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AS MAZONAS
  DA GATA
BORRALHEIRA



 Não sei se foram convidados para o casamento da Gata
Borralheira com o Príncipe, o tal que andou com um
sapatinho na mão, à procura de pé que lhe servisse.
   Esta história já conhecem bem. Eu, que até estive no
casamento, não vou, agora, contá-la, porque não adiantava
nada ao que já sabem.
   Em contrapartida, posso contar o que aconteceu às duas
mazonas, de cabeleiras desgrenhadas, que faziam a vida
negra à pobre da Gata Borralheira.
   Também as vi no casamento, mais compostas,
aperaltadas, embora não conseguissem disfarçar a feiura e
a inveja que sentiam por não ocuparem, elas, o lugar ao
lado do Príncipe. Umas safadas incorrigíveis.
   No banquete, vingaram-se e comeram que nem umas
desalmadas.
                           1
Claro que, no dia seguinte, estavam doentes, com dores
no estômago e outros problemas que não merece a pena
pormenorizar. Saiba-se que, além do resto, lhes tinha
aparecido uma borbulhagem nos cotovelos ossudos e
pontiagudos. Quanto mais os coçavam, mais comichão
tinham.
   – Dor de cotovelo – diagnosticava o médico, chamado a
vê-las. – É uma maleita rebelde, que custa muito a curar.
Talvez com o tempo...
   Pomadas e banhos nos cotovelos pouco alívio traziam. A
doença delas não era da pele, mas abaixo da pele e da carga
de ossos... Nascia no sítio onde o coração palpita, mais
depressa ou mais devagar, conforme o peso e a velocidade
dos sentimentos.
   Sentimentos? Onde é que elas os tinham? Nem coração.
   Quando o médico, auscultando-as, deu por que as duas
manas não tinham coração, percebeu tudo.
   – Elas são feitas de matéria maldosa e retorcida. Sem
coração que as aqueça, a tendência é para piorarem –
sentenciou o médico.
   Mas onde é que se arranja um coração? E logo dois, dois
corações disponíveis, tenros, ternos... Não é fácil.
   O médico veio ter comigo:
   – O senhor que escreve e inventa coisas e, ainda para
mais, conhece bem o caso, é que podia ajudá-las.
   De facto, se bem que eu não seja especialista do coração,
tenho umas luzes. Não é para me gabar, mas passaram-me
pelas mãos casos complicados, que, melhor ou pior,
consegui resolver.
   Heróis com coração demasiado outros com o coração ao
pé da boca...

                             2
Do que me sobrou daqui e dali, amoldei dois pequenos
corações vivazes, a transpirar meiguice. Preciosos
maquinismos de relojoaria, batem certinhos, quando se
lhes dá corda.
  Colocá-los no peito das duas megeras foi o que menos
custou.
  Elas melhoraram a olhos vistos. A comichão nos
cotovelos passou-lhes logo. Já sorriem, já perguntam pelos
outros com verdadeiro interesse, já se enternecem, já se
comovem.
  A Gata Borralheira, muito boazinha, foi vê-las, um dia
destes, mal regressou da viagem da lua-de-mel. Elas
lacrimejaram umas desculpas sentidas e ambas se
ofereceram para madrinhas do primeiro filho que nascer da
Gata Borralheira. A sério.
  E estão mais felizes, mais luminosas. Até conseguem
estar bonitas.
  Não podemos é esquecer-nos de, todos os dias, dar-lhes
corda ao coração.


  FIM




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  • 1. AS MAZONAS DA GATA BORRALHEIRA Não sei se foram convidados para o casamento da Gata Borralheira com o Príncipe, o tal que andou com um sapatinho na mão, à procura de pé que lhe servisse. Esta história já conhecem bem. Eu, que até estive no casamento, não vou, agora, contá-la, porque não adiantava nada ao que já sabem. Em contrapartida, posso contar o que aconteceu às duas mazonas, de cabeleiras desgrenhadas, que faziam a vida negra à pobre da Gata Borralheira. Também as vi no casamento, mais compostas, aperaltadas, embora não conseguissem disfarçar a feiura e a inveja que sentiam por não ocuparem, elas, o lugar ao lado do Príncipe. Umas safadas incorrigíveis. No banquete, vingaram-se e comeram que nem umas desalmadas. 1
  • 2. Claro que, no dia seguinte, estavam doentes, com dores no estômago e outros problemas que não merece a pena pormenorizar. Saiba-se que, além do resto, lhes tinha aparecido uma borbulhagem nos cotovelos ossudos e pontiagudos. Quanto mais os coçavam, mais comichão tinham. – Dor de cotovelo – diagnosticava o médico, chamado a vê-las. – É uma maleita rebelde, que custa muito a curar. Talvez com o tempo... Pomadas e banhos nos cotovelos pouco alívio traziam. A doença delas não era da pele, mas abaixo da pele e da carga de ossos... Nascia no sítio onde o coração palpita, mais depressa ou mais devagar, conforme o peso e a velocidade dos sentimentos. Sentimentos? Onde é que elas os tinham? Nem coração. Quando o médico, auscultando-as, deu por que as duas manas não tinham coração, percebeu tudo. – Elas são feitas de matéria maldosa e retorcida. Sem coração que as aqueça, a tendência é para piorarem – sentenciou o médico. Mas onde é que se arranja um coração? E logo dois, dois corações disponíveis, tenros, ternos... Não é fácil. O médico veio ter comigo: – O senhor que escreve e inventa coisas e, ainda para mais, conhece bem o caso, é que podia ajudá-las. De facto, se bem que eu não seja especialista do coração, tenho umas luzes. Não é para me gabar, mas passaram-me pelas mãos casos complicados, que, melhor ou pior, consegui resolver. Heróis com coração demasiado outros com o coração ao pé da boca... 2
  • 3. Do que me sobrou daqui e dali, amoldei dois pequenos corações vivazes, a transpirar meiguice. Preciosos maquinismos de relojoaria, batem certinhos, quando se lhes dá corda. Colocá-los no peito das duas megeras foi o que menos custou. Elas melhoraram a olhos vistos. A comichão nos cotovelos passou-lhes logo. Já sorriem, já perguntam pelos outros com verdadeiro interesse, já se enternecem, já se comovem. A Gata Borralheira, muito boazinha, foi vê-las, um dia destes, mal regressou da viagem da lua-de-mel. Elas lacrimejaram umas desculpas sentidas e ambas se ofereceram para madrinhas do primeiro filho que nascer da Gata Borralheira. A sério. E estão mais felizes, mais luminosas. Até conseguem estar bonitas. Não podemos é esquecer-nos de, todos os dias, dar-lhes corda ao coração. FIM 3