1) O caso trata de uma ação coletiva movida pelo Ministério Público contra uma concessionária de água sobre cobrança de dívidas de antigos proprietários.
2) A Justiça entendeu que a dívida de água é de natureza pessoal e não pode ser cobrada de novos proprietários.
3) A concessionária recorreu alegando que a dívida é vinculada ao imóvel, mas teve o recurso negado pois a jurisprudência entende que é de natureza pessoal.
RELATÓRIO VITIMIZAÇÃO - ANO 2023 equipe Portugal deputado.pdf
Apelação Cível - 2012.053844-1
1. Apelação Cível n. 2012.053844-1, da Capital
Relator: Desembargador Ricardo Roesler
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO.
COBRANÇA, PELA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO
PÚBLICO, DE DÉBITOS PROVENIENTES DO CONSUMO DE
ÁGUA PELOS ANTIGOS PROPRIETÁRIOS. IMPOSSIBILIDADE.
PRÁTICA NÃO ACEITA PELA JURISPRUDÊNCIA.
RECONHECIDA A NATUREZA PESSOAL DA DÍVIDA.
ALEGAÇÃO DE QUE O PROGRAMA DE RESTITUIÇÃO DE
CRÉDITO – PROCRER NÃO MAIS EXISTE. VERIFICADA, NO
SÍTIO ELETRÔNICO DA APELANTE, A REALIZAÇÃO DA
QUARTA EDIÇÃO DO PROGRAMA, NO ANO DE 2013.
PRETENSÃO MINISTERIAL QUE VISA A APLICAÇÃO DO
ESTATUTO CONSUMERISTA. OBSERVÂNCIA AO PRINCÍPIO
DA INFORMAÇÃO. EXEGESE DOS ARTS. 4º E 6º, DO CDC.
NOTIFICAÇÃO DOS CONSUMIDORES PARA PAGAMENTO DE
DÉBITOS REFERENTES A PERÍODO SUPERIOR HÁ CINCO
ANOS, SOB PENA DE INSCRIÇÃO NOS ÓRGÃOS DE
PROTEÇÃO AO CRÉDITO. PROIBIÇÃO. PRÁTICA ABUSIVA.
SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E
DESPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n.
2012.053844-1, da comarca da Capital (Unidade da Fazenda Pública), em que é
apelante Companhia Catarinense de Águas e Saneamento CASAN, e apelado
Ministério Público do Estado de Santa Catarina:
A Quarta Câmara de Direito Público decidiu, por votação unânime, negar
provimento ao recurso. Custas legais.
Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs.
Desembargadores Jaime Ramos (Presidente com voto) e Júlio César Knoll.
2. Florianópolis, 4 de dezembro de 2014.
Ricardo Roesler
RELATOR
Gabinete Des. Ricardo Roesler
3. RELATÓRIO
O Ministério Público do Estado de Santa Catarina ajuizou ação coletiva
de consumo em desfavor da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento –
Casan. Alegou que, em 27 de setembro de 2001, instaurou o Inquérito Civil n. 009/01,
para apurar a suspensão do fornecimento de água pela ré, que vinculava o débito do
consumo ao imóvel e não à pessoa física, vindo a encaminhar ofício a esta, em 17 de
julho de 2006; que no documento, recomendou que a prática fosse modificada, com a
alteração do art. 150 do seu regulamento de serviço, o que foi acolhido.
Afirmou que, em 23 de maio de 2008, recebeu representação, dando
conta de que a referida conduta continuava sendo praticada pela ré, o que implicou na
instauração do Inquérito Civil n. 06.2008.000150-0, a fim de verificar a situação
relatada.
Em resposta à notificação expedida à ré, tomou conhecimento de que a
orientação anteriormente acolhida, por recomendação do órgão ministerial, foi
modificada, com aplicação do Código de Defesa do Consumidor de forma subsidiária.
Sustentou ter recebido, ainda, representação em 26 de junho de 2008,
dando conta da criação do programa Procrer, pela ré, que visa a incentivar a
regularização dos débitos de clientes ativos e inativos, referentes a período superior
ao prazo de cinco anos, sob pena de inscrição nos órgãos de proteção ao crédito.
