1. INTRODUÇÃO GERAL
A BÍBLIA. -- "Nós não sentimos necessidade de conceito e vocábulo esses tomados da própria
apoios e alianças, tendo em mãos, para nosso Bíblia.
conforto, os livros sagrados" (1Mac 12,9). Assim, O Antigo Testamento consta dos livros
em 154 a.C, em nome de toda a nação, da qual seguintes, comumente agrupados em quatro
era chefe, escrevia Jonatas Macabeu ao rei de classes:
Esparta. Nessas suas palavras, já se apresenta V Pentateuco ou cinco livros de Moisés:
o termo usual, o valor singular e o emprego Gênesis, Êxodo, Levítico, Números,
prático da obra cuja versão apresentamos. Do Deuteronômio.
termo: os livros -- no texto grego um neutro 2° Livros históricos: Josué, Juízes, Rute, Reis,
plural tà biblía -- em nossa língua, através do Crônicas, Esdras e- Neemias, Tobias, Judite,
latim vulgar, formou-se o feminino singular: a Ester, Macabeus.
Bíblia.
3? Livros didáticos ou poéticos: Jó, Salmos,
Outros sinônimos, encontramo-los Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos,
freqüentemente na própria Bíblia: a Escritura ou Sabedoria, Eclesiástico (ou Sabedoria de Jesus,
as Escrituras, as santas Escrituras, e mais filho de Sirac).
raramente, as sagradas Letras. A Bíblia,
4° Livros proféticos: Isaías, Jeremias,
portanto, não é um livro só, mas muitos, uma
Lamentações, Baruc, Ezequiel, Daniel, os Doze
coletânea, cuja unidade consiste no argumento
profetas menores, isto é: Amós, Oséias, Joel,
comum e na origem sobre-humana.
Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc,
E de "livros santos" que a Bíblia se compõe, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.
porque dentro de sua grande variedade eles
coincidem em tratar de religião, tendo um No Novo Testamento, o primeiro e mais
objetivo essencialmente religioso. Com mais conspícuo lugar compete aos quatro
razão ainda chamam-se "livros santos" ou Evangelhos: segundo Mateus, Marcos, Lucas,
"sagrados" porque, como ensina a fé, tanto João. Seguem-se: um livro histórico, os Atos
judaica como cristã, não foram escritos por mero dos Apóstolos; catorze epístolas de S. Paulo:
talento humano, mas sob a influência de aos Romanos, duas aos Coríntios, aos Gálatas,
inspiração divina especial. aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses,
duas aos Tessalonicenses, duas a Timóteo,
Ê desta origem sobrenatural que a Bíblia uma a Tito, a Filemon, aos Hebreus; sete
recebe a sua dignidade de "livro por excelência" epístolas chamadas católicas, ou canónicas:
e o seu lugar único na vida dos povos que uma de Tiago, duas de Pedro, três de João,
tiveram o primado na civilização. Ela é, com uma de Judas; finalmente, um livro profético, o
efeito, o fundamento e o alimento da fé para Apocalipse.
todos os povos cristãos, e nenhum outro livro no O elenco oficial dos livros sagrados chama-se
mundo pode ser a ela comparado, nem de cânon, no sentido de norma. Expusemos aqui o
longe, seja pelo número de tiragens de edições, cânon católico, formado já no séc. IV nas cartas
quer manuscritas, quer impressas, seja pela pontifícias e nos concílios provinciais da África,
influência sobre a vida individual e pública, sobre sancionado depois solenemente pelos concílios
a literatura e as artes figurativas. Qualquer fiel ecumênicos de Florença (1441) e de Trento
sinceramente apegado à sua religião tem-na, por (1546) e confirmado pelo Concílio Vaticano I
assim dizer, constantemente em mão, como (1870). Para a integridade do cânon não importa
Jonatas o apontava, para nela encontrar a ordem dos livros, porque, exceto o primeiro
conforto em todas as vicissitudes da vida. lugar reservado constantemente, no Antigo
Testamento, ao Pentateuco e no Novo, aos
DIVISÃO E NÚMERO DE LIVROS. -- CÂNON. -- Com Evangelhos, no restante diferem muito entre si
o nome de Bíblia, pois, compreendem-se os os manuscritos, os autores, os catálogos oficiais
livros sagrados da religião cujo centro é Jesus de igrejas e de seitas.
Cristo. Partindo deste ponto de convergência, a
Bíblia divide-se em duas séries desiguais, a
primeira, anterior a Jesus Cristo, a segunda,
posterior. A primeira chama-se Antigo
Testamento, a segunda Novo Testamento,
2. Os livros históricos mais extensos do Antigo babilónico (séc. VI a.C). Dois livros, o segundo
Testamento, Samuel-Reis e Crônicas, na dos Macabeus e a Sabedoria, foram escritos
antiquíssima versão grega (dos LXX, veja originariamente em grego. Dos livros de Judite,
abaixo), por razões práticas foram divididos em Tobias, Baruc, Eclesiástico e parte também de
dois; além disso, considerando Samuel e Reis Daniel e Ester, perdeu-se, como no caso do
como uma obra só, chegou-se a contar 4 livros Evangelho de Mateus, o texto original, hebraico
dos Reis e dois das Crônicas, costume esse ou aramaico, sendo substituído pela versão
que se estendeu aos latinos e dura ainda em grega.
parte entre nós. No texto hebraico, adotada Essas diferenças lingüísticas não deixaram de
semelhante divisão, conhecem-se dois livros de exercer a sua influência sobre a extensão do
Samuel, dois dos Reis, dois das Crônicas. cânon dos livros sagrados. Enquanto os judeus
Esdras e Neemias são chamados também de disseminados no mundo greco-romano não
primeiro e segundo de Esdras. Também dos tinham dificuldades em introduzir os livros
Macabeus contam-se dois livros, que na redigidos em grego, os judeus da Palestina não
realidade são duas obras perfeitamente queriam conformar-se com isso. Além disso, foi-
distintas. Na Vulgata, a Carta de Jeremias se formando entre eles a opinião de que, depois
constitui o último cap. (6?) de Baruc. Tudo bem de Esdras (séc. V a.C), faltando ou sendo incerto
calculado, o Antigo Testamento consta de o dom profético (veja IMac 4,46; 14,41), nem
quarenta e seis livros, o Novo, de vinte e sete. sequer admitiam pudessem ser escritos livros
Por razões igualmente práticas, desde os inspirados por Deus. Por isso, quando nos fins
primeiros séculos da nossa era, cada livro foi do séc. I d.C, os doutores da Sinagoga fixaram o
dividido em seções de várias extensões, cânon das Sagradas Escrituras, foram excluídos
conforme sistemas bastante diversos para até os livros escritos em hebraico depois daquela
lugares e épocas. Para eliminar os época, como o Eclesiástico. Daí resultou um
inconvenientes dessas antigas divisões e cânon hebraico em que faltam sete livros:
facilitar o estudo uniforme, no início do séc. XIII, Tobias, Judite, os dois dos Macabeus,
na Universidade de Paris, Estêvão Langton Sabedoria, Eclesiástico, Baruc e a Carta de
(depois cardeal) introduziu a divisão em Jeremias, e mais algumas partes de Ester e de
capítulos de extensão mediana, que depois, Daniel.
pela sua utilidade prática, propagou-se em O veredito dos doutores hebreus não deixou
todas as escolas e em todas as edições, e é de repercutir na Igreja cristã. Enquanto no uso
ainda hoje de uso universal, agora comum se difundia o cânon mais pleno,
insubstituível. concretizado na versão dos LXX, empregada e
Mais tarde, no séc. XVI, os mesmos capítulos recomendada pelos apóstolos, alguns escritores
foram divididos em versículos numerados (por (Melitão de Sardes, Sto. Atanásio de Alexandria,
Sante Pagnini, para o Antigo Testamento S. Gregório de Nazianzo, entre os gregos; Sto.
[1528], por Roberto Estêvão, para o Novo Hilário de Poitiers, Rufino de Aquilêia e
[1550]), tendo sido também essa numeração, principalmente S. Jerônimo, entre os latinos)
pela comodidade das citações, aceita logo e adotaram o cânon mais restrito dos hebreus, e,
perdura até agora em toda parte. Entende-se, devido à autoridade desses antigos doutores
entretanto, que essas divisões são apenas de cristãos, toda hesitação entre os católicos não foi
valor prático, não científico. eliminada senão pelo sagrado Concílio de Trento
(1546).
No entanto, em virtude de tais vozes
LÍNGUAS ORIENTAIS E CÂNONES DIVERSOS. -- O discordantes da crença comum, chegou-se a
Novo Testamento inteiro foi escrito em grego; fazer distinção entre "livros reconhecidos"
só o Evangelho de Mateus, conforme (homologúmenos), admitidos por todos (os do
testemunhos de antigos, teve uma primeira cânon hebraico), e "livros controversos"
redação em aramaico, a qual, porém, se perdeu (antilogúmenos), não admitidos por todos, os oito
sem deixar vestígios; em lugar dela temos uma acima enumerados, constantes do cânon cristão.
tradução, ou melhor, uma redação grega. Na terminologia moderna, os primeiros se
Quanto ao Antigo Testamento, temos três chamam protocanônicos, os segundos
idiomas originais. A maior parte foi escrita e deuterocanônicos, ou seja, canónicos de
chegou até nós em língua hebraica. Alguns primeira e de segunda época, à medida que a
capítulos dos livros de Esdras e de Daniel, e um unanimidade a seu respeito foi alcançada logo
versículo de Jeremias, estão em aramaico, que no começo ou só mais tarde. Entende-se, porém,
foi o idioma falado na Palestina depois do exílio que, com esses vocábulos, não se queria
3. distinguir o valor ou a autoridade das duas mesmo havemos de acreditar que os Livros da
categorias de livros, e sim lembrar somente um Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem
fato histórico e servir para maior brevidade e erro a verdade relativa à nossa salvação, que
clareza no tratamento destas matérias. Deus quis fosse consignada nas sagradas
Analogamente, no Novo Testamento, por outras Letras. Por isso, 'toda Escritura divinamente
razões, porém, alguns livros nem sempre foram inspirada é útil para ensinar, para argüir, para
admitidos, e nem em todas as Igrejas, entre as corrigir, para instruir na justiça: a fim de que o
divinas Escrituras; tais como a Epístola aos homem de Deus seja perfeito, experimentado em
Hebreus, a de Tiago, a segunda de Pedro, a todas as boas obras' (2Tim 3,16-17 gr.).
segunda e terceira de João, a de Judas e o
Apocalipse; aos quais, por isso, também se Mas como Deus na Sagrada Escritura falou
aplicou a designação de deuterocanônicos, no por meio de homens e à maneira humana, o
sentido explicado. intérprete da Sagrada Escritura, para saber o
Tudo o que foi dito até aqui vale para os que Ele quis nos comunicar, deve investigar com
autores católicos. Compreende-se que os atenção o que os hagiógrafos realmente
hebreus rejeitem, em sua totalidade, o Novo quiseram significar e aprouve a Deus manifestar
Testamento, além dos deuterocanônicos do por meio das palavras deles.
