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A ESTÉTICA DA CIDADE NO SÉCULO XIX
Rodrigo Espinha Baeta
Professor da Universidade Tiradentes (UNIT), Rua Lagarto, 264, Aracaju / SE. CEP.: 49010 - 390
Mestrando pelo PPGAU da Universidade Federal da Bahia (UFBA) , Rua Caetano Moura, 121. CEP.:
40210 - 350
A revolução industrial gera uma série de transformações na estrutura urbana tradicional, definindo uma
nova atitude estética frente ao problema da cidade. Em um primeiro momento, compreendido aqui
como “cidade liberal’, as intervenções acontecerão em função da grande demanda habitacional, com um
mero intuito especulativo, tanto no adensamento do antigo núcleo histórico, como no surgimento do
fenômeno da periferia, onde aparecerão os imensos e monótonos bairros operários, e os subúrbios
jardins das classes mais abastadas. Nenhum destes elementos propõem qualquer solução de
continuidade à secular unidade estética das cidades preexistentes, rompendo, assim, a sua leitura
artística.
Porém, a partir de meados do século XIX, grandes iniciativas urbanas, geridas desta vez pela iniciativa
pública, vão incidir implacavelmente neste quadro de desolação. A compreensão da cidade enquanto
“manufatura”, vai transferir o interesse artístico para a dinâmica da vida moderna. A rua será o elemento
principal, que absorve todos os outros, antecipando uma realidade que se tornará latente na pesquisa
urbanística do movimento moderno.
1. Introdução: (A problemática da cidade industrial. O rompimento com o espaço
urbano tradicional)
"A cidade antiga (compreendida até a cidade barroca do século XVIII) mudava
assim tão lentamente que podia a qualquer momento considerar-se imutável por
tempo indefinido. Conceber uma praça, um quarteirão ou uma cidade inteira
significava impor-lhe de uma vez para sempre, uma forma arquitetônica precisa,
dotada de margens suficientes para absorver sem modificações os previsíveis
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crescimentos futuros; por outras palavras, significava aplicar a uma realidade em
movimento lentíssimo a maior aproximação possível de uma imagem de facto
invariável.
Mas esta aproximação toma-se cada vez mais difícil à medida que aumenta a
velocidade das transformações, enquanto a cultura liberal destrói a confiança na
iniciativa autoritária, da qual depende a possibilidade de levar a cabo, com
coerência, este tipo de operação. Por isso, a partir de meados dos anos 700 enquanto a arquitectura atingia por si própria o máximo apuramento no
planejamento dos espaços monumentais e na sua harmonização com a paisagem
urbana ou natural - diminui a coerência executiva e a capacidade de atuar
duradoiramente, com semelhantes meios, no tecido da cidade".1
Na citação introdutória, Benevolo expõe o momento chave para a desarticulação da
construção estética do espaço visual da "cidade tradicional", e o aparecimento da nova
realidade urbana da chamada "cidade liberal". 2
É certo que as cidades no final do século XVIII e início do XIX, principalmente em
países que consolidavam seu desenvolvimento industrial (inicialmente Inglaterra,
depois França, Alemanha, etc.), passaram por uma expansão até então inimaginável.
Foram duas as causas imediatas deste aumento de dimensão: o crescimento
populacional a partir de meados do século XVIII, devido à diminuição da taxa de
mortalidade, e o fluxo migratório de grande parte da população do campo em direção
aos centros industriais, cada vez mais concentrados nas áreas urbanas. Por sua vez,
para o deslocamento da indústria em direção às cidades, concorreram o grande
contigente de mão de obra oferecida pelos centros urbanos, além do desenvolvimento
dos meios de transporte, as autopistas de pedágio, os canais navegáveis, o barco a
1
BENEVOLO, Leonardo. As origens da urbanística moderna. Editorial Presença: Lisboa, 1987. pag.
24.
2
BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. Editora Perspectiva: São Paulo, 1997. pag. 565.
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vapor e principalmente a estrada de ferro, possibilitando o deslocamento fácil da
matéria prima para as fábricas, e dos produtos acabados para o mercado. 3
As antigas cidades Inglesas e posteriormente alguns centros urbanos do continente,
até então em grande parte limitados pelas muralhas medievais e renascentistas, se
tornam o palco da maioria das transformações da nascente era industrial. A cidade
deixa de ser um organismo fechado para assumir o papel de centro da nova realidade
urbana, da metrópole em formação.