Requereu a concessão de tutela antecipada, para que a ré se abstenha
de interromper o fornecimento de água, em razão de débitos oriundos de antigos
proprietários; restabeleça o serviço para aqueles consumidores que restaram
prejudicados; promova a alteração do Regulamento dos Serviços de Água e Esgoto,
para que se coadune à legislação consumerista; providencie a exclusão do nome dos
autores, que foram indevidamente inclusos nos cadastros de inadimplentes;
esclareça, em seu sítio eletrônico, que o programa Procrer, que visa ao parcelamento
de débitos, restringe-se ao período inferior há cinco anos; aceite o parcelamento na
forma como desejar o consumidor, até 100 (cem) parcelas; publique por três vezes,
em jornal de grande circulação no Estado, que os débitos exigidos são aqueles
limitados há cinco anos; e seja fixada multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais) em
caso de descumprimento de algum dos itens. Postulou, quanto ao mérito, a
confirmação da liminar, com a condenação da ré ao pagamento de danos morais
coletivos, bem como custas processuais e honorários advocatícios (fls. 02-39). Juntou
documentos (fls. 40-121).
Às fls. 123-130, a liminar foi parcialmente deferida. Desta decisão, foi
comunicada a interposição de agravo de instrumento (fl. 140).
Citada, a ré apresentou resposta, na forma de contestação (fls.
167-201), oportunidade em que arguiu, preliminarmente, a ilegitimidade ativa do
Ministério Público estadual. No mérito, sustentou que a instituição do Programa de
Recuperação de Créditos – Procrer foi autorizada pelo Governador do Estado, por
meio do Decreto Estadual n. 1.089/08, o que afasta a alegação de que sua conduta é
lesiva ou abusiva.
Gabinete Des. Ricardo Roesler
4. Alegou ser inaplicável o Código de Defesa do Consumidor, pois inexiste
relação de consumo na hipótese; além disso, disse que os débitos são vinculados ao
imóvel e não à pessoa jurídica, conforme disposto no art. 45 da Lei n. 11.445/07.
Pleiteou a revogação da liminar concedida, e, ao final, a improcedência dos pedidos
iniciais. Trouxe documentos (fls. 202-266).
Réplica às fls. 268-281.
Conclusos os autos, foi proferido julgamento antecipado da lide,
momento em que o Magistrado singular julgou parcialmente procedentes os pedidos
iniciais, condenando a ré ao pagamento das custas processuais (fls. 282-301). Da
decisão, foram opostos embargos de declaração (fls. 304-306), os quais foram
acolhidos, sanando a omissão apontada (fls. 307-308).
Insatisfeita com a prestação jurisdicional, a ré interpôs recurso de
apelação, oportunidade em que pugnou a reforma da sentença e a improcedência dos
pedidos, ao argumento de que a dívida não é pessoal, mas sim real, vinculada à
edificação. Da mesma forma, afirmou que o programa Procrer não mais existe; que
inscrição de eventuais devedores, no rol de inadimplentes, em relação a débitos
superiores há cinco anos, não ocorre, em razão de restrição imposta pelos próprios
órgãos de proteção ao crédito (fls. 313-321).
Contrarrazões às fls. 325-334.
Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr.
Paulo Cezar Ramos de Oliveira, que opinou pelo desprovimento do recurso (fls.
348-354).
É o relatório.
Gabinete Des. Ricardo Roesler
5. VOTO
Trato de apelação cível interposta pela Companhia Catarinense de
Águas e Saneamento – Casan contra sentença que julgou parcialmente procedentes
os pedidos formulados pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina em ação
coletiva de consumo.
Da análise do reclamo interposto, verifica-se que a discussão, suscitada
pela recorrente, refere-se ao fato de que a dívida oriunda do consumo de água estaria
vinculada à unidade consumidora, e não à pessoa física (antigo proprietário), o qual
teria utilizado o serviço, o que autorizaria a cobrança diretamente desta última.
