo nhando uma dimensão política maior paralelo, em outra camada da história na arena de uma nação boliviana ple- silenciosa. Em momentos de grande namente soberana e independente. A tensão social e econômica, esses tem- fragmentação enfraquece as próprias pos históricos vividos em outro ritmo, comunidades. O regionalismo e o au- essas camadas mais profundas da so- tonomismo, expressos recentemente ciedade parecem se reencontrar para nos choques relacionados à constru- buscar acertar seus ritmos, como se ção da estrada para ligar os depar- uma história caudalosa e profunda se tamentos de Pando e Cochabamba, tornasse repentinamente visível à su- mostram uma dinâmica preocupante, perfície, como protagonista das con- se prevalecer uma dinâmica política junturas e dos eventos mais corriquei- isolacionista e não nacional. A posi- ros. Evo Morales certamente unificou, ção do governo Evo de dialogar e ne- ou expressou, um movimento social gociar com as comunidades indígenas profundo e unificado de defesa da so- da região é positiva, mas está longe de berania e autodeterminação da nação resolver as questões. As cicatrizes que boliviana como nunca houve no país. separaram e contiveram a Bolívia du- Estamos vivendo um novo ressurgir, rante séculos ainda estão abertas. um reencontro da nação boliviana? A tão celebrada Nova Constitui- ção Política do Estado Boliviano, apro- vada em janeiro de 2009, foi exaustiva- mente negociada com os setores que defenderam abertamente o separatismo do país. Foi celebrada a formulação de Everaldo de Oliveira Andrade é historiador, pós- um Estado plurinacional, intercultural, doutorando na Universidade de São Paulo (USP) descentralizado e com autonomias re- e professor na Universidade Guarulhos (UNG). gionais. Porém, essa suposta conquista Acaba de lançar o livro Bolívia: democracia e do estado plurinacional, longe de ser um revolução – a Comuna de La Paz de 1971. 12
  • 13. O mundo indígena só tem vigor se ganhar dimensão política dentro da nação. 13
  • 14. OPINIÃO HUMALA e amÉrica latina Enrique Amayo Zevallos c ontexto: No dia 5 de junho de 2011, Ollanta Humala, no segundo turno, foi eleito Presiden- te do Peru: obteve 53% dos votos, contra 47% de Keiko Fujimori. Esta, é filha do ex-presi- dente (1990-2000) Alberto Fujimori, que aca- bou governando de forma ditatorial. O men- tor e braço direito de Fujimori foi Vladimiro Montesinos - chefe do Sistema de Inteligência Nacional (SIN). Ambos estão presos em Lima, submetidos a julgamentos por haverem cometido cri- mes políticos juntos. Até hoje, Fujimori foi condenado a 25 anos e Montesinos a quase 10. Analistas sérios, como Mario Vargas Llosa (que apoiou Humala por considerar que a vitória de Keiko signifi- caria que seu pai, representante de um novo fascismo, retornaria ao poder), concordam que a “presidente” Keiko libertaria pai e associados. Ações de Fujimori realizadas no ano 2000 levaram 14
  • 15. o Peru a uma situação caótica: os abusos outros governos, rumo ao Uruguai e a de Fujimori para reeleger-se pela terceira todos os países do Mercosul. Depois, vez, contra o que a Constituição manda- aos países andinos vizinhos do Peru. va, desencadearam, apesar da brutal re- E também aos Estados Unidos (sendo pressão do SIN, protestos massivos que recebido por Barack Obama e Hillary terminaram obrigando-o a fugir para o Clinton), Venezuela (reunindo-se com Japão; o Peru entrou em caos. Chávez), México e Cuba (dialogando Algo semelhante teria ocorrido com Raul Castro e Fidel). Isso parece se Keiko libertasse seu pai, já que ela ser parte essencial da política exterior do não decide nada sem consultá-lo, além governo de Humala. O Ministro das Re- de seu círculo decisório ser constituído lações Exteriores que ele escolheu, Ra- pelos membros do governo de Fujimo- fael Roncagliogo, continua fiel à decla- ri que não foram presos. A vitória de ração que fez ao saber de sua nomeação: Keiko significaria, assim, o retorno de a política externa “vai ser uma política Fujimori ao poder com seu corolário: de integração com todos os países da re- protestos, repressão e caos. gião, sem distinção nem preconceitos de Desde que Ollanta Humala assu- tipo ideológico”. O governo de Humala miu o poder, em 28 de julho de 2011, quer manter relações com os países da passou-se pouco tempo. Assim, ain- América do Sul (abrangendo a América da não é possível julgar seu governo; é Latina e o Mundo), “sem distinções” e possível, sim, descrever algumas de suas com fins de ”igualdade”. decisões tomadas nesse período, o que A nomeação de Roncagliogo foi permitiria perceber tendências. um êxito de Humala, evidenciado em Em 2006, quando Humala foi can- seu bom recebimento por quase todas didato a Presidente e perdeu para Alan as forças econômicas, sociais e políticas García, era pró-Chávez. Mas nas elei- do Peru. Bem recebida porque Ronca- ções de 2011, Humala se distanciou do gliogo desempenhou papéis-chave na Presidente da Venezuela. Provavelmen- história política peruana recente. Miguel te, Humala entendeu que Chávez não é Castilla, Ministro da Economia e Finanças, um bom exemplo, e que sua proximida- escolhido por Humala, ao contrário de de não ajuda. Em treze anos como pre- Roncagliogo, gerou discórdia: críticas dos sidente (desde 1998), Chávez foi incapaz progressistas e esquerdistas que tornaram de resolver os principais problemas eco- possíveis seu triunfo e apoio do mundo nômicos e sociais de seu país. Venezue- empresarial e dos mercados. Castilla, com la, gigante petroleiro, com grande renda mestrado em Harvard e Ph.D. na Univer- provinda desse combustível (renda que sidade John Hopkins, economista ortodo- nos anos de Chávez aumentou enorme- xo com sólida experiência, até o dia de sua mente pela alta dos preços do petróleo), nomeação por Humala, era vice-ministro deveria ter os mais altos níveis econômi- da Fazenda de Alan García. Igual discór- cos e sociais da América Latina, mas não dia gerou a ação de Humala que aceitou os tem; e seu crescimento econômico manter Julio Velarde no cargo de presi- está entre os mais baixos do continente. dente do Banco Central. A imprensa peruana sugere que foi por Humala aproxima sua administra- realismo que Humala substituiu o cha- ção à do governo PT de Lula: pretende vismo pela aproximação com o Brasil, continuar a política econômica de Gar- do Partido dos Trabalhadores (PT). cía (assim como Lula fez em seu primei- Mas Humala não se limitou ao ro mandato, ao assumir, sem admitir, a Brasil: continuou aproximando-se de política econômica de seu antecessor). 15