Antigo. Os protestantes ocupam uma posição Para descobrir a intenção dos hagiógrafos,
de meio termo. No Novo Testamento, depois devem-se ter em conta, entre outras coisas,
das primeiras incertezas de seus fundadores também os 'gêneros literários'. A verdade é
admitiram integralmente e sem distinção o proposta e expressa de modos diferentes,
Cânon católico. No An-tigo Testamento, ao segundo se trata de textos históricos de várias
invés, seguindo o cânon mais restrito dos espécies, ou de textos proféticos ou poéticos ou
hebreus, rejeitam, como fora da série dos livros ainda de outros modos de expressão. Ê preciso,
sagrados, sob o nome de "apócrifos", os que então, que o intérprete busque o sentido que o
nós chamamos deuterocanônicos. hagiógrafo -- em determinadas circunstâncias,
Para os católicos, os apócrifos são certos segundo as condições do seu tempo e da sua
livros antigos, semelhantes a livros bíblicos, cultura -- pretendeu exprimir e de fato exprimiu
quer do Novo, quer do Antigo Testamento, o usando os 'gêneros literários' então em voga.
mais das vezes atribuídos a personagens Para entender retamente o que o autor sagrado
bíblicas, mas não inspirados, como os livros quis afirmar por escrito, deve-se atender bem
canónicos, e nem sempre escritos por pessoas quer aos modos peculiares de sentir, dizer ou
fidedignas, nem de doutrina segura. Os narrar em uso nos tempos do hagiógrafo, quer
apócrifos do Antigo Testamento .são chamados àqueles que na mesma época costumavam
"pseudo-epígrafos" pelos protestantes. empregar-se nos intercâmbios humanos.
Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e
INSPIRAÇÃO E INTERPRETAÇÃO. -- "As coisas interpretada com a ajuda do mesmo Espírito que
reveladas por Deus, que se encontram e levou à sua redação, ao investigarmos o sentido
manifestam na Sagrada Escritura, foram bem exato dos textos sagrados, não devemos
escritas por inspiração do Espírito Santo. De atender menos ao conteúdo e à unidade de toda
fato, a Igreja, por fé apostólica, considera como a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de
sagrados e canônicos os livros inteiros tanto do toda a6 Igreja e a analogia da fé. Cabe aos
Antigo como do Novo Testamento, com todas exegetas, de harmonia com estas regras,
as suas partes, porque, tendo sido escritos por trabalhar para entender e expor mais
inspiração do Espírito Santo (cf. Jo 20,31; J2Tim profundamente o sentido da Escritura, para que,
3,16; 2Pdr 1,19-21; 3,15 --16), têm a Deus por graças a este estudo de algum modo
autor e como tais foram confiados à própria preparatório, chegue a termo o juízo da Igreja.
Igreja. Todavia, para escrever os Livros Com efeito, tudo quanto diz respeito à
sagrados, Deus escolheu homens, que utilizou interpretação da Escritura está sujeito ao juízo
na posse das faculdades e capacidades que último da Igreja, que tem o divino mandato e
tinham, para que, agindo Deus neles e por meio ministério de guardar e interpretar a palavra de
deles, pusessem por escrito, como verdadeiros Deus.
autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele
quisesse. Portanto, na Sagrada Escritura, salvas sempre
a verdade e a santidade de Deus, manifesta-se a
Portanto? como tudo quanto afirmam os admirável 'condescendência' da eterna
autores inspirados ou hagiógrafos se deve ter Sabedoria, 'para nos levar a conhecer a inefável
como afirmado pelo Espírito Santo, por isso benignidade de Deus e a grande acomodação
4. que usou nas palavras, tomando desde as primeiras cópias até à invenção da
antecipadamente cuidado da nossa natureza' imprensa (séc. XV), era moralmente impossível
(S. João Crisóstomo). que dois exemplares de um mesmo livro, ao
menos os mais extensos, fossem exatamente
As palavras de Deus, expressas em línguas iguais, e Deus, que: preservou de todo erro os
humanas, tornaram-se intimamente originais dos livros sagrados, não quis obrigar-se
semelhantes à linguagem humana, como a milhares de milagres que seriam necessários
outrora o Verbo do Eterno Pai, tomando a carne para que se conservassem intactas as cópias.
da fraqueza humana, se tornou semelhante aos Bastava conservar inalterada a substância do
homens". (Dei Verbum, 11-13). depósito da fé contido nos livros sagrados. E
para tanto foi magnificamente providenciado,
A inspiração bíblica, segundo o conceito como precisamente nos ensina a historia do
católico, não é uma moção mecânica, nem um texto.
ditado, como se o autor humano fosse passivo
e nada de próprio assentasse no livro inspirado. Os textos originais da Bíblia, em particular os
Não; a força inspiradora age no homem de do Novo Testamento, são comprovados por
maneira digna dele, condizente com sua tamanha abundância e antigüidade de
natureza de criatura inteligente e livre. Antes de documentos, que também sob o aspecto da
tudo, a inspiração é uma luz intelectual, que, ou transmissão textual a Bíblia mantém o seu
descobre ao homem aquilo que antes ignorava primado, o seu lugar eminente na literatura
(e então tem-se a revelação), ou com novo mundial. Confrontada aos mais célebres
esplendor lhe apresenta aquilo que já sabia. monumentos da literatura profana, tais como as
Sob a sua ação, a inteligência humana não é obras-primas da literatura grega e latina, ela
perturbada, não perde a consciência de si, brilha como o sol entre as estrelas. As obras de
como afirmavam os antigos acerca dos oráculos autores gregos e latinos, não raramente, nos
pagãos; pelo contrário, é mais do que nunca chegaram num único manuscrito, e as mais
lúcida e inteligente. Nem a vontade é arrastada afortunadas gloriam-se de algumas dezenas
à força contra a sua inclinação; antes, mais do deles; os manuscritos do Novo Testamento,
que nunca livre, segue dócil e porém, contam-se às centenas e aos milhares.
espontaneamente o impulso divino. A ação Deles possuímos ainda códices inteiros em
inspiradora estende-se a todas as faculdades pergaminho, do século IV; com fragmentos de
do homem, a todas as suas ações empregadas papiros podemos remontar aos séculos III e II,
ao escrever, até à redação completa; mas a isto é, a menos de um ou dois séculos da morte
todas e a cada uma toca e dirige segundo a dos autores, enquanto que para Cícero e Virgílio
natureza de cada uma e segundo a parte que a distância das cópias mais antigas é de cinco
tomam no trabalho complexo de escrever. Daí ou seis séculos, para Homero de um milênio e
se segue que a inspiração não suprime nem mais. O testemunho da transmissão direta dos
atenua a personalidade do escritor humano, e códices gregos é reforçado quer por
nos vários livros da Bíblia pode-se ver refletida antiquíssimas versões -- já no séc. II, como a
a índole e o estilo de cada autor. antiga versão latina --, quer pelas abundantes
citações de escritores cristãos, a partir do séc. II.
Ora, nesses antiquíssimos testemunhos
TEXTOS E VERSÕES. -- "Todos os Padres e encontramos a máxima parte do texto das
Doutores tiveram firmíssima persuasão" -- modernas versões. Verdade é que a própria
escreve Leão XIII na citada encíclica quantidade de manuscritos (além de versões e
Providentissimus -- "de que as divinas citações) ocasionou, pela razão já dita, um
Escrituras, quais saíram da pena dos autores número proporcionado de variantes, ou seja, de
sagrados, são inteiramente isentas de qualquer alterações; pretende-se que no Novo
erro". Mas será que todas nos chegaram tais Testamento inteiro, em 150.000 palavras, haja
"quais saíram da pena dos autores sagrados?" 200.000 variantes, mas na maioria são minúcias
Nenhum autógrafo, nem sequer do último dos que não atingem absolutamente o sentido.
autores inspirados, chegou até nós, como Ademais, a riqueza de documentação oferece à
também o de nenhum escritor da antigüidade crítica meios mais eficientes para precisar o texto
profana; só possuímos deles cópias remotas. original. Segundo o cálculo de juízes tão
Ora, os copistas não tiveram a assistência do competentes como os críticos Westcott e Hort,
Espírito Santo como os hagiógrafos, e enquanto sete oitavos de todo o Novo Testamento são
copiavam à mão, era natural que se transmitidos, concordemente, sem variantes, por
introduzissem no texto alterações de várias todas as testemunhas. Quanto às variantes,
espécies. No longo período de 1500-3000 anos, somente a milésima parte atinge o sentido e só
5. umas vinte assumem verdadeira importância. acima foi dito. Entra aqui o testemunho --
Nenhuma atinge a alguma verdade de fé. precioso pelo fato e pela época -- do neto do
Auxiliados pela crítica textual podemos concluir, autor do Eclesiástico, o qual, no prólogo de sua
com os supracitados críticos, que o texto tradução da obra do avô, assevera ter ido ao
genuíno do Novo Testamento é assegurado não Egito pelo ano XXXVIII do rei Evérgetes (cerca
só na substância, mas também em quase todos de 132 a.C.) e ali já ter encontrado traduzidos
os minuciosos particulares. em grego, a Lei (Pentateuco), os Profetas e os
Quanto ao Antigo Testamento, as coisas outros Escritos, isto é, as três partes em que os
apresentam-se um pouco diversamente. Antes judeus dividem a sua Bíblia,
das recentes descobertas junto ao mar Morto Assim, a versão grega dos LXX tem para nós
(1947), os códices hebraicos conhecidos, não valor de um manuscrito hebraico do séc. III a.C.
