3. Para escrever Memorial do Convento, Saramago viu-se obrigado a estudar as
bases históricas e a preencher as lacunas deixadas nos documentos históricos.
O romance apresenta-se como questionador, na medida em que não aceita as
imposições feitas pelos historiadores em relação a uma verdade una na
História.
José Saramago vislumbrou a parcela de subjetividade da História, uma vez que
conseguiu perceber que os produtores do discurso histórico possuem
ideologia, determinados pontos e que, ao decodificarem tais documentos,
acabam por preencher as lacunas existentes entre os documentos com um
ponto de vista subjetivo.
“Entra aí o novo olhar do ficcionista que se quer historiador de uma nova
História, pois o Memorial do Convento rebela-se contra a visão de uma história
que coloca o rei como sujeito da ação de “erguer” o convento de Mafra” .
4. Memorial do Convento pretende essencialmente reinventar a História
através da ficção, não só para resgatar do anonimato o povo humilde que é
assumido como o verdadeiro herói construtor do Convento de Mafra, mas
também para garantir os seguintes aspetos:
- o empenhamento crítico do leitor face a todas as formas de repressão
que limitam a liberdade do ser humano ao longo de todos os tempos
(através de Blimunda, que recolhe a alma de Baltasar quando este é
condenado, Saramago representa a sobrevivência do povo, quando a
repressão atinge requintes de sadismo);
- a compreensão do destino do homem, da sua grandeza e dos seus
limites, procurando a sua realização plena através do trabalho, do sonho,
do amor, da fé e do mistério…
5. ● Significado de MAFRA
« (…) e a vila, lá em baixo na cova, é Mafra, que dizem os eruditos
ser isso mesmo o que quer dizer, mas um dia se hão-de rectificar os
sentidos e naquele nome será lido, letra por letra, mortos,
assados, fundidos, roubados, arrastados (…)»
► Segundo alguns críticos, o povo trabalhador constitui o
verdadeiro herói de Memorial do Convento. O herói deficiente,
feio, rude e, às vezes, violento: não tardaria que se começasse a
dizer que isto é uma terra de defeituosos, um marreco, um
maneta, um zarolho…, porém, verdades são verdades.
6. “...Resumindo as suas razões naquilo que, em seu entender, significavam as cinco
letras de Mafra:
o M de mortos,
o A de assados,
o F de fundidos,
o R de roubados,
o A de arrastados.
Assim via aquele abade beneditino os milhares de desgraçados que, mais ou menos
de toda a terra portuguesa, a esta obra vieram, forçados pela vontade do Senhor D.
João V. Não quero, nem por sombras, insinuar que no desabafo desta indignação tão
santa tenham pesado ciúmes da Ordem de S. Bento por causa do estupendo edifício
de que iam passar a gozar-se os franciscanos...”
José Saramago, Cadernos de Lanzarote, Diário III, Ed. Caminho. Lisboa 1996, pp.164/165
7. Ao escrever o seu Memorial, o ficcionista propõem-se resgatar o papel
dos oprimidos, dos 40 mil operários que humildemente sofrem e se
esforçam por sobreviver durante a construção do monumento: Deve-se a
construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se
lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho
nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam.
(Cap. XIX)
Não se pense, contudo, que estamos simplesmente perante uma massa
coletiva e anónima. Para além de Baltasar e Blimunda, o autor cria uma
pequena galeria de homens-trabalhadores: Francisco Marques, Pêro
Pinheiro, José Pequeno, João Anes e outros. São ainda individualmente
caracterizados os familiares de Baltasar, residentes em Mafra, e João
Elvas, companheiro das primeiras aventuras.
8. ► O verdadeiro protagonista de Memorial do Convento é o povo
trabalhador. Espoliado, rude, violento, o povo atravessa toda a
narrativa, numa construção de figuras que, embora corporizadas por
Baltasar e Blimunda, tipificam a massa coletiva e anónima que
construiu, de facto, o convento. A crítica e o olhar mordaz do narrador
enfatizam a escravidão a que foram sujeitos quarenta mil portugueses,
para alimentar o sonho de um rei megalómano ao qual se atribui a
edificação do Convento de Mafra.
● Razão do livro: homenagem coletiva aos trabalhadores
“ (…) só para isso escrevemos, torná-los imortais( …)”
(Cap. XIX)
9. Todos aqueles que não podem ser caracterizados são, ao menos,
nomeados, numa derradeira homenagem: Alcino, Brás, Cristóvão…
uma letra de cada um para ficarem todos representados.
Esta passagem textual pode ser interpretada como síntese da
relação História – Verdade.
(na realidade contemporânea, quantos nomes de trabalhadores
anónimos serão lembrados nas cerimónias de inauguração?)
10. Memorial do Convento é uma obra que:
•Caracteriza uma época de excessos e diferenças sociais:
opulência/miséria, poder/opressão, amor ausente/amor sincero.
•Oferece-nos uma descrição minuciosa da sociedade portuguesa do
início do século XVIII, preocupando-se com a realidade social.
•Visa denunciar a história repressiva portuguesa da primeira metade do
século XX ( ditadura Salazarista).
•Revela a necessidade do autor em repensar os acontecimentos e figuras
históricas à luz de uma nova realidade criada no presente e pressentida
no futuro.
•Preocupa-se com o ser humano, a sua miséria e as suas lutas, as
injustiças, a sua grandeza e os seus limites.