  • 16. Mas, simultaneamente, há uma diferen- projetos, especialmente na Amazônia ça: Humala jamais falou em “herança peruana, que estavam sendo realizados maldita” e, ao contrário, “pratica aberta- sem consulta prévia. mente a continuação”, o que se eviden- Altos Lucros de Minerais: o cia nas figuras-chave que escolheu para Peru é um grande produtor e expor- a direção econômica de seu governo (fi- tador mundial de minerais, dentre os guras importantes de seu antecessor). quais, os preciosos. Em função da crise Como o Peru inteiro, Humala não mundial, os preços dos metais aumen- quer pôr em risco o alto crescimento taram muito. Por exemplo, o preço da econômico de seu país, um dos maio- onça troy de ouro, na última década, res da América Latina na última década. passou de mais ou menos 300 dólares Isso explicaria a manutenção de Castilla a quase 2.000 dólares. Os altos lucros e Velarde como seus gestores econômi- não dependem de inovações tecnológi- cos. Mas Humala quer que esse cresci- cas ou de investimentos maiores, mas mento seja distribuído, sobretudo entre simplesmente de inflexões de mercado. os mais pobres, para diminuir as dife- Os altos lucros favoreciam os donos renças sociais. das empresas mineradoras, mas não o Aqui só é possível mencionar ra- Estado peruano, porque a maioria dos pidamente algumas decisões tomadas contratos de exploração foi firmada por Humala: com o corrupto governo de Fujimori, Lei da Consulta Prévia: o Acordo que lhes deu vantagens, pois a crise, até n°.169 da Organização Internacional então, não havia elevado os preços às do Trabalho sobre Povos Indígenas e alturas. Como candidato, Alan García Tribaisconcede a esses povos o direito prometeu renegociar esses contratos, de consulta e aceitação prévias por eles mas como presidente disse que era im- (usando suas formas de consulta tradi- possível fazê-lo; assim, solicitou a essas cionais) sobre qualquer obra que pos- empresas uma doação voluntária (óbo- sa causar impacto em seus territórios lo) que foi de 500 milhões de soles (mo- históricos. Em setembro de 2011, Hu- eda nacional peruana que, pelo câmbio mala transformou esse acordo em lei, atual de 2.75 por dólar, daria aproxi- promulgando-a em Bagua. Esta cidade madamente 180 milhões de dólares). amazônica peruana tem poder simbó- Quando Humala assumiu o poder, de lico: ali ocorreram, em junho de 2009, imediato, iniciou a renegociação; as em- violentos confrontos entre a polícia e a presas, sem muita dificuldade, aceitaram população, sobretudo nativa, que causa- pagar três milhões de soles, ou seja, seis ram a morte de 34 pessoas. Os indíge- vezes mais. Dinheiro que será utilizado nas protestaram contra o então gover- para cumprir promessas de campanha, no de García, que negava a Consulta como o Programa Social Renda 65, que Prévia. Humala, ao promulgar essa lei, significa: salário mínimo (aproximada- obteve apoio quase consensual da po- mente 100 dólares mensais) para a po- pulação indígena nacional e do país in- pulação com idade mínima de 65 anos, teiro, o qual se refletiu em altas taxas de sem renda fixa. aprovação de seu governo(hoje cerca de Lei contra a Corrupção: o gover- 65%). Também foi muito bem recebido no de Humala enviou ao Congresso um pelos meios internacionais preocupados projeto de lei para declarar imprescrití- com a causa indígena e a preservação. veis os delitos graves de corrupção de Isso porque, uma das consequências funcionários públicos, impondo san- imediatas dessa lei foi a paralisação de ções aos corruptos; foi aprovada. 16
  • 17. A lei de Consulta Prévia pode transfor- mar Ollanta Humala em líder das causas indígenas. Concluindo: Humala está to- Humala, por força das circunstâncias, mando decisões conservadoras na eco- no líder das causas indígenas do con- nomia, progressistas no social, e inde- tinente com bases poderosas em sua pendentes na política exterior. Políticas população nativa. de centro-esquerda que têm gerado, até agora, respostas positivas das maiorias peruanas e do exterior, até dos Estados Enrique Amayo Zevallos é professor de História Unidos. E o impacto da lei de Consulta Econômica e Estudos Internacionais Latino- Prévia poderia acabar transformando Americanos - Universidade Estadual Paulista. 17
  • 18. ENSAIO raÍZes do Brasil ENSAIO DO FOTÓGRAFO BAIANO SERGIO GUERRA EM TERRAS AFRICANAS o impacto da escravidão não conseguiu conter as manifestações culturais dos escravos tra- zidos de diversos pontos da África. A sim- biose das várias vertentes etnológicas deu origem a novos simbolismos e formatos, enriquecendo substancialmente o modo de ser dos brasileiros. Internacionalmente, o ano de 2011 foi dedica- do aos afrodescendentes, e a revista Nossa América estende ainda neste ano as homenagens a esse povo, que tanto adensou a cultura brasileira. O ensaio do fotógrafo pernambucano Sergio Guerra, que se auto-intitula baiano e vive em Luanda, capital de Ango- la, remete-nos a imagens poéticas, dramáticas, singelas e raras de comunidades distantes da região. A forte presença dos africanos no Brasil pode ser avaliada no censo de 1810, quando eles eram mais de 30% da população do Brasil, porcentagem que decresceu a partir de 1931. A população afrodescendente nos provou que, sem seu universo, o mundo seria monótono, triste e sem a trilha sonora do rock, do jazz, do hip hop, do reaggae e de tantos outros ritmos fundamentais da contemporaneidade. 18
  • 19. 19
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  • 24. gUerra Eduardo Rascov 24
  • 25. e PaZ 25
  • 26. Acima, PlantandoBananeira, 1955 - Candido Portinari. Desenho a lápis de cor/ cartolina 9.5 x 8.5cm 26
  • 27. Após seis anos de guerra total, na ONU. Paz, do mesmo tamanho, olha o mundo descansou. Em 1945, o sur- e é olhado por quem sai. A mensagem gimento da Organização das Nações é inequívoca: é possível ao engenho hu- Unidas enchia de esperança os crédu- mano resolver seus problemas. los. Esqueciam o fracasso da Liga das Como Di Cavalcanti, Jorge Amado, Nações, anos antes. Surgida dos escom- Mário Schemberg, Carlos Drummond de bros da Primeira Guerra Mundial, a Andrade, enfim, boa parte da intelectuali- Liga das Nações havia sido incapaz de dade e artistas da sua geração, Portinari era impedir outra conflagração planetária. comunista filiado ao PCB, por quem con- Mas agora a paz precisava ser celebrada. correu a deputado constituinte em 1945 Uma comissão internacional de arquite- e a senador em 1947. Sua insistência em tos seria formada para construir a sede presentear o mundo com a sua arte pun- Menino com Diabolô, 1955 Candido Portinari da ONU, em Nova York. O projeto do gente, como que clamando por um tempo Desenho a grafite e lápis de mestre franco-suíço Le Corbusier seria utópico em que não houvesse a explora- cor/papel 21 x 15.5cm o