anteriores aos séculos VIII-X d.C, dependiam ou mais antigo, representando um tipo de texto
todos de uma recensão ou arquétipo do fim do sensivelmente diferente, como o demonstra um
séc. I d.C, posterior, portanto, a cinco ou mais confronto com o texto corrente na Palestina. Ela
séculos dos originais. Dessa fonte temos o texto é para nós, portanto, o instrumento principal para
consonântico, isto é, só as consoantes das a emenda crítica do texto hebraico. È, contudo,
palavras hebraicas, segundo o uso das línguas um instrumento de emprego freqüentemente
semíticas, de não escreverem as vogais. delicado. Além de, por causa das divergências
Somente por volta do séc. VII d.C, para facilitar dos tradutores, alguns literais e até servis, outros
a leitura e para uso didático, foram inventados mais livres, não termos um critério geral para
os sinais vocálicos e inseridos no texto, quando remontar da tradução grega ao original hebraico,
o hebraico tinha cessado há séculos (pelo séc. o próprio texto dos LXX, através de tantas
IV a.C), de ser idioma falado. No longo período vicissitudes de séculos, chegou-nos em
do séc. I ao X d.C, o texto hebraico foi objeto manuscritos com tão grande número de
dos mais minuciosos e diligentes cuidados da variantes que nem sempre é fácil, entre essa
parte dos rabinos, chamados massoretas (de selva de variantes, descobrir o texto genuíno.
massorá = tradição). Ê ao trabalho infatigável Causaram enorme confusão, sem o querer,
deles que se deve a conservação inalterável do três recensões feitas no séc. III e difundidas
texto e dos manuscritos tão uniformes que não largamente na Igreja grega. Um século depois,
apresentam senão raríssimas variantes e de um ótimo perito e testemunha ocular dos fatos,
leve monta. Também as antigas versões, com S. Jerônimo (Prefação às Crônicas) escreve:
uma só exceção, quer as gregas do séc. "Alexandria com todo o Egito, nos seus LXX
II (Áquila, Símaco, Teodocião, dos quais louva a obra de Hesíquio; de Constantinopla até
contudo não nos chegaram senão fragmentos), Antioquia usam-se os exemplares do mártir
quer a siríaca, chamada Pechitta, o Targum Luciano; as províncias situadas entre essas duas
aramaico (também chamado paráfrase regiões lêem os códices palestinenses,
caldaica), e a latina de S. Jerônimo, sendo elaborados por Orígenes e divulgados por
todas posteriores à recensão do séc. I, e dela Eusébio e Pânfilo; de modo que todo o orbe se
dependentes raras vezes supõem forma diversa debate entre esta tríplice variedade". Felizmente
do texto hebraico normal (massorético). nos foi conservado em poucos manuscritos,
Tanto mais preciosa, em tais circunstâncias, sobretudo no famoso Vaticano 1209 (assinalado
é para nós a antiga versão grega, feita no Egito com a sigla B), um texto anterior àquelas
(mais exatamente, em Alexandria, motivo por recensões e por elas tomado por base, o que
que também é chamada "alexandrina") entre os facilita o trabalho do crítico em busca da forma
séc. primitiva.
III e II a.C Considerada até os tempos Todavia, o exame atento e consciencioso nos
modernos como obra coletiva de setenta e dois revela que também o texto hebraico usado pela
doutos hebreus vindos para isso de Jerusalém, vetusta versão grega já estava bem afastado da
a pedido de Ptolomeu Filadelfo (285-247 a.C), primitiva pureza e integridade, e que a maioria
como narra uma pseudocarta de Aristéia, das alterações agora deploradas no texto
continua ainda a chamar-se a versão dos massorético, já existiam nos séculos imediatos
Setenta ou os Setenta (LXX). Na realidade, ao exílio babilónico. Faltando o apoio dos LXX
como mostra o exame interno, os tradutores para emendar um texto corrompido, não nos
foram muitos, traduzindo quem este, quem resta senão o recurso à crítica interna, ou seja, à
aquele livro, em épocas diversas, até que, reconstituição conjetural. A legitimidade e a
reunidas as traduções, formou-se um A. medida da aplicação destes critérios no Antigo
Testamento totalmente grego, mais amplo do Testamento, provam-nos alguns capítulos que,
que o hebraico massorético, segundo o que nos próprios livros canónicos, nos foram
6. transmitidos em dois exemplares diversos. falando, seja sinônimo da versão de S. Jerônimo,
Como., por exemplo, o salmo 18 (Vulgata 17), denominando-se o todo pela parte principal e
reproduzido em 2Rs 22 e, no próprio Saltério, o mais extensa.
salmo 14 (Vulgata 13) repetido com o número
53 (Vulgata 52). So tocante ao Pentateuco, O VALOR DA VULGATA. -- Entre os tradutores
além disso, temos como reforço o texto antigos da Bíblia, S. Jerônimo foi o último no
conservado entre os samaritanos, pertencente a tempo, embora o primeiro pelo mérito: não só
um tipo mais antigo que o massorético, por se ter podido valer dos trabalhos dos seus
abstração feita de certos acréscimos e antecessores, mas sobretudo porque, pela
adaptações em favor do culto deles no monte prática constante, adquiriu domínio tal das
Garizim (veja Jo 4,20). O arcaísmo do línguas bíblicas (hebraico, aramaico, grego), que
Pentateuco samaritano reflete-se até na forma entre os antigos cristãos não se conhece igual.
de, escritura que eles ainda adotam. Trata-se Acrescente-se um conhecimento igualmente
dum descendente direto da primitiva escrita único da literatura exegética, tanto judaica como
hebraica, mais próxima das origens fenícias (e cristã. Com uma bagagem de cultura literária
portanto também de nosso alfabeto), do que o incomum, com ótima preparação e excelentes
alfabeto em uso há séculos entre os hebreus. critérios, pôs mãos. ao árduo trabalho. Começou
De fato, a hodierna escrita hebraica (chamada, por corrigir (em Roma, em 384, a convite do
pela forma geral das letras, quadrada) deriva do papa S. Dâmaso) os Evangelhos latinos,
ramo aramaico do alfabeto adotado por eles na auxiliado para isso pelos melhores códices
época persa (cerca do séc. V a.C.) em lugar da gregos. Transferindo-se depois para a Palestina
antiga, na qual anteriormente foram escritos os (386), com o intuito de levar uma vida de
livros sagrados. No exame crítico do texto ascetismo e de estudo, estendeu o mesmo
original, esta mudança de alfabeto deve ser trabalho de paciente revisão, baseado no original
levada em conta. Ê o primeiro estudo a ser feito grego, aos livros do Antigo Testamento; mas,
por todo bom tradutor ou intérprete da Bíblia, tendo terminado uma parte deles, sobretudo os
como de qualquer outro livro: certificar-se da Salmos, que passaram depois à Vulgata,
leitura genuína, isto é, das palavras exatas compreendeu que prestaria um serviço muito
escritas pelo autor. "O primeiro cuidado de melhor à Igreja, fazendo uma nova versão
quem quer entender a divina Escritura diretamente do texto hebraico. E sem esmorecer
[sentencia Sto. Agostinho no seu magistral De diante das ingentes dificuldades, e sem se
Doctrina Christiana, 1. II, c. 21] deve ser o de cansar no longo e áspero caminho, a ela se
corrigir os códices". Traduzido em linguagem dedicou com admirável constância pelo espaço
moderna pelo Pontífice Leão XIII, na encíclica de uns quinze anos, de 390 a 404, até o
Providentissimus Deus, este preceito soa acabamento feliz da obra. Não traduziu os livros
assim: "Examinada com todo cuidado a leitura pela ordem que têm no cânon. Começou com os
genuína do texto, quando for o caso, passar-se- livros de Samuel, aos quais antepôs o conhecido
á a sondar e expor o sentido" do texto sagrado. Prólogo galeato, que é como que o programa de
toda a sua versão. Passou depois aos Salmos,
A VULGATA, -- Vulgata, por antonomásia, aos Profetas, a Jó, a Esdras e às Crônicas, aos
chamase a versão latina em uso na Igreja três livros atribuídos a Salomão (Provérbios,
latina. Ela é, em sua máxima parte, obra de S. Ecle-siastes, Cânticos). Em seguida, passando
Jerônimo, doutor da Igreja (cerca de 350-420), para o início, pôs mãos ao Pentateuco, e
pois resulta da união de três categorias de prosseguindo por Josué, Juízes e Rute, terminou
livros: V livros que ele traduziu diretamente do com Ester. Não traduziu todos os livros com a
texto original: todos os protocanônicos do mesma aplicação. Com maior cuidado traduziu e
Antigo Testamento, com exceção dos Salmos, corrigiu (como se exprime ele mesmo) os
mais Tobias e Judite; 2°- os livros de uma antiga primeiros livros, isto é, Samuel e Reis; os três
versão latina por ele revista e corrigida à luz do livros ditos de Salomão concluiu-os em apenas
texto grego: os Salmos, do Antigo Testamento; três dias; o de Tobias, num dia; o de Judite,
ao certo os Evangelhos e provavelmente o numa noite. Destas e de outras causas resulta
restante do Novo Testamento; 3° cinco certa desigualdade entre os vários livros, e
deuterocanônicos do Antigo Testamento, que também na unidade fundamental da versão. Em
tinham ficado na antiga versão latina, não geral, tendo-se formado uma idéia clara do que
tocados por S. Jerônimo, a saber: os dois dos queria dizer o autor sagrado, procurou produzi-la
Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc com a mesma clareza em latim, cuidando mais
(com a Carta de Jeremias). Não é, portanto, do sentido do que da letra, sem menosprezar a
inexato dizer que o termo Vulgata, comumente exigência da boa latinida-de. Guiado por esses
7. critérios, conseguiu imprimir à sua tradução, de primeiros passos para uma edição crítica da
modo geral, uma propriedade de sentido e uma Vulgata; no entanto, outros a corrompiam ainda
beleza de expressão tais, que só se apreciam mais, corrigindo-a a bel-prazer com o texto
plenamente quando comparadas com as hebraico; outros ainda mais radicalmente,
versões rivais gregas ou latinas, em geral segundo o caminho aberto pela reforma
rudemente literárias e bárbaras e, portanto, protestante, a repudiavam. Estes fatos
também obscuras. Todavia, também S. motivaram a intervenção do
Jerônimo, especialmente nos primeiros livros Concílio de Trento na importante questão.
traduzidos, às mais das vezes por veneração à
Na sessão IV (8 de abril de 1546) o Tridentino,
palavra divina, não se afasta de um duro
depois de haver definido o cânon das divinas
literalismo e por amor à clareza não foge de
Escrituras, como dissemos, para enfrentar as
termos e construções vulgares; nos seus
desordens introduzidas no uso dos livros
escritos originais brilha muito mais pela
sagrados, decretou que a Vulgata, venerada pela
linguagem e pelo estilo.