Porém, o antigo núcleo desta cidade medieval, renascentista ou barroca, não é capaz
de satisfazer adequadamente a condição de área central deste grande universo em
assentamento. A sua estrutura, que sempre se adaptou e se modernizou
coerentemente às novas demandas ao longo dos séculos, torna-se funcionalmente
precária.
Imediatamente ocorre um abandono deste centro por parte das classes mais
abastadas, a procura de melhores condições de habitabilidade. As poucas áreas livres
deste núcleo urbano são rapidamente parceladas pelos especuladores para acolher a
classe trabalhadora bem como os antigos edifícios da nobreza e da burguesia, que
viram verdadeiros cortiços.
Assim, esta primeira fase de gênese da cidade contemporânea, é caracterizada por
uma corrosão completa da realidade urbana, seja esta degeneração ambiental, social
ou estética. A única lógica, a única lei perseguida pelos especuladores, era a do maior
lucro possível. Para a classe proletária, maioria absoluta da população, era oferecido o
espaço mínimo, articulado de forma a conseguir um maior número de habitações por
unidade de área e com um menor custo.
3
"Este conjunto de transformações originou a mudança de domicílio e de modo de vida da maior parte
da população inglesa, e modificou a utilização do solo e a própria paisagem. É totalmente nova a
natureza dos fenômenos - a multidão dos habitantes, o número de novas casas, a capacidade das novas
zonas industriais e comerciais, os quilômetros de novas estradas e canais, o número de veículos que
circulam nas estradas da cidade - e a velocidade de transformação não tem precedentes: cidades que
nascem e duplicam numa geração, iniciativas especulativas que se concretizam prontamente em
estabelecimentos, estradas, canais e minas abertas em poucos anos na paisagem agreste, altos fomos e
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Mas, este centro urbano degradado também não consegue, por outro lado, absorver a
demanda habitacional da classe operária, que, da mesma forma que os mais ricos,
precisa buscar alternativas de moradia fora do antigo organismo. Surge o fenômeno
da "periferia". 4
Esta periferia assume formas variadas. Por um lado os bairros de luxo, subúrbios
pouco densos, com as habitações em meio à "natureza", viáveis para a especulação
imobiliária em função do alto custo das edificações, destinadas àquela população
abastada que deixa o antigo núcleo urbano em busca de melhores condições
ambientais.
"As primeiras realizações de subúrbios datam de finais do século XVIII. São
bairros construídos no tempo de Jorge II, nos arredores de Londres, com
habitações de qualidade em meio a jardins e parques. Correspondem à ideologia
de conciliação do campo com a cidade, da habitação em meio à Natureza, com
loteamentos privados, de baixa densidade (...) com habitações que se abrem sobre
grandes espaços verdes, relvados e bosques."5
Por outro lado, proliferam os grandes bairros operários, de altíssima densidade,
condições mínimas de habitabilidade. Da mesma forma que as casas e os cortiços
edificados na área central, a única lei que rege a construção destes bairros é a lei de
mercado, seguida pelos especuladores imobiliários: a densidade edificada maior
possível, os piores materiais, a menor dimensão das milhares de habitações, para que
se obtenha o máximo lucro com a quantia ínfima que o trabalhador poderia pagar de
aluguel.
chaminés apontando para o céu ao lado das torres das catedrais". BENEVOLO, Leonardo. Opus cit.
1987. pag. 20.
4
"El crecimiento rapidísimo de las ciudades en la época industrial produce la transformación del núcleo
precedente (que se convierte en e/ centro del nuevo organismo) y la formación alrededor de este núcleo
de un nuevo cinturón construido: la periferia. "BENEVOLO, Leonardo. Opus cit. 1979. pag. 23.
5
LAMAS, José M. Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. Fundação Calouste
Gulbenkian, Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica: Lisboa, 1992. pag. 206.
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A periferia também será o lugar das grandes áreas industriais, dos depósitos, das
instalações técnicas, etc.. Mas o problema é que, independente da dimensão que
adquire o novo complexo urbano, as novas "partes" da cidade não propõem uma
solução de unidade à secular continuidade histórica e espacial da realidade
preexistente. Este rompimento brusco com a tradição de locus unitário dos antigos
núcleos urbanos, é efetivado sem se propor, inicialmente, nenhuma alternativa. A
cidade, antes espaço e símbolo da segurança física e existencial do homem,
transforma-se em estrutura desarticulada, fragmentária, não fruível enquanto uma
urbis em seu sentido etnológico.