escolhido, com a colaboração de Os- car Niemeyer. O conjunto arquitetônico da ONU foi inaugurado em 1952. Era preciso em- belezá-lo com obras de arte de grandes artistas. O Brasil ganha o privilégio de se ocupar do hall de entrada da Assembleia Geral das Nações Unidas. Getúlio Vargas escolhe Cândido Portinari (1903-1962) para a tarefa e este põe mãos à obra. Entre 1952 e 1956, Portinari trabalha sofrega- mente para atender o pedido do governo brasileiro. Apesar da recomendação médi- ca que evitasse o uso de tinta a óleo, cujo chumbo o intoxicava, o artista encara a encomenda como missão. Com os olhos e as pinceladas voltadas para a eternidade, ele passa a pintar os painéis Guerra e Paz, cuja superfície total de 280 metros qua- drados ultrapassa a do Juízo Final (Capela Sistina), de Miguel Ângelo. O resultado é um dos mais belos e impactantes testemunhos da loucura humana e resume como nada o dilema da ONU até hoje: É possível se livrar da guerra? Há guerra justa? A paz tem pre- ço? O que é preciso para conquistá-la? Portinari retrata a guerra não por meio de soldados ou equipamento bélico, mas por meio de suas vítimas, especialmen- te aquela que sofre a dor maior - a mãe que perde o filho, imolado à (i)raciona- lidade dos poderosos. Guerra, painel de 14X10m, toma a visão de quem entra 27
  • 28. ção do homem pelo homem, custou-lhe caro. Portinari praticamente se auto-emu- lou , tornando-se, mais que um artista, um herói trágico da humanidade. Guerra e Paz foram os últimos grandes painéis pintados por ele. Depois disso, adoeceu pouco a pouco até morrer em 1962, vítima das tin- tas que para ele eram arma. Os quadros foram finalmente ins- talados na ONU, em 1957. Por ser comu- nista, Portinari não obteve autorização do governo americano para ir à inaugu- ração da sua obra. Niemeyer também já não tinha acesso ao prédio que ajudou a criar. O “Comitê de Atividades Antiame- ricanas”, criado pelo senador Joseph Mc- Carthy, estava ativíssimo. Nos primeiros anos, o público tinha acesso ao hall da ONU onde estão os painéis Guerra e Paz. Mas, com o tempo, por motivo de segu- rança, o acesso a ele ficou restrito aos de- legados oficiais. Segundo João Cândido Portinari, filho do pintor, 95% da obra de seu pai está fechada em coleções par- ticulares. Por isso, quando soube que as instalações da ONU passariam por refor- ma entre 2010 e 2013, tanto fez que con- seguiu a guarda da obra por esse período. Era a oportunidade dos painéis Guerra e Paz percorrerem o mundo e - finalmente - serem conhecidos pelo povo. Em con- trapartida, eles deveriam voltar devida- mente restaurados, como previa o con- trato entre a ONU e o governo brasileiro dos anos 50. Para essa empreitada, João Candido Portinari obteve o apoio do go- verno brasileiro, por meio do BNDES, e de outras entidades públicas e privadas. Os painéis foram restaurados no Rio de Janeiro, em ateliê aberto ao pú- blico, montado no Palácio Gustavo Ca- panema, por iniciativa do Projeto Porti- nari, no início de 2011. Antes disso, eles tinham ficado expostos por alguns dias no palco do Teatro Municipal carioca. Mais de 40 mil pessoas foram visitá-lo. A mostra no Memorial inclui cer- ca de cem esboços originais de Guerra e 28
  • 29. Desmontagem dos painéis Guerra e Paz de Portinari, na ONU, em Nova York. 29
  • 30. Estudos para Guerra e Paz. Mãos Entrelaçadas, 1955. Desenho a grafite e crayon colorido/papel 10 x 10cm. Cabeça de Mulher, 1955. Desenho a grafite e crayon colorido/papel. 16 x 16cm. Paz, que nunca foram expostos conjunta- por meu pai um pouco antes, em 1949, mente e audiovisuais contando a aventu- com quem Guerra e Paz dialogam muito ra de remover obras de arte gigantescas, bem.” E, complementa o filho que faz da transportá-las para o Brasil e restaurá- sua vida uma espécie de sacerdócio pela las, bem como documentários sobre a memória, preservação e divulgação da vida e a obra do pintor. Para o Memorial, obra de seu pai, “o Memorial é o lugar é significativo ter os famosos painéis, que ideal para o público ver as cores intensas há 54 anos estão em Nova York, com- dessas pinturas de meu pai, pois ambos partilhando temporariamente o espaço têm um significado irmanado. O que é o com outra obra de Portinari não menos painel Tiradentes, já instalado no Salão de importante, o painel Tiradentes que, con- Atos, senão um grito de repúdio à violên- forme explica João Candido, “foi pintado cia similar aos painéis Guerra e Paz?” 30
  • 31. Meninos no Balanço, 1955. Desenho a grafite e lápis de cor papel. 25 x 24.5cm. Fotos de Portinari no ateliê e com o filho João Candido. Visionário, sonhador, maluco do Brics, Rússia, China, Índia e Áfri- (algo a ver com seu pai?), João Candi- ca do Sul. Até agosto de 2013, quando do Portinari afirma que, depois de São eles voltam para o hall da ONU, iman- Paulo, Guerra e Paz devem percorrer o tados pelo olhar compreensivo de mi- mundo. Com o esperado apoio do Ita- lhões de pessoas. maraty, os painéis de Candido Portina- ri, espera o filho, vão levar sua mensa- Exposição Guerra e Paz, de Portinari. A partir gem dramática e de esperança a cidades de fevereiro no Memorial da América Latina. emblemáticas, como Hiroshima e Oslo, Para mais informações, consulte nosso site: www. memorial.sp.gov.br Tel.: (11) 3823 4600 por ocasião da entrega do Prêmio No- bel da Paz em dezembro de 2012. E, Eduardo Rascov é jornalista e editor do site do por que não, às potências emergentes Memorial da América Latina 31
  • 32. CRÍTICA QUatro artistas COLOMBIANOS: Uma introdUção Julia Hertzberg 32
  • 33. Antes de partir para Bogotá, Co- esquerda. Em 11 de março de 2010, o À esquerda, Juan lômbia, para ver a Feira ArtBo e as ati- artista foi convidado para ir à cidade ru- Manuel Echavarría, vidades de arte estendidas ao redor do ral Mampujan, na região montanhosa de Silencio con frutas evento, pediram-me para escrever sobre Montes de Maria, para a comemoração do (série La O). C-print, 40 x 60 in. Cortesia quatro artistas colombianos emergentes. décimo aniversário do dia em que os mo- do artista e da Galeria Contemplando a arte e refletindo sobre radores foram forçados a deixar suas casas Sextante, Bogotá. ela, conversando com artistas em mu- e terra pelas forças paramilitares, “Heroes Nesta página, Miler seus de exposições e nos estúdios do Es- de los Montes de Maria”. Tal aldeia nunca Lagos, Red-Blue, (série Inukshuk), pacios Las Nieves, ficou claro para mim foi reocupada. No decorrer do dia, Echa- 2011. Giclée print, que três dos quatro artistas que escolhi varría encontrou uma escola deteriorada 55 x 81 cm (21 ¾ não eram emergentes, mas sim maduros na qual as vogais a, e, i e u estavam escritas x 32 in.). Cortesia