1) O documento discute a falta de acesso ao centro cultural de SAJ, que funciona como um "asilo inviolável" onde ninguém pode entrar.
2) Um personagem chamado Durrel critica as grades e o descaso com o local, mas afirma que isso não irá impedir a produção artística.
3) A publicação traz poemas, contos e discussões sobre temas como a cidade moderna, o consumismo, o tempo e a liberdade no contexto atual.
Jornal Vigia dos Vales, 43 Anos. 21-02-2017 - Edição.1080
Revista Outras Farpas [sexta edição]
1. ANO 2
Nº 06
DISTRIBUIÇÃO
GRATUITA
30 ABR/2010
Uma farpa cultural espetada bem no olho de SAJ!
O local de fomento à
produção artística em SAJ é
um asilo inviolável, nele Mil novecentos e bolinha...
ninguém pode entrar, hora
nenhuma do dia, nem para
prestar socorro!
Dias atuais...
“Quando minha mãe veio morar em SAJ, naquele prédio
abandonado ainda funcionavam a cadeia pública e o
manicômio. Daí as grades reforçadas e o portão pesado.
Depois que a cadeia mudou de endereço, tornou-se
imperioso arrumar outra coisa para prender, afinal de
contas, a vocação do lugar deveria ser mantida.
Prenderam o acesso à arte, já que nem sempre se pode
prender os artistas... Contudo, não serão as grades, nem
o descaso, que irão impedir as nossas farpas...” (Durrel)
Mil novecentos e antigamente...
2. PONTEIROS OU FARPAS DO TEMPO
I
Por Maitê Rangel
Equipe Outras Farpas:
Que homem sobrevive na pólis moderna? Na cidade findou a sua liberdade
moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa Acton Lôbo,
para uma dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, Jean Michel,
vergar, rastejar, aturar; rico e superior como um Jacinto, a sociedade logo enreda em... Leandro Bulhões (Leo Pó);
preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os de um Manoel “Durrel” das Neves.
cárcere ou de um quartel [...] Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de
seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o
desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Colaboraram com esta edição:
Eis a cidade e seus sobreviventes definidos nas linhas literárias de Eça de Leo Moura (com a fotografia atual do
Queiroz. Seria ela de outra forma? Na vida moderna o trabalho e o consumo
Centro Cultural Santoantoniense - as
condicionam o homem a perceber os dias como o passar de milésimos de segundo
demais imagens foram retiradas do
progressivamente finitos. O homem, frágil e vil, teme “não ter tempo” de desejar a
tecnologia avançada do próximo segundo, produzida e pensada por outros tantos Google);
homens “sem tempo”. No mundo do consumo as inovações tecnológicas se Maitê Rangel;
sobrepõem; se colocam no mercado como sucessivas doses de entorpecentes aos Flor de Lis;
viciados - não aqueles que usam a droga, mas os que se deixam usar por elas - e o Isaías Menezes Pereira;
indivíduo no ciclo vicioso do consumo, a cada nova dose acorrenta sua alma, cega a Ana Carolina Barbosa Ferreira;
visão e troca sua humanidade por pedaços vis de matéria sem valor. A CUCA;
Leo Groba;
A modernidade caminha de mãos dadas com um tempo que não comporta o DanDan;
humano. Em nosso século, os ponteiros do relógio marcam o tempo em que “não há Ariela Mazé;
tempo”. Na história do capitalismo industrial revestiu-se o medidor que nos maquiniza,
Carlos Bohm;
com metal precioso e preso na algibeira por corrente de igual valor metálico o relógio
Lígia Benevides;
foi enfim transformado num símbolo de status.
Rosângela Mercês.
Mas ao fitar a matéria e seus ponteiros sedutores, transformar pouco a pouco o
tempo em moeda o homem não pode prever que cada segundo medido e pesado Nossos sinceros
implicava em caminhar para a escravidão do espírito. Que livre expressão pode haver agradecimentos a todos os
num tempo que se fecha em modelos preferenciais “civilizados”? As festas, as leitores e colaboradores!
emoções, os laços de amizade e a vida têm um valor cifrado. A força que maquiniza o
homem, é violenta em demasia: exibimos o capataz no pulso e sem açoite, Continuem nos escrevendo:
sustentamos o espólio do nosso trabalho, abandonando pedaços da vida humana na
linha de produção. outrasfarpas@gmail.com
QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. São Paulo; Martin Claret, 2004. p.85.
O ÔNIBUS e angústias resultantes de sua vejo coberto de impurezas e abandono,
Por Flor de Lis ausência. mas cristalino em sua aparência. Eu
cubro meus olhos com lentes escuras e
O ônibus passa, e atrás dele O cheiro torpe invade minhas também disfarço a teimosia de calar
inúmeros carros transitam em pressa narinas, através da janela vejo a meus anseios.
inconstante enquanto eu e meus nuvem que tenta cobrir o sol que ....
conflitos adormecemos no assento ilumina e me aquece do frio. Continuo no carro e nesse
confortável de um veículo. Depressa anda o carro, tremem instante paro, não reflito, prendo meus
minhas mãos e novamente lembro lábios, engulo a saliva, entrego o
Motos passam, pessoas você. dinheiro e uma palavra apenas expulso:
aguardam o melhor momento, um
cachorro parece triste, a criança no colo Sinto o peso do meu olhar, as - Obrigada!
da mãe encontra um refúgio, um afago, pálpebras não suportam apenas três
e eu continuo sentada, rodeada e ao horas fechadas, desejam mais, a
mesmo tempo isolada nos meus atritos minha pupila dilata igual ao rio que
2
3. O tiro da Pequena Rosa Por Isaías Menezes Pereira
“O que importa não é nem a aniversário de vinte e quatro anos de já havia me encantado há cinco meses na
partida, nem a chegada, mas sim, a Fofa (divertimento). Abrindo um espaço minha primeira visita à Fofa e à Maceió.
travessia.” (ROSA, Guimarães/ Grandes para Nietzsche: “O verdadeiro homem Nesta, nossa companhia (minha e de
Sertões Veredas) quer duas coisas: O divertimento e o Fofa) foi a de quem dedico esse conto:
Dentro de um tempo e um espaço perigo. Assim, ele quer a mulher, que é o saudoso amigo Léo Pó, que tanto
tão agitado e ao mesmo tempo tão brinquedo mais perigoso”. conversou com a Pequena Rosa, depois
monótono como o que vivemos, viajar Na última noite, um sábado, mais de ter comprado uma flor para dar a Fofa
pode ser a solução para a “pesca” de uma vez saímos para apreciar as em forma de gratidão, reconhecimento,
novas idéias, visões, degustações, possibilidades que os espaços boêmios serenidade. Tudo isso num outro bar,
cheiros, novas sensações que, como diria da cidade de Maceió dispõem em num outro espaço, num outro tempo.
