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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
                                JÚLIO DE MESQUIA FILHO
                      FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS –
                                             FCL/ASSIS
                   CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA
                            DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA




TERRA EM TRANSE (1967)
                                              GRUPO:
                                DANIEL ALVES AZEVEDO
                                  LUCAS SCHUAB VIEIRA
                            RAFAEL BRUNO CLEMENTINO
                              THIAGO RAFAEL BONALDO
                              WELLINGTON DURÃES DIAS
                                             NOTURNO


                                             PROF. DR.
                                       ÁUREO BUSETTO




             ASSIS / SP
               2012

                                                     1
Este trabalho objetiva traçar uma análise critico reflexiva do filme Terra em transe
do diretor Glauber Rocha. O filme foi lançado em 1967 dentro do contexto do Cinema Novo,
com uma proposta inovadora de difundir uma nova estética cinematográfica, a estética da
fome. Primeiramente será feita uma apresentação e contextualização da obra, seguido por uma
breve exposição dos aparatos teórico/metodológicos que orientarão a leitura do filme, para
então adentrar a uma análise externa e interna do documento concluindo com algumas
considerações finais.
         A década de 1960 no Brasil foi um período privilegiado no que concerne a prática
cultural voltada para um conteúdo sócio-político como forma de criticar e representar a
conjuntura do país dentro de uma perspectiva renovadora. O período da Guerra Fria, a
eminência dos movimentos sociais de âmbito mundiais, os efeitos das revoluções socialistas e
o desejo de rompimento e de transformação são características intrínsecas à época. Nesse
contexto, os temas de revolução, desigualdade social, democracia, liberdade e comunismo
fazem parte do repertório de artistas e intelectuais de esquerda que buscam criticar e
representar a realidade que interpretam do Brasil, e que configuram nesse sentido, um
indispensável debate político e estético expresso nas diversas manifestações artísticas.
         A busca no passado de uma cultura popular que atenda as preocupações artísticas do
presente, que nesse momento se traduz numa tentativa de construção inovadora da nação, não
está ausente nos ideais artísticos, assim, segundo Marcelo Ridenti, são exemplos:


                        “o indígena exaltado no romance Quarup, de Antonio Callado (1967); a comunidade
                        negra celebrada no filme Canga Zumba, de Carlos Diegues (1963), e na peça Arena
                        conta Zumbi, de Boal e Guarnieri (1965); os camponeses no filme Deus e o Diabo
                        na Terra do Sol, de Glauber Rocha, etc.” (2007, p. 136).


       Em 1952 ocorre o I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro e o I Congresso Nacional
do cinema brasileiro, onde, cansados da métrica formal hollywoodiana, jovens cineastas se
reúnem para debater novos rumos a então dispendiosa indústria cinematográfica nacional.
Suas ideias eram pautadas na problemática de como gerar uma produção cinematográfica
mais dinâmica, de melhor conteúdo e, sobretudo, mais barata.
       Uma nova abordagem cinematográfica começa a ser percebida em meados de 1955,
com a exibição do filme “Rio, 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos, onde germinaram as
ideias de Alex Viany e seu neorrealismo italiano. O filme foi tido como popular, por retratar
“o povo para o povo” (SOUZA, 1981), com ideias e palavreado simples, retratando o Distrito

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Federal, desprezando a retórica, o filme se passava em cenários simples e naturais, como
favelas e praças.
       Cineastas do Rio de Janeiro e Bahia elaboravam os eixos centrais do cinema brasileiro,
para romper com as alienações culturais que as chanchadas transmitiam. Os novos filmes
tratariam da realidade brasileira; em geral em ambiente simplórios, com falas longas e cenas
de menor movimento.
       Os nomes mais comuns do Cinema Novo foram Glauber Rocha, Joaquim Pedro de
Andrade, Ruy Guerra, Carlos Diegues, Paulo Cesar Saraceni, Luiz Carlos Barreto.
       Na primeira fase do Cinema Novo (1960-1964), os filmes retratavam o problema das
secas no Nordeste, a miséria de seus trabalhadores e seu cotidiano. São rodados “Vidas
Secas” (1963) e “Os fuzis” (1963).
       A segunda fase do movimento (1964 a 1968) surge com a proposta de analisar a
política, em especial os equívocos da ditadura militar, fazendo menção ao futuro da política
nacional. São filmado “O bravo guerreiro” (1968); “Terra em transe” (1967), sendo este
último vencedor de dois prêmios no festival de Cannes do mesmo ano.
       A terceira fase (1968-1972) já é influenciada pelo tropicalismo, representando filmes
de nacionalismo extravasado por meio de palmeiras, samambaias, periquitos, bananas, índios,
como no clássico “Macunaíma” (1969), filmado por Joaquim Pedro de Andrade, onde Grande
Otelo (até então expoente das chanchadas) aparece como o herói sem nenhum caráter, o
brasileiro espertalhão, malandro que vive das artimanhas para sustentar-se.
         Nesse mesmo sentido é que se encontra uma das propostas do movimento do Cinema
Novo. Surgido entre os anos 50 e 60, o movimento iniciado por Glauber Rocha e outros
estudantes de cinema, além de atentar para uma identidade nacional de cultura popular
própria, tinha como intenção alertar e divulgar problemas sociais, valorizar aquilo que é
brasileiro, renovar linguagens e conceitos, despertar a população para a cultura e a política. O
movimento rompe com a produção cinematográfica nacional influenciada pelas produções
hollywoodianas, que em nada se identificam com a realidade brasileira. Influenciado por
movimentos europeus, como o neo-realismo italiano e a novelle vague francesa, o Cinema
Novo não se limita a uma finalidade mercadológica ou de entretenimento, muito além, se
insere num compromisso com a realidade, com as conjunturas políticas e sociais, com a
transmissão de uma consciência crítica, com a informação e com a renovação da estética.
         Nessa perspectiva se destaca o filme Terra em transe de Glauber Rocha, filmado nos
anos de 1966 e 1967. Entretanto, considerando que um dos objetivos do movimento do

                                                                                              3
Cinema Novo era despertar nos espectadores uma consciência crítica sobre os problemas
sociais e políticos que atingiam o país, parece duvidoso que o filme tenha sido visto pelas
massas ou com intenção de ser recebido por elas. Quando comparado com trabalhos
anteriores, percebe-se uma nova estética com elementos criados pelo próprio diretor.
Destacam-se como características de sua narrativa: a descontinuidade, da qual a quebra da
narrativa linear impõe ao espectador refletir sobre o que está sendo exposto; o dinamismo, o
excesso de movimentos de câmera e cortes abruptos de cenas; e a desarmonia, ou seja, há um
desconforto no espectador diante de uma narrativa “confusa”, que não tem qualquer pretensão
de orientar ou controlar a interpretação da obra. Diante dessas características, a repercussão de
Terra em transe foi muito maior entre as elites intelectuais do que o grande público, não
tendo sucesso de bilheteria popular.
       Entretanto, não tardiamente a repressão política caiu sobre o movimento e, obrigando
ao exílio alguns de seus expoentes, não obstante alguns diretos novatos que ali se associavam
recusaram-se a tentar manter o grande público e se adaptar às novas circunstâncias, surge
então o Cinema Marginal.
         Liberado em maio de 1967, após ter sido proibido em todo o território nacional, o
filme foi exibido causando polêmica, o que desde início levou a mobilização de artistas e
intelectuais. Se por um lado o filme não é satisfatório em cumprir sua recepção nas massas,
por outro, impactou consideravelmente a sociedade se levar em conta a emergência de outros
movimentos nascidos de uma elite intelectual de esquerda influenciada pelas ideias do filme,
como por exemplo, o Movimento Tropicalista. A respeito dessa influência, Carlos Nelson
Coutinho comenta: “Terra em transe é de certo modo precursor do que viria depois” e “uma
certa valorização do irracional como uma coisa própria dos países do Terceiro Mundo” (apud
RIDENTI, p. 146).
         Os problemas denunciados no filme são condizentes com a realidade não só do
Brasil, mas da América Latina em geral. Apesar de já terem sido abordados na arte diversas
vezes, o que torna seu roteiro singular é a abordagem com que Glauber Rocha trabalha e
expressa seu conteúdo. A indecisão e contradição numa postura política dos artistas latino-
americanos, representados pelo personagem Paulo Martins; a descrença na esquerda latino-
americana, dividida e de pouco confiança, representada, entre outros, no personagem Vieira; e
a descrença e ridicularização do povo, representado num momento, no personagem Jerônimo.
       Após essa apresentação e contextualização, abordaremos agora, questões de âmbito
teórico metodológico que orientarão a leitura critico/reflexiva do filme, por nós aqui

                                                                                               4
analisado. O primeiro ponto a se ressaltar é que, o filme, não é um retrato da realidade, mas
uma representação desta. Ainda que aborde fatos reais, não abolirá a sua condição de
representação. Isso significa dizer que sua leitura não se dá de forma imediata, porque a
imagem cinematográfica é uma construção, é a representação do real feita com a utilização de
uma série de recursos e elementos próprios do cinema, através da manipulação de
equipamentos, instrumentos, artifícios e técnicas, para produzir cenários, iluminação, sons,
fotografia. Representação que opera com símbolos, valores, ideias e sentimentos, cujos
significados são historicamente constituídos nas relações sociais nas quais ocorrem a
produção e a recepção dos filmes. (NOMA, 2012).

        Evidentemente, é preciso destacar que um filme não tem a pretensão de abordar, de
lançar um olhar sobre a totalidade da vida social. O olhar produzido pelo cinema é uma
construção de uma determinada visão de mundo acerca de algumas dimensões do social.
Portanto está cheio de recortes. Desde a sua formação, ele implica uma série infinita de
escolhas, revelando sempre o ponto de vista que a equipe envolvida na produção (diretor,
atores, roteirista, produtor, etc.) tem sobre a temática abordada. Interessa-nos aqui, pensar
que, independentemente do tratamento dado ao tema, os filmes revelam dimensões da
consciência coletiva que é produto social da experiência de viver em uma determinada
sociedade. (Idem, 2012).
        O primeiro ponto a se considerar na análise fílmica é trabalhar o documento
audiovisual de ficção com atenção para as suas estruturas internas de linguagem e seus
mecanismos de representação da realidade, a partir de seus códigos internos. E num segundo
momento ater se aos conceitos de subjetividade e objetividade. O filme ocupa um estatuto
intermediário entre uma visão “objetiva” e “subjetiva”. Seu caráter ficcional e sua linguagem
explicitamente artística, por um lado, lhe confere uma identidade de documento estético, o
que, a primeira vista remete a um caráter puramente subjetivista. Enquanto que sua natureza
técnica, sua capacidade de registrar e, hoje em dia, de criar realidades objetivas, encenadas
num outro tempo e espaço, remete, por outro lado, a uma visão objetiva. (NAPOLITANO,
2006)

        É menos importante saber se tal filme foi fiel ao passado, do que buscar entender o
porquê das adaptações, omissões, falsificações que são apresentadas num filme. Napolitano
chama a atenção para a necessidade de articular a linguagem técnico-estéticas das fontes
áudio visuais, ou seja, seus códigos internos de funcionamento e as representações da

                                                                                           5
realidade histórica ou social nela contidas, ou seja, seu “conteúdo” narrativo propriamente
dito. Assim como em toda operação historiográfica, critica externa e crítica interna, análise e
síntese, devem estar devidamente articuladas. (Idem, p.237-238)

          Segundo Napolitano, o cinema como qualquer outro tipo de documento histórico, é
portador de uma tensão entre evidência e representação. Ou seja, sem deixar de ser
representação construída socialmente por um ator, por um grupo social ou por uma instituição
qualquer, a fonte é uma evidência de um processo ou de um evento ocorrido, cujo
estabelecimento do dado bruto é apenas o começo de um processo de interpretação com
muitas variáveis. Importante também é considerar que, cada tipo de fonte, possui
características peculiares, conforme a sua linguagem constituinte. (Idem, p.240)

          Será abordada aqui a história no cinema, ou seja, o cinema como produtor de “discurso
histórico” e como “intérprete do passado”. O historiador Eduardo Morettin aponta quatro
maneiras pelas quais a história se manifesta no cinema. (1) Herança positivista, no sentido da
preocupação com a exatidão da reconstituição fílmica do passado ou com o registro mais fiel
possível de eventos ocorridos. (2) Predomínio da ideologia (“discurso ideológico”) dos
realizadores sobre a historicidade, subvertendo o sentido dos personagens e dos fatos. (3)
Apelo ao “discurso novelesco”, predominante ao discurso histórico, tornando mais sutil a
“subversão” dos fatos e processos. (4) Criação de uma narrativa histórica própria, que opera
dentro do discurso histórico instituído, utilizando técnica de citação bibliográfica e
documental, legitimada por pesquisadores. (MORETTIN, 2003).

