A interpretacao das escrituras [ capitulo 3 ]A.W PINK
1. A Interpretação das Escrituras
A. W. Pink
Capítulo 3
O capítulo anterior tratou de algumas das qualificações mais elementares (embora
essenciais) que obrigatoriamente têm de caracterizar qualquer pessoa que deseje penetrar
o significado espiritual das Sagradas Escrituras. Expusemos o assunto de forma que
servisse a todo o povo de Deus em geral. Neste capítulo, no entanto, nos propusemos a
tratar das coisas que dizem mais respeito àqueles que Deus chamou para pregar e ensinar
a Sua Palavra: aqueles cujo tempo todo e todas as energias estão devotados à procura do
bem-estar das almas, e para equipar-se melhor para essa tão grande, solene e importante
obra. A sua principal incumbência é proclamar a verdade de Deus, exemplificando e
recomendando a sua mensagem por meio de diligente esforço para praticar o que
pregam, apresentando aos seus ouvintes um modelo pessoal de piedade prática. Uma vez
que é a Verdade que eles pregam, não devem medir esforços para que nenhum erro se
misture na pregação, de forma que seja o genuíno leite da Palavra que eles distribuam.
Pregar o erro em lugar da verdade não somente é grave desonra para Deus e Sua Palavra,
mas desencaminha e envenena a mente dos ouvintes ou leitores.
A tarefa do pregador é a mais honrosa e a mais solene de todas, a mais
privilegiada e ao mesmo tempo a que envolve maior responsabilidade. Ele declara ser
um servo do Senhor Jesus Cristo, um mensageiro enviado pelo Altíssimo. Representar
mal o seu Mestre, pregar qualquer outro Evangelho diferente do dEle, falsificar a
mensagem que Deus confiou sob sua responsabilidade, é o maior dos pecados, o qual
faz descer sobre ele o anátema do céu (Gálatas 1.8), e será visitado pelo mais severo
castigo que alguém possa imaginar. As Escrituras declaram abertamente que a medida
mais pesada da ira de Deus se destina aos pregadores infiéis (Mateus 23.14; Judas 13).
Por isso, a seguinte advertência: “não vos torneis, muitos de vós, mestres, sabendo que
havemos de receber maior juízo” (Tiago 3.1) se não agirmos com fidelidade. Todo
ministro do Evangelho, que se diz chamado por Deus, terá de prestar contas da sua
administração perante Aquele que o chamou para alimentar as Suas ovelhas (Hebreus
13.17), e responderá pelas almas que lhe foram confiadas para cuidar. Se ele falhar em
avisar o ímpio com toda a diligência, e o ímpio morrer em sua iniquidade, Deus declara:
“o seu sangue da tua mão o requererei” (Ezequiel 3.18).
Dessa forma, a principal e a mais constante obrigação do pregador é ajustar-se à
seguinte ordem: “Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de
que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2 Timóteo 2.15). Em toda a
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Escritura Sagrada, não há exortação endereçada aos pregadores que seja de importância
maior do que essa, e poucas se igualam a ela. Sem dúvida essa é a razão por que Satanás
se empenha tanto na tentativa de obscurecer as suas duas primeiras cláusulas pela
artimanha de colocar uma nuvem de poeira sobre a última. A palavra grega traduzida
aqui como “procura” sugnifica “aplica-te”: não poupe esforços, mas faça disso —
agradar o seu Mestre — a sua suprema preocupação e o seu constante esforço. Não
procure os sorrisos e as bajulações dos vermes da terra, mas trabalhe pela aprovação do
Senhor. Isso tem de vir antes de tudo: senão será vã qualquer atenção que se dê à segunda
coisa mencionada. Subordine todos os outros alvos ao esforço de você ser aprovado diante
de Deus — seu próprio coração e caráter, sua maneira de agir e seu andar diante dEle,
ordenando todos os seus caminhos de acordo com a Sua vontade revelada. De que
valem o seu “serviço”, o seu ministério — se Ele estiver descontente com você?
“Um obreiro que não tem de que se envergonhar”. Seja consciencioso, diligente,
fiel no uso que faz do seu tempo e dos talentos que Deus lhe confiou. Lembre-se
constantemente do seguinte preceito: “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o
conforme as tuas forças” (Eclesiastes 9.10) — ponha nisso o seu melhor. Seja diligente e
persistente, não negligente e relaxado. Cada coisa que fizer, tente ver sempre a melhor
forma de fazê-lo, não simplesmente a mais rápida.