antigüidade e pelo uso diuturno da Igreja, fosse
considerada versão autêntica e, além disso,
VICISSITUDES E ESTADO ATUAL. -- Ás traduções fosse impressa com a máxima correção. A
de S. Jerônimo não encontraram imediatamente execução da segunda parte deste decreto, isto é,
no mundo latino a acolhida que mereciam. A a edição correta da Vulgata, foi confiada pelo
propagação, devido em parte às dificuldades da próprio Concílio à Santa Sé. Os Sumos
época, foi lenta, mas em constante progresso, Pontífices, desde Pio IV até Clemente VIII,
de sorte que dois séculos depois Sto. Isidoro de nomearam para esse fim quatro comissões
Sevilha (+ 636) pôde escrever que ela já estava sucessivas, cujos trabalhos, não obstante as
em uso em toda a Igreja do Ocidente, e mais numerosas dificuldades e várias vicissitudes,
tarde o renascimento carolíngio consagrou-lhe terminaram com a edição oficial vaticana que,
definitivamente o triunfo sobre as antigas sobre a base lançada por Sixto V, foi publicada
versões latinas. Formou-se assim, entre o séc. por Clemente VIII em 1592, chamando-se, por
V e o IX, a versão que, propriamente é isso, sixto-clementina; a essa, a qual se
chamada Vulgata: fundo jeronimiano com seguiram outras duas reedições vaticanas em
algumas partes da antiga latina, como 1593 e em 1598, tiveram que se conformar todas
evidenciamos acima. No curso dos séculos, as edições subseqüentes em qualquer parte do
porém, transmitindo-se em exemplares mundo, até aos nossos dias.
manuscritos, perdeu, ora mais, ora menos, da
sua primitiva pureza, seja por causa dos A autenticidade da Vulgata, primordial decreto
copistas, seja por infiltrações de antigas Tridentino, foi muitas vezes mal compreendida.
versões. Não faltaram, de vez em quando, Antes de tudo, com este privilégio conferido à
doutos e zelosos varões para opor-se à invasão Vulgata, de ser a única versão autêntica, o
corruptora, emendando o texto corrente a fim de Concílio não entendeu colocá-la acima dos
reconduzi-lo à primitiva integridade. Digna de textos originais, nem diminuir o valor intrínseco
memória pelo valor dos resultados e pela das outras versões, sobretudo das antigas, mas
influência eficaz a revisão efetuada por Alcuíno também das modernas, como declaram
(801), ordenada por Carlos Magno. Mas nem expressamente as atas do concílio. O decreto
sequer esta escapou à rápida degeneração, põe diante da Vulgata somente as outras
nem impediu que se formassem outros tipos de versões em língua latina; o resto (seja texto,
textos, sobretudo na Espanha e na Itália. sejam versões em outras línguas) não é
Quando, no séc. XIII, afluíam à Universidade de alcançado pelo decreto. Em relação às versões
Paris estudantes de toda a Europa, trazendo latinas afora a Vulgata, portanto, o decreto é
cada qual o seu texto bíblico, sentiu-se a negativo; não lhes confere o valor reservado à
necessidade, para uso escolar, de uniformizar Vulgata, mas não as rejeita nem as condena.
os textos muitas vezes discordantes entre si; e Todo o peso do decreto, portanto, se concentra
isso foi feito, enxertando-se sobre o fundo sobre o caráter positivo reconhecido à Vulgata;
alcuiniano as variantes dos outros. Originou-se de autêntica.
daí um texto de valor discutível que, todavia,
graças à enorme influência exercida pela
célebre Universidade, teve grande sucesso e AVE-MARIA
propagou-se por toda a "Europa, primeiro em A Bíblia “Ave Maria” é uma versão da Bíblia
cópias manuscritas, e depois, inventada a arte cristã publicada pela Editora Ave Maria em
tipográfica, também nas edições impressas. Só 1959, traduzida do grego e hebraico, por monges
na primeira metade do séc. XVI deram-se os beneditinos de Maredsous (Bélgica). Foi
8. considerada uma das melhores traduções do
mundo na época e em sua primeira edição teve
uma tiragem de 42.000 exemplares. É uma das
traduções mais populares no Brasil. Com
poucas notas de rodapé, tem uma linguagem
coloquial, porém sem prejuízo para a
compreensão dos aspectos históricos e
culturais. Na década de 50 publicaram a Bíblia
católica do Brasil, cuja tradução, supervisionada
pelo frei João José Pedreira de Castro, vice-
presidente da LEB – Liga de Estudos Bíblicos –
e fundador do Centro Bíblico de São Paulo, foi
feita a partir da versão francesa dos monges
beneditinos, de Maredsous, Bélgica, uma
tradução direta do hebraico, grego e aramaico.
Com uma linguagem popular, que tornou sua
leitura bastante acessível, a Bíblia Ave-Maria
encontra-se agora ONLINE!
9. ANTIGO TESTAMENTO
Nos relatos do Antigo Testamento por exemplo, de quem narra os
presenciamos a história do povo hebreu pormenores do adultério e do homicídio
durante quase dois mil anos, desde a (2Sam 11). Mas ao lado do escândalo
vinda de Abraão à Palestina até a aparece a correção. Que há de mais
instalação da dinastia dos Hasmoneus edificante do que a santa ousadia de
(cerca dos séc. XX-II a.C): história essa em Natan em lançar à face de seu soberano
conexão, ora maior ora menor, ora direta o duplo delito, do que o arrependimento
ora indiretamente, com a dos povos e a humilde confissão de Davi, o perdão
vizinhos, sobretudo dos grandes da culpa, seguido da execução dum
impérios, entre os quais a Palestina jazia castigo da parte de Deus? (2Sam 12).
como ponte: ao sul, o Egito; ao norte, Outras vezes o pecado é censurado mais
sucessivamente, Babilônia, a Assíria, a abertamente (Gên 38,9-10). Só os
Pérsia e a Síria. Constituíam eles outros fariseus poderiam escandalizar-se com
tantos centros de civilização, que se tais narrativas, motivos de ensinamento!
irradiava entre os povos submetidos ou Além disso, quão poucos são eles em
vizinhos, formando uma vasta unidade comparação com tantos exemplos de
cultural. No meio dessa civilização nobres virtudes! São apenas sombras
comum movia-se o povo de Israel, humanas a dar maior realce às luzes
sofrendo a sua influência. Nas artes e na divinas da história sagrada. As não
indústria, Israel jamais desenvolveu uma poucas cenas de sangue que ela relata,
civilização própria; ficou devedor ao não passam dum reflexo daqueles
estrangeiro, como também a sua língua e tempos rudes e ferozes. Também os
literatura trazem o cunho da origem anais de outros povos orientais estão
comum ou do prestígio de outros povos repletos delas, distinguindo-se os dos
socialmente mais evoluídos. No entanto, hebreus até por um maior senso de
a ausência de originalidade e humanitarismo; os reis de Israel gozavam
independência de civilização material, de fama universal de clemência (lRs
põe em muito maior relevo o valor das 20,31).
instituições religiosas e morais, A relativa brandura dos hebreus
elementos básicos da civilização genuína derivava da legislação que Deus lhes dera
e completa que foram glória exclusiva por intermédio de Moisés. A pena de
desse povo eleito. morte é aplicada mais raramente do que
no código de Hamurabi, e quase só por
VALOR DA INTERPRETAÇÃO. — O Antigo meio de apedrejamento. Reconhece a lei
Testamento é uma obra de talião, em voga nos costumes dos
verdadeiramente divina porque inspirada povos, mas a mitiga (Êx 21, 23125.28-
por Deus e porque nos apresenta, pode- 32). Assim em outras asperezas
se dizer, em cada uma de suas páginas, a (vingança do sangue) ou relaxamento de
ação de Deus sobre os homens. Ao costumes (poligamia, divórcio) a lei,
mesmo tempo, porém, é uma obra encontrando costumes inveterados e
profundamente humana, porque não podendo desarraigá-los totalmente,
destinada aos homens, fala uma intervém para os refrear e regulamentar
linguagem humana e nos apresenta, na (cf. Mt 19,8). Doutra parte, impõe os
sua história, os homens tais quais são, deveres de humanitarismo também para
com suas deficiências e rebeldias contra com o próprio adversário (Êx 23,4-5) e
os desígnios divinos. Não costuma estabelece a medida da mútua
encobrir as faltas dos seus heróis; Davi, benevolência, com o preceito: "Amarás o
10. teu próximo como a ti mesmo" (Lev fatos históricos e às pessoas desse
19,18), donde a norma: "Não faças aos "drama" divino, que no Novo
outros o que não te agrada" (Tob 4,16). Testamento recebem a sua conclusão. Os
Para com os estrangeiros, as viúvas, os apóstolos e o próprio Jesus (Mt 12,40;
órfãos, em suma, os mais necessitados, Jo3,14;6,32) indicaram-nos algumas
recomenda considerações especiais (ÊX dessas imagens antecipadas que, a
22,21-23; Dt passim). Muitas vezes o exemplo de S. Paulo, costumam chamar-
próprio Deus, especialmente pela se tipos ou figuras; o objeto por elas
pregação dos profetas, faz-se seu vislumbrando chama-se antítipo ou
advogado e protetor. Contra o abuso da figurado. Daí se segue que no Antigo
escravidão, praga da sociedade antiga, a Testamento, além do sentido das
lei mosaica, além de múltiplas restrições palavras chamado verbal ou literal, há
(Êx 21,1-11; Lev 25,39-45; Dt 15,12-18), que reconhecer um sentido das coisas,
já defende o princípio de igualdade dos chamado real ou típico, e às vezes menos
homens perante Deus (Lev 25,42). Nada felizmente, místico e alegórico. Entre
disso se encontra em outros códigos estas duas categorias de sentido há
orientais, sem falar na genuína doutrina conexão, mas ao mesmo tempo grande
religiosa, própria do Antigo Testamento, diferença. O sentido literal (que pode ser
que também ê fator autêntico de próprio ou impróprio, isto é, metafórico)
verdadeira civilização. Por outro lado, as não pode faltar em nenhum dito da
suas mais nobres eminências o Antigo Escritura e acha-se freqüentemente sem
Testamento as atinge nos seus profetas, o típico, do qual é fundamento
figuras grandiosas de poetas e de heróis. necessário. O típico, ao invés, jamais
Em comparação com a sublime pode disjungir-se do literal e não existe
doutrina evangélica, a lei antiga, em toda parte, mas tão-somente onde
evidentemente, é bem imperfeita; para há verdadeira semelhança e relação com
aqueles tempos e povos antigos, porém, algo de análogo no Novo Testamento.