Caetano, “entram pelos sete buracos da abundância. Fomos a um boteco no Desta vez, aquele sorriso me fez escorrer
minha cabeça... pelos olhos, bocas, centro da cidade denominado “Baba”. o corpo pela cadeira, ao descansar do
narinas e orelhas”. Um bar para quem quer começar a noite impacto visual ao ponto de me desligar
Transitar nos Estados brasileiros, ouvindo um Rock clássico ao vivo. Logo do mundo por alguns instantes. Nesse
principalmente, se o meio de transporte depois, a outro, chamado Casa Amarela, momento, Fofa foi ao banheiro. Contei o
for o ônibus, e, mais ainda, se for a custo este carregando as emoções que a que aconteceu comigo em poucas
zero, deve ser uma experiência quase música popular e o pop rock brasileiro palavras a Paulo, que muito se
que obrigatória na vida de um ser podem proporcionar de melhor aos impressionou e disse que percebeu que
humano que necessite dar uma ouvidos de um cidadão como eu. eu tinha mudado de estado após o tiro, o
verdadeira renovada no espírito (pois A Rosa, sem que eu soubesse, sorriso da Pequena Rosa.
existem várias propostas falsas por aí). estava ali por perto, planejando Automaticamente o sentimento de
Observar as mudanças climáticas, detalhadamente o momento de instalar covardia tomou conta de mim. Não me
geográficas e culturais dessa uma bomba dentro de mim. perdoaria se não corresse atrás daquela
miscigenação interminável, nos faz Embriagando-me como Baudelaire exalta, criança para comprar uma rosa e voltar
pensar quantas coisas temos para misturava a alegria do estado à antes de Fofa, para novamente
conquistar e durante tanto tempo maravilhosa presença de Fofa e Paulo à presentear a dama da mesa. Encontrei-a
ficamos parados. mesa, quando Rosa se aproximou: uma logo à frente, parei-a, ela olhando pra
Entre tantas destas sensações, criança de oito anos que me oferecia mim sorriu novamente, parecia que se
dedicar-me-ei a apenas uma, unidades de rosas vermelhas. Rosa lembrava da conversa que tivemos há
provavelmente a melhor de todas, por aparentava o que as caricaturas cinco meses, quando a mesma falou-me
estar ligada a um outro momento e a um estereotipadas de chapeuzinho vermelho que não estudava porque tinha que
fato que, com o passar do tempo, esqueci tentam mostrar: Cabelos cacheados a vender as rosas para ajudar a mãe.
que tinha acontecido. Não esqueci a baixo dos ombros, pele mulata (porque Retribuí o sorriso, e ela me pagou o troco
situação, mas de quem no meu livre era um “chapeuzinho tropical”), rosto de com mais um. Nunca fui tão espontâneo
arbítrio chamei de Rosa, a Pequena Rosa, maçã, dentes de leite, olhos negros e em gratificar uma criança com tais
que em poucos segundos me mostrou ser redondos. palavras, mas assim disse: “É a segunda
uma verdadeira e impiedosa terrorista À primeira vista e ostentando a vez que venho à Maceió, segunda vez
poética. E é dela que partem as minha hostilidade às crianças, ignorei-a e também que vejo esse seu sorriso lindo”.
inspirações aqui despertadas para respondi o tradicional “não, obrigado”. Assim, ela deu uma gargalhada e se foi.
escrever este “diário de bordo” que se Mas ela teve ódio de mim! Em seu olhar Voltei à mesa e mais uma vez a
passou na minha segunda visita à capital identificava-se claramente o conceito simplicidade dos pequenos gestos,
de Alagoas, Maceió. Propósito da visita: socrático de demônio: anjo inspirador. causando grandes explosões de alegria
rever uma pessoa muito querida a quem Ela retribuiu o meu “não” com um sorriso ao presentear minha dama com uma rosa
todos se referem carinhosamente como seguido de passos a outras mesas. Um tão simbólica, o tiro da Pequena Rosa.
Fofa. Coincidência ou sorte (duas coisas sorriso tão sereno que automaticamente
em que não acredito), cheguei no dia do me fez lembrar que ela, a Pequena Rosa,
VI- Outras farpas
Outras farpas/ Que não sejam convencionais/ Que não sejam gratuitamente ferinas/ Farpas que incomodem/ Farpas pequeninas/
Farpas que nos perfure a pele/ Farpas que inflamem/ Para renovar os tecidos/ Farpas que desafiem os sentidos/ Farpas na palma das
mãos/ Farpas que sejam sempre “nãos”/ Farpas interinas, para as senhoras e as meninas/ Outras farpas/ De madeira ou de metal/
Farpas que promovam o mal de estar ali ou de estar lá/ Que nos mude de lugar/ Outras farpas para repensar.
Por Ana Carolina Barbosa Ferreira
3
4. A Senda o botão de minha calça, revelando à sua língua
e, aos seus indefectíveis lábios, o prazer
cabelos, revelava-me o queixo proeminente,
delicadamente desenhado por algum escultor
vigoroso que pulsava rijo sob a última peça de celestial. Mordi-o, escorregando pelo seu
Por Acton Lobo
roupa que me vestia. E, sem piscar os olhos, pescoço, enquanto os seus cabelos longos,
levou à boca o dedo polegar, glorificando-me negros e encaracolados eram puxados pelas
Abri a porta do quarto lentamente,
com um prazer inominável; simbolizado por minhas mãos.
fazendo ecoar de sua estrutura um
lentas e deliciosas sucções, em um ato de pura - Saudades, saudades... - dizia-me,
melancólico rangido que açoitou a silenciosa
e deliciosa obscenidade. Um fascinante meio que sussurrando; sentindo por entre suas
penumbra que dominava todo o ambiente.
“suplício” ao meu desejo. pernas o penetrar suave e vigoroso
Encostei-a com calma, permitindo com a senda
Recuou dois irrompendo cada dobra de seu ser, tocando-a
criada, fornecer à radiosa luz que
passos sentando-se à profundamente em seus mais recônditos
iluminava a sala, a passagem ideal
para penetrar pelo quarto, “Os seus seios beira da imensa cama espaços, arrepiando seu corpo de prazer e
que nos aguardava. fazendo um amor físico impensável sem a
separando a escuridão por uma convidaram-me ao Avancei dois, e, de olhos violência do ato. Unindo a dor e o prazer, que
compacta linha dourada.