          É imprescindível, portanto, estar atento a estas várias opções de representação
cinematográfica da história que terão efeitos não apenas estéticos, mas ideológicos,
completamente diferentes. Em muitos casos, essas quatro maneiras interpenetram-se, exigindo
do historiador, um olhar atento que vá além da clássica dicotomia entre “realismo” ou
“ficção”, ou filmes documentais adotados como realistas e filmes ficcionais tomados como
fantasias históricas. (NAPOLITANO, 2006, p. 241).

          Napolitano se ancora em Morettin e Ramos para salientar que o historiador deve
“partir dos próprios filmes”, de sua significação interna, a partir da qual se insere determinada
base ideológica de representação do passado. Portanto a questão da autenticidade e da
objetividade do registro, importantes na perspectiva clássica de Ferro 1, pouco importam.

1
    FERRO, Marc. [Apud] NAPOLITANO, 2006, p. 245.
                                                                                               6
Trata-se de buscar os elementos narrativos que poderiam ser sintetizados na dupla pergunta:
“o que um filme diz e como o diz?”. (MORETTIN; RAMOS [Apud] NAPOLITANO, 2006,
p. 245).

          Há de se ressaltar, também, a capacidade do filme de criar uma memória histórica
própria: E as disputas que se estabelecem no presente em torno da preservação de
determinadas memórias sobre fatos e acontecimentos do passado. E como uma última
observação vale salientar que, todo filme, ficcional ou documental, é, segundo Napolitano
(2006), manipulação do “real”.

          Passadas estas orientações de cunho teórico metodológico caminharemos agora para
uma análise externa e interna do documento, concluindo com algumas orientações finais.

          Se atendo a aspectos mais gerais da produção de Terra em transe (1967) de Glauber
Rocha, podemos destacar alguns pontos relevantes a serem trabalhados, considerando o
aparato metodológico, em questão, já citado. Desta forma, se atendo ao filme como um
discurso produzido pelo cineasta e que buscou nas suas construções interpretar uma realidade
passada, seria quase impossível não localizar elementos semelhantes para uma comparação
direta com o processo histórico em que se situa O Governo Goulart e o golpe civil-militar de
1964, fazendo alusão aqui, ao título do trabalho do historiador Jorge Ferreira2.
          Podemos destacar em bloco duas grandes questões, nas quais se identificam alguns
tópicos centrais abordados por Glauber Rocha: questões políticas e de ordem ideológica e
questões sociais, portanto, podemos compreender a partir dessa representação fílmica de
ordem cultural o balanço realizado pelo cineasta da dimensão política e social do Brasil nos
anos 1960, exteriorizando ao público uma reflexão de temas latentes no seu presente. Na
problematização do filme, podemos destacar ainda, a elaboração de uma nova estética
cinematográfica, Estética da Fome, que direcionou as atenções do Cinema Novo para
questões intrínsecas à da realidade brasileira.
          A percepção do cineasta de uma realidade passada que se correlacione com elementos
históricos, dos quais buscou refletir e representar demonstra em seu presente a latência por
explicações acerca do Golpe-civil militar de 1964. Elementos alegóricos se demonstram a


2
    DELGADO, L.; FERREIRA, J. (orgs.). O Brasil republicano: O tempo da tempo da ditadura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, v. 4.



                                                                                                        7
todo o momento, seja pelas tensões políticas entre as orientações de esquerda e direta ou
mesmo pela representação da tensa ambientação política no filme.
           Quanto às questões de ordem política, podemos identificar que as diversas tendências
representadas fazem alusão ao quadro político pré-Golpe que se deu com tomada de posse por
Goulart em 1961, tais elementos, sob nossa interpretação, se identificam com a eleição de
Felipe Vieira ao governo da província de Alecrim e a incapacidade por fim de exerce
plenamente suas funções, conjuntura que se apresentou a Goulart: “não tinha como
implementar seus projetos reformistas. O sistema parlamentarista, implantado às pressas,
visava, na verdade, impedir que ele exercesse seus poderes. Sob um parlamentarismo
“híbrido”, o governo não tinha instrumentos que dessem a ele eficiência e agilidade.”
(FERREIRA, 2003, p.348.). Da mesma forma se deu com Vieira, personagem fictício, que
após a excitação de sua eleição se viu incapaz, na trama, de realizar seus projetos de cunho
populista.
           Durante todo o processo que se desencadeia com a ascensão dos militares em 1964,
podemos observar a articulação de várias forças, que por fim se dividem em dois polos bem
demarcados, orientações políticas de esquerda e direita, representadas também no filme de
Glauber. É possível identificar tais posicionamentos políticos e ideológicos, suas divergências
externas e internas e a articulação dos diversos discursos que se originam dessas bases.
Refletindo sobre a preocupação do cineasta em representar tal quadro e propor ainda uma
reflexão ao público, podemos destacar a fala de Paulo Autran (Porfírio Diaz), que voltado
diretamente para a câmera, questiona a quem o observa: “Olha, imbecil, escute... A luta de
classes existe. Qual é sua classe? Vamos, diga!” 3. É nítido o posicionamento crítico, imposto
pelo discurso do cineasta à reflexão política, tanto de elemento históricos passados, quanto ao
seu presente.
             A representação fílmica do cineasta consistiu em uma crítica, bem articulada a todos
as tendências políticas. A identificação de divergências de pensamento na esquerda é crítica
de Glauber que apresenta certa descrença em relação a estas, ressaltando no filme seus
elementos negativos. Jorge Ferreira nos mostra quais grupos pertenciam a esta orientação
política, da qual, a nosso ver, Glauber Rocha buscou retratar:
                             “Eram eles o PCB, as Ligas Camponesas, o bloco parlamentar autodenominado
                             Frente Parlamentar Nacionalista, o movimento sindical representado pelo CGT,
                             organizações de subalternos das Forças Armadas, como sargentos da Aeronáutica e



3
    Terra em transe: 01hs 31min.
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do Exército e marinheiros e fuzileiros da Marinha, os estudantes da UNE e,
                       inclusive, uma pequena organização trotskista.” (FERREIRA,   2003, p.352).
       A crítica à falta de articulação destes grupos se apresenta em vários momentos do
filme, inclusive no que tange a representação das massas por estas orientações de esquerda,
sobrepondo em muitos momentos as noções de democracia por um discurso radical. Pensar a
respeito dos desalinhamentos discursivos da orientação política de esquerda, ainda mais em
1967, era de imediato refletir na impossibilidade de aplicação prática, de possíveis reformas
sociais, sem uma homogeneidade político-social que fornecessem bases para tal mudança,
elemento enfrentado por João Goulart e presente também no discurso populista representado
de forma satírica por Glaube Rocha. Nesse contexto a articulação de um discurso conservador
orientado pela posição direita na política, ascende e toma forma na dominação do poder,
elemento explorado pelo cineasta que se identifica claramente com o Golpe civil-militar de
1964. Em 1967, refletir sobre tais questões, ainda mais a partir do cinema, foi fundamental
para que o público pudesse ter a possibilidade de se perceber enquanto agente de toda esta
conjuntura e de alguma forma se orientar diante das consequências latentes de seu presente
que precisavam ser de alguma forma, respondidas, considerando as próprias preocupações do
Cinema Novo e sua função crítica por meio do cinema.
       O poder, identificado pelo cineasta se entrelaça com questões tanto nos extremos de
esquerda quanto de direita. A hierarquia e os jogos de influência e poder percebidos no filme
movem críticas contra a intelectualidade na representação das massas, que sempre caladas,
não possuem voz, justamente, também pela incompatibilidade de interesses e preocupações de
ordem social, entre ambas. A violência, que surge como elemento consequente destas formas
de poder, se orienta por questões políticas que não necessariamente atende aos interesses do
povo, tornando-o vítima desse processo de exclusão, da qual ele mesmo, segundo os olhares
do cineasta decidiu não participar, desta forma, a segurança pública, no filme serve aos
interesses dos que estão no poder, independente da sua orientação política, tanto Porfírio
Diáz, representação da direita, quanto Felipe Viera, representação populista da esquerda.
       A corrupção, desta forma, é algo denunciado pelo cineasta, por meio também da
representação degradante da cultura burguesa, do consumo e da futilidade. O empresariado
corrupto demonstra estar interessado somente nas formas de poder e tange as orientações
políticas que atendem suas demandas. Glauber Rocha explora a hipocrisia destes interesses
que não possuem limitações de ordem política e sim, somente interesses econômicos. A
semelhança com o empresariado nacional que apoiou o golpe-civil militar em 1964 não
deixaria de ser notado, elemento representado claramente pelo cineasta. A ligação da política
                                                                                            9
com empresas privadas e o intervencionismo de domínios multinacionais, se apresentam no
filme a partir da fictícia empresa Explint.