era uma lei santa, que trazia em si os A autêntica originalidade do Antigo
germes de um pleno aperfeiçoamento. Testamento consiste na sua doutrina
Era uma instituição religiosa preparatória religiosa e moral, cujo centro ocupa-o a
para um regulamento definitivo, que idéia do monoteísmo. Na expressão
devia ser trazido pelo Messias, por Cristo. artística do pensamento, porém, não
S. Paulo, com razão (Gál 3,24), comparou difere muito dos produtos das línguas e
a lei mosaica ao pedagogo, que conduz literaturas irmãs, em particular da
os discípulos à escala do Mestre, de acádica e da fenícia (ugarítica). A língua
Cristo. As próprias falhas do Antigo hebraica, bastante parca de conjunções
Testamento levavam a desejar o Senhor subordinativas, costuma exprimir-se em
e Salvador, cujo advento fora anunciado proposições breves coordenadas com a
pelos profetas. simples aditiva: e . . . e . . . Resulta daí
Observa-se, puis, um progresso vital certa dureza e monotonia, sobretudo na
do Antigo ao Novo Testamento, como do parte narrativa, que as versões modernas
embrião que se desenvolve num devem atenuar, ligando e construindo à
organismo perfeito. Deste caráter do nossa maneira usual.
Antigo Testamento e desta sua relação O estilo hebraico é imaginoso e
com o Novo, deriva uma conseqüência concreto; exprime-se com metáforas
importante para a sua correta ousadas e imagens exuberantes,
interpretação, pois as suas instituições apresentando as coisas abstratas e
deviam ter alguma semelhança com as espirituais com termos realistas capazes
do Novo; eram as suas imagens de chocar nossos costumes e gostos mais
antecipadas. Analogamente quanto aos refinados. Em particular fala de Deus e
11. de suas ações em termos de atividade leitor não se admire disso, nem se deixe
humana: mãos, olhos, ouvidos levar a erro. Sob a aparência muitas
(antropomorfismo), ficar sentido, vezes áspera, oculta-se sempre um
comover-se, arrepender-se pensamento nobre e puro.
(antropopatismos), e semelhantes. Que o
12. O PENTATEUCO
O primeiro lugar de ordem e de honra antiga e para a história especial do povo
entre os livros do Antigo Testamento hebreu.
ocupa-o aquele que os gregos chamaram Quem ê o autor do Pentateuco? Desde
Pentateuco, isto é, obra em cinco tomos. a mais remota antigüidade foi
Para os hebreus é a "tora", ou seja, a lei, considerado seu autor o próprio Moisés,
nome tomado da matéria central. o protagonista dos últimos quatro livros.
Também os hebreus o dividiram nos Já nos livros posteriores da Bíblia citam-
mesmos cinco livros que os gregos, se-lhe várias sentenças com a fórmula:
distinguindo--os com a palavra inicial. Nós "Está escrito na lei de Moisés", ou "no
usamos exclusivamente os nomes livro de Moisés", ou "no volume da lei de
impostos pelos gregos, que de maneira Moisés". Assim, para não falar do livro de
graciosa lhes caracterizaram o conteúdo: Josué, que é a continuação imediata e
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, como que o complemento do Pentateuco
Deuteronômio. De jato, o Gênesis narra (Jos 8,31;23,6), em lRs 2,3; 2Rs 14,6;
as origens do universo e do gênero 2Crôn 23,18;25,4;35,12; Esdr 3,2;6,18; Ne
humano até à formação paulatina do 8,1; 10,34; 13,1; Bar 2,2; Dan 9,11 etc. Os
povo de Israel na sua estada no Egito. O Evangelhos nos apresentam a convicção
Êxodo narra a saída dos israelitas do de que Moisés é autor da lei, difundida e
Egito, conduzidos por Moisés aos pés do radicada entre os judeus; o próprio Jesus,
Sinai, para aí receberem de Deus a sua lei bem como os apóstolos admitem-na e a
religiosa e civil e se constituírem, por confirmam (veja Mt 8,4; Mc 12,26; Lc
meio de um pacto sagrado 20,37; Jo 5,46; At 3,32;15,21; Rom 10,5
("testamento"), em peculiar "povo de etc.). Entre as testemunhas eloqüentes da
Deus (Javê)". O Levítico regula o culto fé judaica figuram Fílon, José Flávio, e
religioso à maneira de ritual, dirigido com maior crédito e ressonância o
especialmente aos levitas, que formavam Talmud (tratado Baba batra, f. 14,15);
o clero consagrado ao serviço do entre os cristãos, os Padres da Igreja são
santuário. Os Números recebem o nome unânimes em reconhecer Moisés autor
dos recenseamentos do povo contidos na do Pentateuco.
primeira parte, estendendo-se, depois, Não contraria essa atribuição o fato de
em referir fatos e providências legislativas que de Moisés se fale sempre em terceira
correspondentes a cerca de quarenta pessoa; Xenofonte e Júlio César (para
anos de vida nômade no deserto da falar só em nomes célebres), fizeram o
península sinaítica. No Deuteronômio, ou mesmo. Nem suscita a menor dificuldade
segunda lei, emanada pelo fim da jornada a grande antigüidade de Moisés (cerca do
no deserto, Moisés retoma a legislação século xiv a.C), pois agora sabemos por
precedente para adaptá-la às novas documentos originais recentemente
condições de vida sedentária, em que o descobertos, que naquela época, não só a
povo viria a se encontrar com a conquista escrita já era conhecida desde séculos,
iminente da Palestina. mas até o próprio alfabeto fenicio-
Neste rápido apanhado aparece num só hebraico já fora inventado. Nem
lance tanto a unidade como a variedade derrogam esta convicção universal a
do Pentateuco, bem como a sua opinião de alguns, já na Idade Média, de
importância fundamental para a religião que um outro trecho breve, como os oito
13. últimos versículos do Deuteronômio, que de Esdras (século v a.C). Com tais
narram a morte de Moisés, tenha sido conclusões, nada mais resta a Moisés do
acrescentado mais tarde ao Pentateuco. Pentateuco, exceto um ou outro
Só nos tempos modernos é que surgiram fragmento, como o Decálogo (Êx 20),
dúvidas e negações radicais. incorporado pelos primeiros
A partir do século xvin vem-se fazendo colecionadores das antigas memórias (J E)
pesquisas perspicazes em três sentidos: à própria obra.
composição, autor, idade do Pentateuco. Esta teoria, que se estriba, em boa
A composição: é fruto ou não da união de parte, no princípio filosófico da evolução
vários documentos ou de mais escritos aplicado à religião e à história do povo
originariamente distintos? O autor: de hebreu, se bem que tenha encontrado a
quem são as partes individuais ou os maior aceitação entre os protestantes,
documentos, quem as reuniu num todo, teve na própria Alemanha, fortes
ou seja, de quem é a redação definitiva opositores entre os críticos de primeira
do atual Pentateuco? A idade: quando ordem, especialmente no que concerne
viveu cada um dos autores e redatores? às datas atribuídas aos supostos
São três questões distintas entre si, mas documentos, que, se na verdade é o
tão conexas que podem e habitualmente ponto mais revolucionário, é também o
são tratadas como um tema comum: a mais vulnerável de todo o sistema. Para
questão mosaica. Para responder a tais desmenti-lo neste ponto, surgiram no
questões elaboraram-se, no século xix, século xx novas escolas; novas
vários sistemas; mas prevaleceu sobre orientações emergiram do solo, com as
todos, no fim do século, o defendido por escavações no Oriente, importantíssimos
K. H. Graf (1866) e aperfeiçoado por J. documentos, tais como o código de
Wellhausen (1876-78). Ele distingue no Hamurabi, rei de Babilônia, os arquivos
Pentateuco quatro autores ou escritores dos heteus, ou hititas, em Bogazkõy, na
diferentes: dois narradores denominados Ásia Menor, e os poemas ugaríticos
pelo uso diferente do nome de Deus, um descobertos em Ras Shamra, no litoral da
¡avista (abreviado }), o outro eloísta (E), Síria, para só mencionar os principais. Eles
aos quais se deve a maior parte dos fatos trazem à luz costumes, instituições e ritos
referidos no Gênesis, Êxodo, Números; análogos aos do Pentateuco de tempos
um deuteronomista (D), autor quase até mais antigos de Moisés, e que os
exclusivo do Deuteronômio; e um tratado críticos julgavam próprios de época mais
presbiteral (P) ou código sacerdotal, que recente, e nos revelam fatos que se
compreende todo o Levítico e muitas refletem na vida dos patriarcas (Gên 12,
partes narrativas de Gênesis, Êxodo e fim), com matizes que poucos séculos
Números. Esses os documentos. Para as atrás teria sido impossível imaginar.
respectivas datas, segundo a supracitada Conseqüentemente, a brilhante
escola, o código sacerdotal (P) seria concepção arquitetada por Wellhausen
posterior ao profeta Ezequiel (primeira acha-se em plena dissolução. Resiste
metade do século vi a.C), o Deuteronômio ainda tenazmente a análise
teria sido composto pouco antes da documentária, ou seja, a distinção de
reforma religiosa de Josias, ou seja, pelo quatro (ou mais) fontes, de cuja fusão
ano de 621 a.C, o eloísta e o ¡avista teria resultado o Pentateuco.
seriam mais antigos (século viu e ix). A Remetendo, para mais amplas
união de todos esses escritos no atual explicações, a tratados especializados de
Pentateuco ter-se-ia realizado no tempo introdução bíblica, ou a comentários mais
14. desenvolvidos, exporemos aqui os fatos Eloim 6 Javé. Na tradução, a Vulgata nem
objetivos, sobre os quais se quer sempre conserva a distinção.
fundamentar a prova da estrutura O emprego alternado dos dois nomes
compósita do Pentateuco, para indicar divinos não é casual; nem é sem motivo
depois uma via de solução, e mostrar que cessa em Êx 6, predominando depois
como esses fatos, quando reduzidos ao quase exclusivamente Javé; isso está
seu justo valor, não impedem que Moisés manifestamente em relação com o que aí
possa ser verdadeiramente chamado se lê; às gerações precedentes Deus se
autor do Pentateuco. A exposição que revelava como Sadai, pois desconheciam
segue auxiliará o leitor a formar-se uma o nome sagrado de Javé, revelado pela
compreensão mais clara destes livros. primeira vez a Moisés (veja também Êx
Nomes divinos. — Para exprimir a idéia 3,13-15,). Compreende-se, pois, porque
de Deus, a língua hebraica dispõe de nas narrativas precedentes o nome usado
muitos termos. O mais freqüente (1.440 seja Eloim. Mas, como explicar a presença
vezes no Pentateuco, mais de 6.800 em de Javé em tantas partes do Gênesis?
toda a Bíblia) é "Javé" (ou "Jeová", Depois de Astruc viu-se aqui a prova
segundo uma pseudo pronúncia tangível de duas fontes ou dois autores
introduzida entre os séculos xvi e xix), diferentes, chamados um eloísta (sigla E),
nome próprio, pessoal. " 'Elohim" (975 outro javista (sigla J). Veremos se com
vezes no Pentateuco, cerca de 2.500 na razão.