No ar um leve aroma iniciar do êxtase. fechados, senti o calor ecoavam em gemidos por toda a penumbra.
de sua língua doce e Um vento frio entrou pela janela,
explorava o meu olfato, fazendo Suguei-os com úmida afagar-me com movendo com força a cortina, e deslizando
ressurgir em minha memória
reminiscências onde a luxúria e o volúpia, sentindo plenitude, ímpeto e carinhosamente sobre nossos corpos, tocando
imperiosa necessidade. com suavidade nossas peles, nossos pêlos,
prazer caminhavam de mãos
dadas, sorrindo uma para a outra
nas minhas costas, Afagava-me entre leves nossas almas. Aquela corrente de ar encostou
e prazerosas mordidas a porta quase em sua totalidade, unindo por
insaciavelmente. Fui ao encontro o arranhar das que fizeram tremer de breves segundos, a escuridão que ansiava em
da escuridão, libertando a minha
sombra da luz que a revelava
unhas rubras prazer o meu corpo e a nos envolver completamente, enquanto, fora
minha alma. dali, a cidade quedava-se em silêncio,
através de uma projeção sobre o daquela mulher” Com um leve sonolenta e tristonha; presa em uma névoa
chão até a suntuosa cama, onde,
sussurrar, imprimi um cinzenta que encobria todos os seus
acima da cabeceira encontrava-se
carinhoso pedido, imponentes edifícios. Ao longe, um ecoar
uma reprodução do quadro “Noite Estrelada”.
diligentemente aceito e obedecido com os estridente e emergencial de uma sirene
Enquanto afastava-me, observava
seguintes dizeres: revelava que a vida ainda estava pulsando em
como aquela claridade encontrava através da
- Faça comigo o que quiser... - suas ruas mal iluminadas, becos, vielas e
senda, o espaço ideal para revelar aos meus
respondeu, fornecendo à voz uma serena avenidas. Mas, nada disso era importante.
olhos, o fascinante corpo nu que irradiava um
ênfase de maturidade - Cada átomo, cada Na cama cessávamos aquele frio
resplendor fosforescente na escuridão,
partícula, cada gota de suor que desliza sobre absurdo que teimava em invadir todos os
agraciando-me com a sua exuberância natural.
meu corpo pertence a você.- completou, espaços vazios existentes na matéria.
Nua e bela: em cada curva, em cada respiração
deitando-se, quase no mesmo instante que Movimentos intensos e carregados de prazer
que se elevava ofegante a cada passo meu em
uma sutil corrente de ar movimentava a porta, apresentavam-nos a felicidade suprema,
direção ao seu encontro. Por alguns segundos
aumentando um pouco mais a ação da compartilhada entre carícias profundas e
contemplei aquele corpo iluminado pela
claridade sobre a escuridão. sinceras, temperadas por palavras obscenas e
diáfana luz, onde, um indefectível bronzeado
- Absorva do meu ser o néctar que deliciosas que em silêncio era testemunhada
por entre os seios, suscitava uma irreprimível
lentamente escorre cintilante por entre as pela luz que tentava subverter a escuridão.
vontade de sugá-lo.
minhas pernas, desejando você, meu menino... E assim, o tempo transcorreu
- Vem... - chamou-me objetivamente,
- pediu, sorrindo com um prazer mundano, pacientemente, segundo por segundo, até
mas com refinada delicadeza, estendendo as
enquanto, graciosamente, por mim era completar a sinfonia das horas que compôs
mãos receptivas, leves e suaves. O meu
iniciado um efusivo espetáculo para o seu com mestria o amanhecer. No horizonte, o Sol
sorriso, carregado de malícia, revelava todo o
deleite: pelos seus pés comecei o progressivo iniciava o seu natural reinado, dispersando a
meu apetite ao gozo: insaciável, ávido, porém,
deslizar da minha língua sobre o seu corpo, escuridão e ocultando sob os seus raios solares
jamais apressado. Parei, contemplando-a,
acalentando logo em seguida, as suas coxas o brilho solitário das estrelas. Raios que se
enquanto o feixe de luz apresentava-me a
com leves mordidas, que se completavam com refletiam nas janelas, nas ruas, nos carros, e
voluptuosidade daquele corpo sequioso sobre
o solitário ecoar de seus gemidos. Deslizava nas pessoas que já caminhavam em direção às
a cama.
sobre suas curvas, encontrando no ventre, a suas funções cotidianas. Raios que penetraram
Levantou-se com suprema e absoluta
vitalidade fluida e saborosa que pulsava dentro no quarto, superando a cortina, e iluminando
vitalidade, revelando-me através do seu
em seu interior. com graciosa imponência, a vitalidade de
delicado cheiro, os prazeres inomináveis da
Os seus seios convidaram-me ao iniciar nosso descanso. Era uma nova senda surgindo,
existência, enquanto, lançava ao ar o sopro
do êxtase. Suguei-os com volúpia, sentindo nas desta vez, sob o “sorriso” do Astro-Rei.
orgástico de seu desejo. Parou diante de mim.
minhas costas, o arranhar das unhas rubras
Beijou-me, mordendo os lábios com vontade e
daquela mulher. Sugava-o, pressionando-o
desejo. Ao redor, a escuridão do quarto. Entre
com maliciosa sutileza os meus lábios, a ponto
nós, a senda, iluminando e, refletindo nos
de fornecer ao seu corpo, o prazer insondável
olhos dela, todo o meu anseio para com o seu
que existe na dor de uma leve mordida. Um
corpo nu.
delicioso “ai” ecoou pelos meus ouvidos,
O lento desabotoar de minha camisa
enquanto, os seus lábios deslizavam pela
fizera nascer em sua face sutilmente iluminada
minha nuca, e suas pernas macias se
um sorriso tão malicioso quanto o meu,
entrelaçavam com as minhas, entre sussurros,
apresentando mais um elemento para a
gemidos e a densidade ansiosa de nossos
transcendência de nossos corpos.
corpos.
- Isso, continue... - falou-me
Arranhava-me com força, enquanto o
suavemente, enquanto as suas mãos aliciavam
deslizar suave de minhas mãos por entre seus
4
5. fascínio, o encanto atribuído, um novo senso
NÃO TENHAMOS FILHOS epistemológico.
Por isso, recomendo que não tenhamos
Pela CUCA filhos, pois é amar em demasia, é não ter sinonímia
e insígnias para representá-lo. Amor que não cabe
Não tenhamos filhos! Conclamo em poema ou prosa. É perder a razão e o estático, já
pasmada com a alta taxa de natalidade apoiada que tudo é transeunte, emblemático, te dilui e
pelos individualistas adeptos do recém- absorve.