talentos, cujos trabalhos extremamente em uma parede ao lado do quadro-negro. do artista e da AB convincentes mereciam ser mais conhe- O tempo havia gasto o o, a letra que se Projects, Toronto. cidos para além da Colômbia. A seleção tornaria o título da série La O. inclui: Juan Manuel Echavarría, cujo tra- Echavarría voltaria quinze vezes balho eu tenho acompanhado e escrito às cidades e às aldeias abandonadas em a respeito, Miler Lagos, Miguel Ángel Montes de María, em suas contínuas jor- Rojas e Catalina Mejía, cuja obra é nova nadas antropológicas. Uma descoberta para mim. Em linguagens diversas, seus surpreendente levou a outra. Uma série trabalhos abordam questões comuns e de quadros-negros silenciosos, como pessoais, o político e o poético. me refiro a eles, inclui Silencio con frutas Por mais de quinze anos, Juan Ma- e Silencio 1,2,3,4. Silencio con frutas foi fil- nuel Echavarría viajou por aldeias rurais mado através de uma abertura para uma (veredas) e cidades da Colômbia, foto- janela na parede externa, em consequên- grafando os traços da guerra civil em an- cia emoldurando a lousa (a qual é ver- damento, travada por narco-traficantes, de agora) ao mesmo tempo capturando paramilitares de direita e guerrilheiros de o apagamento de duas paredes em pé 33
  • 34. Miguel Ángel (ilustração). Os cinco quadros-negros e 114.13 graus de longitude), nos ter- Rojas, Economía silenciosos compartilham característi- ritórios do Nordeste do Canadá. A intervenida, 2011. cas pictóricas e temáticas. Formalmente, jornada era na verdade uma residência Pó de folha de coca, eles recordam pinturas abstratas, telas orgznizada por Astrid Bastin, uma co- camada de ouro e alumínio, 110 x 163 gestuais nas quais diferentes camaradas lombiana que dirige a AB Projects em cm (43 5/16 x 62 de pigmentos foram sobrepostas. Clima Toronto. Durante a primeira residên- in.); vídeo e som, 15 e tempo alteraram as suas cores e mate- cia de Lagos, no AB Projects (2010), min. 30 seg. Cortesia riais originais, transmitindo uma espécie seu trabalho foi baseado na exploração do artista e da Sicardi de pertubadora beleza romantizada. ambiental. Considerando seu interesse Gallery, Houston. Precisamos nos lembrar, todavia, pela natureza e pelas relações da huma- que esses quadros-negros, com ou sem le- nidade para com ela, Bastin propôs a tras e números, não são usados para edu- Lagos que fosse a uma área remota do car crianças. As crianças, juntamente com Ártico canadense, onde exploradores seus pais, foram deslocadas à força de ci- polares navegaram no século XIX. dade a cidade; enquanto algumas fugiram Lagos e Bastin voaram para e se salvaram, outras encontraram seu Yellow Knife, onde o pequeno hidropla- silêncio final. A questão do artista é: es- no os levou a Red Rock Lake, perto de sas fotografias de lousas vão avivar a me- Coppermine River, lugar da expedição mória acerca da violência prolongada que de Sir John Franklin (1819-1822). Por vitimou tantas pessoas por tanto tempo? 12 dias, durante o final de julho e o iní- Miler Lagos fez uma peque- cio de agosto de 2011, Lagos fotografou na série de belas fotografias e vídeos e filmou entre 11:30 pm e 2h30 am, as com som, durante uma viagem ao Red horas entre o pôr e o nascer do sol. As Rock Lake (65.31 graus de latitude N fotografias entituladas Red, Blue, and Red- 34
  • 35. Blue e o vídeo Lat 65.31 N Long 114.13 século XIX, que registravam o sublime. W são da série Inukshuk, uma palavra Seus trabalhos são como meditações na inuíta que se refere a um marco de pe- cor, luz, e tranquilidade antes do frio dra, construído por mãos humanas, que do Ártico transformar a região em gelo funciona como um ponto de referência branco, escuridão e vento. para rotas de viagem, lugares de venera- Miguel Ángel se aproxima da eco- ção e de caça, dentre outros usos. Na li- nomia, da política, e das realidades sociais nha de árvore em um cenário de marcos de seu país, de uma perspectiva diferente de pedra (assemelhando-se a esculturas), em relação à de Juan Manuel Echavarría. Lagos colocou chifres de veado em uma Economía intervenida, de Roja, é uma confi- das pedras e depois suspendeu pequenas guação da tempestade de padrões, visual- pedras nos chifres (ilustração). O artista mente definidos por pequenos quadrados fotografou e filmou apenas a luz solar e dourados, cercados por um campo de Catalina Mejía, You as condições climáticas do lugar. A bele- quadrados levemente maiores de folhas you you you, 2010. za desolada de uma paisagem do Ártico, de coca. O efeito geral é um padrão de Grafite no papel, 38 com seus dias de 24 horas e ventos que superfície abstrata de linhas douradas on- x 56 cm (12 x 14 in). Cortesia do artista. variam, fez com que Lagos se lembrasse dulantes, aparecendo em pequeno relevo Fotógrafo: Oscar das pinturas românticas de paisagem do contra o chão cinzento em uma superfície Monsalve. 35
  • 36. retilínea. O vídeo, inserido na montagem, em textos para inscrever suas pinturas e destaca folhas de coca voando fora das desenhos com palavras que empregam páginas de listas telefônicas. a primeira e a segunda pessoas (“eu” e Rojas fala da realidade da Co- “você”) para transmitir tristeza, desilusão lômbia, que por anos tem enriquecido e raiva. As superfícies de pintura das telas, com o dinheiro do narcotráfico e mais juntamente com os desenhos magistral- recentemente com a mineração ilegal mente compostos de grafite revelam os de ouro, ambos produzindo “uma eco- estados emocionais da artista por meio nomia mediada”. Para a montagem, de palavras, a maioria delas apagada. o artista empregou tanto altas quanto A escrita gestual expressionista baixas tecnologias, uma total maestria anima as superfícies desses trabalhos de vocabulários figurativos e abstratos, abstratos em sua maioria, ao declarar a um apelo visual e significativo de dois especificidade dos estados emocionais produtos para o discurso econômico e da artista. A pintura Carta de Amor, de- social de seu país. clara obsessivamente momentos, atos, e O processo artístico, trabalho sentimentos íntimos por meio de pala- intenso e repetitivo, exigiu grande des- vras como queimar, ligar, chorar, negar, treza em colocar centenas de pequenos apreciar, excitar, sentir, esquecer, perdo- quadrados de folhas de coca cortados ar, foder, beijar. Outra tela inclui lam- a laser, e ouro em um apoio acrílico. O ber, perder, possuir, prometer, lembrar, artista primeiro secou as folhas de coca, tocar, confiar, desejar. You you you you é triturou-as até obter uma consistência configurada como um esboço no qual a de pó, misturou-as com um agente de maior parte da prosa está apagada (ilus- serigrafia à base de água , e usou o pó tração). No queda nada é uma das poucas (folha de coca) como se fosse tinta em pinturas nas quais elementos da natu- serigrafia. O satélite da tempestade de reza estão esquematicamente definidos padrões, baixado da Internet, foi im- em uma superfície ricamente colorida. presso em papel do tamanho do traba- “N a d a” é o que está escrito na parte lho final. Rojas usou o impresso como inferior direita, evocando o vazio, a so- uma referência para a montagem final, lidão, o nada. que ele fez desenhando uma grade so- O apreço de Mejia por Cy Twom- bre o acrílico, colocando pontos para bly e por Jean Michel Basquiat é evidente indicar a tempestade de padrões, e fi- na qualidade gráfica das linhas pintadas e nalmente aplicando as folhas de coca e desenhadas, na organização pictórica do os quadrados de ouro, um por um, em espaço e na fusão das fronteiras entre a um padrão de mosaico. A riqueza esma- pintura e o desenho. Olhando para trás, gadora da cocaína e da mineração ilegal para dois importantes artistas e professo- de ouro está causando uma preocupa- res, ela se lembra que Miguel Ángel Rojas ção renovada na sociedade colombiana. lhe ensinou a importância de expressar a De forma hábil, Rojas fez alusão a essas catarse, enquanto Luís Camnitzer lhe en- complexas realidades nas quais os mate- sinou a importância de ordenar a emoção. riais têm contribuído para uma econo- mia mediadora. Desastres del Corazón, de Catalina Mejía, elucida a dor sentida em um re- Julia P. Herzberg, Ph.D, é curadora, especialista sênior lacionamento amoroso que deu errado. da Fulbright, e também ministra palestras e publica Mejía referiu-se ao título de Goya, Disas- constantemente sobre artistas contemporâneos nos ters of War, assim como uso do Espanhol Estados Unidos e no exterior. 36
  • 37. ARTE cUritiBa firma sUa Bienal Adonis Flores, Incubación, 2009. Impressão 80x120 cm Leonor Amarante 37
  • 38. o crítico argentino mor ele nos reporta aos desequilíbrios de Jorge Glusberg cos- nossa realidade permanente. E lembra tuma dizer que, se do período em que combateu em An- uma bienal tem pelo gola, como soldado internacionalista, co- menos duas obras baia da complexidade humana. inesquecíveis, ela já é Normalmente as bienais são salas um sucesso. A Bienal Vento Sul de Curi- de espetáculos para encenar grandes tiba tem o mérito da persistência, da ten- obras, grande parte com caráter cênico. tativa de superar-se e de conseguir desen- Um dos trunfos dessa edição é mos- volver um discurso crítico consistente. trar que obras sutis como as de Lilian O tema Além da Crise foi oportuno e Tí- Porter podem ter alta potencialidade, cio Escolar, que divide a curadoria com capaz de dialogar com instalações po- Alfons Hughs, trabalha o conceito de que tentes como as de Nelson Felix. a arte contemporânea tem suas próprias A sexta edição segue as conquistas de crises e, uma delas é a da representação. outras edições, potencializa seu espaço Quem pode exemplificar o discurso é o expositivo com a ocupação do Museu cubano Adonis Flores, artista convoca- de Arte Oscar Niemeyer MON. Os do para a “comissão de frente” que nos paradigmas estéticos emanados dos recebe no Museu Oscar Niemeyer com centros hegemônicos Europa e Esta- sua série de Caveiras. Com crítica e hu- dos Unidos parecem ter perdido a for- ça. Os desenhos eróticos e sensuais do uruguaio Ricardo Lanzarini nos dão a sensação de que os artistas estão atentos na desconstrução de estereótipos sobre produção dos países latino-americanos. Interessante é que o encontro de críti- cos de formações tão diferentes chegou ao denominador comum de que a arte tem sua autonomia, mas sofre com as crises que atingem muitos países. A atualidade do tema, mais do que além da crise, se reforça em muitas obras na percepção crítica de Hughs, para quem há hoje uma mudança estética de para- digmas “Obras difíceis e invendáveis, fei- tas de material precário, que se esquivam à lógica do mercado, ganham cada vez mais terreno.” Esse é um dos vieses des- sa mostra, que no conjunto reforça como um dos polos de reverberação da produ- ção brasileira. Mesmo sem uma vitrina internacional, que deveria ser colocada como meta para as próximas edições, a Angelo Luz, intervenção Bienal Vento Sul é uma realidade. urbana na praça tiradentes, 2011. Leonor Amarante é editora da Revista Nossa América. 38
  • 39. ada como meta para as próximas edições, a Bienal Vento Sul é uma realidade. Sem título, 2010. Instalação. Ferro, resina, Em um edifício acrílico,arrojado, a marca é a 150x150x60 cm I Cortesia internacionalização. Boers Li Gallery, Pequim é a marca internacionalização. 39
  • 40. POLÍTICA Brasil Um dos maiores doadores e Prestadores de assistência tÉcnica e financeira Rubens Barbosa a assistência técnica e fi- Sem chamar muito a atenção, e gra- nanceira prestada pelo dualmente aumentando sua presença no Brasil a dezenas de pa- exterior, o Brasil está se tornando um dos íses, especialmente da maiores doadores e prestadores de assis- África e da América La- tência técnica e financeira para os países tina, é um dos aspectos com menor desenvolvimento relativo. Por da política externa que pouco tem mere- meio de diversas formas de ajuda, o Brasil, cido a atenção de analistas e estudiosos. somente em 2010, teria se comprometido Trata-se de um dos desdobramentos da com mais de US$4,5 bilhões. política Sul-Sul, desenvolvida nos últimos Quais as motivações dessa ação oito anos pelo governo brasileiro. governamental no exterior, o volume e 40
  • 41. as fontes dos recursos transferidos aos assento permanente no conselho de segu- países mais pobres? rança da Organização das Nações Unidas Reforçar a solidariedade com gestos (ONU) e interesses comerciais de abertu- políticos do Brasil no mundo é a explica- ra de mercado para serviços de empresas ção oferecida pelo Itamaraty. Na realidade, brasileiras na competição com o governo e algumas das motivações que explicam a di- companhias, sobretudo da China. plomacia da generosidade na América La- Como ocorre com a China, o Bra- tina e na África durante o governo passado sil não impõe condições aos países que foram: a busca de prestígio para o Brasil e recebem a ajuda, mas também não leva para o presidente Lula; o esforço a fim de em consideração valores que defende- obter apoio para a nossa pretensão de um mos internamente, como democracia e 41