Insurgiu-se, ainda, quanto aos itens 'd' e 'e' da sentença, uma vez que o Programa de
Recuperação de Créditos – Procrer não mais existe, assim como a inscrição no rol de
inadimplentes, com relação aos valores devidos ao período superior há cinco anos,
sequer é admitida pelos órgãos de proteção ao crédito.
Quanto à natureza da dívida de fatura de água, a apelante pretende ver
aplicado o art. 45 da Lei n. 11.445/07, no sentido de que esta estaria vinculada ao
imóvel (unidade consumidora) e não àquele que utilizou do serviço.
Nesse diapasão, cumpre destacar que a matéria já foi objeto de análise
pela jurisprudência pátria; a propósito, foi firmado o entendimento de que a dívida
oriunda do consumo de água possui natureza pessoal, ou seja, é de responsabilidade
daquele cujo nome está inscrito nos cadastros da prestadora de serviço público, que
pode variar, a depender do caso concreto (locatário, antigo proprietário etc).
Assim, não é sempre que recairá sobre o proprietário do imóvel em que
se encontra instalada a unidade consumidora a responsabilidade pelo pagamento do
serviço; na verdade, a obrigação é daquele cujo nome consta da fatura, pois assumiu,
perante a concessionária, a obrigação pelo serviço.
Nesse sentido, do Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ÁGUA E ESGOTO. DÉBITO.
IMPOSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DO PROPRIETÁRIO POR DÍVIDAS
CONTRAÍDAS POR OUTREM. DÍVIDA DE NATUREZA PESSOAL.
PRECEDENTES.
1. Trata-se na origem de ação ordinária de cobrança intentada pela
concessionária de tratamento de água e esgoto em razão de inadimplemento de
tarifa pelo usuário. A sentença julgou extinto o processo sem julgamento do mérito,
em razão da recorrida ser parte ilegítima por não ser proprietária do imóvel à época
em que o débito foi constituído. No entanto, o acórdão a quo reformou a sentença ao
argumento de que o débito em questão possui natureza propter rem. É contra essa
decisão que se insurge o recorrente.
2. Merecem prosperar as razões do especial. Diferentemente, do entendimento
proferido pelo Tribunal de origem, a jurisprudência deste Tribunal Superior, frisa que,
"o débito tanto de água como de energia elétrica é de natureza pessoal, não se
vinculando ao imóvel. A obrigação não é propter rem" (REsp 890572, Rel. Min.
Herman Benjamin, Data da Publicação 13/04/2010), de modo que não pode o ora
recorrido ser responsabilizado pelo pagamento de serviço de fornecimento de água
utilizado por outras pessoas.
Gabinete Des. Ricardo Roesler
6. 3. Recurso especial provido. (REsp n. 1.267.302/SP, Rel. Min. Mauro Campbell
Marques, julgado em 8-11-2011).
Não há que se falar, portanto, em incidência do art. 45 da Lei n.
11.445/07 na espécie, até mesmo pelo fato de que este não estatui, expressamente,
que a obrigação pelo pagamento da fatura de água é vinculada ao imóvel. Aliás,
referida norma dispõe sobre aspectos técnicos, a serem observados pela
concessionária e não especificamente à entidade responsável pelo débito, como tenta
induzir.
Por estes motivos, a sentença de primeiro grau deve ser mantida.
Sobre o pedido para que se determine que a apelate "[...] aceite o
parcelamento em quantas vezes desejar o consumidor até o limite de 100 (cem)
vezes, conforme foi veiculado no comunicado endereçado pela demandada, sem
qualquer restrição de valor" (item 'd', fl. 300), pretende a sua exclusão, sob o
fundamento de que o Procrer não mais existe.
A este respeito, convém destacar que, no ano de 2008, a apelante
instituiu o Programa de Recuperação de Crédito – Procrer, cuja finalidade era de
incentivar os usuários, ativos e inativos, a regularização de eventuais débitos
existentes, comunicando-os, por correspondência, acerca das condições deste
procedimento.
