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ITANHAEM
ITANHAÉM – 8.845 toques
Sexta-feira, 8h da manhã. Na feira-livre de Itanhaém, seis ou sete grupos de índios
vendem palmito em lonas estendidas no chão ou sobre pequenos estrados feitos com caixas
de madeira. A maioria chega numa perua Kombi, mas há os que vão de bicicleta, como os
que tradicionalmente vendem orquídeas e bromélias retiradas do mato. Hoje a maioria dos
índios que vendem orquídeas de bicicleta não veio. A oferta dessas plantas é pequena: só
uma índia e dois caiçaras oferecem orquídeas e bromélias na feira. Mas em muitas
ocasiões, o número de índios vendendo orquídeas empata com o dos que vendem palmito.
Nesta sexta-feira de pouca oferta, a reportagem do JT pôde constatar que uma Cattleya
guttata de mais de 20 anos e hastes de 1,5 metro de altura, arrancada de sua árvore, foi
vendida por R$ 5. Foi em homenagem ao nobre e jardineiro inglês William Cattley - que na
aurora do século 19 fez pela primeira vez florescer na Europa uma orquídea do mesmo
gênero que ocorre em Pernambuco - que o botânico John Lindley, também inglês, autor da
primeira classificação sistemática das orquídeas, batizou o gênero Cattleya. Foram essas
orquídeas brasileiras que chamaram a atenção do mundo para a beleza dessa flor, dando
origem, há mais de 200 anos, à orquideomania e à onda dos orquidófilos. Criada numa
estufa e vendida numa exposição, uma Cattleya guttata desse porte custaria no mínimo R$
500.
Na mesma feira-livre, uma chuva-de-ouro (Oncidium) com as flores murchando custava
R$ 3. As orquídeas desse gênero já haviam sido classificadas pelos europeus antes mesmo
das Cattleyas, porque alguns exemplares tinham sido levados das Antilhas para a Inglaterra
pelo capitão William Bligh, em 1793, e em 1800 tiveram seu gênero estabelecido pelo
botânico sueco Peter Olof Swartz. Descendentes dessas orquídeas florescem até hoje nos
Jardins Reais de Kew, na Inglaterra. Cultivadas em estufas, custam entre R$ 50 e R$ 80 nas
floriculturas de São Paulo.
Compradas por quem vai à feira de Itanhaém ou nas outras feiras-livres em Peruíbe e
outras cidades do litoral sul, essas orquídeas acabam morrendo na maioria dos casos. Sem
saber que são epífitas, isto é, vivem apoiadas no tronco das árvores, alimentando-se do
vapor do ar com suas raízes aéreas, a maioria dos compradores as sufoca dentro de vasos de
terra e elas acabam apodrecendo e morrem.
Além das orquídeas, as bromélias vendidas por índios e caiçaras a preços que variam de
R$ 1 e R$ 3 também terão pouco futuro. Muitas pessoas as colocam em vasos com água ou
plantam em vasos ou latas, deixados sobre a mesa da sala, longe de qualquer janela, o que é
mortal para essas plantas que se alimentam de luz e acumulam água nas folhas, mas
apodrecem se a água ficar acumulada na raiz. Última moda em jardinagem, as bromélias
são plantas típicas do Brasil e de suas florestas e muitas das espécies vendidas nas feiras ou
em beiras de estrada já são consideradas praticamente extintas (como a bela Vriesea
hieroglyfica que ultimamente tem sido clonada pela Universidade de São Paulo) ou nem
chegaram a ser classificadas pela ciência. É o caso da bromélia denominada Fireball,
comprada por um americano num lote de dezenas de plantas de Itanhaém. Ela tem sido
clonada e vendida entre colecionadores nos EUA, apesar de não ter sido ainda classificada.
“Foi o branco que deu ao índio o triste papel de extrair da natureza sem repor”, diz para a
reportagem do JT a índia guarani Catarina, de 50 anos. Ela e o marido, João dos Santos,
sustentam os filhos vendendo palmito na feira de Itanhaém. “Nós, índios, viemos de uma
economia extrativista milenar. Agora o branco precisa nos ensinar e apoiar para que
possamos viver e preservar a natureza, mas o que acontece é que estamos abandonados e
não temos outro meio de vida. Se os fazendeiros que plantam bananas aqui estão falindo,
imagine os índios”, explica Catarina, que há seis anos fundou a ONG Associação dos
Índios Tupi-Guarani, para defender os interesses dos nativos. “Não nascemos sabendo.
Precisamos que os brancos nos ensinem o que plantar, como plantar, que nos criem um
mercado de trocas porque na cidade eu perco a identidade e vou virar empregada doméstica
até morrer, isso se achar emprego”, prevê Catarina, que, como os outros índios da aldeia de
Mongaguá, onde vive, é bastante articulada e fala duas línguas, o português e o guarani.