"Que sentimento de cidade pode ter ou conservar o operário que vive nas 'lindas
casinhas', da aldeia empresarial ou nos tétricos bairros populares situados na
periferia para evitar o atravessamento 'pendular' da cidade? (...) 'Ir ao centro'
será, para ele, uma façanha, como era outrora 'ir à cidade 'para os habitantes do
condado."6
Esta fragmentação geral da estrutura urbana, exposta por Argan na citação acima, será
implacável para a leitura estética do espaço, já que a unidade artística é pressuposto
básico para qualquer percepção estética. 7
Todos elementos arquitetônicos ou urbanísticos da cidade anterior à revolução
industrial, possuíam uma participação efetiva na construção da imagem total do
ambiente. Mas, nenhuma das transformações da nova "cidade liberal" propõe uma
solução de continuidade com a estrutura existente. Não busca a integração de seu
espaço no tecido urbano anterior nem tampouco a sua modernização, a transformação
6
7
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Martins Fontes: São Paulo, 1993.
pag. 230-231.
Obviamente, a sensibilização artística que a cidade propõe, apresenta-se articulada de forma bastante
diversa das outras categorias estéticas. Segundo Rossi, a complexidade das relações espaço-temporais
são a chave para a compreensão estética da cidade. A coexistência de diversas épocas, a construção
gradativa no tempo, a não existência de um partido conciliador, o compromisso destas inúmeras
realidades históricas com diretrizes quase sempre não formuladas institucionalmente, oferecem a real
qualidade estética do espaço, qualidade esta que não pode simplesmente ser apreendida imediatamente
com o olhar, mas requer a vivência intensa. ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. Martins Fontes:
São Paulo, 1995.
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sistemática da imagem do ambiente, como era o caso das intervenções barrocas
anteriores. As intervenções na "cidade liberal" não se enquadram de forma alguma no
espaço preexistente. Simplesmente existem individualmente resolvendo seus
problemas especulatórios e funcionais, produzindo uma fragmentação que é
inconciliável com a condição artística. Os novos elementos espaciais, as periferias,
não procuram mais, através de relações hierárquicas complexas, compor uma imagem
estética única.
"La periferia no es un pedazo de ciudad ya formado como los ensanches medievales
o barrocos, sino un territorio libre en que afluye un gran número de iniciativas
independientes. ( ... ) Hasta un cierto punto estas iniciativas se funden en un tejido
compacto que, sin embargo, no ha sido previsto o calculado por nadie. (...) En Ia
periferia industrial se pierde Ia homogeneidade social y arquitectónica de Ia
ciudad antigua."8
2. O lugar da estética nas primeiras manifestações do urbanismo moderno.
No primeiro capítulo foram analisadas as transformações na cidade, oriundas da nova
realidade expressa com a revolução industrial, e as suas conseqüências drásticas no
plano urbano, e particularmente no que diz respeito à estética. Porém, no início do
século XIX 9 , a situação precária dos aglomerados urbanos e principalmente da classe
trabalhadora que neles habitava, toma proporções tão descomunais, que começa a
ameaçar sistematicamente até mesmo a burguesia dominante, seja por questões de
saúde pública, seja por possibilidades concretas de revoltas sociais.
Fato é que a casa do trabalhador nas grandes cidades industriais, não se apresenta
verdadeiramente pior do que as edificações do meio rural. Em alguns aspectos até
8
9
BENEVOLO, Leonardo. Opus cit. pag.24
"Convém portanto buscar as origens do urbanismo moderno na época em que as situações de facto se
concretizaram em medida suficiente para provocar não somente o mal-estar, mas também o protesto
das pessoas nelas envolvidos; aqui o discurso histórico deve ser necessariamente alargado das formas
de povoamento à problemática social da época, mostrando o correcto posicionamento da urbanística
moderna como parte da tentativa em curso para estender a todas as classes os benefícios potenciais da
revolução industrial, e pondo a claro de uma vez por todas a inevitável implicação política inerente ao
debate técnico." BENEVOLO, Leonardo. As origens da urbanística moderna. Editorial Presença:
Lisboa, 1987. pag. 44.
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ocorreram melhorias efetivas. Porém, ao contrário da situação anterior, as casas
operárias dos centros industrias apareciam agregadas a outras milhares de habitações,
alta densidade em dimensão colossais, determinando a produção incontrolável de
dejetos, dos "miasmas" causadores das doenças físicas e sociais.