Retrato antigo ou A flor do poeta
inventado carpe diem. Não há choro que te irrite, fezes que te
Não se castrem ao abandonar os enoje, vômito ou escarro que te embrulhe, tudo lhe
tratados científicos a serem escritos, o é tão valioso quanto o sorriso, o grito de alegria, o Por: Maitê Rangel
embriagar de lucidez literária, o experimentar olhar, o ensaio dos beijos, o esboço das sílabas, do
de drogas novas e velhas igualmente chamar mã, ou Edi. .... vê-lo é encarar os defeitos
surpreendentes pela imponência do encanto como que música, enxergando escatologicamente o Sorriso nas fibras do rosto,
jovial. Deleite que também transborda no roçar grotesco como belo! Arrepiando os pêlos em Corpo reduto do sonho infantil,
soturno em braços fugazes. zombaria na edificação de um monumento. A mão segura o gosto
Como tornar passado as certezas É sentir-se heroína por ser guardiã de dádiva E ignora o amor febril.
lineares que te dão a sensação de ser livres? vida, experimento táctil ao tocar-me mãos tão
Seria refutar a história de homens e de algumas macias, pele de bebê. É o homérico livro que quero
mulheres que hastearam a bandeira da compor e, depois ler, reler, ler... Ele me fustiga
Olhos pequenos tem posto
liberdade, estandartes de si mesmos. Portanto, quando me cativas no gargalhar por nobres coisas Na flor, o olhar pastoril.
não se devem profanar tantas conquistas com o bobas, por tua saltitante vovó. Ficamos felizes Alma posta como néctar mosto
vulgar expelir de mais um mamífero quando o presenteiam ao invés de nós mesmos, já Entoa em silêncio o céu anil.
contribuinte com a superlotação da Terra. Além não há vaidade ou orgulho. Sim, é loucura extrema
do mais, enche-te de banhas, succiona suas ter um filho. O canto sem palavras -
tetas e teu tempo, o que não lhe possibilita Ser tão feliz por tão pouco, querer bem e O encanto da vida - lavra
mais amamentar teu intelecto, tua boemia, teus explodir de tanto amor, de tanto medo de ser frágil,
Uma poesia feita em botão,
sonhos. dos erros que ainda serão cometidos com o escopo
- Não tenham filhos se não quiserdes de se acertar, de ver-se fraco e melindroso diante
ver o absolutismo imutável das verdades se da vida. Por isso conclamo - não tenhamos filhos. Para levar os passos ao caminho,
dissolver. Muitos tentaram persuadir-me Pois se o tiverdes, sentirá tremer suas veias Fazer do coração, não mais sozinho,
citando pensadores invioláveis, retórica cristã numa erupção de câimbras, haverá descontrole do Devoto da flor que teve nas mãos.
que combatia o meu ateísmo. Uma empreitada seu corpo, os espasmos do interdito, do medo da
de insucesso! queda, da cólera do riso...É o descontrole da mente,
- “Mas ao olhar-te, meu filho, orei para tornando-se mulher de pensamento vulgar,
acreditar na existência de algum Deus, conversa trivial....
solicitando para proteger-te, para prolongar-te. Agora entendo porque as mulheres
Esqueci da eutanásia, clamando todas as noites desprovidas tanto parem, pois este é o único
para viver um pouco mais. Agradecendo a vida instante de felicidade para os que estão na miséria. RODEADO
pela dádiva de ser mãe, pelo experimentar Cada rebento é a esperança, a felicidade tão
táctil de dedinhos ansiosos de conhecimento. É negada... Instantes de leveza e esquecimento. A Por Leo Groba
querer-te em escandaloso silêncio e não droga mais fascinante de todas, agrega a calmaria, a
envergonhar-se de se infantilizar (gu-gu-dá-dá). euforia, a vontade ininterrupta, o projetar... Rodeado de beleza
É um querer ser criança, heroína de conto de Amar, amar-amar, jamais desamar. Não consegui ver
fadas, animadora de festa infantil, tudo para me A abstração por completo. A tristeza no teu olhar
deliciar com o seu gargalhar. No canto do pássaro matutino, ouvir-lo dar
No balanço de negras velhas
É um continuum, te amar hoje muito sentido ao mundo. Mãos tão pequenas que te
mais do que ontem e menos do que amanhã. O abraçam por completo. Impactando num No som do couro
ingresso violento em nossas vidas é de tal modo desequilíbrio seduzir diário. Um mundo novo
que você sempre existiu, já que o substantivo Não há fadiga nem desencanto, novidades Que de tão velho
mãe é um adjetivo que não se conjuga no narrativas do espectador cotidiano. Valores novos
passado. Ah meu filho, como fico boba quando Neste constituir-se não há teoria, não há Diluiu
diz que ama com a descoordenação de seus fama nem sucesso, pois somos fracos diante dessa Sentei no chão
pés, no descompasso dos braços, no olhar Persona que se constrói com armas de manipulação Comi de mão
saltitante vislumbrando minha atenção. tão convincentes... Sim, estamos sujeitos a morte,
Ganhei mãe, pai e irmão
Acompanho-no crescendo em ao caos, a deus, ao medo, ao desespero, ao íntimo
expectativas que se formulam a cada sentimento que mescla a loucura do inconsciente E essa beleza conseguiu
constituição do nosso eu, sinto saudade do com a fúria animalesca da Por um momento
flagrar do presente, é observá-lo agora e saber proteção materna... Ainda Me enganar, pra não ver
que ele já não existe mais. E, em cada passo, pior, estamos sujeitos a vida. A tristeza no teu olhar
sou eu que engatinho ao nos descobrir...” Sim, não tenhamos Mas nada disso
Altruísmo era só um conceito quando se filhos! Para não padecermos Fará mudar
passa a amar alguém mais do que a si mesmo, nesta irracionalidade diária e E hei de amar já
no momento no qual uma porcariazinha pode num léxico pobre que reitera
A paz que esse povo me faz
substituir todos os nossos parâmetros de tanto a palavra amor, por ser-
existência. Centímetros de ser humano se lhe tanto...
tornam o universo multiplicado, regato de
5
6. do tempo no plástico como um escurecimento
O observador gradativo das extremidades. Mas a penumbra ***
que cresce embaçando, ressecando,
Por JANGO friccionando e exalando, sem refletir (pois a Levantei e fui ter com a rua e com a
reflexão é uma “doença humana”) seu desejo pracinha na frente de casa. A mesma rua onde
Recôncavo baiano, algum dia de 2009... camuflado de partir o plástico e fazer explodir tantas vezes estourei a cabeça do dedão
nele a utilidade que nós o emprestamos (uma pegando o baba descalço e que agora, mesmo
I cadeira com a perna quebrada continua a ser daquela topada na qual perdi a unha inteira do
uma cadeira?)... A penumbra... Ela também dedão do pé direito e que me revelou a
Sentado à varanda da casa onde passei delineia (ainda sem nenhum “querer”, mas falange no fundo do corte, apenas sobrou uma
minha infância. Essa pequena gota barrenta de nem por isso menos determinada) as costas do lembrança muito vaga da dor que senti, na
tempo lameado, que, quando filtrada pela meu pai. As suas costas estão ali, na verdade algo como uma agonia no dedo. O que
reflexão e esforço de lembrança parece “brancura” resistente no plástico como em resistiu mais claro na lembrança foi minha
deslizar e se perder, escoando e misturando-se cada detalhe da arquitetura improvisada de preocupação em esconder o ferimento de
após desprender um pouco de limo ou lama na nossa casa. Essa arquitetura que tanto irrita a meus pais. Educação pelo medo! (A educação
rede da memória: e o que é a memória se não mãe, mas que tem em sua gênese a psicologia familiar parece exigir da criança uma
uma pequena mancha no linho novo da de quem quer, mesmo desordenada e responsabilidade um tanto destoante da
existência? (Por mais discreta e disfarçada, ou caoticamente, fazer e não pedir: esse traço constituição psicológica própria da criança,
escondida na ilusória, mas não menos concreta psicológico do povo brasileiro que vem mas que parece ter como explicação óbvia a
imensidão de nossas expectativas cotidianas resistindo a pesar de toda asfixia, de todo isenção paterna dessa responsabilidade.