O solo da região em que ficam os índios de Itanhaém é dos mais pobres de São Paulo,
exigindo correção, adubação e outros insumos caros, que eles, vivendo em palhoças e casas
de pau-a-pique, não têm condições de bancar. Amigo de Catarina e João dos Santos, o índio
Mariano, de 21 anos, que veio do Paraná e está passando um tempo na aldeia Rio Branco,
onde é recebido como irmão pelos outros adolescentes, conta que não ter futuro entre os
brancos e não ter como preservar suas tradições é motivo de aflição entre os jovens índios:
“Acho que, se os brancos nos dessem condições de fazer uma cooperativa, só fato de a
gente ser índio já ia ser uma espécie de grife. O pessoal podia comprar, por exemplo,
verduras plantadas por nós e a gente podia recuperar plantas dos nossos antepassados que a
gente nem conhece mais.” No ano passado, Mariano fez questão de ir ao Rio Grande do
Sul, conhecer as ruínas das Missões, “onde, no século 18, mais de 2 mil guaranis foram
mortos por tropas bandeirantes”, lembra o jovem índio que não quer esquecer a história de
seu povo.
A reportagem do JT acompanhou a saída dos índios guaranis da Aldeia Rio Branco, que
fica a 30 quilômetros de Itanhaém, 20 deles em estrada de terra. Lá vivem cerca de 600
índios, espalhados em casebres em dois hectares de terra que faziam parte da antiga
Fazenda da Barragem, no fim de uma estrada vicinal, entre decadentes plantações de
banana, algumas abandonadas e apodrecidas pelas pragas. Os casebres, muitos deles de
paredes de barro, abrigo ideal para o inseto que transmite a doença de Chagas, são mais
pobres que os das favelas de São Paulo.
“Nós não temos nem um carro de plantão que nos socorra em caso de doença. Temos de
andar a noite inteira a pé, para chegar a Itanhaém ou de usar bicicleta, como todo mundo
aqui faz”, reclama o cacique Alcides, que reportagem encontrou no caminho, indo de
bicicleta para a cidade. “A Funai disse que vinha me buscar, mas até agora não chegou e eu
resolvi ir para não perder a reunião”, explica Alcides. “Veja que os chefes da Funai todos
têm carro e o cacique da Aldeia Rio Branco está tendo de ir de bicicleta para uma reunião
da Funai em nossa aldeia em Mongaguá”, aponta João dos Santos.
O marido de Catarina já foi casado “com uma branca do Guarujá”, segundo conta, com
quem teve quatro filhos. “Mas depois eu casei com a Catarina na Funai e antes ainda tive
outras mulheres.” Catarina conta que o apoio da Funai é pouco, mas alguma coisa já foi
feita, como a escola na Aldeia Rio Branco, onde os índios aprendem português e guarani e
os projetos de plantação comercial de palmito pelos próprios índios. “Se tiverem
andamento, esses projetos podem ser uma saída para nossas aldeias.” Ela conta que outro
projeto dos índios é criar um Centro de Tradições Indígenas em Itanhaém, “para que
conheçam nossa importância como gente por meio do estudo da história e apreciem nossos
trabalhos de artesanato, que mostram como é a nossa sensibilidade”.
Na Aldeia Rio Branco, enquanto o índio Luiz, de 10 anos, pinta o corpo para mostrar para
a reportagem, alguns índios carregados de palmito que trouxeram das matas pegam uma
perua que os leva a Itanhaém. A perua cobra R$ 150 para transportar os índios da aldeia
para a feira-livre, carregados de troncos de palmito.Quer dizer: eles já vão endividados para
a feira. Os palmitos vêm semidescascados, mas ainda mostrando as capas cor de coral que
protegem o comestível coração da palmeira. Cada palmito de 1 metro é vendido por R$ 3 e,
descascado e cozido, fornece o conteúdo de dois potes de vidro desses à venda nos
supermercados.
Catarina é a única que já vende o próprio coração do palmito, o núcleo central branco e
macio, embalado em saquinhos. “O senhor não vai ter trabalho de descascar, mas precisa
cozinhar e pôr em conserva rápido porque com o tempo ele fica encardido em contato com
o ar.” Cada saquinho também fornece o equivalente a dois potes de supermercado.
Por que não vendem os palmitos já cozidos e em potes de conserva? “Botulismo”, explica
Catarina.. “É muito perigoso porque o caldo do palmito estraga logo e cria micróbios
invisíveis que produzem veneno sem gosto”, ela conta, revelando conhecer o risco de
intoxicação apresentado pelas das conservas. “É melhor comprar assim fresco ou de boa
marca”, explica a índia. Ela conta que, quando fresco, o caldo do palmito cozido é
altamente medicinal e antiácido. Ele pode ser tomado para aliviar crises de úlcera e acidez.