Segundo Bresciani10 , o reaparecimento da peste (o cólera) no início do século XIX,
abre o debate, as preocupações com as condições urbanas da sociedade industrial, e
oferece o caminho para o início da busca da "problematização das cidades", o que
caracterizará o urbanismo em florescimento.
Para Beguin 11, outro fator de aceleração das pesquisas empreendidas para o
melhoramento das condições de vida na cidade moderna, foi o medo dos desajustes
sociais causados por um meio tão sujo, deplorável, promíscuo:
"0 custo social do desconforto, sobre o qual insistirão as pesquisas posteriores, é a
desagregação das famílias, a dissolução da 'humanidade" o desenvolvimento de
hábitos e tendências anti-sociais."12
Neste universo, desenvolve-se, aos poucos, a disciplina que cem anos após será
denominada de "urbanismo"13 , uma nova ciência que nasce como uma forma de
resolver tecnicamente as inúmeras demandas da cidade em expansão. Em vista da
complexidade em que se apresenta então o fenômeno urbano, as pesquisas em
relação à "problematização" da cidade se caracterizarão por uma absoluta
interdisciplinaridade, a conjunção de diversas áreas do pensamento em prol de uma
reflexão mais abrangente possível da temática urbana.
Desenha-se, assim, uma nova atitude em relação à construção artística do espaço
urbano. Até então, a maioria das significativas intervenções, aconteciam em nome da
10
BRESCIANI, Maria Stella. As sete portas da cidade. ln: Revista Espaço e Debates 34. Neru: São
Paulo, 1 991. pag. 11.
11
BEGUIN, François. As maquinárias inglesas do conforto. ln: Revista Espaço e Debates 34. Neru: São
Paulo, 1991. pag. 40.
12
BEGUIN, François. Opus cit. 1991. pag. 40.
13
CHOAY, Françoise. O urbanismo. Perspectiva: São Paulo, 1992. pag. 2.
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estética. Da construção de uma catedral gótica, aos extensos planos barrocos, o que se
buscava era, principalmente, o embelezamento das cidades. A nova realidade, ao
contrário da experiência recente da "cidade liberal", não exclui a estética. Porém esta
aparece como uma entre tantas outras disciplinas técnicas presentes na nova
“ciência”.
Na verdade, neste primeiro momento, denominado por Choay de "pré-urbanismo"14
outras questões como a ética ou a técnica, assumirão um papel infinitamente mais
importante que os problemas da estética.
"Neste âmbito existem duas linhas de ação, que por agora se apresentam
claramente divididas: a que aborda os problemas da urbanística moderna partindo
de um modelo ideológico global, que é apresentado em alternativa à cidade
existente e que se procura realizar experimentalmente longe desta, ou então a que
parte das exigências técnicas individuais, ligadas ao desenvolvimento da cidade
industrial, e procura corrigir seus defeitos isolados."15
3. As grandes transformações urbanas do século XIX.
A revolução de 1848 foi um verdadeiro divisor de águas na prática urbanística do
século XIX. Em função da nova realidade política, com o prestígio exacerbado das
novas capitais, e o medo de outras revoltas, começa-se a pensar intervenções globais
no tecido de alguns dos mais importantes centros urbanos antigos. Estas reformas,
sistematicamente realizadas, assumem uma importância ímpar no plano deste estudo,
pois são as primeiras iniciativas a conseguir dar, decididamente, uma resposta à
questão da estética da cidade moderna.
A situação posterior a 1848 marca o abandono geral dos modelos utópicos em relação
à prática da estruturação total do tecido urbano. O legado teórico destas “cidades
modelos”, idealizadas na primeira metade do século, é jogado, cada vez mais, para a
14
15
CHOAY, Françoise. Opus cit. 1992. pag. 3.
BENEVOLO, Leonardo. Opus cit. 1987. pag. 47.
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esfera da intervenção isolada, nas novas tipologias de vilas operárias, aldeias
empresariais, cidades Jardins, etc..
Por outro lado, a técnica se instala de forma definitiva no rol das disciplinas mais
importantes nas reestruturações urbanas. Os grandes planos da segunda metade do
século XIX são elaborados e realizados por profissionais ligados aos ofícios técnicos,
que darão à cidade moderna uma feição autêntica, original, solucionando grande parte
dos problemas colocados até aqui, em relação à primeira realidade da "cidade liberal".