  • 42. direitos humanos, deixando prevalecer a Convergência Estrutural do Merco- a ideia de que “negócios são negócios”. sul, que sobe hoje a US$470 milhões, Segundo informações coligidas acrescido de US$100 milhões por ano, em 2011 pelo The Economist, os recur- 70% representados por contribuições sos utilizados nessa ação externa sobem do Brasil. a US$1,2 bilhões, superando o Canadá Por outro lado, além de créditos e a Suécia, tradicionais doadores e pres- de difícil recuperação concedidos a al- tadores de ajudas aos países em desen- guns países africanos, a Cuba e a Ve- volvimento. Os recursos são oriundos nezuela, o governo brasileiro, nos últi- da Agência Brasileira de Cooperação mos anos, perdoou dívidas do Congo, do Itamaraty, com cerca de US$52 mi- de Angola, de Moçambique, da Bolívia, lhões em 2010. De outras instituições do Equador, do Paraguai, de Suriname e de cooperação técnica, como a Empre- agora da Tanzânia. sa Brasileira de Pesquisa Agropecuária Até dezembro de 2010, coincidin- (Embrapa), e a Companhia Nacional de do com o final do governo anterior, se- Abastecimento (Conab), saem US$440 gundo se noticiou, o governo brasileiro milhões; para ajuda humanitária a países vai doar US$300 milhões em alimentos afetados por desastres naturais, US$30 (milho, feijão, arroz, leite em pó) para, milhões; recursos para a United Nations entre outros, Sudão, Somália, Níger e Development Programme (UNDP) das nações africanas de língua portuguesa. Nações Unidas, US$25 milhões; para Serão igualmente beneficiados a faixa o programa de alimentação da Food de Gaza, El Salvador, Haiti e Cuba. Se- and Agriculture Organization (FAO), gundo a Coordenação Geral de Ações US$300 milhões; de ajuda para a faixa Internacionais de Combate à Fome do de Gaza, US$10 milhões e para o Hai- governo federal, também receberam ti, US$350 milhões. Implantamos escri- ajuda brasileira, África do Sul, Jamaica, tório de pesquisas agrícolas em Gana; Armênia, Mali, El Salvador, Quirguis- fazenda-modelo de algodão no Mali; fá- tão, Saara Ocidental, Mongólia, Iraque brica de medicamentos antirretrovirais e Sri Lanka. em Moçambique e centros de formação No tocante à assistência técnica e profissional em cinco países africanos à abertura de créditos para obras públi- Os empréstimos do Banco Na- cas em países africanos e sul-americanos, cional do Desenvolvimento (BNDES) e a exemplo do que ocorre com os países agora do Banco do Brasil para os países desenvolvidos, as empresas brasileiras em desenvolvimento, de 2008 ao pri- poderão vir a se beneficiar, ganhando meiro trimestre de 2010, subiram para concorrências para a prestação de servi- mais de US$3,5 bilhões, em projetos na ços e exportando produtos brasileiros. América do Sul, no Haiti, em Guiné- Essa vertente da política externa Bissau, em Cabo Verde, na Palestina, no reforça o soft power do Brasil, a principal Camboja, em Burundi, no Laos e em característica da crescente projeção ex- Serra Leoa. De 2003 a 2010, o BNDES terna do país. concedeu US$5,3 bilhões para projetos de infraestrutura na América Latina. O Tesouro Nacional, por outro Rubens Barbosa, diplomata de longa trajetória, foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na lado, aumentou sua exposição com o Inglaterra, é considerado um dos maiores especialistas incremento da contribuição do Bra- em comércio internacional do Itamaraty e é autor de sil na Corporação Andina de Fomento América Latina e perspectiva: a integração para US$300 milhões e no Fundo para regional da retórica à realidade, entre outros livros. 42
  • 43. REFLEXÃO GEOESTÉTICA comPleXidade em discUssão Ibis Hernandez Q uando, há algum tempo, fui convidada a par- ticipar do segundo seminário Geoestéticas do Caribe, tive a preocupação que interpre- tei, no início, como uma sorte de causalida- de geográfica operando no terreno da arte. Tendo em conta o nível de complexidade e caráter multifacetado dos fenômenos que incidem no com- portamento das práticas artísticas no Caribe, imaginei que seria difícil abordar essa produção desde que acreditei ser uma pers- pectiva reducionista. Mas quando recebi uma cópia dos textos apresentados na primeira edição desse seminário, vislumbrei a possibilidade de focar o tema manejando uma noção múltipla do território que, além do cenário que provê a geografia do Cari- be, permitisse compreender, desde a perspectiva da arte, à apro- priação do território caribenho, que empreenderam indivíduo 43
  • 44. e sociedade durante os últimos quinhen- cial metafórico tem se convertido em tos anos. Seria esta uma noção de terri- recurso eficaz para adentrar-se aos do- tório que ultrapassa os limites impostos mínios da psicogeografia especial e ex- pela Geografia e adiciona um bem feno- plorar as sensações e estados de ânimo menológico que compreende as inscri- que provoca “a maldita circunstância da ções deixadas pelo sujeito que o ocupa água por todas as partes”, a que se refe- e faz história. ria o escritor cubano Virgilio Piñera em De igual modo, acreditei ser per- seu poema La isla en peso . Insularidade, tinente mencionar a existência de vários fronteira e migração são temas que se critérios, tanto no referente à delimita- transpassam e podem compartilhar um ção geográfica desta região, como a sua repertório comum de significantes. O delimitação cultural. São diversos os au- mar, a embarcação e a cartografia têm tores que têm se referido a esta questão, sido três dos ícones mais recorrentes e é, mas a multiplicidade de argumentos ter- na realidade, a ideia de que a viagem está mina apontando, definitivamente, até o indissoluvelmente ligada às condições Caribe (lugar), e/ou Caribe como uma geográficas e à história da região. Um construção sócio-histórica e cultural que exemplo são os passeios de canoa nos muda segundo o lugar de enunciação, o bairros nativos, as viagens de Colombo, período histórico e a posição ideológica o trânsito dos navios negreiros - de onde deste se define, dentre outros aspectos. teve origem a aventura do “abismo”, a Dada a superposição de cartogra- que se refere Glissant -; os movimen- fias existentes em relação com o Caribe, tos de corsários e piratas, dentre outros. decidi circunscrever a análise da obra de Agora no terreno da arte, a imagem da artistas que vivem e/ou trabalham nos embarcação não só reproduz as viagens territórios do arco insular e do resto da- históricas, como abordam também mi- quela região, considerando também os grações e traslados mais recentes, pois países que integram a Extensão Centro- não se pode esquecer que navegam nes- Americana, de acordo com o padrão in- sas águas azuis, luxuosos cruzeiros e pre- clusivo aplicado já por alguns eventos que cárias balsas. De igual modo, os remos, têm versado sobre a arte na zona. Em pontes e portos têm revelado o desejo termos temporais, o recorte abarcaria as de buscar novos horizontes, a sensação duas últimas décadas, recordando que, de medo ou a insegurança experimenta- justo nos anos