       A opinião pública e a influência dos meios de comunicação são representadas por
Glauber como elemento a ser considerado na influência e mobilização das massas, Julio
Fuentes, personagem que se mostra alegoricamente como representante do empresariado, se
articula no jogo político de acordo com seus próprios interesses, sempre buscando estar de
acordo com os elementos majoritários de poder. A princípio em apoio às tendências de
esquerda no filme, a aliança de tais meios com as orientações políticas de direita é o passo
seguinte da personagem, elemento observado por Jorge Ferreira: “Uma ampla campanha
baseada na histeria anticomunista convenceu parcelas significativas da população formada por
empresários, políticos, jornalistas, religiosos, sindicalistas, profissionais liberais, militares e
trabalhadores – de que Goulart, de fato, teria intenções de comunizar o país”. (Ferreira, 2003,
p. 360).
           Quanto às questões de ordem social, correlacionadas com a proposta do Cinema
Novo e da estética da fome, salientada em manifestos, inclusive por Glauber Rocha, podemos
destacar dois grandes pontos, a questão da pobreza e desigualdade social e a questão da terra e
da reforma agrária, tais elementos se entrelaçam diretamente com a situação política das
“massas”. Pensada em alguns momentos como massas e em outros como povo, é perceptível a
dicotomia explorada pelo cineasta: quando estas possuem voz, são conclamadas a se
pronunciarem e lhes é dado o seu espaço legítimo, a praça, como a democracia nos moldes
gregos, estas recebem o adjetivo de povo, entretanto, quando estas estão sendo orientadas por
um líder e não possuem a palavra para sua própria expressão, essas são identificadas enquanto
massa, em que a responsabilidade por seus destinos reside a outrem, restando-lhes a religião,
que sabiamente utilizada nos discursos de poder e nas cruzes grandiosamente utilizadas como
ornamentos políticos para mobilização alienada das massas. A oração, explorada pelo cineasta
é elemento que contrasta com a falta de mobilização frente às mazelas da pobreza e da
desigualdade.
       A pobreza e a desigualdade exploradas por Glauber Rocha são enfáticas, de orientação
marxista, que atestam a problemas sociais de ordem econômica, que, entretanto, são possíveis
de serem pensados a partir da crítica do cineasta, como não somente, de ordem econômica,
mas também de ordem política. A crítica às massas é elemento evidente, estas no filme não se



                                                                                                10
mobilizam, não falam, não lutam e tais críticas pensadas no contexto de recepção do filme,
demonstram claramente o direcionamento ideológico do cineasta.
       As personagens em diversos momentos contrastadas com a situação de miséria
encarnam claramente uma causalidade ou continuidade desta. O engajamento para combater a
miséria e a desigualdade, o caráter paternal que anestesia as mazelas da pobreza, a indiferença
passiva que está alienada de tais elementos, a repugnância que desencadeia toda esta situação,
todos diretamente relacionados com o cotidiano pobre, dependente dos votos e da ignorância
das massas.
       A questão agrária, colocada por Glauber, pano de fundo de toda a questão da terra no
Brasil, parece se apropriar de certos elementos do passado para construir sua representação.
As questões pendentes do passado analisadas por Glauber fazem alusão as formação das Ligas
Camponesas no nordeste do país e a problemática questão agrária, que no governo João
Goulart teve os seus ensaios com a formação da Superintendência da Reforma Agrária
(SUPRA). No filme, o cineasta buscou representar a questão da violência no campo,
deslocando sua crítica para a incapacidade das massas de organização política e sua
dependência paternalista dos setores ligados ao poder.
       Paulo Martins, cuja profissão oscila entre jornalista, poeta e político é o principal
personagem de Terra em Transe. Sua trajetória se confunde com o próprio enredo do filme. É
o principal fomentador da revolução social em Eldorado, mas, seu receio e indecisão
enfraquecem essa postura. Está mortalmente dividido entre poesia e política, entre transformar
a sociedade, cedendo seu apoio a demagogos fracos, ou aliar-se aos conservadores da ordem
social que de alguma forma o criaram. Não se identifica com as massas de Eldorado, apesar
de recorrer ao seu nome com frequência, lhes imputando a responsabilidade pela situação de
miséria e exploração em que se encontram. Em determinados momentos do filme, acaba
tomando consciência de que também tem culpa nesse processo, daí sua necessidade
existencial de engendrar uma revolução que extermine as forças anacrônicas que subjugam a
nação. O começo e o fim do filme mostram a morte de Paulo, assassinado pela polícia
enquanto tentava fugir do palácio de Vieira após o golpe. Descreve a Sara, ao seu lado na
agonia, seu desencanto com a própria pureza que achava possuir, com os ideais ingênuos que
achava portar. O filme é em suma sua memória.
       Paulo representa a intelectualidade brasileira da década de 1960, criada dentro dos
setores reacionários, que inspirado pela revolta com a própria situação do país e com ânsia de
autonomia de pensamento e ação políticos, vive relações de amor e ódio com João Goulart,

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que parecia ser o seu líder no sentido de garantir as transformações sociais que esperavam,
mesmo que a radicalização fosse necessária. Sua indecisão e sua impossibilidade de reagir aos
eventos que se desdobravam com grande velocidade levam essa intelectualidade a ser uma das
principais vítimas do golpe de 1964.
       Porfírio Diaz, o perfeito representante das classes dominantes da sociedade, é o
político reacionário por excelência. Possui amplo apoio da Explint, transnacional que o
patrocina, para que faça da política de Eldorado campo fértil para sua exploração predatória.
Construiu sua carreira rumo à presidência, através de traições, demagogia, mentiras,
corrupção, prevaricações e nepotismo. Seu discurso sempre se baseia no imaginário cristão,
na tradição, na família, na ordem. Mas ironicamente e mesmo intencionalmente, Diaz é
incapaz de aplicar a ética de seu discurso à própria vida. Por esse motivo constrói uma
violenta diferenciação entre sua pessoa pública e privada. Anda iconicamente com uma
bandeira em uma mão e o crucifixo na outra quando fora de seu palácio. Mas entre os muros
de sua casa, maquina, trama e se prostituí com Silvia, sua amante.
       Tem uma relação íntima com Paulo, foi seu mecenas no princípio e o quer junto de si
pelo poder que o mesmo tem com as palavras. Porfírio vê Paulo como um homem que pode
ajudá-lo a mascarar sua verdadeira natureza. Mas Paulo sente a responsabilidade social
pesando em seu espírito, expresso por sua poesia que ganha teor cada vez mais crítico, sendo
esse o motor engendrador do violento rompimento entre os dois. Porfírio Diaz foi um nome
escolhido a dedo por Glauber Rocha. Faz referência ao ditador mexicano José de La Cruz
Porfirio Díaz Mory (1830 – 1915), que inicialmente, em sua escalada política alinha-se ao
liberalismo e depois, após ganhar destaque durante a resistência do México à invasão francesa
e sua submissão à protetorado, institui-se como presidente em 1876 e ditador de 1884 a 1911.
Seu governo foi findando com a revolução mexicana. Desenvolveu o México a custo de uma
violenta dependência estrangeira e formou uma tecnocracia para modernizar os métodos de
governo, um conjunto de intelectuais, chamados por ele de científicos. Porfírio Diaz, como
seu correspondente histórico, simbolizam a alegoria do político corrupto e oportunista, que
muda de lado conforme o vento, e perpetua-se no poder com o auxilio dos setores mais
reacionários, com o sacrifício da população, mais carente e despossuída.
       Felipe Vieira, político de Alecrim, província periférica de Eldorado, é o porta-voz da
reação ao jogo político simbolizado por Porfírio Diaz. Têm um tom paternalista, estratégias
populistas e é um demagogo de grande influência nas massas. É visto por Paulo inicialmente
como o líder político que irá deflagrar a revolução social e este não poupa esforços para

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apoiá-lo. Mas Vieira, ao tornar-se governador de Alecrim, mostra sua fraqueza de caráter,
escondendo-se atrás de um discurso conciliador com as forças reacionárias, abandonando a
aliança que tinha construído com a população, especialmente com os camponeses. Paulo
perde sua fé em Vieira, o abandona, mas graças à intervenção de Sara, retorna com o apoio
das indústrias e meios de comunicação de Eldorado, representados na figura de Júlio Fuentes.
Porém o quadro favorável a Vieira não se perpetua. A direita representada por Diaz, aliada ao
imperialismo da Explint, traz Fuentes de volta a sua órbita e começa a engendrar um golpe
por temor ao populismo que mobiliza catarticamente as massas. Na hora da decisão, no
momento do rompimento revolucionário, Vieira abandona a luta e entrega o poder a Porfírio
Diaz. Talvez o momento mais contundente do longa-metragem.
       As figuras de Felipe Vieira e João Goulart convergem, em todos os pontos. Palavras
similares, práticas parecidas, ações comparáveis. A mesma imobilidade que a película nos
passa em relação a Vieira no início do filme é sofrida por Goulart. A mesma pressão do
segmento transversal de esquerda cai sobre ambos para resistirem ao golpe articulado pela
direita. No caso de Vieira vemos representantes do exército, intelectualidade, igreja,
revolucionários comunistas, mídia. E no caso de Goulart:


                       Diversos grupos se mobilizaram para a resistência: o CGT, o PUA, o CPOS, a união
                       dos portuários, o sindicato dos Ferroviários da Leopoldina, a UNE, a UME, a UBES,
                       CACO, ex-pracinhas, sargentos, fuzileiros navais, organizações populares,
                       comunistas, brizolistas, entre diversos outros. Contudo, nenhuma ordem vinha do
                       Palácio das Laranjeiras. (FERREIRA, 2003, p. 397).


       E a mesma apatia é observada. Ambos recuam diante da iminência de uma guerra civil
fratricida, clamando o valor do sangue sagrado das massas, e cede lugar a realização do golpe
de Estado. Em muitos outros pontos as duas imagens são similares. Mas sem dúvida essa
passagem é a mais emblemática da equivalência que Glauber Rocha quis transmitir entre o
personagem de sua trama e o ex-presidente deposto.
       Sara é uma das principais personagens de Terra em Transe. Professora de Alecrim,
província de Eldorado e posteriormente secretária de Felipe Vieira, inicialmente age como
elemento de denúncia as injustiças sociais coordenados pelo governo e por particulares.
Possui uma forte participação política e um gigantesco engajamento. Está presente em todos
os momentos de ação e reflexão revolucionária, conduzindo e catalisando frequentemente o
processo. Tem um caso de amor com Paulo, e seus encontros marcam vários momentos
dramáticos no filme. Sua figura possui grande força de caráter, mas sua determinação na

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crença em uma revolução depende misteriosamente dos demais personagens, principalmente
Paulo e Vieira.
       A representação que Glauber Rocha quer fazer de Sara parece clara quando
analisamos a cultura política da república brasileira, em princípio muito inspirada pela França;
sendo que da Primeira à Terceira República, a alegoria feminina domina a simbologia cívica
francesa, representado seja a liberdade, seja a revolução, seja a república. (CARVALHO,
1990, p.75). Ela surge como um contraponto necessário ao vácuo deixado pela queda da
monarquia e da figura masculina do rei. A iconografia e os monumentos são abundantes a
respeito dessa temática. Temos o quadro de Delacroix, a Liberdade guiando o povo (1830) e a
escultura de Rude, A partida dos voluntários (1834) e muitas outras obras de relevo,
retratando mulheres de grande presença liderando levantes populares. Na França, a
popularização desta figura feminina veio com Marianne, nome popular de mulher. Marianne
passou a personificar a república, unificando as formas anteriores. (CARVALHO, 1990,
p.78). No entanto, Marianne (esta alegoria da pátria, revolução e liberdade) não foi bem aceita
no Brasil, não aderiu no imaginário popular, ficando restrita à intelectualidade brasileira do
período. Mas mesmo hoje persiste na numismática.
       Sara e Marianne tem suas grandes semelhanças. Personifica uma força, um conceito,
uma ideia abstrata, diferente das figuras masculinas, ícones de segmentos sociais presentes
nas tensões políticas que resultaram no golpe de 1964. Sara é o espírito da revolução. Ela
apaixona-se por Paulo, o símbolo da intelectualidade brasileira. O instiga, apresenta a ele
elementos para sua revolta (fotos de famintos, presos e injustiçados para seu jornal
independente em Alecrim, que adquire após romper com Diaz), o incentiva em sua poesia
política, o apresenta a Vieira, o leva a trair Diaz de vez, o denunciando publicamente, a
arrebanhar o patrocínio de Fuentes. Sara conduz Paulo, e está sempre ausente quando este
pratica suas injustiças contra os menos favorecidos ou se prostituí com os poderosos. Sara dá
voz aos que estão mudos, ao na praça dizer a um homem qualquer “você é o povo”, “fale!”.
Ela diz em outra passagem sobre ter sido a primeira a levantar a voz, a pronunciar protesto
contra as forças dominantes e a primeira a ser violentada. Concluindo, ela passa incólume aos
eventos que levam a morte de Paulo e a deposição de Vieira, mas na tomada final do filme,
está sozinha, sem rumo, perdida na estrada que não leva a lugar algum. Como espírito da
revolução, sem pessoas que a carreguem e que a sustentem, Sara está fadada a dissolver-se no
ar.