A palavra grega traduzida como “obreiro” também pode ser traduzida como
“trabalhador”. O ministério não é lugar para pessoas levianas e preguiçosas, mas para
aqueles que estão preparados a se gastar, a ser gastos na causa de Cristo. O pregador
deveria trabalhar mais que o mineiro, e gastar mais horas semanais no estudo do que um
homem de negócios gasta em seu escritório. Um obreiro é o exato oposto do mandrião.
Se o pregador quiser apresentar-se aprovado diante de Deus e ser um obreiro que não
tem de que se envergonhar, então terá de trabalhar enquanto os outros dormem, e deve
suar mentalmente.
“Medita estas coisas e nelas sê diligente, para que o teu progresso a todos seja
manifesto. Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina. Continua nestes deveres; porque,
fazendo assim, salvarás tanto a ti mesmo como aos teus ouvintes” (1 Timóteo 4.15,16).
Essa é outra parte da ordem de Cristo para com aqueles que O servem publicamente,
uma ordem clara e exigente. Ele requer que eles coloquem o coração no trabalho, que
dediquem inteiramente os pensamentos a ele, que se disponham completamente para
esse trabalho, que lhe devotem todo o tempo e toda a força para executá-lo. Eles têm de
se abster de toda atividade secular e de todo emprego mundano, e mostrar toda a
diligência na tarefa que lhes foi confiada. As diferentes formas de designar esses
trabalhadores mostram que é uma tarefa árdua. Eles são chamados de “soldados” para
denotar o esforço e a fadiga que decorrem de uma correta execução do seu chamado;
“supervisores e sentinelas” para declarar o cuidado e a preocupação que fazem parte do
seu ofício; “pastores e mestres” para indicar os variadas responsabilidades de liderar e
nutrir aqueles que estão debaixo do seu cuidado. Mas em primeiro lugar e acima de tudo
eles têm de prestar atenção ao seu próprio crescimento em graça e piedade, se quiserem
ministrar com eficiência aos outros.
Em particular, o ministro tem de preocupar-se com o mandamento “Tem cuidado
de ti mesmo” com respeito ao estudo das Escrituras, lendo-as com devoção para proveito
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próprio, antes de fazê-lo profissionalmente, ou seja, procurando sua aplicação e bênção
para a sua própria alma antes de procurar material para algum sermão. Hervey, o santo
homem de Deus, o expressou desta forma: “Que sempre nos deixemos influenciar,
quando estudarmos os oráculos da verdade. Estude-os, não como os críticos insensíveis,
que se preocupam só em julgar-lhes o sentido, mas façamo-lo como pessoas
profundamente interessadas em tudo que eles contêm. Façamo-lo como aqueles a quem
se dirige em particular cada exortação, e a quem se dirige cada mandamento. Estudemos
como aqueles para quem são as promessas, e a quem pertencem os preciosos privilégios.
Quando formos capacitados dessa forma a entender e a nos apropriar do conteúdo desse
inestimável Livro, então haveremos de provar a doçura e sentiremos o poder das
Escrituras. Então haveremos de provar alegremente na prática que as palavras do nosso
divino Mestre não são apenas sons e sílabas, mas que são espírito e são verdade”.
Ninguém pode distribuir continuamente alimento fresco e saboroso, a não ser que ele
mesmo também o esteja constantemente recebendo. Aquilo que ele vai anunciar aos
outros é o que os seus próprios ouvidos ouviram primeiro, seus próprios olhos viram,
suas próprias mãos tocaram (1 João 1.1,2).
Meramente recitar as Escrituras no púlpito não é suficiente — as pessoas podem
familiarizar-se com a letra da Palavra por meio da leitura em casa; a grande necessidade é
a exposição e aplicação das Escrituras: “Paulo, segundo o seu costume, ... , arrazoou com eles
acerca das Escrituras, expondo e demonstrando ter sido necessário que o Cristo
padecesse e ressurgisse dentre os mortos” (Atos 17.2,3). “Expôr” as Escrituras de
maneira que beneficie os santos é algo que requer mais dos que alguns meses de
treinamento nalguma Escola Bíblica, ou um ano ou dois nalgum Seminário. Ninguém a
não ser aqueles que foram pessoalmente ensinados por Deus na difícil escola da
experiência estão qualificados a “expôr” a Palavra de forma que a luz de Deus se projete
sobre os problemas espirituais do crente, pois ao mesmo tempo que as Escrituras
interpretam a experiência, a experiência muitas vezes é a melhor intérprete das
Escrituras. “O coração do sábio instrui a sua boca, E põe o saber nos seus lábios”1
(Provérbios 16.23), e esse “saber” não se adquire em nenhuma escola humana. Ninguém
aprende o que é humildade por meio de uma concordância, nem obtém mais fé
estudando certas passagens das Escrituras. Humildade se aprende por meio da dolorosa
descoberta da praga que existe em nosso coração, e a fé aumenta à medida que
estreitamos nosso relacionamento com Deus. Nós mesmos temos de receber conforto
da parte de Deus antes que possamos confortar os outros (2 Coríntios 1.4).