de 1990, emergiu no Cari- da na travessia. A arte edifica, assim, um be uma vanguarda que, imersa na batalha território de constantes deslocamentos, pela conquista de uma identidade artística de margens imprecisas e flutuantes que, contemporânea, explorou novos cami- não por renegar a norma imposta pelo nhos formais e conceituais de tendência, mapa geográfico, consegue desmarcar- ao modificar os clichês advindos dos em- se das circunstâncias e a paisagem real blemas regionais, ativando, de um modo na qual irremediavelmente se inscreve. inédito, a cena artística de um bom nú- Em sua densidade metafórica, o mero de países. Dentro deste panorama, mapa geográfico tem tido também uma foi possível detectar algumas orientações presença destacada nas artes visuais do que se conectam ao tema da geoestética. Caribe. Em Cuba, chegou a converter- Digamos, por exemplo, que o mar, se em um dos ícones mais versáteis da associado ao tema da paisagem, como plástica dos anos 1990, dentre as poéticas motivo de pesquisa plástica ou em qua- que deram continuidade ao debate crítico lidade de metáfora, atravessa parte do iniciado na década anterior, agora, desde imaginário visual da Região. Seu poten- um hedonismo simulador que encontrou 44
  • 45. nesta metáfora geográfica um código zona geocultural do Caribe; não menos Na página eficaz para prolongar, de forma astuta, a importantes seriam aquelas que con- anterior, Mapas discussão sobre tópicos cadentes da re- templam o nexo com o etnocultural, ou (detalhe) de alidade social. No solitário, multiplicado, as práticas de inserção social nas comu- Ibrahim Miranda (Cuba). Acima, desdesenhado ou sobredimensionado; nidades fixas transterritoriais, no espa- Cinco Carosas transformando em balsa, cesta, jaula, ra- ço das urbes modernas, e nas zonas de para la Historia, bisco, homem ou animal; ocupando seu assentamento ilegal e dos bares. Expe- 1991, instalación lugar no mapa-múndi ou transladado a riências desse porte se estendem com (técnica mixta), uma oficina de reparações, o mapa da alcance desigual por vários países da de Marcos Lora Read (República ilha estendeu seu enorme potencial se- área e merecem igual atenção, ainda que Dominicana). mântico ao se descobrir como território tenhamos pretendido visualizar apenas Foto David de aspirações, frustrações, utopias, me- um pequeno recorte de tudo quanto po- Damoison. mórias, migrações, batalhas, vicissitudes deria abarcar o tema. e identidades, em um dos momentos mais difíceis da história de Cuba. Muitas outras linhas de trabalho Ibis Hernández Abascal é pesquisadora e curadora do dão conta da relação arte-território na Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam, de Cuba. 45
  • 46. ECONOMIA o sistema da dÍvida e a inflação no Brasil Maria Lucia Fattorelli a atual crise financeira mundial teve início em 2008, localizada nas maiores instituições fi- nanceiras do mundo que corriam risco de quebra devido à utilização desenfreada de diversos produtos financeiros sem lastro, especialmente os derivativos. Apesar de nu- merosas denúncias de fraudes, as nações mais ricas do mundo decidiram “salvar” tais instituições com a emissão de grandes volumes de dívida pública. Tal procedimento escancarou a uti- lização do endividamento público às avessas, ou seja, a dívida pública deveria servir para aportar recursos ao Estado e não o contrário. Dessa forma, a crise atual expôs as entranhas do que batizamos de “Sistema da Dívida”, isto é, a utilização do instrumento do endividamento público como um sistema de desvio de recursos públicos em direção so sistema financeiro. 46
  • 47. Para operar, esse sistema conta com ar- transferência de recursos públicos ao cabouço de privilégios de ordem legal, setor financeiro. política, financeira e econômica, que Os trabalhos da CPI e da Audito- visam a garantir prioridade absoluta ria Cidadã da Dívida têm comprovado aos pagamentos financeiros, em detri- que também em nosso país o “Sistema mento de direitos humanos e sociais de da Dívida” conta com privilégios de toda toda a Nação. ordem, especialmente com uma superes- No Brasil, apesar de a Constitui- trutura legal que parte da Constituição ção Federal prever a realização da au- Federal: reafirma-se na Lei de Diretrizes ditoria da dívida, tal dispositivo nunca Orçamentárias, na Lei de Responsabi- foi cumprido. As recentes investigações lidade Fiscal e na legislação que rege o da Comissão Parlamentar de Inquérito chamado “Regime de Metas de Infla- (CPI) da Dívida Pública revelaram a ção”, dentre outras normas, afetando di- absoluta necessidade da realização da retamente a vida de toda a sociedade. auditoria da dívida, tendo em vista a No presente artigo menciono de comprovação de numerosos indícios e forma resumida como um conjunto de evidências de ilegalidades, ilegitimidades normas legais nacionais tem garantido e, especialmente, a utilização do endivi- prioridade absoluta à remuneração dos damento público como instrumento de detentores de títulos da dívida brasilei- 47
  • 48. ra por meio de elevadas taxas de juros, represente ônus financeiro ao orçamen- favorecendo ainda o crescimento con- to da União terá, obrigatoriamente, que tínuo do estoque da própria dívida pú- indicar a fonte de recursos suficiente blica, com a emissão continuada e até para tal gasto, exceto os gastos com a inconstitucional de dívida para pagar dívida pública. Dessa forma, se o Banco esses elevados juros. Central eleva as taxas de juros sob a jus- O mais grave é que todo esse apa- tificativa de conter a inflação, por exem- rato “legal” que favorece o setor finan- plo, e gera a necessidade de mais recur- ceiro surgiu no campo jurídico de forma sos para pagar tais juros, não ocorre a tortuosa e demanda aprofundamento de necessidade de indicar de onde sairão os estudos e investigações. recursos para tanto: o remédio aplicado Paira sob o art. 166, § 3º., II “b” tem sido emitir dívida para pagar dívida. da Constituição Federal, robusta de- O referido remédio conflita com núncia de que tal dispositivo jamais outro dispositivo constitucional – art. chegou a ser votado pelos parlamen- 167, III - que estabelece a proibição de tares constituintes, tendo sido incluído emissão de dívida para pagar despesas no texto final como um contrabando, correntes, rubrica que compreende os segundo especialistas do Congresso juros da dívida. As investigações reali- Nacional à época – Anatomia de uma zadas durante a CPI da Dívida Pública Fraude à Constituição. revelaram a contabilização irregular de Tal dispositivo excetua os gastos grande parte dos juros como se fos- com a dívida pública da regra geral apli- sem amortizações, o que representa cada aos