Portanto, em termos de sua realização artística, esta nova cidade, denominada por
Benevolo de "cidade pós-liberal" 16 , desenhará um percurso caracterizado pela
coexistência de duas diretrizes estéticas básicas: a
busca da realização do estilo da época, o "ecletismo",
e a persistência da articulação da cidade enquanto
manufatura,
a
já
comentada
estética
dos
engenheiros. Porém o aspecto estilístico vai perdendo gradativamente terreno para o
técnico, até tornar-se praticamente irrelevante, como é o caso da intervenção de Cerdà
em Barcelona.
3.1. O ecletismo e a cidade renovada.
Na estruturação dos primeiros planos globais de intervenção nas cidades antigas,
foram grandes as preocupações em afirmar o momento artístico contemporâneo. E
não só na esfera da arquitetura, mas também na idealização dos sistemas urbanísticos,
como coloca Patetta:
"Ao contrário, o historicismo arquitetônico e o urbanismo do século XIX
desenvolveram-se na mais perfeita simbiose."17
16
17
BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. Perspectiva: São Paulo, 1997. pag. 573.
PATETTA, Luciano. Considerações sobre o Ecletismo na Europa. ln: Ecletismo na arquitetura
brasileira. Nobel. Edusp: São Paulo, 1987. pag. 23.
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Neste ponto reside um fato muito importante, aceito por grande parte dos estudiosos,
a ser considerado cuidadosamente no presente estudo: O "mito" do "urbanismo
barroco" no século XIX.
"No essencial, este desenho (da Paris de Haussmann) continua as tradições
barrocas do século XVIII, nomeadamente algumas propostas já definidas no Plan
des Artistes de 1793 - 1797, e seria possível encontrar paralelismos com a actuação
de Sixto V, em Roma, no modo de lançar as vias unindo pontos da estrutura
urbana."18
Ao contrário do que afirma Lamas, a aproximação morfológica que as intervenções
oitocentistas possuem com alguns momentos da cidade barroca, não expõe uma
continuidade com a tradição do "urbanismo" barroco, e sim demonstram a mais pura
tradição eclética. Ora, ninguém afirma que um palácio neo-barroco no Ring de Viena
seja uma obra barroca. É obviamente um edifício eclético. Porque então falar do
"traçado barroco" na Paris de Haussmann, ou das
perspectivas barrocas" de Belo Horizonte. A filiação
destas realizações puramente morfológicas, no plano
estético, é com o ecletismo, estilo perseguido pelos
artistas e pelos construtores de cidade na segunda metade do século XIX.
Sem fazer um julgamento de valor, é de importância primeira insistir na diferença
existente entre a atitude artística de elaboração do espaço urbano no barroco, e a
estética da cidade eclética, "pós-liberal". Para a compreensão deste processo,
podemos recorrer novamente a Patetta. Sobre a arquitetura eclética da burguesia
oitocentista, ele afirma:
"Uma série de fenômenos une, todavia, esses fragmentos de história: uma 'linha
contínua percorre toda a trajetória da arquitetara burguesa. (...) Pensemos na
'estilização', na simplificação dos elementos arquitetônicos do passado, operações
18
LAMAS, José M. Ressano Garcia. Morfologia urbana a desenho da cidade. Fundação Calouste
Gulbenkian. Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica: Lisboa, 1992. pag. 212-214.
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que levaram as sutis complexidades de proporção e de composição a cair em uma
redução 'moderna'."19
E ainda:
"A essas exigências tão concretas e tão decisivas para a nova edificação, os
arquitetos deram a única resposta possível: uma arquitetura sem grandes tensões
espirituais, não autônoma, mas participante e comprometida até ao próprio
sacrifico."20
A partir destas premissas básicas da arquitetura eclética, é possível visualizar a
construção do "espaço visual" da "cidade pós-liberal". Os modelos históricos existem,
e não é só o traçado barroco, mas também o jardim inglês, a quadrícula grega, etc..
Porém, são articulados através daquele processo de "estilização", de simplificação dos
elementos urbanísticos do passado, propondo, com as novas demandas, soluções
definitivamente coerentes e congeniais ao seu tempo.