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Silvia é o extremo oposto de Sara. De beleza marcante, passa por todo o filme como
objeto estético, desprovido de opinião, posicionamento, vontade, entrando muda e saindo
calada de cena. Sempre acompanha Porfírio Diaz, e com frequência acaba sendo amante de
outros personagens, principalmente Paulo. Sua passividade é tão grande quanto sua
lascividade, participando com frequência das orgias organizadas por Júlio Fuentes. Silvia é
outra alegoria, que deriva do mesmo fundo simbólico francês, legado pela república brasileira
e que ficou no imaginário da intelectualidade. Ela é outra face de Marianne, só que derivando
mais para um ideal de República Burguesa do que Socialista. (CARVALHO, 1990, p.78).
Esta figura é mais maternal, bela, sólida (no sentido de estabilidade), não está em movimento.
Ela representa um ideal de pátria que quer conservar em vez de alterar. Sua personalidade e
sua forma demonstram essa cisão. Silvia difere de Sara por encarnar a contemplação em vez
da ação, encarna mais um ideal de conformismo com a situação de Eldorado do que o
radicalismo da revolta.
       Mas Glauber Rocha explora essa alegoria de Silvia, que representa a república
brasileira burguesa, recorrendo a uma tradição presente desde o início do século XX nos
círculos midiáticos, que é o de comparar esta representação feminina com uma meretriz,
mulher de muitos homens. (CARVALHO, 1990, p.88 – p.89). É um claro sinal de protesto a
essa aura de pureza com a qual o governo queria se recobrir. O imaginário popular brasileiro,
em vez de assimilar uma virgem-mãe, mantenedora do povo (como concebido pelos
franceses), liga os pontos e vê uma prostituta. Silvia é assim, como a república brasileira,
aparentemente pura, mas é vendida, passa de mão em mão entre os poderosos, e nenhuma
palavra profere a favor ou contra sua situação degradante.
       Por fim, existe um líder camponês, de nome desconhecido, que faz uma ponta de
grande relevância no filme. Graças a seu apoio e de tantos outros como ele, Vieira se elege em
Alecrim. Mas suas demandas são esquecidas, e sua luta por terra e justiça social é ignorada.
Sua revolta contra Vieira se desdobra, mas acaba assassinado por um dos Coronéis da região,
aliado político do governo da província. Neste momento a estética da fome fica evidente. O
camponês caído contrasta violentamente com a extrema luminosidade do ambiente. Os
olhares dos figurantes têm expressão faminta. Faminta de alimento, de justiça, de amparo.
Este camponês assassinado é a representação do conflito agrário nunca solucionado, nem
durante as filmagens de Terra em Transe, nem no presente momento.
       Partindo para algumas considerações finais e pensando agora, um pouco, no sentido da
recepção e repercussão que o filme teve vale destacar que, em Alegorias do

                                                                                           15
subdesenvolvimento, Ismail Xavier compreende que Terra em transe resultou numa
experiência de choque, contribuindo para um novo impulso na cultura, gerando toda uma
produção no âmbito do cinema, da música, do teatro.
       Quando se deu seu lançamento, houve debate sobre o filme “Terra em transe” no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O então jornalista do Jornal do Brasil, Fernando
Gabeira alude em sua obra “O que é isso companheiro?”: “Lembro-me do debate sobre o
filme “Terra em transe”. De um lado, estava o grupo dos excelentes diretores do Cinema
Novo defendendo o filme, parte por sua importância estética e parte porque são muito
solidários entre si. De outro, estava à plateia da zona Sul do Rio de Janeiro, maravilhada com
as proposições do filme”. Para Gabeira o filme trazia uma “concepção muito depreciativa do
povo brasileiro”, acabando com uma solução elitista de “quem não acredita na capacidade
organizada das massas”, ainda para ele, o filme discutia “duas saídas e escolhia a pior delas.”
       À época Gabeira repudia a luta armada contra a ditadura militar, porém, algum tempo
depois segue esse caminho para combater o regime, inclusive alugando o apartamento usado
de cativeiro no sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick. Este paradoxo
indica quão problematizador foi o filme.
       “Terra em transe” alcançou também comentários no meio dos produtores culturais,
como para Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, para ele “o Brasil não é isso que o Glauber
Rocha vê”. Essa posição impactante se reitera na peça “Papa Highte”, de 1968, uma clara
crítica à opção pela luta armada.
       Outro posicionamento é o de Jacob Gorender, para ele “a aversão emocional ao
populismo atingiu o terreno das artes e aí deslizou para a aversão à própria massa popular.
Terra em transe satiriza o líder populista e as massas imbecis que se deixam enganar. Nada a
esperar dessas massas idiotizadas, mas do intelectual que sai atirando de metralhadora”
(GORENDER, 1987).
       Vale lembrar que essas são posições marcadas politicamente, onde o receptor subjuga
o diretor em vista de seus posicionamentos históricos, daí a capacidade do filme dialogar com
diversos campos sociais, “Terra em transe coloca quem se comunica com o filme em estado
de tensão e de necessidade de criação neste país” (CORRÊA, 1968).
       Outra análise importante em se salientar foi o impacto do filme sobre Caetano Veloso,
para este se o “tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas ideias, temos
então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme
Terra em transe. Nada do que veio a se chamar tropicalismo teria tido lugar sem esse

                                                                                             16
momento traumático. Portanto, quando o poeta de Terra em transe decretou a falência da
crença das energias libertadoras do povo, eu, na plateia vi, não o fim das possibilidades, mas o
anúncio de novas tarefas para mim” (VELOSO, 1997), neste sentido, para além de propor
soluções ao regime, como a luta armada, o filme conclama ao posicionamento da população:
“A sociedade brasileira é feita de classes! A que classe você pertence, hein? A que classe?”
(trecho da fala de Diaz, em direção à câmera), é onde, na seara da criação artística brasileira, a
produção cultural aparece como tentativa sociopolítica de realizar uma transformação
histórica, (re) construindo interpretações sobre a realidade nacional.
        Segundo Robert Stan, Terra em transe é um filme provocador, agressivo,
intencionalmente difícil, uma lição adiantada do ponto de vista das significações políticas e
cinematográficas que contém. Cria um mundo de contradições sistemáticas: entre os
personagens, no interior dos mesmos, entre o som e a imagem, entre os estilos
cinematográficos. Certas rupturas Brutais desorientam o espectador, impedindo qualquer
identificação com os personagens. O filme se configura como um exemplo de pedagogia
revolucionária. A metodologia e a visão do filme são dialéticas; não oferece nenhuma receita
pronta para soluções práticas. A solução consiste na tomada de consciência do espectador.4




4
 Robert Stan disponível em:
http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D07_Terra_em_Transe.pdf
                                                                                               17
REFERENCIAS:
  Fonte:
“Terra em transe” de Glauber Rocha, BRASIL, 1967, 115 min.

  Bibliografia:
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GABEIRA, Fernando. O que é isso companheiro? Rio de Janeiro: CODECRI, 1981.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 1987.
MORAES, Denis de. Vianinha: cúmplice da paixão. RJ: Nórdica, 1981.
MORETTIN, Eduardo Victorio. A representação da história no cinema brasileiro (1907-1949). An.
mus. paul. [online]. 1997, vol.5, n.1, pp. 249-271.
_________________________. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História
Questões & Debates. Curitiba: História/ UFPR, n. 20/38, jan./jun. 2003, pp. 11-42.
NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.) Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2006.
NOMA, Amélia Kimiko. Imagem, História e educação: o cinema como fonte para a pesquisa
histórica em educação. Disponível em: http://www.dtp.uem.br/lap/public/04.pdf acesso em:
(16/06/2012).
RIDENTI, M. S. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In: DELGADO, L.;
FERREIRA, J. (orgs.). O Brasil republicano, vol. 4 - O tempo da tempo da ditadura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, v. 4, p. 135-166.
SOUZA, Carlos Roberto de. A fascinante aventura do cinema brasileiro. São Paulo: Fundação
Cinemateca brasileira, 1981.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993.

  Infografia:
http://www.dtp.uem.br/lap/public/04.pdf acesso em: (16/06/2012).
http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1213054181_ARQUIVO_Artigo_Anpuh(final).p
df acesso em: (19/06/2012).

Ficha técnica disponível em: http://www.tempoglauber.com.br/f_terra.html acesso em: (19/06/2012).
http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D07_Terra_em_Transe.pdf      acesso    em:
(19/06/2012).




                                                                                               18
Anexo:
FICHA TÉCNICA
Ficção, longa-metragem, 35 mm, preto e branco, Rio de Janeiro, 1967. 3.100 metros, 115 minutos. Companhias
produtoras: Mapa Filmes e Difilm; Distribuição: Difilm; Lançamento: 8 de maio de 1967, Rio de Janeiro (Bruni-
Flamengo, Coral, Caruso, Festival e outros cinemas do circuito Lívio Bruni); Produtor executivo: Zelito Viana;
Produtores associados: Luiz Carlos Barreto, Carlos Diegues, Raymundo Wanderley, Glauber Rocha; Gerente
administrativo: Tácito Al Quintas; Diretor: Glauber Rocha; Assistentes de direção: Antônio Calmon, Moisés
Kendler; Argumentista e roteirista: Glauber Rocha; Diretor de fotografia: Luiz Carlos Barreto; Câmara: Dib
Lufti; Assistente de câmara: José Ventura; Fotógrafos de cena: Luiz Carlos Barreto, Lauro Escorel Filho;
Trabalhos fotográficos: José Medeiros; Eletricistas: Sandoval Dória, Vitaliano Muratori; Engenheiro de som:
Aluizio Viana; Montador: Eduardo Escorel; Assistente de montagem: Mair Tavares; Montadora de negativo:
Paula Cracel; Cenógrafo e Figurinista: Paulo Gil Soares; Trajes de Danuza Leão: Guilherme Guimarães;
Letreiros: Mair Tavares; Carta: Luiz Carlos Ripper; Música original: Sérgio Ricardo; Regente: Carlos Monteiro
de Sousa; Quarteto: Edson Machado; Vozes: Maria da Graça (Gal Costa) e Sérgio Ricardo; Música: Carlos
Gomes (O Guarani), Villa-Lobos (Bachianas n.3 e 6), Verdi (abertura de Othelo); canto negro Aluê do
candomblé da Bahia, samba de favela do Rio; Locações: Rio de Janeiro e Duque de Caxias (RJ); Laboratório de
imagem: Líder Cine Laboratórios; Estúdio de som: Herbert Richers; Prêmios: Prêmio da FIPRESCI (Federação
Internacional de Imprensa Cinematográfica) e Prêmio Luis Bunuel no XX Festival Internacional do Filme, em
Cannes/1967; Golfinho de Ouro para Melhor Filme - Rio de Janeiro/1967; Coruja de Ouro para melhor ator
coadjuvante (José Lewgoy) Rio de Janeiro/1967; Prêmio Air France de Cinema para melhor filme e melhor
diretor - Rio de Janeiro, 1967; Prêmio da Crítica, Grande Prêmio Cinema e Juventude - Locarno, Itália; Prêmio
da Crítica (Melhor Filme) - Havana, Cuba; Melhor Filme, Menção Honrosa (Melhor Roteiro), Melhor Ator
Coadjuvante (Modesto de Sousa), Prêmio Especial a Luiz Carlos Barreto (pela fotografia e produção) - Juiz de
Fora (MG);