de presente e futuro, insiste em martelar desprezo, de todo esquecimento, de toda Então, quanto mais rápido o indivíduo for
nossos sentidos como numa tentativa deturpação ideológica, enfim, de toda domesticado -entenda-se: capaz de
convulsiva de um organismo que outrora “higienização” que herdamos do século consciência de culpa- mais notória e eficiente é
gozou de força, vitalidade e poder, e agora, “civilizador”. a capacidade educativa dos pais e mais
desafortunadamente, vocifera seu angustiante,
tranqüila a existência da casa, de forma
porém notoriamente decadente, desejo de
particular, e da sociedade como seu
continuar grudada na parede, já sebosa, da “Mesmo observando alguém desenvolvimento espontâneo). Em nossa terra
consciência). Ali, sentado numa cadeira de
a vida toda, a possibilidade essa deturpação educativa parece ter
plástico - milimetricamente equivalente a
desenvolvido diversas existências
outras três cadeiras, que, junto com a mesa, de surpresa é inegável e esse problemáticas como são os tímidos, os
também de plástico, formam um conjunto tão
solitários, os incapazes de interação social...,
comum a outras tantas varandas de outras é o único ponto que me aparentemente apenas auto-destrutivas, mas
tantas casas-de-família, homogeneizadas por
essas pequenas coisas perecíveis criadas por
concilia com a também outras anomalias mais perigosas à
sobrevivência mesma da sociedade como um
nosso tempo, pois nenhum outro tempo humanidade...” organismo. Como é o caso do meu amigo
aproximou-se tanto da natureza da
Gabriel que encontrei sentado na pracinha
perecividade assim como o nosso - dei-me a
*** com um semblante muito despreocupado a
encarar o fragmento de eu contido em cada
despeito das recomendações de minha mãe
uma dessas coisas a minha volta e pude sentir,
Duas paredes apenas me separam de sobre ele. Ha muitos anos não o via... E ele
na insondável imensidão caótica de um
minha mãe que dorme em sua cama de metal agora, segundo havia se disseminado pela rede
segundo, a força corrosiva do descobrimento.
o sono dos justos, e justamente o “melhor invisível da fofoca que constitui o canal
sono” que é o sono do dia: a sesta! Observaria informativo responsável pelo policiamento das
ela a mentalidade dominante de uma época vidas da vizinhança desde suas raízes mais
***
assim como eu observo: como um organismo antigas, mas principalmente das gerações mais
vivo, e talvez muito mais vivo que nos parece jovens, era um fugitivo da polícia, pois já
Eu, a antítese por excelência, sondando
as representações corpóreas que os carrega; carregava “duas mortes nas costas”. Resolvi
sistemática e ininterruptamente todas as
agindo de forma mais sistemática como jamais correr o risco e me sentei junto com o antigo
angustias e suas gradações de perspectiva;
pôde entendê-la a consciência fragmentária de amigo para saber como iam as coisas pela sua
perscrutando milímetro a milímetro (sendo o
nossa racionalidade tardia; negociando com boca e não as das apologistas do medo. E foi
milímetro para mim um universo inteiro) as
outras mentalidades mais decadentes a esse o depoimento que colhi junto ao meu
redes invisíveis do meu sistema fisiológico que
adesão incondicional ou a asfixia gradativa; jovem amigo (agora autodenominado
são nada mais que o desenrolar silencioso do
exigindo de forma imoral a aceitação de uma Cobrador) de infância, que, muito prestativo,
meu afeto... Mergulhei mais uma vez no túnel
moral estranha, tão decadente quanto respondeu pacientemente às minhas
escuro e desabitado que leva a um pequeno
autoritária... Vislumbraria ela a possibilidade indagações, e, de forma bastante camarada,
buraco de fechadura da porta que separa os
de na varanda de sua casa algum dia vir sentar- ajudou-me a compreender seu tipo
mundos e pude dançar mesmo sozinho e
se alguém com o qual não se poderia negociar psicológico. Se agora transcrevo em forma
imóvel, a dança dos avessos. Uma melodia
nos termos que se colocaram até agora, ou poética seu depoimento é com objetivo de
encheu-me os ouvidos: era o canto daquele
naquela cama além do seu corpo, está a torná-lo mais palatável aos mais sensíveis
augusto poeta dos anjos, que ao atravessar
dormir também o seu espírito? Não poderia dentre meus leitores:
uma ponte no Recife dialogava com sua
sombra e foi tomado pela filosofia contida num responder essa pergunta. E se há alguma coisa
que ainda me inspira respeito nas pessoas é a Continua...
escarro: a de ligar dois abismos!
potência que existe na individualidade. Mesmo
*** observando alguém a vida toda, a possibilidade
de surpresa é inegável e esse é o único ponto
Olhava com atenção uma cadeira à que me concilia com a humanidade e não me
minha frente e percebi as variações graduais faz tomar os homens pelo molde homem.
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7. MAR ADENTRO (2004 - Espanha)
Direção: Alejandro Amenábar
Com Javier Bárdem
Ramón Sampedro (Javier Bardem) é um tetraplégico que luta pelo direito de por fim à própria vida.
Dedique uma atenção especial à cena em que a personagem se levanta da cama e voa por sobre
tudo, em busca da vida, do mar, em busca de Júlia (Belén Rueda). A trilha é Nessum Dorma, na voz
inigualável de Luciano Pavarotti, mas não basta somente ver e ouvir. É preciso ir junto com Ramón,
tonar a vida, nem que seja só por um instante, uma fonte inesgotavel de possibilidades, descansar as
costas do peso da existência e se tornar mais leve que o ar. O nome disso é voar, e a poesia, seja ela
falada, escrita ou projetada, é o par de asas que você precisa. Bom filme!
Daquela vez seria diferente. Três longas horas de reflexão e
ensaios haviam sido responsáveis pela elaboração de um discurso
arrasador. Ela chegaria, entraria no quarto, e sem que lhe fosse
permitida proferir uma única palavra, todas as frases seriam ditas,
todas as possibilidades de escapatória seriam concretamente O intruso
bloqueadas, e antes que a consciência sobre a situação pudesse trazê- Por JANGO
la às bases da refutação, tudo estaria terminado, a caminhar a largos Corpos deslizam na água morna e cristalina,
passos rumo ao arquivo morto. A vida parece fluir despreocupada entre muros,
Pois nada amedronta os filhotes da moralina.
Seria diferente daquela vez. Não mais se resignaria diante
E sob o torpor do luxo permanecem como surdos!
daquele beijo displicente, ritual de chegada e saída dos amantes.