Bíblia) é nome de natureza, como se Língua e estilo. — No entanto, estão já
disséssemos: a divindade; todos concordes que o argumento dos
gramaticalmente plural (a forma singular, nomes divinos, por si só, não é suficiente
" 'eloah", é poética e existe só 2 vezes no para se distinguirem solidamente fontes
Pentateuco), quanto ao sentido é singular ou autores. Este argumento por isso é
"El", de igual valor, mas arcaico e poético, acompanhado de provas subsidiárias.
46 vezes no Pentateuco; " 'Adonai" = Com efeito, observam eles, à alternação
Senhor, 17 vezes; "Saddai" = o dos nomes divinos acha-se associada a
e
Onipotente (?), 9 vezes; " Elion" = o semelhantes mudanças de vocábulos e
Altíssimo, 6 vezes. À questão mosaica construções. Por exemplo, o ato criador
interessam principalmente os dois em Gên 1 exprime-se com "bara' ", em 2
primeiros. Foi observado (e o primeiro a com "yasar"; os habitantes da Palestina
dar pelo fato foi o médico católico francês antes dos hebreus são chamados
(í
Jean Astruc em 1756) que no Gênesis e "cananeus" por J, amor eus" por E; a
no início do Êxodo capítulos inteiros serva, "sifha" por J, * 'amah" por E; o
empregam exclusivamente, ou quase, o patriarca Jacó só em J toma o nome de
nome Javé; outros, ao invés, com a Israel. A diversidade prolonga-se além do
mesma exclusividade e constância rezam Gênesis; o monte onde foi promulgada a
Eloim. Assim, por exemplo, em Gên 1, lê- lei, em J chamava-se "Sinai", em E "Ho-
se 33 vezes Eloim, e nunca Javé; em Gên reb"; o sogro de Moisés, em J tem o nome
4, uma vez Eloim e 10 vezes Javé (em 2-3 de "Raguel", em E de "Jetro", e assim por
diga-se de passagem, estão juntos Javé e diante, igualmente, mudando os nomes
Eloim); em Gên 10,16 nenhum Eloim, 36 divinos, muda o estilo. J é mais abundante
Javé (com 2 Adonai); em Gên 17, ao invés, e minucioso; condescendente e popular,
7 Eloim, 1 Javé; em Gên 24 nenhum não evita os mais chocantes
Eloim, 19 Javé; em Gên 30-35 contra 32 antropomorfismos; vivaz e dramático,
tem um colorido poético, fascinante. E é
15. mais seco, anedótico, um pouco permitir a ereção de um altar em
descuidado. qualquer lugar, memorável por alguma
Observando-se a diversidade de estilo, intervenção divina, e aí imolar vítimas
descobrem-se mais duas fontes ou sagradas. Lev 17,3-9 não admite
autores: um segundo eloísta que, nas nenhuma matança de animal longe do
partes legislativas, ocupa-se de altar, sobre o qual deve ser derramado o
preferência do culto religioso, donde foi sangue, sendo este altar, em união com o
chamado sacerdote e autor do "código tabernáculo sagrado, o único para todos.
sacerdotal" (P); e na seção narrativa ele Em Dt 12,1-28, segundo a interpretação
aprecia as estatísticas, anotações comum e óbvia, únicos são o templo e o
cronológicas, fórmulas esquemáticas altar, e fora deles não é permitido
(exemplo seja a narração da criação, Gên oferecer sacrifícios a Deus. Permite-se, no
1), a linguagem precisa e quase pedante entanto, que se matem animais em
do jurista. E, enfim, o pregador que qualquer lugar, para o uso comum,
escreveu o Deuteronômio (D) num estilo derramando-lhes o sangue por terra, ação
amplo, parenético, cheio de afeto declarada profana e não mais sagrada.
humanitário e de suave insinuação. A esta variedade de leis corresponde —
Os duplicados. — Para provar a observa-se — a prática na história,
pluralidade de autores do Pentateuco conforme vem narrada pela própria
surge um terceiro argumento, mais Bíblia. De fato, vemos nos livros dos Juízes
valioso do que os dois antecedentes. (6,24-28; 13,15-23), de Samuel (ISam 6,
Certos acontecimentos — diz-se — e não 9.17;9,12; 2Sam 15,7-12;24,18-25), dos
poucas leis, ocorrem duas e até três vezes Reis (IRs 3,2-4; 15,14 etc.), altares erigidos
em forma pouco diversa. Assim, a criação e sacrifícios oferecidos quase por toda
do mundo é narrada duas vezes (Gên 1,1- parte, segundo as circunstâncias, em
2,3 e 2, 4-24); duas vezes Agar é expulsa harmonia com a lei do Êxodo. Mas, em
da casa de Abraão (16 e 21); duas vezes 2Rs 22,23, lemos que o rei Josias no
acha-se em perigo a honestidade de Sara sétimo ano de seu reinado (621 a.C.),
(12 e 20) e uma terceira a de Rebeca (26); tendo-se encontrado como que por
as duas genealogias de Caim (4) e de Set acaso, no templo, um exemplar da lei, fez
(5) têm em comum a maior parte dos dela uma aplicação imediata, que
nomes; no dilúvio (6-8) são entrelaçadas corresponde exatamente às prescrições
duas narrações distintas. Duas vezes é do Deuteronômio, particularmente acerca
repetida a vocação de Moisés (Êx 3 e 6), a da unicidade do santuário e do altar.
queda do maná e a pousada das co- Trata-se da chamada reforma de Josias,
dornizes no deserto (Êx 16 e Núm 11), a precedida, um século antes, por uma
prova junto às águas de Meribá (Êx 17 e tentativa de Ezequias no mesmo sentido
Núm 20). O preceito das três solenidades (2Rs 17,22; 2Crôn 32,12; Is 36,7).
anuais é repetido até cinco vezes (Êx Esses os fatos. A supradita escola crítica
23,14-19;34,23-26; Lev 23; Núm 28; Dt tira daqui as conseqüências que temos
16). visto: o Deuteronômio, o primeiro a
Variações nas leis. — Entre os ostentar a lei do altar único, foi composto
duplicados legais, especial atenção no século vil a.C, pouco antes da reforma
reclamam os que introduzem uma de Josias. O Levítico, que já supõe essa lei,
modificação. A mais célebre e mais grave bem como todo o código sacerdotal ao
de tais modificações diz respeito ao lugar qual pertence, é posterior a Josias e ao
do culto (templo e altar). Êx 20,24 parece exílio, acrescentado pouco depois. Os
16. dois escritos narrativos, o javis-ta e o repetido na eloísta (um "duplicado"
eloísta, que já circulavam separadamente, análogo aos do Pentateuco) sem outra
o primeiro desde o século ix na Judéia, o variante, ou quase, senão justamente
segundo desde o século viu no reino de esses nomes divinos. Ora, assim como
Israel, refletem a prática mais antiga. ninguém duvida que os salmos assim
Essas conseqüências sustentam-se? repetidos, por exemplo, 13 e 52 sejam do
Será que os fatos acima mencionados, mesmo autor, assim também não está
reduzidos aos seus justos limites, não provado que seções ¡avistas e eloístas no
comportam outra explicação? A solução Pentateuco devam pertencer a autores
da questão da autenticidade mosaica do diferentes.
Pentateuco depende da resposta a esses A língua e o estilo não dependem
dois quesitos. unicamente do autor, mas também do
Partindo do primeiro argumento, o dos assunto e do gênero literário. Santo
nomes divinos, afirmamos antes de mais Agostinho ditava os seus trabalhos
nada que nem sempre esteve ao arbítrio dogmáticos de modo diverso dos seus
do escritor usar Javé ou Eloim; o matiz sermões populares. O Deuteronômio, que
sutil de sentido e a associação diferente é a promulgação oral de uma lei, em
de idéias contidas nos dois nomes, levam, reunião pública, não pode ter o estilo
em dadas circunstâncias, a usar um com lapidar de um código gravado em tábuas,
exclusão de outro, e em certas nem as disposições rituais do código
construções o uso, sem razão aparente, sacerdotal têm que se amoldar às leis
ligou-se exclusivamente a um ou ao civis do código da aliança (Êx cc. 21-23). A
outro. Ê daí que se diz: " 'is Elohim" = variedade, por maior que seja, não se
homem de Deus, mas "debar Jahvé" = opõe à unicidade substancial do autor.
palavra do Senhor, e não o contrário. O Além disso, não está excluído, como
critério dos nomes divinos, portanto, está veremos, o emprego de fontes e de
sujeito à cautela. Além disso, será que colaboradores que também deixam a sua
estamos certos de que os nomes divinos, marca na obra definitivamente concluída.
como figuram no texto atual, são Distinguimos duas espécies dos
originais, isto é, remontam ao próprio chamados duplicados: duas vezes ocorre
autor? um fato semelhante (duplicado real), ou
A tese crítica o supõe, e é para ela duas vezes narra-se o mesmo fato
indispensável. Há, porém, boas razões (duplicado literário); para a questão de
para duvidar. A alternação dos nomes unicidade ou pluralidade de autor,
divinos não é particularidade do somente a segunda espécie tem valor.