Elenco: Jardel Filho - PauloMartins; Paulo Autran - D. Porfírio Diaz; José Lewgoy - D. Filipe Vieira; Glauce
Rocha - Sara; Paulo Gracindo - D. Júlio Fuentes; Hugo Carvana - Álvaro; Danuza Leão - Sílvia; Jofre Soares -
Padre Gil; Modesto de Sousa - senador; Mário Lago - secretário de segurança; Flávio Migliaccio - homem do
povo; Telma Reston - mulher do povo; José Marinho - Jerônimo; Francisco Milani - Aldo; Paulo César Pereio -
estudante; Emanuel Cavalcanti - Felício; Zózimo Bulbul - Repórter; Antonio Câmera- índio; Echio Reis,
Maurício do Valle, Rafael de Carvalho, Ivan de Souza;




                                                                                                           19

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Terra em transe (1967) análise do filme de de glauber rocha- lucas schuab vieira

  • 1. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUIA FILHO FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS – FCL/ASSIS CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA TERRA EM TRANSE (1967) GRUPO: DANIEL ALVES AZEVEDO LUCAS SCHUAB VIEIRA RAFAEL BRUNO CLEMENTINO THIAGO RAFAEL BONALDO WELLINGTON DURÃES DIAS NOTURNO PROF. DR. ÁUREO BUSETTO ASSIS / SP 2012 1
  • 2. Este trabalho objetiva traçar uma análise critico reflexiva do filme Terra em transe do diretor Glauber Rocha. O filme foi lançado em 1967 dentro do contexto do Cinema Novo, com uma proposta inovadora de difundir uma nova estética cinematográfica, a estética da fome. Primeiramente será feita uma apresentação e contextualização da obra, seguido por uma breve exposição dos aparatos teórico/metodológicos que orientarão a leitura do filme, para então adentrar a uma análise externa e interna do documento concluindo com algumas considerações finais. A década de 1960 no Brasil foi um período privilegiado no que concerne a prática cultural voltada para um conteúdo sócio-político como forma de criticar e representar a conjuntura do país dentro de uma perspectiva renovadora. O período da Guerra Fria, a eminência dos movimentos sociais de âmbito mundiais, os efeitos das revoluções socialistas e o desejo de rompimento e de transformação são características intrínsecas à época. Nesse contexto, os temas de revolução, desigualdade social, democracia, liberdade e comunismo fazem parte do repertório de artistas e intelectuais de esquerda que buscam criticar e representar a realidade que interpretam do Brasil, e que configuram nesse sentido, um indispensável debate político e estético expresso nas diversas manifestações artísticas. A busca no passado de uma cultura popular que atenda as preocupações artísticas do presente, que nesse momento se traduz numa tentativa de construção inovadora da nação, não está ausente nos ideais artísticos, assim, segundo Marcelo Ridenti, são exemplos: “o indígena exaltado no romance Quarup, de Antonio Callado (1967); a comunidade negra celebrada no filme Canga Zumba, de Carlos Diegues (1963), e na peça Arena conta Zumbi, de Boal e Guarnieri (1965); os camponeses no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, etc.” (2007, p. 136). Em 1952 ocorre o I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro e o I Congresso Nacional do cinema brasileiro, onde, cansados da métrica formal hollywoodiana, jovens cineastas se reúnem para debater novos rumos a então dispendiosa indústria cinematográfica nacional. Suas ideias eram pautadas na problemática de como gerar uma produção cinematográfica mais dinâmica, de melhor conteúdo e, sobretudo, mais barata. Uma nova abordagem cinematográfica começa a ser percebida em meados de 1955, com a exibição do filme “Rio, 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos, onde germinaram as ideias de Alex Viany e seu neorrealismo italiano. O filme foi tido como popular, por retratar “o povo para o povo” (SOUZA, 1981), com ideias e palavreado simples, retratando o Distrito 2
  • 3. Federal, desprezando a retórica, o filme se passava em cenários simples e naturais, como favelas e praças. Cineastas do Rio de Janeiro e Bahia elaboravam os eixos centrais do cinema brasileiro, para romper com as alienações culturais que as chanchadas transmitiam. Os novos filmes tratariam da realidade brasileira; em geral em ambiente simplórios, com falas longas e cenas de menor movimento. Os nomes mais comuns do Cinema Novo foram Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Carlos Diegues, Paulo Cesar Saraceni, Luiz Carlos Barreto. Na primeira fase do Cinema Novo (1960-1964), os filmes retratavam o problema das secas no Nordeste, a miséria de seus trabalhadores e seu cotidiano. São rodados “Vidas Secas” (1963) e “Os fuzis” (1963). A segunda fase do movimento (1964 a 1968) surge com a proposta de analisar a política, em especial os equívocos da ditadura militar, fazendo menção ao futuro da política nacional. São filmado “O bravo guerreiro” (1968); “Terra em transe” (1967), sendo este último vencedor de dois prêmios no festival de Cannes do mesmo ano. A terceira fase (1968-1972) já é influenciada pelo tropicalismo, representando filmes de nacionalismo extravasado por meio de palmeiras, samambaias, periquitos, bananas, índios, como no clássico “Macunaíma” (1969), filmado por Joaquim Pedro de Andrade, onde Grande Otelo (até então expoente das chanchadas) aparece como o herói sem nenhum caráter, o brasileiro espertalhão, malandro que vive das artimanhas para sustentar-se. Nesse mesmo sentido é que se encontra uma das propostas do movimento do Cinema Novo. Surgido entre os anos 50 e 60, o movimento iniciado por Glauber Rocha e outros estudantes de cinema, além de atentar para uma identidade nacional de cultura popular própria, tinha como intenção alertar e divulgar problemas sociais, valorizar aquilo que é brasileiro, renovar linguagens e conceitos, despertar a população para a cultura e a política. O movimento rompe com a produção cinematográfica nacional influenciada pelas produções hollywoodianas, que em nada se identificam com a realidade brasileira. Influenciado por movimentos europeus, como o neo-realismo italiano e a novelle vague francesa, o Cinema Novo não se limita a uma finalidade mercadológica ou de entretenimento, muito além, se insere num compromisso com a realidade, com as conjunturas políticas e sociais, com a transmissão de uma consciência crítica, com a informação e com a renovação da estética. Nessa perspectiva se destaca o filme Terra em transe de Glauber Rocha, filmado nos anos de 1966 e 1967. Entretanto, considerando que um dos objetivos do movimento do 3
  • 4. Cinema Novo era despertar nos espectadores uma consciência crítica sobre os problemas sociais e políticos que atingiam o país, parece duvidoso que o filme tenha sido visto pelas massas ou com intenção de ser recebido por elas. Quando comparado com trabalhos anteriores, percebe-se uma nova estética com elementos criados pelo próprio diretor. Destacam-se como características de sua narrativa: a descontinuidade, da qual a quebra da narrativa linear impõe ao espectador refletir sobre o que está sendo exposto; o dinamismo, o excesso de movimentos de câmera e cortes abruptos de cenas; e a desarmonia, ou seja, há um desconforto no espectador diante de uma narrativa “confusa”, que não tem qualquer pretensão de orientar ou controlar a interpretação da obra. Diante dessas características, a repercussão de Terra em transe foi muito maior entre as elites intelectuais do que o grande público, não tendo sucesso de bilheteria popular. Entretanto, não tardiamente a repressão política caiu sobre o movimento e, obrigando ao exílio alguns de seus expoentes, não obstante alguns diretos novatos que ali se associavam recusaram-se a tentar manter o grande público e se adaptar às novas circunstâncias, surge então o Cinema Marginal. Liberado em maio de 1967, após ter sido proibido em todo o território nacional, o filme foi exibido causando polêmica, o que desde início levou a mobilização de artistas e intelectuais. Se por um lado o filme não é satisfatório em cumprir sua recepção nas massas, por outro, impactou consideravelmente a sociedade se levar em conta a emergência de outros movimentos nascidos de uma elite intelectual de esquerda influenciada pelas ideias do filme, como por exemplo, o Movimento Tropicalista. A respeito dessa influência, Carlos Nelson Coutinho comenta: “Terra em transe é de certo modo precursor do que viria depois” e “uma certa valorização do irracional como uma coisa própria dos países do Terceiro Mundo” (apud RIDENTI, p. 146). Os problemas denunciados no filme são condizentes com a realidade não só do Brasil, mas da América Latina em geral. Apesar de já terem sido abordados na arte diversas vezes, o que torna seu roteiro singular é a abordagem com que Glauber Rocha trabalha e expressa seu conteúdo. A indecisão e contradição numa postura política dos artistas latino- americanos, representados pelo personagem Paulo Martins; a descrença na esquerda latino- americana, dividida e de pouco confiança, representada, entre outros, no personagem Vieira; e a descrença e ridicularização do povo, representado num momento, no personagem Jerônimo. Após essa apresentação e contextualização, abordaremos agora, questões de âmbito teórico metodológico que orientarão a leitura critico/reflexiva do filme, por nós aqui 4
  • 5. analisado. O primeiro ponto a se ressaltar é que, o filme, não é um retrato da realidade, mas uma representação desta. Ainda que aborde fatos reais, não abolirá a sua condição de representação. Isso significa dizer que sua leitura não se dá de forma imediata, porque a imagem cinematográfica é uma construção, é a representação do real feita com a utilização de uma série de recursos e elementos próprios do cinema, através da manipulação de equipamentos, instrumentos, artifícios e técnicas, para produzir cenários, iluminação, sons, fotografia. Representação que opera com símbolos, valores, ideias e sentimentos, cujos significados são historicamente constituídos nas relações sociais nas quais ocorrem a produção e a recepção dos filmes. (NOMA, 2012). Evidentemente, é preciso destacar que um filme não tem a pretensão de abordar, de lançar um olhar sobre a totalidade da vida social. O olhar produzido pelo cinema é uma construção de uma determinada visão de mundo acerca de algumas dimensões do social. Portanto está cheio de recortes. Desde a sua formação, ele implica uma série infinita de escolhas, revelando sempre o ponto de vista que a equipe envolvida na produção (diretor, atores, roteirista, produtor, etc.) tem sobre a temática abordada. Interessa-nos aqui, pensar que, independentemente do tratamento dado ao tema, os filmes revelam dimensões da consciência coletiva que é produto social da experiência de viver em uma determinada sociedade. (Idem, 2012). O primeiro ponto a se considerar na análise fílmica é trabalhar o documento audiovisual de ficção com atenção para as suas estruturas internas de linguagem e seus mecanismos de representação da realidade, a partir de seus códigos internos. E num segundo momento ater se aos conceitos de subjetividade e objetividade. O filme ocupa um estatuto intermediário entre uma visão “objetiva” e “subjetiva”. Seu caráter ficcional e sua linguagem explicitamente artística, por um lado, lhe confere uma identidade de documento estético, o que, a primeira vista remete a um caráter puramente subjetivista. Enquanto que sua natureza técnica, sua capacidade de registrar e, hoje em dia, de criar realidades objetivas, encenadas num outro tempo e espaço, remete, por outro lado, a uma visão objetiva. (NAPOLITANO, 2006) É menos importante saber se tal filme foi fiel ao passado, do que buscar entender o porquê das adaptações, omissões, falsificações que são apresentadas num filme. Napolitano chama a atenção para a necessidade de articular a linguagem técnico-estéticas das fontes áudio visuais, ou seja, seus códigos internos de funcionamento e as representações da 5