“Meramente procurar novas percepções da Verdade, sem esforçar-se por
experimentar o seu poder em nosso coração — essa não é a maneira de aumentar nosso
entendimento espiritual das coisas. Somente aquele que sinceramente submete a mente,
a consciência e as afeições ao poder e à direção daquilo que lhe é revelado é que está em
condições de ser ensinado por Deus. É possível que os homens tenham outros objetivos
quando estudam as Escrituras, como por exemplo conseguir algo proveitoso e edificante
para os outros. Mas se antes de tudo eles não tiverem bem assentado em sua mente a
resolução de submeterem a própria alma ao poder da Palavra, eles não estarão se
esforçando de forma adequada, nem serão recompensados. E, se em qualquer ocasião,
1 Versão da Tradução Brasileira.
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quando estivermos estudando a Palavra, não tivermos esse alvo expresso em mente,
quando, ao descobrirmos alguma verdade, não nos esforçarmos por adequar o coração a
essa verdade, perdemos dessa forma o principal benefício do nosso estudo” (John
Owen). É de temer que muitos pregadores tenham de lamentar no futuro: “...me
puseram por guarda de vinhas; a vinha, porém, que me pertence, não a guardei”
(Cantares 1.6) — como um cozinheiro que prepara refeições para os outros mas ele
mesmo morre de fome.
Enquanto medita na Palavra durante as suas devoções, ele também deve estudá-la
cuidadosamente enquanto a lê. Se ele quiser tornar-se hábil em alimentar seu rebanho “com
o trigo mais fino” (Salmo 81.16), então obrigatoriamente tem de estudar diligentemente
e a cada dia, e isso por toda a vida. Infelizmente, há muitos pregadores que abandonam
o hábito de estudar tão logo são ordenados! A Bíblia é uma fonte inexaurível de tesouro
espiritual, e quanto mais se abrem as suas riquezas (por meio de diligente escavação),
tanto mais percebemos o quanto permanece por descobrir, e quão pouco nós realmente
entendemos daquilo que já recebemos. “Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito,
não aprendeu ainda como convém saber” (1 Coríntios 8.2).
Não se consegue compreender a Palavra de Deus sem um constante e diligente
estudo, sem um cuidadoso e reverente exame do seu conteúdo. Isso não quer dizer que
ela seja misteriosa e obscura. Não, ela é tão clara e inteligível como alguma coisa pode
ser, adequada da melhor maneira possível para dar instrução nas coisas santas e
profundas de que ela trata. Mas ninguém consegue ser instruído mesmo usando os
melhores meios de instrução que existem, se não se esforçar para aprender. O
entendimento não é prometido ao negligente e preguiçoso, mas ao diligente e esforçado,
àquele que procura o tesouro espiritual (Provérbios 2.3,5). As Escrituras têm de ser
examinadas, examinadas diariamente, persistentemente e perseverantemente, se o
ministro deseja tornar-se inteiramente familiar com o todo da revelação de Deus, e se ele
quiser apresentar aos seus ouvintes “um lauto banquete”. Diz-se o seguinte, a respeito
do pregador sábio: “ensinou ao povo o conhecimento; e, atentando e esquadrinhando”
até “Procurou o Pregador achar palavras agradáveis” (Eclesiastes 12.9,10); a sua alma
estava inteiramente dedicada em descobrir tanto as melhores coisas para ensinar, como a
melhor maneira de fazê-lo.
Nenhum pregador deveria contentar-se em ser menos do que um homem
“poderoso nas Escrituras” (Atos 18.24). Mas para alcançar isso, ele tem de subordinar
todos os outros interesses. Um antigo escritor o colocou de forma singular: “O pregador
deveria agir com seu tempo como o avarento com seu ouro — deveria poupá-lo
cuidadosamente, e gastá-lo com cautela”. Ele também precisa lembrar-se
constantemente de quem é o Livro que vai estudar, de forma que sempre o maneje com a
maior reverência, e possa declarar: “o meu coração teme é a tua palavra” (Salmo
119.161). Ele precisa aproximar-se dele com mentalidade humilde, porque é somente aos
humildes que Deus “dá maior graça”. Ele precisa sempre aproximar-se do Livro em
espírito de oração, suplicando “o que não vejo, ensina-mo tu” (Jó 34.32): a iluminadora
graça do Espírito haverá muitas vezes de revelar mistérios aos mansos e dependentes,
mistérios que se mantêm ocultos dos mais estudados e instruídos. Um coração santo é
igualmente indispensável para receber a verdade sobrenatural, porque o entendimento é
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esclarecido quando o coração é purificado. Que haja também uma humilde expectativa
do auxílio divino, porque também aqui se aplicam as palavras de Jesus: “seja feito
conforme a vossa fé”.