Como imaginar uma obra barroca sem "tensões espirituais”? Mas a cultura eclética da
segunda metade do século XIX, constrói cidades seguindo modelos formais barrocos,
mas reduzindo-os a pontos de absoluta falta de conflitos de imagem, prática
totalmente moderna. O espaço arquitetõnico da cidade é estéril, monótono, a pesquisa
estética baseada na morfologia, e não na rica pesquisa visibilística de transformar o
espaço preexistente, através da alta qualidade expresiva das imagens derramadas no
espaço.
3.2. A técnica e a cidade renovada.
Mas a utilização dos sistemas de composição retilíneas, ortogonais, também marcam
o outro fator de relevância para a construção artística da cidade, e que, posteriormente
causará sua desarticulação estética definitiva. O conceito da cidade enquanto
manufatura:
19
20
PATETTA, Luciano. Opus cit. 1987. pag. 12.
PATETTA, Luciano. Opus cit. 1987. pag. 14.
12. Índice
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"Do projeto do arquiteto John Nash para a Regent Street na Londres do início do
século XIX, passando pelas obras de Haussmann em Paris, pela proposta de
Ildefonso Cerdà para Barcelona e pela abertura da Ríngstrasse em Viena, ao longo
da segunda metade do século XIX, (...) delineia-se a produção da cidade como
objeto técnico, inserido em sistemas abstratos que, como observou Habermas, 'não
podem mais alcançar uma presença esteticamente apreensível'."21
A cidade não é projetada e construída por artistas. São os engenheiros que a definem.
Não só nos quesitos técnicos mas também na abordagem estética, deixando para os
arquitetos somente a construção de alguns edifícios monumentais. As preocupações
com a estética se reduzem a problemas de composição morfológica dos estilos do
passado, absolutamente convenientes para a concepção utilitária do espaço urbano.
3.3. Conclusão.
Assim, as motivações espirituais que tocavam a pesquisa artística na construção das
cidades até a revolução industrial, desaparecem em prol de uma concepção estética
baseada na racionalização e na cópia vazia de exemplos do passado. Distancia-se da
prática arquitetônica tradicional, que trabalhava com a potencialidade visibilística dos
elementos do espaço urbano.
Desta forma, Haussmann precisou jogar abaixo toda a Paris medieval para poder criar
uma nova cidade, ao contrário do que fez Sixto V, na Roma Barroca. A nova Paris é
realizada na prancheta, toda calculada minuciosamente, inclusive no gosto pelos
efeitos de espetacularização do ambiente, através do uso de recursos tradicionais do
barroco. Porém, como era de se esperar, a não vivência real com os problemas
artísticos da cidade, determinam um fracasso total do espaço real no plano da
percepção de sua imagem pretendida. Mas, por outro lado, a restruturação de Paris
21
ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. De Viena a Santos: Camillo Sitte e Saturnino de Brito.
Texto complementário contido ln: SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus
princípios artísticos. Atica: São Paulo, 1992. pag. 100.
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define uma nova estética, uma nova imagem que reflete verdadeiramente a situação da
urbis moderna. Assim afirma Benevolo:
"Haussmann procura enobrecer o novo ambiente urbano com os instrumentos
urbanísticos tradicionais: a busca da regularidade, a escolha de um edifício
monumental antigo ou moderno como pano de fundo de cada nova rua, a
obrigação de manter uniforme a arquitetura das
fachadas nas praças e nas ruas mais importantes
(por exemplo, a Place de I'Etoíle ) . Mas a enorme
extensão dos novos espaços e o trânsito que os
estorva impede de percebê-los como ambiente em
perspectiva: os vários espaços perdem sua individualidade e fluem uns nos outros;
as fachadas das casas se tornam um fundo genérico, ao passo que os aprestos das
ruas que são vistos em primeiro plano - os faróis, os bancos de jardim, as edículas,
as árvores - se tomam mais importantes,- o fluxo dos pedestres e dos veículos, que
muda continuamente transforma a cidade num espetáculo sempre mutável."22
Este é o espetáculo real da cidade oitocentista, Paris sua melhor realização. Não existe
mais lugar para a percepção visual tradicional do espaço. Mesmo que os projetistas
organizassem fundos arquitetônicos para os eixos perspectivos, estes eixos não eram
percebidos enquanto tal, e sim enquanto um emaranhado de edifícios agregados,
escondidos por filas de árvores, embebidos na confusão de pedestres e tráfego,
diluindo o efeito de monumentalidade perseguido. Os monumentos são imensamente
grandes, mas parecem sempre menores do que são.
A percepção contemplativa da cidade se perde e dá lugar à percepção da dinâmica, da
velocidade, do tráfego. Talvez seja esta mudança inevitável que Sitte não
compreendeu.