  • 6. realidade histórica ou social nela contidas, ou seja, seu “conteúdo” narrativo propriamente dito. Assim como em toda operação historiográfica, critica externa e crítica interna, análise e síntese, devem estar devidamente articuladas. (Idem, p.237-238) Segundo Napolitano, o cinema como qualquer outro tipo de documento histórico, é portador de uma tensão entre evidência e representação. Ou seja, sem deixar de ser representação construída socialmente por um ator, por um grupo social ou por uma instituição qualquer, a fonte é uma evidência de um processo ou de um evento ocorrido, cujo estabelecimento do dado bruto é apenas o começo de um processo de interpretação com muitas variáveis. Importante também é considerar que, cada tipo de fonte, possui características peculiares, conforme a sua linguagem constituinte. (Idem, p.240) Será abordada aqui a história no cinema, ou seja, o cinema como produtor de “discurso histórico” e como “intérprete do passado”. O historiador Eduardo Morettin aponta quatro maneiras pelas quais a história se manifesta no cinema. (1) Herança positivista, no sentido da preocupação com a exatidão da reconstituição fílmica do passado ou com o registro mais fiel possível de eventos ocorridos. (2) Predomínio da ideologia (“discurso ideológico”) dos realizadores sobre a historicidade, subvertendo o sentido dos personagens e dos fatos. (3) Apelo ao “discurso novelesco”, predominante ao discurso histórico, tornando mais sutil a “subversão” dos fatos e processos. (4) Criação de uma narrativa histórica própria, que opera dentro do discurso histórico instituído, utilizando técnica de citação bibliográfica e documental, legitimada por pesquisadores. (MORETTIN, 2003). É imprescindível, portanto, estar atento a estas várias opções de representação cinematográfica da história que terão efeitos não apenas estéticos, mas ideológicos, completamente diferentes. Em muitos casos, essas quatro maneiras interpenetram-se, exigindo do historiador, um olhar atento que vá além da clássica dicotomia entre “realismo” ou “ficção”, ou filmes documentais adotados como realistas e filmes ficcionais tomados como fantasias históricas. (NAPOLITANO, 2006, p. 241). Napolitano se ancora em Morettin e Ramos para salientar que o historiador deve “partir dos próprios filmes”, de sua significação interna, a partir da qual se insere determinada base ideológica de representação do passado. Portanto a questão da autenticidade e da objetividade do registro, importantes na perspectiva clássica de Ferro 1, pouco importam. 1 FERRO, Marc. [Apud] NAPOLITANO, 2006, p. 245. 6
  • 7. Trata-se de buscar os elementos narrativos que poderiam ser sintetizados na dupla pergunta: “o que um filme diz e como o diz?”. (MORETTIN; RAMOS [Apud] NAPOLITANO, 2006, p. 245). Há de se ressaltar, também, a capacidade do filme de criar uma memória histórica própria: E as disputas que se estabelecem no presente em torno da preservação de determinadas memórias sobre fatos e acontecimentos do passado. E como uma última observação vale salientar que, todo filme, ficcional ou documental, é, segundo Napolitano (2006), manipulação do “real”. Passadas estas orientações de cunho teórico metodológico caminharemos agora para uma análise externa e interna do documento, concluindo com algumas orientações finais. Se atendo a aspectos mais gerais da produção de Terra em transe (1967) de Glauber Rocha, podemos destacar alguns pontos relevantes a serem trabalhados, considerando o aparato metodológico, em questão, já citado. Desta forma, se atendo ao filme como um discurso produzido pelo cineasta e que buscou nas suas construções interpretar uma realidade passada, seria quase impossível não localizar elementos semelhantes para uma comparação direta com o processo histórico em que se situa O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964, fazendo alusão aqui, ao título do trabalho do historiador Jorge Ferreira2. Podemos destacar em bloco duas grandes questões, nas quais se identificam alguns tópicos centrais abordados por Glauber Rocha: questões políticas e de ordem ideológica e questões sociais, portanto, podemos compreender a partir dessa representação fílmica de ordem cultural o balanço realizado pelo cineasta da dimensão política e social do Brasil nos anos 1960, exteriorizando ao público uma reflexão de temas latentes no seu presente. Na problematização do filme, podemos destacar ainda, a elaboração de uma nova estética cinematográfica, Estética da Fome, que direcionou as atenções do Cinema Novo para questões intrínsecas à da realidade brasileira. A percepção do cineasta de uma realidade passada que se correlacione com elementos históricos, dos quais buscou refletir e representar demonstra em seu presente a latência por explicações acerca do Golpe-civil militar de 1964. Elementos alegóricos se demonstram a 2 DELGADO, L.; FERREIRA, J. (orgs.). O Brasil republicano: O tempo da tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 4. 7
  • 8. todo o momento, seja pelas tensões políticas entre as orientações de esquerda e direta ou mesmo pela representação da tensa ambientação política no filme. Quanto às questões de ordem política, podemos identificar que as diversas tendências representadas fazem alusão ao quadro político pré-Golpe que se deu com tomada de posse por Goulart em 1961, tais elementos, sob nossa interpretação, se identificam com a eleição de Felipe Vieira ao governo da província de Alecrim e a incapacidade por fim de exerce plenamente suas funções, conjuntura que se apresentou a Goulart: “não tinha como implementar seus projetos reformistas. O sistema parlamentarista, implantado às pressas, visava, na verdade, impedir que ele exercesse seus poderes. Sob um parlamentarismo “híbrido”, o governo não tinha instrumentos que dessem a ele eficiência e agilidade.” (FERREIRA, 2003, p.348.). Da mesma forma se deu com Vieira, personagem fictício, que após a excitação de sua eleição se viu incapaz, na trama, de realizar seus projetos de cunho populista. Durante todo o processo que se desencadeia com a ascensão dos militares em 1964, podemos observar a articulação de várias forças, que por fim se dividem em dois polos bem demarcados, orientações políticas de esquerda e direita, representadas também no filme de Glauber. É possível identificar tais posicionamentos políticos e ideológicos, suas divergências externas e internas e a articulação dos diversos discursos que se originam dessas bases. Refletindo sobre a preocupação do cineasta em representar tal quadro e propor ainda uma reflexão ao público, podemos destacar a fala de Paulo Autran (Porfírio Diaz), que voltado diretamente para a câmera, questiona a quem o observa: “Olha, imbecil, escute... A luta de classes existe. Qual é sua classe? Vamos, diga!” 3. É nítido o posicionamento crítico, imposto pelo discurso do cineasta à reflexão política, tanto de elemento históricos passados, quanto ao seu presente. A representação fílmica do cineasta consistiu em uma crítica, bem articulada a todos as tendências políticas. A identificação de divergências de pensamento na esquerda é crítica de Glauber que apresenta certa descrença em relação a estas, ressaltando no filme seus elementos negativos. Jorge Ferreira nos mostra quais grupos pertenciam a esta orientação política, da qual, a nosso ver, Glauber Rocha buscou retratar: “Eram eles o PCB, as Ligas Camponesas, o bloco parlamentar autodenominado Frente Parlamentar Nacionalista, o movimento sindical representado pelo CGT, organizações de subalternos das Forças Armadas, como sargentos da Aeronáutica e 3 Terra em transe: 01hs 31min. 8
  • 9. do Exército e marinheiros e fuzileiros da Marinha, os estudantes da UNE e, inclusive, uma pequena organização trotskista.” (FERREIRA, 2003, p.352). A crítica à falta de articulação destes grupos se apresenta em vários momentos do filme, inclusive no que tange a representação das massas por estas orientações de esquerda, sobrepondo em muitos momentos as noções de democracia por um discurso radical. Pensar a respeito dos desalinhamentos discursivos da orientação política de esquerda, ainda mais em 1967, era de imediato refletir na impossibilidade de aplicação prática, de possíveis reformas sociais, sem uma homogeneidade político-social que fornecessem bases para tal mudança, elemento enfrentado por João Goulart e presente também no discurso populista representado de forma satírica por Glaube Rocha. Nesse contexto a articulação de um discurso conservador orientado pela posição direita na política, ascende e toma forma na dominação do poder, elemento explorado pelo cineasta que se identifica claramente com o Golpe civil-militar de 1964. Em 1967, refletir sobre tais questões, ainda mais a partir do cinema, foi fundamental para que o público pudesse ter a possibilidade de se perceber enquanto agente de toda esta conjuntura e de alguma forma se orientar diante das consequências latentes de seu presente que precisavam ser de alguma forma, respondidas, considerando as próprias preocupações do Cinema Novo e sua função crítica por meio do cinema. O poder, identificado pelo cineasta se entrelaça com questões tanto nos extremos de esquerda quanto de direita. A hierarquia e os jogos de influência e poder percebidos no filme movem críticas contra a intelectualidade na representação das massas, que sempre caladas, não possuem voz, justamente, também pela incompatibilidade de interesses e preocupações de ordem social, entre ambas. A violência, que surge como elemento consequente destas formas de poder, se orienta por questões políticas que não necessariamente atende aos interesses do povo, tornando-o vítima desse processo de exclusão, da qual ele mesmo, segundo os olhares do cineasta decidiu não participar, desta forma, a segurança pública, no filme serve aos interesses dos que estão no poder, independente da sua orientação política, tanto Porfírio Diáz, representação da direita, quanto Felipe Viera, representação populista da esquerda. A corrupção, desta forma, é algo denunciado pelo cineasta, por meio também da representação degradante da cultura burguesa, do consumo e da futilidade. O empresariado corrupto demonstra estar interessado somente nas formas de poder e tange as orientações políticas que atendem suas demandas. Glauber Rocha explora a hipocrisia destes interesses que não possuem limitações de ordem política e sim, somente interesses econômicos. A semelhança com o empresariado nacional que apoiou o golpe-civil militar em 1964 não deixaria de ser notado, elemento representado claramente pelo cineasta. A ligação da política 9
  • 10. com empresas privadas e o intervencionismo de domínios multinacionais, se apresentam no filme a partir da fictícia empresa Explint. A opinião pública e a influência dos meios de comunicação são representadas por Glauber como elemento a ser considerado na influência e mobilização das massas, Julio Fuentes, personagem que se mostra alegoricamente como representante do empresariado, se articula no jogo político de acordo com seus próprios interesses, sempre buscando estar de acordo com os elementos majoritários de poder. A princípio em apoio às tendências de esquerda no filme, a aliança de tais meios com as orientações políticas de direita é o passo seguinte da personagem, elemento observado por Jorge Ferreira: “Uma ampla campanha baseada na histeria anticomunista convenceu parcelas significativas da população formada por empresários, políticos, jornalistas, religiosos, sindicalistas, profissionais liberais, militares e trabalhadores – de que Goulart, de fato, teria intenções de comunizar o país”. (Ferreira, 2003, p. 360). Quanto às questões de ordem social, correlacionadas com a proposta do Cinema Novo e da estética da fome, salientada em manifestos, inclusive por Glauber Rocha, podemos destacar dois grandes pontos, a questão da pobreza e desigualdade social e a questão da terra e da reforma agrária, tais elementos se entrelaçam diretamente com a situação política das “massas”. Pensada em alguns momentos como massas e em outros como povo, é perceptível a dicotomia explorada pelo cineasta: quando estas possuem voz, são conclamadas a se pronunciarem e lhes é dado o seu espaço legítimo, a praça, como a democracia nos moldes gregos, estas recebem o adjetivo de povo, entretanto, quando estas estão sendo orientadas por um líder e não possuem a palavra para sua própria expressão, essas são identificadas enquanto massa, em que a responsabilidade por seus destinos reside a outrem, restando-lhes a religião, que sabiamente utilizada nos discursos de poder e nas cruzes grandiosamente utilizadas como ornamentos políticos para mobilização alienada das massas. A oração, explorada pelo cineasta é elemento que contrasta com a falta de mobilização frente às mazelas da pobreza e da desigualdade. A pobreza e a desigualdade exploradas por Glauber Rocha são enfáticas, de orientação marxista, que atestam a problemas sociais de ordem econômica, que, entretanto, são possíveis de serem pensados a partir da crítica do cineasta, como não somente, de ordem econômica, mas também de ordem política. A crítica às massas é elemento evidente, estas no filme não se 10