demais gastos, isto é, qualquer mais uma flagrante evidência de burla à proposta de gasto ou investimento que Constituição e ilegalidade no tratamen- to dos gastos da dívida. Além do indício de desobediên- cia ao dispositivo constitucional, tal fato revela o encobrimento do efetivo custo dos juros da dívida, aliviando seu peso quando comparado, por exemplo, com as despesas de Pessoal, Previdência e outras, que acabam sendo traduzidas em grandezas distintas. Enquanto os dispêndios com Pessoal ou Previdên- cia englobam a variação de preço neles embutidos (por exemplo, reajustes sala- riais decorrentes de inflação, atualização de tabelas dos serviços de saúde, atua- lização de benefícios previdenciários, reajuste do salário mínimo decorrente da inflação, dentre outros), o valor dos “Juros e Encargos da Dívida” considera somente a parcela dos juros que supera a inflação. Tal fato decorre da metodo- logia utilizada no Balanço Orçamentário da União, que tem considerado como “Juros” somente a parcela que supera a inflação indicada por índices (IGP-M), e 48
  • 49. computa a atualização monetária da dí- a execução das “políticas necessárias para vida pública juntamente com a rubrica cumprimento das metas fixadas”. “Amortização”. Cabe observar mais uma desor- Evidencia-se, portanto, que a dem legal, pois o citado decreto confli- mesma “inflação” que serve de argu- tua com a Lei 4.595 (art. 3º., II), da qual mento terrorista para coibir e proibir decorre, já que a utilização preponde- reajustes automáticos para os salários, rante das taxas de juros no controle da aposentadorias e outros direitos sociais inflação significa o descarte das demais com base em sua variação, não vale para medidas mencionadas na referida lei, os juros da dívida, que têm a parcela da necessárias para o controle da inflação, inflação expurgada de seu custo e sequer tais como a prevenção ou a correção de computada nos juros, mas erradamente depressões econômicas e outros dese- como amortização. quilíbrios conjunturais. Além desse in- Desde 1999, com a edição do De- dício de ilegalidade, a eleição das taxas creto 3.088, foi instituído no Brasil o de juros como praticamente o único ins- regime de “Metas de Inflação”, que ele- trumento de combate à inflação contém geu a Política Monetária - taxas de juros uma série de inconsistências que provo- - como o principal instrumento de com- cam repercussões econômicas e sociais. bate à inflação, dado que o art. 2º. do De- O Brasil já apresenta preocupan- creto delegou ao Banco Central do Brasil tes índices de desindustrialização e dados 49
  • 50. oficiais comprovam que mais de 70% Esse mecanismo tem provocado da inflação decorre dos grandes aumen- megaprejuízos operacionais ao Banco Cen- tos nos preços administrados (tarifas de tral - R$ 147,7 bilhões em 2009 (http:// energia, telefone, combustível, transpor- www.bcb.gov.br/htms/inffina/be200912/ tes, entre outros) que influenciam forte- dezembro2009.pdf) e R$ 48,5 bilhões em mente na formação dos preços. 2010 (http://www.bcb.gov.br/htms/in- As distorções que favorecem o Sis- ffina/be201012/dezembro2010.pdf) - o tema da Dívida prosseguem nas chamadas que representa significativo dano ao patri- “Operações de Mercado Aberto”, realiza- mônio público, pois tal prejuízo é, por lei das em grande volume pelo Banco Central (11.803/2008, art. 6º.), coberto pelo Tesou- sob a justificativa de combate à inflação ro Nacional, ou seja, por todos nós. e na prática representam dívida feita sem A justificativa reiteradamente autorização legislativa, em flagrante con- apresentada pelo governo para a acumu- flito com a Lei Complementar 101/2000, lação de reservas internacionais (prote- que proibiu a emissão de títulos pelo Ban- ção do país de fugas de capital em crises co Central. Tais operações estão servindo financeiras globais) não se sustenta, dado para trocar dólares especulativos que in- que tal proteção seria feita de forma bem gressam no país, sem controle, por títulos mais eficiente por meio do controle so- da dívida pública que pagam os juros mais bre o fluxo de capitais financeiros, adota- elevados do mundo, sob a justificativa de do com sucesso por vários países. controle da inflação mediante o enxuga- O resultado tem sido o crescimento mento da base monetária. explosivo da dívida pública, cujo montan- 50
  • 51. te supera R$ 2,5 trilhões, e o pagamento eficientes: redução da taxa de juros; de juros e amortizações consumiu 45% controle e redução dos preços admi- dos recursos do orçamento federal em nistrados; reforma agrária para garantir 2010, conforme mostra o gráfico a seguir. a produção de alimentos não sujeitos Neste ano de 2011 a taxa de juros à variação internacional dos preços de Selic já subiu 5 vezes, saindo de 10,75% e commodities; controle de capitais para alcançando 12,5%. Recentemente ocor- evitar o ingresso de “capitais abutres”, reram duas reduções de apenas 0,5% e meramente especulativos, e as fugas no- a Selic está situada no elevado patamar civas à economia real; adoção de medi- de 11,5% ao ano, enquanto mais de 40 das tributárias apropriadas ao controle países praticam taxas de juros inferio- de preços. Para tanto, é necessário de- res a zero. A prática de elevadas taxas sarmar o Sistema da Dívida e corrigir os de juros não tem servido para combater rumos da política econômica. o tipo de inflação que temos. Adicio- nalmente, perpetua a concentração de renda no Brasil , 7ª. economia mundial, que ocupa a vergonhosa posição de 8º. país mais injusto do mundo, segundo o Índice de Gini, e é o 73º. no ranking de respeito aos direitos humanos. Maria Lucia Fattorelli é coordenadora da Auditoria Alternativas para o efetivo com- Cidadã da Dívida desde 2001 e colaboradora do Le bate à inflação existem e são muito mais Monde Diplomatique. 51
  • 52. ELEIÇÕES nÉstor e cristina KIRCHNER afirmação do Peronismo Luis Fernando Ayerbe a Argentina sai de um conflito interno de amplas proporções a partir do colapso fi- nanceiro de 2001, que levou à renúncia do presidente Fernando de la Rúa, da Unión Cívica Radical (UCR). Sob a presidência de Eduardo Duhalde, nomeado pelo congres- so, cristalizando um processo de normalização institucional. Com Néstor e Cristina Kirchner com três mandatos sucessivos, a partir de 2003, consolida-se a supremacia do peronismo na política nacional, sob um quadro de forte crescimento da eco- nomia e melhoria dos indicadores sociais. O governo de Nés- tor Kirchner opera em um clima de relativa estabilidade eco- nômica, com uma recuperação favorecida pela suspensão dos pagamentos da dívida e sua posterior reestruturação, amplia- ção do consumo pela expansão dos gastos de uma população 52