A essência da arte é dada pela qualidade do conjunto de imagens que suscita. Neste
universo, percebe-se uma nova ordem na "cidade pós-liberal". A Paris de Haussmann
22
BENEVOLO, Leonardo. Opus cit. 1997. pag. 595.
14. Índice
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é, como objeto artístico, um organismo unitário, mas utiliza outro sistema para
adquirir esta unidade. Para o barroco, por exemplo, não importa a construção objetiva
do espaço, e sim a percepção subjetiva que este oferece. Para a cidade oitocentista, ao
contrário, importa a concepção geral do espaço, baseada em preceitos técnicos, mas
este espaço não é percebido como uma unidade in loco, e sim construído na mente de
cada um, no processo de vivência da dinâmica inigualável da cidade. Assim, os
maiores monumentos de Paris não são a catedral de Notre Dame, ou a Ópera, e sim as
grandes ruas, as grandes avenidas, os grandes boulevares.
Esta tendência torna-se maior ainda nas outras grandes intervenções da segunda
metade do século. Em Viena por exemplo:
"Embora a escala e a grandeza da Ring sugiram a força
persistente do barroco, a concepção espacial que inspirou
seu projeto era nova e original. Os planejadores barrocos
tinham organizado o espaço para transportar o observador
a um foco central: o espaço servia como cenário para dar
relevo aos edifícios que o cercavam ou dominavam. Os projetos da Ringstrasse
praticamente
inverteram
o
procedimento
barroco,
utilizando os edifícios para dar relevo ao espaço horizontal
Organizaram todos os elementos em relação a uma larga
avenida ou corso central, sem refreamento arquitetõnico
nem finalidade visível. A rua, de formato poliédrico, é
literalmente o único elemento no vasto complexo que leva uma vida independente,
sem
se
subordinar
a
nenhuma outra entidade
espacial.
Onde
o
planejador barroco teria
tentado unir o subúrbio e
15. Índice
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a cidade - organizar amplas perspectivas orientadas para os traços monumentais e
centrais - o plano adotado em 1859, com raras exceções, suprimia as perspectivas,
em favor da ênfase sobre o fluxo circular."23
O plano quinhentista da Roma de Sixto V, incide na cidade medieval preexistente
praticamente sem tocá-la. Haussmann, por sua vez, destrói toda Paris medieval, para
criar uma nova ordem urbanística. Já em Viena, a cidade antiga é completamente
isolada da nova pela construção do Ring.
Como verifica-se na citação de Schorske, a construção do Ringstrasse, mais ainda que
a restruturação de Paris, afirma a tendência da cidade moderna, enquanto organismo
funcional e não artístico. A organização estética perseguida com a construção dos
edifícios monumentais do Ring, fracassa completamente em função da sua diluição
na extensão da via e no paisagismo proposto. Não é possível, mesmo com a
construção da Rathaus, do Parlamento, da Universidade, do Burgtheater, readquirir a
velha relação visibilística entre o monumento e o plano da cidade.
Por outro lado, a valorização absoluta deste anel viário prossegue a pesquisa da nova
estética da cidade moderna, baseada nesta vivência do espaço dinâmico da cidade.
Como afirma Schorske, a rua é o elemento principal, que absorve todos os outros,
antecipando uma realidade que tornará latente na pesquisa urbanística do movimento
moderno.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. De Viena a Santos: Camillo Sitte e Saturnino de Brito. Texto
complementário contido ln: SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus princípios
artísticos. Ática: São Paulo, 1992.
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. Martins Fontes: São Paulo, 1993.
BEGUIN, François. As maquinárias inglesas do conforto. ln: Revista Espaço e Debates 34. Neru: São
Paulo, 1991.
BENEVOLO, Leonardo. Diseño de la ciudad - 5. El arte e la ciudad contemporánea. Gustavo Gili:
México D. F., 1979.
23
SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle. Editora da UNICAMP. Companhia das letras: São Paulo
1990. pag. 50-51.
16. Índice
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- História da cidade. Editora Perspectiva: São Paulo, 1997. pag. 565.História da cidade.
Perspectiva: São Paulo, 1997. pag. 573.
- As origens da urbanística moderna. Editorial Presença: Lisboa, 1987.
BRANDI, Cesare. Teoria del restauro. Piccola Biblioteca Einaudi: Torino, 1977.
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