Pentateuco: constata-se também em Ora, que, por exemplo, a beleza de Sara
outros livros da Bíblia, especialmente no tenha excitado duas vezes, em duas
Saltério, onde os primeiros quarenta e os cidades diversas, a cobiça de um déspota
últimos sessenta salmos usam quase oriental (Gên 12 e 20) nada tem de
exclusivamente Javé, ao passo que os improvável. Ê também positivamente
demais cinqüenta, do meio, empregam verossímil que em quarenta anos mais de
geralmente Eloim. Ora (e isto é de uma vez se tenha verificado a passagem
importância capital), pode-se demonstrar das codornizes nas suas migrações
com vários argumentos que também através do deserto (Êx 16; Núm 11); estes
naqueles salmos, agora eloísticos, são duplicados reais. Cumpre examinar,
originalmente no lugar de Eloim havia assim, caso por caso. Para a repetição em
Javé. Mais de um salmo da seção javista é que o mesmo ato não pareça admissível,
17. isto é, em se tratando de verdadeiros (talvez também, parcialmente, por
duplicados literários, tem valor a solução escrito) às gerações do povo de Israel,
que delinearemos mais adiante. cujas memórias o grande legislador teria
É insito em toda lei, civil ou religiosa registrado, deixando às narrações o seu
que, permanecendo inalterados os matiz original. Um exemplo claro deste
pontos fundamentais, em muitos outros gênero temo-lo no capítulo 14 (expedição
esteja sujeita a variações com o decorrer de Abraão e encontro com Mel-quisedec),
do tempo e as mudanças de de características tão individuais, que a
circunstâncias. Nem a lei mosaica podia crítica o atribui a uma fonte especial, não
escapar a essa necessidade quase vital. pertencente a nenhuma das quatro
Mas o próprio texto apresenta a razão habituais. No tocante aos quatro livros
das variações observadas no Pentateuco. posteriores, que versam exatamente
Desde a primeira legislação no Sinai sobre os tempos de Moisés, já indicamos
(código da aliança) e a segunda, às as razões que explicam as
margens do Jordão, o Deuteronômio, particularidades estilísticas de dois
passam-se cerca de quarenta anos, e, o grandes documentos legislativos, o
que mais importa, o povo de Israel, no fim Código sacerdotal e o Deuteronômio.
desse período, encontra-se prestes a Outra hipótese, baseada na analogia do
sofrer uma profunda transformação, ao Saltério, é a seguinte: o Pentateuco,
passar da vida nômade ou pastoril, à composto inteiramente por Moisés, parte
sedentária e agrícola. Impunha-sef baseado em suas recordações, parte em
portanto, uma adaptação do antigo documentos fornecidos pela tradição e
direito às novas condições. Da não pela casta sacerdotal, propagou-se na
observância rigorosa, durante séculos, da sociedade hebraica, e, durante a
lei deuteronômica sobre a unicidade do transmissão, sofrendo modificações na
altar, não prova de per si que não forma, em nada insólitas na transcrição
existisse. De resto, um ou outro de obras literárias, chegou, com o tempo,
acréscimo ou modificação pode ter-se a receber, em dois pontos diversos da
introduzido com o tempo nas leis área israelita, por exemplo, no reino de
mosaicas sem derrogar ou diminuir a Efraim e no reino de Judá, duas formas
paternidade de Moisés do Pentateuco. um tanto diferentes; em uma delas, entre
A escola crítica, portanto, não provou, outras coisas, o primitivo nome de Javé
contra o testemunho claro da própria foi substituído por Eloim. Mais tarde (no
Bíblia, a sua tese de que o Pentateuco em reinado de Ezequias ou Josias), quando se
nada pertence a Moisés. Das sentiu a necessidade ou a oportunidade
discrepâncias, quaisquer sejam, de de unificar as duas recensões, um redator
vocabulário, de estilo, de leis, dão-se fundiu-as, extraindo ora desta ora
outras explicações conciliáveis com a daquela, muitas vezes contentando-se
autenticidade mosaica. No Gênesis, por com justaposições, sem alterar as feições
exemplo, não se lhe opõe a distinção de próprias de cada uma. Destarte explicar--
fontes, pois trata-se de acontecimentos se-iam os fenômenos que levaram a
anteriores a Moisés, transmitidos, ao acreditar na existência de fontes diversas.
menos em grande parte, oralmente
18. INTRODUÇÃO AO GENESIS do homem sobre a terra. A Bíblia não
é contrária a resultados certos de tais
O Gênesis narra as primeiras ciências, também porque as listas
origens do mundo, do gênero humano, genealógicas do Gênesis poderiam
do povo hebreu, tudo relacionado com ser incompletas, ou seja, com
Deus, com sua revelação, com seu omissões de elos intermediários.
culto. Deus cria o universo, revela-se Do nascimento de Abraão à
aos primeiros homens, Deus escolhe descida dos israelitas ao Egito -- 290
uma família (Abraão e sua anos -- (Gên 21,5 + 25,26 + 47,28), a
descendência), para no seio dela cronologia respectiva é mais ou
conservar e desenvolver os germes da menos certa. Para a cronologia
primitiva revelação e a verdadeira absoluta (baseada na era vulgar) ter-
religião, no intuito de preparar a solene se-ia um ponto fixo no sincronismo de
revelação do Sinai, narrada no Êxodo. Abraão com Hamurabi, o célebre rei
A criação do céu e da terra (1,1-2,3), da Babilônia, cujo famoso código de
é como que o prólogo do grandioso leis foi descoberto em 1902. A
drama, que se divide em duas partes, identificação, porém, de Amrafel, rei
e tem por protagonistas os cinco de Senaar (Gên 14,1), com Hamurabi
grandes patriarcas: Adão e Noé, da Babilônia, é hoje mais do que
patriarcas do gênero humano; Abraão, duvidosa; tampouco a data do
Isaac e Jacó, patriarcas do povo reinado deste último está
hebreu. definitivamente fixada; atualmente
O todo ê enquadrado pelo autor tende-se a colocar-Ihe o início por
sagrado em dez tábuas genealógicas volta de 1728 a.C. Tomando como
(2,4; 5,1; 6,9; 10,1; 11,10; 11,27; ponto de partida a data em que os
25,12; 25,19;36, 1;37,2) dispostas de israelitas saíram do Egito sob o faraó
tal modo que, após ter registrado os Menefta pelo ano de 1200 a.C, e
ramos secundários da propagação remontando o curso dos séculos com
humana, volta a narrar difusamente os os dados da própria Bíblia (Ex 12, 40
destinos do ramo patriarcal, isto é, da e passagens acima citadas), Abraão
descendência eleita, portadora da teria nascido por volta de 1900 a.C,
revelação divina e da verdadeira mas não é certo qual seja o faraó do
religião. Êxodo.
O Gênesis abrange na sua narração Muitas páginas do Gênesis têm
uma longa série de séculos, e correspondência nos monumentos
colocando (no tronco principal das babilónicos e egípcios: nos primeiros,
suas genealogias) ao lado dos nomes a história primitiva, isto é, os
também números de anos, forneceria primeiros 11 capítulos; nos egípcios,
os elementos de uma cronologia. o resto, especialmente a história de
Infelizmente as cifras não parecem José (37-50). Com os dois primeiros
bem conservadas, porque nos capítulos (a criação) têm algo de
números dos capítulos 5 e 11 os três semelhante vários poemas
textos independentes: o hebraico, o babilónicos entre si discordantes e
samaritano e o grego divergem entre que são uma fantasiosa mitologia de
si. Baseando-se sobre o seu texto, os crasso politeísmo; quão mais sublime
gregos do império bizantino colocavam pela nobreza de pensamento é a
a criação do homem 5.508 anos a.C. prosa simples da Bíblia! Também a
Os hebreus ainda usam uma era que tradição babilônica conhece dez reis,
no mesmo período conta 3.760 anos. como Gên 5, dez patriarcas, de vida
As ciência antropológicas exigem um longuíssima antes do dilúvio. Este
tempo assaz maior para a existência cataclisma foi narrado em muitas
19. lendas babilônicas, uma das quais foi
inserida no romanesco poema
"Gilgames", assim chamado por causa
do herói protagonista. Os pontos de
contato com a narração bíblica (Gên 7;
8) são numerosos e típicos. A narração
da torre de Babel (Gên 11,1-9) é toda
tecida de elementos babilônicos; mas
um paralelo exato não foi ainda
encontrado na literatura cuneiforme.
Nada ainda se encontrou nessa
literatura de verdadeiramente análogo
à narração do paraíso terrestre e da
queda do homem (Gên 3).
Nos monumentos egípcios temos
representadas muitas cenas
semelhantes às narradas no Gên cc.
12,37-50.
20. INTRODUÇÃO AO ÊXODO
O segundo livro do Pentateuco toma o 17), reside a verdadeira prerrogativa do
nome de Êxodo da saída dos hebreus do povo de Israel; nada de semelhante se
Egito, onde, depois dos bons tempos de encontra em nenhum outro povo. Citam-
José, passaram a sofrer a mais dura se, é certo, da literatura egípcia, certas
escravidão. Esse acontecimento, porém, desculpas espirituais como: "Não cometi
nada mais foi do que o prelúdio de jatos injustiça, não roubei, não matei'' etc., ou
muito mais importantes na vida dos filhos da babilônia, os esconjuros, onde se
de Israel, os quais, de um conglomerado pergunta se o exorcizado ultrajou alguma
de famílias que eram, recuperando a divindade, se desprezou pai e mãe, se
liberdade, conquistaram verdadeira mentiu ou praticou obscenidades etc. Mas
unidade de nação independente e não há proporção entre os protestos de
receberam uma legislação especial, uma um particular para evitar o castigo
forma de vida moral e religiosa, pelas (finalidade daquelas fórmulas rituais) e a
quais se distinguiram de todos os outros autoridade soberana que impõe a lei a
povos da terra. todo um povo. Entre os próprios egípcios e
Com toda facilidade compreender-se-á babilônios, nada há de correspondente, na
a importância deste livro, sobretudo em se legislação, àquelas fórmulas cerimoniais.
pensando que, se a história civil das O decálogo de Moisés não tem rivais no
nações, mormente as antigas, acha-se mundo.