De acordo com o documento de fl. 112, a comunicação era feita da
seguinte forma:
A CASAN comunica a existência de faturas pendentes abaixo descritas, antes
da municipalização dos serviços. Quite sua dívida aderindo ao PROGRAMA CASAN
DE RECUPERAÇÃO DE RECEITA – PROCRER – até 30/06/2008 e reduza as
multas e juros com a possibilidade de parcelamento em até cem meses. O
pagamento em COTA ÚNICA, com este aviso, lhe isentará em 100% das multas e
juros. Para parcelar seu débito, basta ir à agência da CELESC do seu município,
munido deste aviso e CPF/CNPJ. O não pagamento até a data de vencimento deste
aviso de débito o deixará, automaticamente notificado que no prazo não inferior a
dez dias, terá seu nome inscrito junto ao Órgão de Proteção ao Crédito – SPC, e
demais medidas judiciais que se fizerem necessárias.
Confrontando esta comunicação com a Resolução n. 02/08, acostada
aos autos às fls. 208-211, especialmente seu art. 3º, parágrafo único, e alíneas,
denoto que a concessão do fracionamento dependia do preenchimento de alguns
requisitos, dentre os quais o pagamento de parcela mínima, que não eram informados
aos consumidores.
O Ministério Público pretende evitar que consumidores sejam
compelidos ao pagamento de parcela fixada em valor mínimo, e sobre o qual não
foram informados, em observância ao disposto no Código de Defesa do Consumidor
(arts. 4º, caput, IV, e 6º, III), cuja aplicação, friso, embora discutida em primeiro grau,
não foi objeto do reclamo sob análise.
Ademais, cumpre esclarecer que o argumento da apelante, que
pretende a exclusão do item 'd' da sentença, em virtude de que o sistema de
recuperação de crédito, apontado como ilegal pelo Ministério Público, deixou de
existir, após dezembro de 2008, quando a Resolução n. 002/08 teve seu prazo de
Gabinete Des. Ricardo Roesler
7. validade vencido, não merece guarida.
Isso porque, em consulta ao sítio eletrônico da concessionária de
serviço público, verifica-se que o programa Procrer ainda é utilizado, sendo renovado
ano a ano, encontrando-se, no ano de 2013, na sua quarta edição
(http://www.casan.com.br/noticia/index/url/procrer-iv-nova-oportunidade-para-regularizar-debito
, acessado em 12.11.2014).
Com isso, afasto a pretensão da apelante, pois, mesmo que o Procrer
não esteja mais em funcionamento, na forma da Resolução n. 002/08, o programa
ainda é mantido, sendo imperiosa a confirmação da sentença justamente para evitar
que futuras notificações sejam emitidas em desacordo com as regras consumeristas.
Sob o mesmo fundamento, é de ser mantido o item 'e', também
impugnado, segundo o qual a apelante deve publicar "[...] por três vezes, aos
domingos, em jornal de grande circulação estadual, que se eventualmente os
consumidores receberem correspondência indicando a inscrição em órgão de
proteção ao crédito referente à dívida de período superior 5 (cinco) anos devem
desconsiderar a notificação" (fl. 300). Sustentou que, ainda que se intente a cobrança
de débitos vencidos há mais de cinco anos, com a restrição do nome dos devedores,
a prática não é aceita pelos órgãos de proteção ao crédito.
Mais uma vez, da análise do comunicado de fl. 112, verifico que a
apelante objetivou a cobrança de fatura referente ao mês de janeiro de 2003, emitindo
o documento em maio de 2008, apontando como data de vencimento o dia 26 de
junho de 2008. Portanto, em prazo superior há cinco anos, e no qual consta que o não
pagamento implicaria em inscrição no rol de inadimplentes.
Ora, por mais que os próprios órgãos de proteção ao crédito não
promovam a inscrição de consumidores inadimplentes, em virtude de débitos de tal
período, este tipo de coação não pode constar das notificações emitidas, pois
configura prática abusiva. O que se pretende é a lisura da cobrança.
Tecidas essas considerações, conheço do recurso de apelação
interposto para negar-lhe provimento; em sede de remessa, mantenho incólume a
sentença proferida pelo magistrado Luiz Antonio Zanini Fornerolli.
É como voto.
Gabinete Des. Ricardo Roesler