  • 11. mobilizam, não falam, não lutam e tais críticas pensadas no contexto de recepção do filme, demonstram claramente o direcionamento ideológico do cineasta. As personagens em diversos momentos contrastadas com a situação de miséria encarnam claramente uma causalidade ou continuidade desta. O engajamento para combater a miséria e a desigualdade, o caráter paternal que anestesia as mazelas da pobreza, a indiferença passiva que está alienada de tais elementos, a repugnância que desencadeia toda esta situação, todos diretamente relacionados com o cotidiano pobre, dependente dos votos e da ignorância das massas. A questão agrária, colocada por Glauber, pano de fundo de toda a questão da terra no Brasil, parece se apropriar de certos elementos do passado para construir sua representação. As questões pendentes do passado analisadas por Glauber fazem alusão as formação das Ligas Camponesas no nordeste do país e a problemática questão agrária, que no governo João Goulart teve os seus ensaios com a formação da Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA). No filme, o cineasta buscou representar a questão da violência no campo, deslocando sua crítica para a incapacidade das massas de organização política e sua dependência paternalista dos setores ligados ao poder. Paulo Martins, cuja profissão oscila entre jornalista, poeta e político é o principal personagem de Terra em Transe. Sua trajetória se confunde com o próprio enredo do filme. É o principal fomentador da revolução social em Eldorado, mas, seu receio e indecisão enfraquecem essa postura. Está mortalmente dividido entre poesia e política, entre transformar a sociedade, cedendo seu apoio a demagogos fracos, ou aliar-se aos conservadores da ordem social que de alguma forma o criaram. Não se identifica com as massas de Eldorado, apesar de recorrer ao seu nome com frequência, lhes imputando a responsabilidade pela situação de miséria e exploração em que se encontram. Em determinados momentos do filme, acaba tomando consciência de que também tem culpa nesse processo, daí sua necessidade existencial de engendrar uma revolução que extermine as forças anacrônicas que subjugam a nação. O começo e o fim do filme mostram a morte de Paulo, assassinado pela polícia enquanto tentava fugir do palácio de Vieira após o golpe. Descreve a Sara, ao seu lado na agonia, seu desencanto com a própria pureza que achava possuir, com os ideais ingênuos que achava portar. O filme é em suma sua memória. Paulo representa a intelectualidade brasileira da década de 1960, criada dentro dos setores reacionários, que inspirado pela revolta com a própria situação do país e com ânsia de autonomia de pensamento e ação políticos, vive relações de amor e ódio com João Goulart, 11
  • 12. que parecia ser o seu líder no sentido de garantir as transformações sociais que esperavam, mesmo que a radicalização fosse necessária. Sua indecisão e sua impossibilidade de reagir aos eventos que se desdobravam com grande velocidade levam essa intelectualidade a ser uma das principais vítimas do golpe de 1964. Porfírio Diaz, o perfeito representante das classes dominantes da sociedade, é o político reacionário por excelência. Possui amplo apoio da Explint, transnacional que o patrocina, para que faça da política de Eldorado campo fértil para sua exploração predatória. Construiu sua carreira rumo à presidência, através de traições, demagogia, mentiras, corrupção, prevaricações e nepotismo. Seu discurso sempre se baseia no imaginário cristão, na tradição, na família, na ordem. Mas ironicamente e mesmo intencionalmente, Diaz é incapaz de aplicar a ética de seu discurso à própria vida. Por esse motivo constrói uma violenta diferenciação entre sua pessoa pública e privada. Anda iconicamente com uma bandeira em uma mão e o crucifixo na outra quando fora de seu palácio. Mas entre os muros de sua casa, maquina, trama e se prostituí com Silvia, sua amante. Tem uma relação íntima com Paulo, foi seu mecenas no princípio e o quer junto de si pelo poder que o mesmo tem com as palavras. Porfírio vê Paulo como um homem que pode ajudá-lo a mascarar sua verdadeira natureza. Mas Paulo sente a responsabilidade social pesando em seu espírito, expresso por sua poesia que ganha teor cada vez mais crítico, sendo esse o motor engendrador do violento rompimento entre os dois. Porfírio Diaz foi um nome escolhido a dedo por Glauber Rocha. Faz referência ao ditador mexicano José de La Cruz Porfirio Díaz Mory (1830 – 1915), que inicialmente, em sua escalada política alinha-se ao liberalismo e depois, após ganhar destaque durante a resistência do México à invasão francesa e sua submissão à protetorado, institui-se como presidente em 1876 e ditador de 1884 a 1911. Seu governo foi findando com a revolução mexicana. Desenvolveu o México a custo de uma violenta dependência estrangeira e formou uma tecnocracia para modernizar os métodos de governo, um conjunto de intelectuais, chamados por ele de científicos. Porfírio Diaz, como seu correspondente histórico, simbolizam a alegoria do político corrupto e oportunista, que muda de lado conforme o vento, e perpetua-se no poder com o auxilio dos setores mais reacionários, com o sacrifício da população, mais carente e despossuída. Felipe Vieira, político de Alecrim, província periférica de Eldorado, é o porta-voz da reação ao jogo político simbolizado por Porfírio Diaz. Têm um tom paternalista, estratégias populistas e é um demagogo de grande influência nas massas. É visto por Paulo inicialmente como o líder político que irá deflagrar a revolução social e este não poupa esforços para 12
  • 13. apoiá-lo. Mas Vieira, ao tornar-se governador de Alecrim, mostra sua fraqueza de caráter, escondendo-se atrás de um discurso conciliador com as forças reacionárias, abandonando a aliança que tinha construído com a população, especialmente com os camponeses. Paulo perde sua fé em Vieira, o abandona, mas graças à intervenção de Sara, retorna com o apoio das indústrias e meios de comunicação de Eldorado, representados na figura de Júlio Fuentes. Porém o quadro favorável a Vieira não se perpetua. A direita representada por Diaz, aliada ao imperialismo da Explint, traz Fuentes de volta a sua órbita e começa a engendrar um golpe por temor ao populismo que mobiliza catarticamente as massas. Na hora da decisão, no momento do rompimento revolucionário, Vieira abandona a luta e entrega o poder a Porfírio Diaz. Talvez o momento mais contundente do longa-metragem. As figuras de Felipe Vieira e João Goulart convergem, em todos os pontos. Palavras similares, práticas parecidas, ações comparáveis. A mesma imobilidade que a película nos passa em relação a Vieira no início do filme é sofrida por Goulart. A mesma pressão do segmento transversal de esquerda cai sobre ambos para resistirem ao golpe articulado pela direita. No caso de Vieira vemos representantes do exército, intelectualidade, igreja, revolucionários comunistas, mídia. E no caso de Goulart: Diversos grupos se mobilizaram para a resistência: o CGT, o PUA, o CPOS, a união dos portuários, o sindicato dos Ferroviários da Leopoldina, a UNE, a UME, a UBES, CACO, ex-pracinhas, sargentos, fuzileiros navais, organizações populares, comunistas, brizolistas, entre diversos outros. Contudo, nenhuma ordem vinha do Palácio das Laranjeiras. (FERREIRA, 2003, p. 397). E a mesma apatia é observada. Ambos recuam diante da iminência de uma guerra civil fratricida, clamando o valor do sangue sagrado das massas, e cede lugar a realização do golpe de Estado. Em muitos outros pontos as duas imagens são similares. Mas sem dúvida essa passagem é a mais emblemática da equivalência que Glauber Rocha quis transmitir entre o personagem de sua trama e o ex-presidente deposto. Sara é uma das principais personagens de Terra em Transe. Professora de Alecrim, província de Eldorado e posteriormente secretária de Felipe Vieira, inicialmente age como elemento de denúncia as injustiças sociais coordenados pelo governo e por particulares. Possui uma forte participação política e um gigantesco engajamento. Está presente em todos os momentos de ação e reflexão revolucionária, conduzindo e catalisando frequentemente o processo. Tem um caso de amor com Paulo, e seus encontros marcam vários momentos dramáticos no filme. Sua figura possui grande força de caráter, mas sua determinação na 13
  • 14. crença em uma revolução depende misteriosamente dos demais personagens, principalmente Paulo e Vieira. A representação que Glauber Rocha quer fazer de Sara parece clara quando analisamos a cultura política da república brasileira, em princípio muito inspirada pela França; sendo que da Primeira à Terceira República, a alegoria feminina domina a simbologia cívica francesa, representado seja a liberdade, seja a revolução, seja a república. (CARVALHO, 1990, p.75). Ela surge como um contraponto necessário ao vácuo deixado pela queda da monarquia e da figura masculina do rei. A iconografia e os monumentos são abundantes a respeito dessa temática. Temos o quadro de Delacroix, a Liberdade guiando o povo (1830) e a escultura de Rude, A partida dos voluntários (1834) e muitas outras obras de relevo, retratando mulheres de grande presença liderando levantes populares. Na França, a popularização desta figura feminina veio com Marianne, nome popular de mulher. Marianne passou a personificar a república, unificando as formas anteriores. (CARVALHO, 1990, p.78). No entanto, Marianne (esta alegoria da pátria, revolução e liberdade) não foi bem aceita no Brasil, não aderiu no imaginário popular, ficando restrita à intelectualidade brasileira do período. Mas mesmo hoje persiste na numismática. Sara e Marianne tem suas grandes semelhanças. Personifica uma força, um conceito, uma ideia abstrata, diferente das figuras masculinas, ícones de segmentos sociais presentes nas tensões políticas que resultaram no golpe de 1964. Sara é o espírito da revolução. Ela apaixona-se por Paulo, o símbolo da intelectualidade brasileira. O instiga, apresenta a ele elementos para sua revolta (fotos de famintos, presos e injustiçados para seu jornal independente em Alecrim, que adquire após romper com Diaz), o incentiva em sua poesia política, o apresenta a Vieira, o leva a trair Diaz de vez, o denunciando publicamente, a arrebanhar o patrocínio de Fuentes. Sara conduz Paulo, e está sempre ausente quando este pratica suas injustiças contra os menos favorecidos ou se prostituí com os poderosos. Sara dá voz aos que estão mudos, ao na praça dizer a um homem qualquer “você é o povo”, “fale!”. Ela diz em outra passagem sobre ter sido a primeira a levantar a voz, a pronunciar protesto contra as forças dominantes e a primeira a ser violentada. Concluindo, ela passa incólume aos eventos que levam a morte de Paulo e a deposição de Vieira, mas na tomada final do filme, está sozinha, sem rumo, perdida na estrada que não leva a lugar algum. Como espírito da revolução, sem pessoas que a carreguem e que a sustentem, Sara está fadada a dissolver-se no ar. 14