Se não for processado com higiene e não lhe for aumentada a acidez, acrescentando vinagre
ou suco de limão à conserva, esse caldo alcalino e antiácido é o meio de cultura ideal para a
bactéria do botulismo, que pode matar uma pessoa.
Crime ambiental inafiançável, a extração de orquídeas silvestres e principalmente do
palmito, produzido pela palmeira juçara, em extinção na Mata Atlântica, tem ocasionado
prisões de brancos que também teriam adotado a profissão dos índios (na verdade é o
contrário: os brancos é que os ensinaram a fazer coleta comercial, pois a deles era de
subsistência). Só que os índios são protegidos pela própria Constituição, que lhes confere o
estatuto de inimputáveis, tornando juridicamente polêmica sua punição. Bem próximo de
Itanhaém, no Vale do Ribeira, já ocorreram várias mortes de guardas florestais e
palmiteiros, numa verdadeira guerra do palmito.
O administrador da Funai de Bauru, no extremo oeste do Estado, a que está subordinada a
área de Itanhaém, Rômulo Siqueira de Sá, conta que o problema da coleta ilegal nas matas
não é uma responsabilidade da Funai, embora esteja começando a aplicar nessas áreas a
única fórmula eficaz de evitar isso: o manejo sustentável da natureza. “Graças à execução
de um projeto da Funai de manejo sustentável, os índios de Boracéia, por exemplo, já
cultivam o palmito pupunha, que tem crescimento mais rápido que o juçara, e já o estão
vendendo na beira das estradas. Quer dizer, nesse caso eles estão produzindo e vendendo
sem afetar a natureza.” Ele conta que o trabalho é lento e complexo, pois tem de ser
especifico para cada comunidade, mas acrescenta que felizmente a Funai está tendo
excelentes parecerias com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e com a Unesp, para
disseminar o manejo sustentável entre a população indígena.

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  • 2. reportagem do JT a índia guarani Catarina, de 50 anos. Ela e o marido, João dos Santos, sustentam os filhos vendendo palmito na feira de Itanhaém. “Nós, índios, viemos de uma economia extrativista milenar. Agora o branco precisa nos ensinar e apoiar para que possamos viver e preservar a natureza, mas o que acontece é que estamos abandonados e não temos outro meio de vida. Se os fazendeiros que plantam bananas aqui estão falindo, imagine os índios”, explica Catarina, que há seis anos fundou a ONG Associação dos Índios Tupi-Guarani, para defender os interesses dos nativos. “Não nascemos sabendo. Precisamos que os brancos nos ensinem o que plantar, como plantar, que nos criem um mercado de trocas porque na cidade eu perco a identidade e vou virar empregada doméstica até morrer, isso se achar emprego”, prevê Catarina, que, como os outros índios da aldeia de Mongaguá, onde vive, é bastante articulada e fala duas línguas, o português e o guarani. O solo da região em que ficam os índios de Itanhaém é dos mais pobres de São Paulo, exigindo correção, adubação e outros insumos caros, que eles, vivendo em palhoças e casas de pau-a-pique, não têm condições de bancar. Amigo de Catarina e João dos Santos, o índio Mariano, de 21 anos, que veio do Paraná e está passando um tempo na aldeia Rio Branco, onde é recebido como irmão pelos outros adolescentes, conta que não ter futuro entre os brancos e não ter como preservar suas tradições é motivo de aflição entre os jovens índios: “Acho que, se os brancos nos dessem condições de fazer uma cooperativa, só fato de a gente ser índio já ia ser uma espécie de grife. O pessoal podia comprar, por exemplo, verduras plantadas por nós e a gente podia recuperar plantas dos nossos antepassados que a gente nem conhece mais.” No ano passado, Mariano fez questão de ir ao Rio Grande do Sul, conhecer as ruínas das Missões, “onde, no século 18, mais de 2 mil guaranis foram mortos por tropas bandeirantes”, lembra o jovem índio que não quer esquecer a história de seu povo. A reportagem do JT acompanhou a saída dos índios guaranis da Aldeia Rio Branco, que fica a 30 quilômetros de Itanhaém, 20 deles em estrada de terra. Lá vivem cerca de 600 índios, espalhados em casebres em dois hectares de terra que faziam parte da antiga Fazenda da Barragem, no fim de uma estrada vicinal, entre decadentes plantações de banana, algumas abandonadas e apodrecidas pelas pragas. Os casebres, muitos deles de paredes de barro, abrigo ideal para o inseto que transmite a doença de Chagas, são mais pobres que os das favelas de São Paulo. “Nós não temos nem um carro de plantão que nos socorra em caso de doença. Temos de andar a noite inteira a pé, para chegar a Itanhaém ou de usar bicicleta, como todo mundo aqui faz”, reclama o cacique Alcides, que reportagem encontrou no caminho, indo de bicicleta para a cidade. “A Funai disse que vinha me buscar, mas até agora não chegou e eu resolvi ir para não perder a reunião”, explica Alcides. “Veja que os chefes da Funai todos têm carro e o cacique da Aldeia Rio Branco está tendo de ir de bicicleta para uma reunião da Funai em nossa aldeia em Mongaguá”, aponta João dos Santos. O marido de Catarina já foi casado “com uma branca do Guarujá”, segundo conta, com quem teve quatro filhos. “Mas depois eu casei com a Catarina na Funai e antes ainda tive outras mulheres.” Catarina conta que o apoio da Funai é pouco, mas alguma coisa já foi feita, como a escola na Aldeia Rio Branco, onde os índios aprendem português e guarani e os projetos de plantação comercial de palmito pelos próprios índios. “Se tiverem andamento, esses projetos podem ser uma saída para nossas aldeias.” Ela conta que outro projeto dos índios é criar um Centro de Tradições Indígenas em Itanhaém, “para que conheçam nossa importância como gente por meio do estudo da história e apreciem nossos trabalhos de artesanato, que mostram como é a nossa sensibilidade”.