É somente quando presta atenção ao que foi dito no parágrafo anterior que se
lançam os fundamentos para qualquer homem tornar-se um competente expositor. A
tarefa que lhe é apresentada é expôr, com clareza e exatidão, a Palavra de Deus. O seu
negócio é inteiramente exegético — descobrir o verdadeiro sentido de cada passagem
com que lidar, quer estejam de acordo com suas próprias opiniões quer não. Da mesma
forma que o tradutor transmite o verdadeiro sentido do hebraico e do grego para o
português, assim o intérprete tem de compreender e comunicar as idéias precisas que a
linguagem bíblica pretendia transmitir. Nas palavras do renomado Bengel, “Um
expositor deveria ser como alguém que abre uma vertente: ele não coloca água ali; o seu
objetivo é fazer com que a água flua, sem desvios, sem obstruções, sem poluição”. Em
outras palavras, ele não deve tomar a menor liberdade com o texto sagrado, nem deve
lhe dar um sentido que não lhe seja legítimo; nem deve modificar a sua autoridade, nem
sobrepôr a ela qualquer coisa que seja dele mesmo, mas procurar emitir o seu verdadeiro
significado.
Concordar com o que acabamos de dizer exige da parte do intérprete uma
aproximação imparcial, um coração honesto, e um espírito fiel. “Nada deveria ser
extraído do texto senão aquilo que é permitido pela exposição clara e gramatical da
linguagem” (P. Fairbaim). É fácil concordar com isso, mas muitas vezes é difícil colocá-
lo em prática. Evitar aquilo que condena o pregador, uma predisposição mental a
determinada doutrina, o desejo de agradar os ouvintes — não são poucos os que têm
sido influenciados por isso para esquivar-se do claro sentido de certas passagens,
impingindo-lhes significados completamente diferentes do que realmente significam.
Lutero disse: “Não devemos fazer a Palavra de Deus significar o que nós queremos. Não
devemos subjugar a ela, mas permitir que ela nos subjugue a nós, e conceder-lhe o respeito
de ser melhor do que nós poderíamos torná-la”. Qualquer coisa diferente é altamente
condenável. É sempre necessário tomar muito cuidado para não expormos a nossa
própria mente em vez da mente de Deus. Não há nada mais censurável do que alguém
dizer “Assim diz o Senhor” quando está meramente expressando os seus próprios
pensamentos. Contudo, quem nunca fez isso, mesmo que inconscientemente?
Se a lei exige que o farmacêutico siga exatamente a prescrição médica, se os
oficiais militares têm de transmitir ao pé da letra as ordens dos seus comandantes ou
então sofrer severas penalidades, quanto mais é responsável por ater-se estritamente ao
livro texto aquele que lida com as coisas eternas e divinas! A responsabilidade do
intérprete é imitar aqueles que são descritos em Neemias 8.8, de quem se diz o seguinte:
“Leram no livro, na Lei de Deus, claramente, dando explicações, de maneira que
entendessem o que se lia”. A referência é aos que tinham retornado à Palestina, vindos
da Babilônia. Enquanto estavam no cativeiro, aos poucos pararam de usar o hebraico
como a língua falada. O aramaico tomou-lhe o lugar. Portanto, havia uma real
necessidade de explicar as palavras hebraicas, língua em que a Lei estava escrita (cf.
Neemias 13.23,24). Contudo o registro desse incidente sugere que isso é de importância
permanente, e contém uma mensagem para nós. Pela boa providência de Deus, há pouca
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necessidade hoje de que o pregador explique o hebraico e o grego, uma vez que
possuímos uma tradução fiel dessas línguas para nossa própria língua materna —
embora ocasionalmente, raramente, ele tenha de fazer essas explicações. Mas a sua tarefa
principal é “dar explicações” da Bíblia em português e levar os seus ouvintes a
“entender” o seu conteúdo. A sua responsabilidade é ater-se estritamente à seguinte
ordem: “fale a minha palavra com verdade. Que tem a palha com o trigo? — diz o
SENHOR” (Jeremias 23.28).
Tradução: Helio Kirchheim