  • 15. Silvia é o extremo oposto de Sara. De beleza marcante, passa por todo o filme como objeto estético, desprovido de opinião, posicionamento, vontade, entrando muda e saindo calada de cena. Sempre acompanha Porfírio Diaz, e com frequência acaba sendo amante de outros personagens, principalmente Paulo. Sua passividade é tão grande quanto sua lascividade, participando com frequência das orgias organizadas por Júlio Fuentes. Silvia é outra alegoria, que deriva do mesmo fundo simbólico francês, legado pela república brasileira e que ficou no imaginário da intelectualidade. Ela é outra face de Marianne, só que derivando mais para um ideal de República Burguesa do que Socialista. (CARVALHO, 1990, p.78). Esta figura é mais maternal, bela, sólida (no sentido de estabilidade), não está em movimento. Ela representa um ideal de pátria que quer conservar em vez de alterar. Sua personalidade e sua forma demonstram essa cisão. Silvia difere de Sara por encarnar a contemplação em vez da ação, encarna mais um ideal de conformismo com a situação de Eldorado do que o radicalismo da revolta. Mas Glauber Rocha explora essa alegoria de Silvia, que representa a república brasileira burguesa, recorrendo a uma tradição presente desde o início do século XX nos círculos midiáticos, que é o de comparar esta representação feminina com uma meretriz, mulher de muitos homens. (CARVALHO, 1990, p.88 – p.89). É um claro sinal de protesto a essa aura de pureza com a qual o governo queria se recobrir. O imaginário popular brasileiro, em vez de assimilar uma virgem-mãe, mantenedora do povo (como concebido pelos franceses), liga os pontos e vê uma prostituta. Silvia é assim, como a república brasileira, aparentemente pura, mas é vendida, passa de mão em mão entre os poderosos, e nenhuma palavra profere a favor ou contra sua situação degradante. Por fim, existe um líder camponês, de nome desconhecido, que faz uma ponta de grande relevância no filme. Graças a seu apoio e de tantos outros como ele, Vieira se elege em Alecrim. Mas suas demandas são esquecidas, e sua luta por terra e justiça social é ignorada. Sua revolta contra Vieira se desdobra, mas acaba assassinado por um dos Coronéis da região, aliado político do governo da província. Neste momento a estética da fome fica evidente. O camponês caído contrasta violentamente com a extrema luminosidade do ambiente. Os olhares dos figurantes têm expressão faminta. Faminta de alimento, de justiça, de amparo. Este camponês assassinado é a representação do conflito agrário nunca solucionado, nem durante as filmagens de Terra em Transe, nem no presente momento. Partindo para algumas considerações finais e pensando agora, um pouco, no sentido da recepção e repercussão que o filme teve vale destacar que, em Alegorias do 15
  • 16. subdesenvolvimento, Ismail Xavier compreende que Terra em transe resultou numa experiência de choque, contribuindo para um novo impulso na cultura, gerando toda uma produção no âmbito do cinema, da música, do teatro. Quando se deu seu lançamento, houve debate sobre o filme “Terra em transe” no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O então jornalista do Jornal do Brasil, Fernando Gabeira alude em sua obra “O que é isso companheiro?”: “Lembro-me do debate sobre o filme “Terra em transe”. De um lado, estava o grupo dos excelentes diretores do Cinema Novo defendendo o filme, parte por sua importância estética e parte porque são muito solidários entre si. De outro, estava à plateia da zona Sul do Rio de Janeiro, maravilhada com as proposições do filme”. Para Gabeira o filme trazia uma “concepção muito depreciativa do povo brasileiro”, acabando com uma solução elitista de “quem não acredita na capacidade organizada das massas”, ainda para ele, o filme discutia “duas saídas e escolhia a pior delas.” À época Gabeira repudia a luta armada contra a ditadura militar, porém, algum tempo depois segue esse caminho para combater o regime, inclusive alugando o apartamento usado de cativeiro no sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick. Este paradoxo indica quão problematizador foi o filme. “Terra em transe” alcançou também comentários no meio dos produtores culturais, como para Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, para ele “o Brasil não é isso que o Glauber Rocha vê”. Essa posição impactante se reitera na peça “Papa Highte”, de 1968, uma clara crítica à opção pela luta armada. Outro posicionamento é o de Jacob Gorender, para ele “a aversão emocional ao populismo atingiu o terreno das artes e aí deslizou para a aversão à própria massa popular. Terra em transe satiriza o líder populista e as massas imbecis que se deixam enganar. Nada a esperar dessas massas idiotizadas, mas do intelectual que sai atirando de metralhadora” (GORENDER, 1987). Vale lembrar que essas são posições marcadas politicamente, onde o receptor subjuga o diretor em vista de seus posicionamentos históricos, daí a capacidade do filme dialogar com diversos campos sociais, “Terra em transe coloca quem se comunica com o filme em estado de tensão e de necessidade de criação neste país” (CORRÊA, 1968). Outra análise importante em se salientar foi o impacto do filme sobre Caetano Veloso, para este se o “tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas ideias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe. Nada do que veio a se chamar tropicalismo teria tido lugar sem esse 16
  • 17. momento traumático. Portanto, quando o poeta de Terra em transe decretou a falência da crença das energias libertadoras do povo, eu, na plateia vi, não o fim das possibilidades, mas o anúncio de novas tarefas para mim” (VELOSO, 1997), neste sentido, para além de propor soluções ao regime, como a luta armada, o filme conclama ao posicionamento da população: “A sociedade brasileira é feita de classes! A que classe você pertence, hein? A que classe?” (trecho da fala de Diaz, em direção à câmera), é onde, na seara da criação artística brasileira, a produção cultural aparece como tentativa sociopolítica de realizar uma transformação histórica, (re) construindo interpretações sobre a realidade nacional. Segundo Robert Stan, Terra em transe é um filme provocador, agressivo, intencionalmente difícil, uma lição adiantada do ponto de vista das significações políticas e cinematográficas que contém. Cria um mundo de contradições sistemáticas: entre os personagens, no interior dos mesmos, entre o som e a imagem, entre os estilos cinematográficos. Certas rupturas Brutais desorientam o espectador, impedindo qualquer identificação com os personagens. O filme se configura como um exemplo de pedagogia revolucionária. A metodologia e a visão do filme são dialéticas; não oferece nenhuma receita pronta para soluções práticas. A solução consiste na tomada de consciência do espectador.4 4 Robert Stan disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D07_Terra_em_Transe.pdf 17
  • 18. REFERENCIAS: Fonte: “Terra em transe” de Glauber Rocha, BRASIL, 1967, 115 min. Bibliografia: CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. GABEIRA, Fernando. O que é isso companheiro? Rio de Janeiro: CODECRI, 1981. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 1987. MORAES, Denis de. Vianinha: cúmplice da paixão. RJ: Nórdica, 1981. MORETTIN, Eduardo Victorio. A representação da história no cinema brasileiro (1907-1949). An. mus. paul. [online]. 1997, vol.5, n.1, pp. 249-271. _________________________. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História Questões & Debates. Curitiba: História/ UFPR, n. 20/38, jan./jun. 2003, pp. 11-42. NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.) Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006. NOMA, Amélia Kimiko. Imagem, História e educação: o cinema como fonte para a pesquisa histórica em educação. Disponível em: http://www.dtp.uem.br/lap/public/04.pdf acesso em: (16/06/2012). RIDENTI, M. S. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In: DELGADO, L.; FERREIRA, J. (orgs.). O Brasil republicano, vol. 4 - O tempo da tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 4, p. 135-166. SOUZA, Carlos Roberto de. A fascinante aventura do cinema brasileiro. São Paulo: Fundação Cinemateca brasileira, 1981. VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997. XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993. Infografia: http://www.dtp.uem.br/lap/public/04.pdf acesso em: (16/06/2012). http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1213054181_ARQUIVO_Artigo_Anpuh(final).p df acesso em: (19/06/2012). Ficha técnica disponível em: http://www.tempoglauber.com.br/f_terra.html acesso em: (19/06/2012). http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D07_Terra_em_Transe.pdf acesso em: (19/06/2012). 18
  • 19. Anexo: FICHA TÉCNICA Ficção, longa-metragem, 35 mm, preto e branco, Rio de Janeiro, 1967. 3.100 metros, 115 minutos. Companhias produtoras: Mapa Filmes e Difilm; Distribuição: Difilm; Lançamento: 8 de maio de 1967, Rio de Janeiro (Bruni- Flamengo, Coral, Caruso, Festival e outros cinemas do circuito Lívio Bruni); Produtor executivo: Zelito Viana; Produtores associados: Luiz Carlos Barreto, Carlos Diegues, Raymundo Wanderley, Glauber Rocha; Gerente administrativo: Tácito Al Quintas; Diretor: Glauber Rocha; Assistentes de direção: Antônio Calmon, Moisés Kendler; Argumentista e roteirista: Glauber Rocha; Diretor de fotografia: Luiz Carlos Barreto; Câmara: Dib Lufti; Assistente de câmara: José Ventura; Fotógrafos de cena: Luiz Carlos Barreto, Lauro Escorel Filho; Trabalhos fotográficos: José Medeiros; Eletricistas: Sandoval Dória, Vitaliano Muratori; Engenheiro de som: Aluizio Viana; Montador: Eduardo Escorel; Assistente de montagem: Mair Tavares; Montadora de negativo: Paula Cracel; Cenógrafo e Figurinista: Paulo Gil Soares; Trajes de Danuza Leão: Guilherme Guimarães; Letreiros: Mair Tavares; Carta: Luiz Carlos Ripper; Música original: Sérgio Ricardo; Regente: Carlos Monteiro de Sousa; Quarteto: Edson Machado; Vozes: Maria da Graça (Gal Costa) e Sérgio Ricardo; Música: Carlos Gomes (O Guarani), Villa-Lobos (Bachianas n.3 e 6), Verdi (abertura de Othelo); canto negro Aluê do candomblé da Bahia, samba de favela do Rio; Locações: Rio de Janeiro e Duque de Caxias (RJ); Laboratório de imagem: Líder Cine Laboratórios; Estúdio de som: Herbert Richers; Prêmios: Prêmio da FIPRESCI (Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica) e Prêmio Luis Bunuel no XX Festival Internacional do Filme, em Cannes/1967; Golfinho de Ouro para Melhor Filme - Rio de Janeiro/1967; Coruja de Ouro para melhor ator coadjuvante (José Lewgoy) Rio de Janeiro/1967; Prêmio Air France de Cinema para melhor filme e melhor diretor - Rio de Janeiro, 1967; Prêmio da Crítica, Grande Prêmio Cinema e Juventude - Locarno, Itália; Prêmio da Crítica (Melhor Filme) - Havana, Cuba; Melhor Filme, Menção Honrosa (Melhor Roteiro), Melhor Ator Coadjuvante (Modesto de Sousa), Prêmio Especial a Luiz Carlos Barreto (pela fotografia e produção) - Juiz de Fora (MG); Elenco: Jardel Filho - PauloMartins; Paulo Autran - D. Porfírio Diaz; José Lewgoy - D. Filipe Vieira; Glauce Rocha - Sara; Paulo Gracindo - D. Júlio Fuentes; Hugo Carvana - Álvaro; Danuza Leão - Sílvia; Jofre Soares - Padre Gil; Modesto de Sousa - senador; Mário Lago - secretário de segurança; Flávio Migliaccio - homem do povo; Telma Reston - mulher do povo; José Marinho - Jerônimo; Francisco Milani - Aldo; Paulo César Pereio - estudante; Emanuel Cavalcanti - Felício; Zózimo Bulbul - Repórter; Antonio Câmera- índio; Echio Reis, Maurício do Valle, Rafael de Carvalho, Ivan de Souza; 19