Aquilo tudo precisava ter um fim, e seria naquela tarde, para que Há pranto e ranger de dentes lá fora, no mundo,
quando a noite finalmente rompesse, trouxesse consigo toda uma Mas os ecos não transpassam as paredes fortificadas.
gama de novas possibilidade e sensações já até mesmo esquecidas. Entre saltos e gritos mergulham cada vez mais fundo
Sequer lembrava como era estar sozinho. Aquela pessoa havia Na ilusão de uma existência de tensões apaziguadas.
preenchido tanto o seu espaço, tomado para si uma quantidade tão
grande de atenções, que ele já não lembrava de como era mesmo sua Lá em cima as crianças dormem na “torre de espelhos”...
Adentra calmo, o intruso, no quarto ocioso,
vida, seu quarto, seus gostos, seus momentos. Uma saudade de si
E trabalha rápido sobre as “bonecas de cera”.
mesmo o tomou de forma tão avassaladora que tornou indestrutível a
convicção em relação à decisão a ser tomada. Membros desconjuntados bóiam em lençóis vermelhos...
Deitou-se na cama e deu continuidade aos pensamentos. A Lá embaixo continuam os risos sob o sol oleoso.
cada segundo a solidez de uma nova vida se lhe apresentava mais Também o intruso ri, olhando a piscina pela seteira...
desafiante. Via diante de si estradas floridas, lotadas de banquinhos
onde se podia sentar num fim de tarde e escrever novos poemas para
novas leitoras. De olhos fechados, sorria para o novo gosto da ___________________________________
felicidade.
A porta se abriu e ela entrou. Indiferente à sua presença,
Escutando atrás da porta
depositou sua bolsa sobre a escrivaninha. Parecia um pouco
apressada. Tirou a blusa e a lançou no cesto de roupas sujas. Sem Por Durrel
prestar atenção a algum detalhe, atravessou o quarto indo em direção
à cama. Inclinou-se e num estalo o beijo de chegada já havia sido “Ele vale”
dado. Voltou à escrivaninha como que a procurar algum documento. “Vale muito.”
Ele a observou por todo esse tempo sem o mínimo esboço de
movimento. Duvidou se era sentimento ou costume, mas De pensar que falavam
Do reflexivo metódico,
independente de qualquer coisa, a certeza de por o fim continuava
Do tímido pessimista,
inabalada. Só não precisava ser ali, naquele agora, logo assim, tão Do previsível sem sabor...
perto do Natal. O ano seguinte lhe apresentaria, por baixo, umas
trezentas novas possibilidades. Levantou e foi à cozinha beber um Finalizado o gozo do momento eu me perguntei:
pouco de suco. Por hora, aquela conversa estava encerrada. “Confio nessa gente?”
Por Manoel Durrel “Afinal, são meus amigos...”
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8. - Vá, F., pode ir. Agora, sofra as F. vestira suas roupas impregnadas de
O SCRAP conseqüências de suas escolhas. suor e se despedira com um olhar e um sorriso
Por DanDan
Silêncio, silêncio. após acender um cigarro.
Hoje, sentira algo muito atípico com a Silêncio, fumaça e vácuo subjetivo.
Tinha aberto sua página no Orkut em decodificação daquela frágil e instantânea Nunca mais o vira ou o esperara.
uma manhã quente que mantinha seu corpo
mensagem. O que F. queria depois de ter Excluíra seu perfil no Orkut. A partir desse dia,
em brasas. Clicou no ícone recados que parecia oferecido-lhe uma despedida camuflada? O todas as tardes passaram a ter o gosto e o
ulular em seus olhos afásicos a qualquer tormento das suposições analógicas punha cheiro de F.
imagem ou projeção que não fosse a
seus instintos em estado de sítio. Não iria fazer
representação do amor de sua mera vida, R. A mais nada naquele dia até F. chegar. Fechara a
conexão estava extremamente lenta, os janela, pagara os 15 minutos de acesso à DanDan, manhã de 13 de janeiro de
tempos globalizados haviam provocado em sua
internet e migrara da lan house para sua casa. 2010.
personalidade bruscas mutações, inflando sua 14h45min F. batera em sua porta e
impaciência e sua filosofia barata tatuada em invocara seu nome. Pensou em não atendê-lo,
inúmeras peles: carpe diem, carpe diem...
enquanto seu músculo cardíaco batia violen-
A página finalmente abrira: um scrap tamente em sua caixa torácica.
lacônico girava agora em seu córtex, no - Já vai, F.!
simples exercício de decodificação e enten-
Desceu as escadas trêmulo. Abriu o
dimento: portão.
IREI EM SUA CASA AMANHÃ À TARDE. - Oi, F.
ABRAÇOS.
- Oi, tudo bem?
Era F., o combustível de seus desejos - Tudo, entra.
mais sujos e surreais, estandartizados nas - Com licença...
procissões noturnas dos sonhos. Desde que o
Forjaram diálogos lisérgicos. Quando
encontrara no vértice do quadrilátero em sua se encontravam, personificavam-se em
rotina amarela, sua alma cutucara os instintos espelhos simétricos. Os olhos transitavam
com vara curta. Quem era aquele indivíduo
pelas pernas robustas de F., envoltas em
que ousara invadir sua territorialidade cercada vestes que acentuavam suas formas; o trajeto
de arames? passava pelo tronco e braços fortes, mãos
Sua retina movimentava-se frene- Por Ana Carolina Barbosa Ferreira
largas e terminava em sua face, composta por
ticamente inspecionando o corpo situado olhos castanhos, nariz grosso, orelhas tor-
naquele vértice, e logo um impulso movia sua neadas, barba rústica, boca hidratada e
boca, que, automaticamente, cuspiu uma frase Que soem os tambores
cabelos raspados por máquina nº 1. As que desçam tod@ @s sant@s...
sinalizando sua presença, omitida pela leitura palavras de F. evaporavam na tarde quente,
de um livro não-identificado: que todos os cânticos da terra
enquanto o delírio tomava conta do corpo dos
- Boa noite.
espelhos pendurados no círculo obtuso que toda a América, todos os mitos,
A mensagem mal proferida atra- privado. os arcaísmos todos
vessara o quadrilátero como um dardo. F. Delírio. Tudo sintetizava-se em um e todos os ritos
levantara seu crânio que carregava uma desestabilizem o instrumentalismo
dilatado delírio.
expressão sólida e árida e moveu o meca- Corpos sobrepostos no sofá de três da razão do Ocidente
nismo que o permitia possuir a habilidade da lugares.
fala, em um tom ético e recíproco: pedante e tacanho,
Devorava o corpo de F. com uma insuficiente e incompleto,
- Boa noite. voracidade inimaginável. Consumia cada
A partir desse dia, diálogos foram surdo e cego à alteridade que o cerca.
centímetro de sua negra anatomia em ignição.