  • 3. Na Aldeia Rio Branco, enquanto o índio Luiz, de 10 anos, pinta o corpo para mostrar para a reportagem, alguns índios carregados de palmito que trouxeram das matas pegam uma perua que os leva a Itanhaém. A perua cobra R$ 150 para transportar os índios da aldeia para a feira-livre, carregados de troncos de palmito.Quer dizer: eles já vão endividados para a feira. Os palmitos vêm semidescascados, mas ainda mostrando as capas cor de coral que protegem o comestível coração da palmeira. Cada palmito de 1 metro é vendido por R$ 3 e, descascado e cozido, fornece o conteúdo de dois potes de vidro desses à venda nos supermercados. Catarina é a única que já vende o próprio coração do palmito, o núcleo central branco e macio, embalado em saquinhos. “O senhor não vai ter trabalho de descascar, mas precisa cozinhar e pôr em conserva rápido porque com o tempo ele fica encardido em contato com o ar.” Cada saquinho também fornece o equivalente a dois potes de supermercado. Por que não vendem os palmitos já cozidos e em potes de conserva? “Botulismo”, explica Catarina.. “É muito perigoso porque o caldo do palmito estraga logo e cria micróbios invisíveis que produzem veneno sem gosto”, ela conta, revelando conhecer o risco de intoxicação apresentado pelas das conservas. “É melhor comprar assim fresco ou de boa marca”, explica a índia. Ela conta que, quando fresco, o caldo do palmito cozido é altamente medicinal e antiácido. Ele pode ser tomado para aliviar crises de úlcera e acidez. Se não for processado com higiene e não lhe for aumentada a acidez, acrescentando vinagre ou suco de limão à conserva, esse caldo alcalino e antiácido é o meio de cultura ideal para a bactéria do botulismo, que pode matar uma pessoa. Crime ambiental inafiançável, a extração de orquídeas silvestres e principalmente do palmito, produzido pela palmeira juçara, em extinção na Mata Atlântica, tem ocasionado prisões de brancos que também teriam adotado a profissão dos índios (na verdade é o contrário: os brancos é que os ensinaram a fazer coleta comercial, pois a deles era de subsistência). Só que os índios são protegidos pela própria Constituição, que lhes confere o estatuto de inimputáveis, tornando juridicamente polêmica sua punição. Bem próximo de Itanhaém, no Vale do Ribeira, já ocorreram várias mortes de guardas florestais e palmiteiros, numa verdadeira guerra do palmito. O administrador da Funai de Bauru, no extremo oeste do Estado, a que está subordinada a área de Itanhaém, Rômulo Siqueira de Sá, conta que o problema da coleta ilegal nas matas não é uma responsabilidade da Funai, embora esteja começando a aplicar nessas áreas a única fórmula eficaz de evitar isso: o manejo sustentável da natureza. “Graças à execução de um projeto da Funai de manejo sustentável, os índios de Boracéia, por exemplo, já cultivam o palmito pupunha, que tem crescimento mais rápido que o juçara, e já o estão vendendo na beira das estradas. Quer dizer, nesse caso eles estão produzindo e vendendo sem afetar a natureza.” Ele conta que o trabalho é lento e complexo, pois tem de ser especifico para cada comunidade, mas acrescenta que felizmente a Funai está tendo excelentes parecerias com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e com a Unesp, para disseminar o manejo sustentável entre a população indígena.