forjados e uma amizade fora fabricada. Mas
F. sussurrava palavras de ordem em seus
Que toda memória, toda a chacina,
ele era um homem, e F. também o era. Os dias ouvidos que faziam-no subordinar-se aos seus tudo o mais que a experiência ensina
arrastaram-se pelo asfalto que sufocava os desejos impetuosos. Cobrira o corpo de F. com esclareçam o “Aufklärung”
paralelepípedos, até que um dia F. convocara- que tudo isso impeça que novos
sua saliva ácida, que corroia sua pele deixando
o para uma conversa. marcas visíveis só por ele. Lambia e chupava o extermínios
- Eu vou embora. Cansei dessa vidinha falo obsessivamente, extremamente rígido e
medíocre. Não quero mais isso pra mim não, e antigos encobrimentos (travestidos de
macio: mastigava-o. Cansado de percorrer o descobertas)
etc., etc. caminho entre a boca e o falo de F., repousou
Ficara em um estado inenarrável. anunciem a vitória e supremacia de um
em suas coxas peludas e suadas. Parecia que
Invadira sua vida, brincara com seus instintos e
Exu tinha-o tocado com suas mãos sacras. F.
povo.
agora foge como nada tivesse causado? Como punha-o em uma posição pertinente para Que o velho, com cara de novo, volte os
iria sobreviver sem seus risos luminosos e cópula e penetrou-o, fodendo-o compul- olhos para si e se enxergue.
gargalhadas estrondosas, sem o cheiro forte de Que nada mais tenha que ser dito,
sivamente como um possesso. Execrava a
seus cigarros, suas histórias ludibriantes, prática do sexo anal por não sentir prazer nas se o for feito com a indignidade de quem
olhares dúbios, mãos e braços fortes vertidos cinco vezes que oferecera seu ânus, mas o
em abraços de fogo? tolera.
delírio o entorpecia, transfigurando a cena em
Defendia-se quase sussurrando em um ritual de quase-estupro. F. gozava de forma
seus ouvidos, acostumados com sua voz de múltipla e irreal na lâmina de seu espelho,
timbre inigualável. F. faria imensurável falta
como um narciso incestuoso e pornográfico. O
em seu cotidiano, que tinha seu ápice com sua esperma de F. lavava os prantos cravados em
presença perturbadora. Diante do exposto, seus poros, vestígios platônicos do amor que
mal conseguira coser algumas palavras para
sentia (e sente) por R.
confeccionar uma resposta. Gozos e êxtases cíclicos e mútuos.
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9. Nosso personagem espreita da janela simples o horizonte brasiliense
Impossível possível; não sabe o tempo, que nem é dele. Continua estático. Ouve o ar, os
Por Leandro Bulhões carros, e começa a pensar que sabe. Nos seus passeios junto aos dias, nada
de compromisso com a história que está vivendo e que naquele momento
Como quem cumpre compromissos, chegou exatamente às ocupa seus pensamentos. Ele acabou se permitindo mais uma vez e, mais
17h00m e fechou a porta. Observou o seu redor e poucas coisas uma vez, será melhor ficar entregue ao mal-resolvido, ao amarelar das coisas
pareciam familiares. Os olhos demoraram por acostumar-se ao ou a deixar tudo tudo novamente pintado com suas cores emprestadas ao
quarto novo e pequeno, além disso, durante anos não havia tempo.
estabilidade no lar onde morava, mas havia na rua, lugar onde a
profundidade era atravessada por olhos, pernas e movimento, uma E assim, nasce e morre mais um amor. Esboça um sorriso na
memória que impedia seu bem-estar no cubículo. segurança de um pensamento: “O que me tranqüiliza é que as flores que
enfeitei o adro onde te encontravas foram todas retiradas do meu jardim”.
O quarto que acabara de se mudar era por demais perto às Vê a cama com o lençol alvo bem estirado e se aproxima, senta, e,
paredes, ficava tudo, por isso, colado às suas retinas e o perto perde vagarosamente, deita o corpo cansado se estirando naquele retângulo
sua coisa em meio às coisas e é assim que ele encarava o mundo: branco, agora com os pensamentos horizontalizados. Sente um cheiro de
coisas dentro de coisas, pessoas dentro de pessoas. As horas tarde, e já batendo às portas do universo onírico ouve qualquer balbucio de
pareciam maquinar um tempo fora de toda matéria, mas mesmo transeuntes que passam distantes da quadra 408 enquanto uma cigarra
assim, este tempo perpassava matérias visíveis e invisíveis, alisando corta como uma lâmina o vazio enorme de silêncio em Brasília em algum
seus dedos frios carinhosamente nas superfícies, às vezes arrancando palco incerto de árvores maiores do que os prédios.
sorrisos ingênuos.
COMO EU ME VEJO E COMO ME SINTO POR pude sentir em clara e boa nitidez as além dela e com essa frustração como posso
ISSO sensações que teria quando finalmente viver bem? Gosto de coisas trágicas e não
acontecessem. Sim, sim, eu também penso consigo vivê-las porque não pertencem mais
Por Ariela Mazé que sou louca. Não apenas por isso, óbvio, a esta vida, porque tudo que pertencia a esta
mas também porque diminuo o ritmo quando vida já me pertence. E se hoje, meu único
Gosto do modo como sempre preciso que caibam quatro passos dentro de consolo e motivo de perdas de noite são
acreditei muito que meus fins seriam trágicos um quadrado na rua, porque não gosto de imaginar os próximos quarenta anos que
e terríveis. Quantas noites perdi imaginando e beijar pessoas que comecem com a letra E, sinceramente não me interesso em viver,
criando rumos que eu iria tomar, pessoas que porque adoro cair no chão de tanto rir de algo então eu renuncio a isto, por que sou filha da
eu iria encontrar, mentiras que eu ia contar e sem graça, porque minha mãe jura de pés tragédia e assim é que tem que ser. A vida
ouvir, verdades que eu teria de engolir, junto que eu não amo minha família, porque imita a arte, a arte imita a vida, já disse
homens que eu viria a amar, mulheres que eu gosto de saber que sou igualzinha a todo alguém há muito tempo atrás...
viria desejar, sensações que eu iria procurar. mundo, mas todo mundo acha que sou
Destas noites, a melhor parte sempre era a diferente. Engraçado como eu sempre acho No dia 13 de março de 2010, perto
de sentir a dor e alegria que estes momentos que já vivi demais. Estou sempre cansada da das 15 horas da tarde, o coração de Ariela
futuros e incertos me proporcionariam, vibrar vida e de pensar a seu respeito. Às vezes me deixou de bater.
cada músculo do meu corpo com estes dá uma vontade de ver tudo terminado por
pensamentos e no fim, deitar e esperar o simples falta de desejo de viver um final que
amanhã que traria tudo aquilo, ou seja diferente do que eu já tenha imaginado.
simplesmente não traria nada. Com isso, já Um final que não seja trágico e terrível. Às
antecipei pelo menos 40 anos de vezes não quero mais nada da vida, porque
acontecimentos da minha vida, e juro que sinto que o tudo que eu desejo vai sempre
Até que ponto o ser humano se empenha em eliminar a dor e o sofrimento?
No romance A Rocha, Carlos Bohm começa narrando uma viagem de férias do casal de brasilienses, o executivo Valter e a
advogada Regina, intercalando os fatos com as viagens de cada um dos seus dois filhos. O casal vai para um sítio distante e, ao
descer um rio pedregoso com um caiaque, ficam presos em uma rocha à beira de uma alta cachoeira. O que farão para sair de lá se
ninguém os socorrer?
Valter é ambicioso, estressado e com pouca paciência; Regina é ansiosa, insegura e atordoada por lembranças familiares. São
feitos cortes para o passado dos dois e o leitor pode conferir as análises da terapeuta de Regina sobre toda a sua vida.
Todos querem evitar a dor, os sentimentos ruins, o sofrimento e as memórias. Na busca pela ausência total de tristeza e
ansiedade, os personagens são levados a diversos caminhos: agressividade e vícios em drogas, sexo e trabalho. Nessas trilhas pelas buscas de ilusões e
fantasias, todos querem ser escutados, mas ninguém quer ouvir.
O livro pode ser adquirido no site www.editoraschoba.com.br/loja
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10. Poeira de amor velho
Por Ligia Benevides
uma poeira de amor velho reside ainda nos quatro cantos da minha solidão. eu fico pensando em outras coisas durante o dia, mas à
noite sempre passo o dedo na ferida: fica na ponta do meu dedo o pó de ontem, acumulado, que vai morrer de tão velho. eu
converso com o meu amigo e ele me diz coisas tão lindas, mesmo eu estando cinza. a poeira se estende como um véu, cobrindo fotos,
textos, livros, a minha sombra na parede, o meu passado e o meu presente. é isso, é pó de passado, é pó que traz alergia pra minha
alegria, ela esvazia o pneu da minha bicicleta e mina minha paciência. essa poeira não me deixa amar de novo, não me deixa dar um
beijo livre, não me deixa. essa poeira entra no meu olho e então eu não lacrimejo - eu choro. a poeira entra no meu nariz, entope meu
pulmão, obstrui a minha garganta: vem um nó e eu tusso. eu passo um pano úmido pra tirar a poeira, mas ela é amiga do tempo e do
vento, e sempre vem; eu gosto do vento também. deixo as janelas abertas pra libertar o meu sufoco. mas abro dentro de mim um vão
por onde entra essa tristeza empoeirada, que eu combato com a poesia, o riso, o choro, o vinho, o gorfo, o mofo, o espirro, minhas
rimas baratas, meu descontrole, meu não. basta. poeira de amor velho me dá vertigem. meu eixo deslocado perde o prumo, eu nasci
meio torta, sou uma gambiarra. minha poeira - eu a tenho cá comigo - ela é meu passado, cansado de ser lembrado, ansioso por
libertar-se do pensamento, morrer, como um bom passado deve ser: morto e enterrado, levando consigo toda essa matéria-prima
que embasa minha poesia barata e minha prosa rarefeita de poesia cósmica. de poeira cósmica.
Durrel, Joy, Franco, Luzânia, Cuca, Café, Camila, Zana, eu e,
obviamente, todos os outros amigos do criador, comemos a
Chatasca por vezes, agora é sua hora de apreciar e conhecer a
verdadeira história desse prato. Conta a lenda que perguntaram
Talvez ou até muito provavelmente o título não estará a Raimundo Nonato o nome do prato e ele respondeu: Vem de
condizente com o texto, essa é a menor das minhas uma remota tribo africana e passada de geração em geração por
preocupações, pois a quem escrevo estará claro. meus ancestrais. Somos todos infinitamente semelhantes a Ray
Gosto de pensar nas críticas e me envaideço delas, com pequenas e ínfimas diferenças. Somos diferentes até de nós
principalmente a de leitores que não me conhecem, pois sei que mesmos e até iguais aos outros. Os acima citados muito mais
não serão impiedosos. Mais uma vez escrevo o cotidiano de que isso são igualmente diferentes. A receita é uma
minha vida, pois a mim, ela é como um filme de larga bilheteria, representação simbólica da união dessa família, e assim, do
concorrendo a premiações. Aos outros não sei, pois pouco me nosso jeito, recordar e sentir a saudade boa e saudável que nos
interesso. Mas, queiram ou não, farei um breve resumo das traz a memória quando se trata de Raimundo Nonato. E assim
novas desde a última edição das Farpas: Refugiei-me em um vale me despeço servindo a Chatasca aos amigos em minha casa e na
por três meses - lugar de maluco, gente como eu e diferente de próxima lavagem do beco a todos vocês.
todos - numa casinha com lareira e três cachorros - obviamente,
com Camila, Sheila e Zana. A proposta inicial era de ficarmos lá Chatasca
para sempre (Percebam como me reporto ao leitor como a um
amigo ao qual não vejo há muito). Pessoas fantásticas, lugares Ingrediantes:
lindos, comida saudável e farta, nenhuma noticia das mazelas do 1k de carne seca;
mundo, nada de TV ou jornal. A morte de Michel Jackson nós 1 k de calabresa;
soubemos dias depois e bebemos o morto por outros vários 1 k de feijão fradinho;
dias, enfim, um verdadeiro paraíso. Não me façam a pergunta Temperos: cebola, alho, pimentão, pimenta de cheiro e
clichê, saímos de lá porque somos inconclusivas, inconstantes e coentro, picadinhos e à gosto;
infinitamente insatisfeitas. Verduras: Banana da terra, abóbora e quiabo;
Aviso ao leitor que a falta de coesão e coerência do texto
não é proposital, é legitima, por isso e pra tudo isso, é muito Preparo:
difícil chegar à linha central de discussão que seria um Você deverá dessalgar a carne já cortada colocando-a
questionamento feito a Jean Michel em uma de nossas para ferver por duas vezes;
conversas no bar de Toinho, e ai vai: O que aproxima as pessoas Corte também a calabresa e reserve. Em uma Panela de
são as semelhanças ou as diferenças? Elimine desde já as pressão cozinha as carnes, acrescente depois os temperos a
semelhanças etárias, étnicas, raciais, ideológicas, genéricas, calabresa e o feijão, quando tudo estiver cozido acrescente as
opção sexual ou quaisquer outras óbvias. Naturalmente, fomos verduras e apague o fogo com as verduras ao dente.
para além disso, pensamos em semelhanças e diferenças Sugestão: transfira tudo pra uma bela panela de barro e
filosóficas. Consegue você responder? “qualquer coisa que se sirva acompanhado de arroz e molho lambão.
sinta, com tanto sentimento tem haver algum que sirva”
(socorro de Arnaldo Antunes). Rô
Leo Pó, Nancy, Cau, Jean, Cezinha, Zai, Giba, Aline, Acton, Rosangela Mercês
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