intimamente vinculada à religião e essa à Pelas razões citadas, os
moral, isto jamais foi tão verídico como a acontecimentos narrados no Êxodo
respeito dos hebreus. As leis contidas no tiveram um eco enorme na memória das
Êxodo formam a essência da vida civil e tribos israelitas. Em quase todas as
religiosa do povo eleito. páginas do Antigo Testamento são
Ê bem verdade que, de todas essas recordadas a libertação da escravidão do
leis, e especialmente as do chamado Egito, a prodigiosa passagem do mar
código da aliança (21-23), foram Vermelho, os golpes tremendos com os
encontradas analogias notáveis no código quais foi dominada a tenaz oposição do
de Hamurabi (rei babilônico, que viveu opressor egípcio, as grandiosas
alguns séculos anteriormente a Moisés), manifestações divinas no Sinai, o sustento
que foi descoberto, traduzido e publicado milagroso de povo tão numeroso no
pelo dominicano Pe. Scheil, em 1902. De deserto. Daí Israel deduzia os motivos
tais analogias não se infere, porém, em mais fortes para ser grato e fiel a Deus, e
absoluto, como pretendem alguns, a conservar uma confiança inabalável na
dependência do código mosaico do sua providência soberana e nos seus
babilônico. Elas têm sua explicação próprios destinos.
adequada nos fatores comuns às duas A cronologia do Êxodo, ou seja, o ano
sociedades, israelita e babilônica, tão em que os hebreus saíram do Egito, está
próximas no tempo, no lugar e também na naturalmente ligada à história desse país.
origem, pois os patriarcas do povo hebreu Mas, já que a Bíblia não fornece os nomes
procediam do vale do Tigre. dos dois faraós, o da opressão (1,8;2,23) e
Realmente, na legislação decretada no o da saída (14,5), duas opiniões diversas
Sinai, nem tudo foi criado desde a raiz; se equilibraram entre os doutos, com
muitos usos e costumes já introduzidos na autoridade e número de defensores quase
prática social foram confirmados pela iguais. Para uns, o opressor seria Totmés
aprovação divina. De resto, também nas III (1500--1450) e o outro Amenofis II
famosas leis romanas das doze tábuas (1447-1420), da XVIII dinastia; para
descobrem-se semelhanças com o código outros, no entanto, Ramsés II (1292--
mosaico, sem que ocorra a alguém o 1225), da XIX dinastia, teria oprimido os
pensamento de querer estabelecer um hebreus, e seu sucessor, Menefta (1225-
parentesco entre as primeiras e o 1215), tê-los-ia libertado. A segunda
segundo. Providências semelhantes opinião, que estabelece o século XIII a.C.
surgem espontaneamente de para o Êxodo, parece-nos mais condizente
necessidades sociais do gênero. No com o texto (1,11) e mais coerente com
decálogo, porém, e na doutrina religiosa outros dados da história sagrada e
que lhe forma a base inconcussa (20,2- profana.
21. INTRODUÇÃO AO LEVÍTICO
Este livro traz o nome de Levítico, por festivos: solenidades anuais e o sábado
tratar quase exclusivamente dos deveres (23).
sacerdotais. Poder-se-ia compará-lo a um 5- Determinações diversas: lâmpadas
ritual. no santuário e pães da apresentação
Com exceção de dois trechos históricos (24,1-9); pena para o blasfemador
(8 a 10;24,10-23), compõe-se (24,10-23); prescrições para o ano
inteiramente de leis que visam à sabático e jubileu (25); promessas e
santificação individual e nacional. ameaças relativas a observância da lei
Santificação, de per si ritual e exterior, (26); votos e dízimos (27).
que, porém, simboliza e promove certa O sacrifício, o ato mais sagrado da
santidade interior e moral. Toda a religião, isto é, oferecer a Deus vítimas,
matéria pode ser dividida em cinco animais ou vegetais, não foi instituído
partes: por Moisés, mas remonta às próprias
1- Leis relativas aos sacrifícios (1-7). origens da humanidade (Gên 4,3-4).
Os sacrifícios são de cinco espécies; duas Moisés encontrou o seu uso estabelecido
séries de leis: V série — o rito de cada e arraigado entre todos os povos. Nas
sacrifício (1-5), holocausto (1), oblação tabuinhas recentemente descobertas em
de vegetais (2), sacrifício salutar (3), Ras Shamra (antiga Ugarit), na Fenícia
sacrifício expiatório (4), sacrifício de setentrional, anteriores alguns séculos a
reparação (5). 2? série — direitos e Moisés, são mencionadas espécies
deveres dos sacerdotes em cada espécie idênticas de sacrifícios, até mesmo com
de sacrifícios (6-7). nomes iguais (afinidade das duas línguas)
2- Consagração dos sacerdotes (8-9). aos do Pentateuco. Moisés, com suas
Nadab e Abiú são punidos por terem leis, só regulamentou e consagrou ao
usurpado um ofício sagrado (10-1-7). culto do verdadeiro Deus um cerimonial
Várias prescrições para os sacerdotes já praticado, deixando ainda toda essa
(10,8-20). legislação dos sacrifícios separada das
condições essenciais do pacto celebrado
3- Leis sobre a pureza legal (11-16):
entre Deus e o seu povo (Êx 19,23).
dos alimentos (11), da puérpera (12),
Nesse sentido deve-se entender aquele
da lepra nas pessoas (13,1-46; 14,1-
protesto do próprio Deus contra os
32), nas vestes (13,47-59) e casas
judeus, por boca de Jeremias (7,22-23):
(14-33-57); sobre a gonorréia (15).
"Em matéria de sacrifícios e holocaustos,
Rito para o dia solene de expiação (16).
eu nada disse e nada ordenei aos vossos
4- Leis sobre a santidade (17-23): a) pais ao tirá-los do Egito; dei-lhes
do povo (17-20); matança dos animais, somente esta ordem: — Escutai a minha
uso do sangue, unicidade do santuário voz; eu serei vosso Deus e vós sereis o
(17); prescrições que regulam os atos meu povo —" cf. Êx 19,5).
sexuais (18); várias prescrições religiosas
Nada, portanto, impede atribuir-se ao
e morais (19); punição para os
próprio Moisés a legislação cerimonial do
transgressores (20); b) dos sacerdotes:
Levítico, embora seja óbvio que não a
núpcias e luto (21,1-15); irregularidades
tenha escrito toda de uma vez e se tenha
(21,16-24); impureza cerimonial (22,1-
servido, para a fixar, da obra de algum
16; qualidades das vítimas (22, 17-30);
sacerdote ou levita de profissão. Nem se
conclusão (22,31-33); c) dos dias
exclui que algumas destas leis tenham
22. recebido em tempos posteriores
modificações e acréscimos.
Devemos observar ainda, que todas
essas leis cerimoniais foram ab-rogadas
depois de Jesus Cristo. Entretanto, os
sacrifícios da antiga lei haviam
prefigurado o seu sublime sacrifício na
cruz, no qual, único e perfeito sacrifício,
te-ve cumprimento toda a variedade dos
sacrifícios do Antigo Testamento. Ou
melhor, como nos ensina S. Paulo (Hebr
9,9; 10,10), os sacrifícios levíticos
recebiam sua principal eficácia de aplacar
a Deus daquele valor figurativo, pois que
"é impossível que, por si só, o sangue dos
touros e dos cabritos cancele os
pecados" (Hebr 10,4). Considerados no
seu significado típico e simbólico, os ritos
escritos no Levítico continuam e
continuarão a ser instrutivos.
23. INTRODUÇÃO AOS NÚMEROS
O quarto livro do Pentateuco recebeu o serpente de bronze (21, 1-9); vitória sobre
nome de Números (em grego Arith-moi, que os amorreus e conquista de Basan (21,10-
aqui tem o sentido de "recenseamentos") por 35).
causa dos "recenseamentos" (1,1-4,26), que 3a Parte. Na margem oriental do Jordão:
são próprios deste livro e que lhe dão a sua cerca de cinco meses. A matéria desta
feição particular. Contém, além disso, alguns parte, mais por ordem lógica do que por
fatos que se ligam imediatamente aos ordem do texto, pode ser assim agrupada:
acontecimentos narrados no Êxodo, e leis 1) Últimos encontros com os povos da
semelhantes às do Levítico. Pode ser dividido Trans Jordânia; Balaão e seus vaticínios
facilmente, de acordo com os lugares e (22-24); prostituição a Beelfegor (25);
tempos, em três partes: no Sinai (1,1-10,10); guerra santa contra os ma-dianitas e leis
viagens através do deserto (10,11-21,35); na sobre a divisão dos despojos (31); lista das
margem oriental do Jordão (22-36). etapas (33).
1a Parte. No Sinai: disposições para a 2) Grupo de leis: herança (27,1-11),
partida: 20 dias. festas e sacrifícios (28-29), votos (30).
1) Recenseamento das tribos e respectivas 3) Disposições para a ocupação da
posições no acampamento (1-2). terra prometida. Segundo recenseamento
2) Os levitas: seu destino e recenseamento (26); nomeação de Josué (27,12-23).
(3); divisão por famílias e por ofícios (4). Distribuição da Transjordânia (32); normas
3) Leis: banimento dos impuros, para a ocupação e distribuição da
restituições, ciúmes (5), nazireato, bênção CisJordânia (33,50-34,12); designação das
litúrgica (6). cidades levíticas e de refúgio (35);
4) Últimos fatos: donativos dos chefes das disposições para manter inalterada a
tribos ao santuário (7), consagração dos levitas primitiva distribuição (36).
(8), segunda Páscoa (9,1-14), sinais para a A julgar pelo resumo, o presente livro
partida e para a parada, as trombetas (9,15- compreende um período de cerca de trinta
10,10). e oito anos e meio. Sobre a maior parte
desse período (os trinta e oito anos no
2a Parte. Viagem através do deserto:
deserto) narra-nos apenas uns poucos
1) Do Sinai a Cades: partida e ordem de
fatos, mas muito notáveis pelo significado
marcha (10,11-36), murmuração do povo, as
religioso, como a serpente de bronze, a
codornizes (11), a lepra de Maria, irmã de
sedição de Coré, os vaticínios de Balaão, a
Moisés (12).
água brotada da rocha; fatos dos quais os
2) Parada em Cades: missão dos doze
apóstolos no Novo Testamento tiraram
exploradores (13) e queixas do povo (14); leis utilíssimas lições (ICor 10,1-11; Hebr 3,12-
sobre as oblações e primícias, sobre o sábado
19; Jo 3,14-15). No centro do drama
e os filactérios (15); sedição de Coré, Datan e
acham-se dois fatos semelhantes entre si,
Abirão, e sua punição (16) e confirmação do
duas sedições do povo contra Moisés,
sacerdócio na família de Arão (17); relações
executor das ordens divinas; a primeira
entre sacerdotes e levitas, emolumentos de
(14), originada pela repugnância em
uns e de outros (18); a água lustral (19);
empreender a conquista da Palestina; a
sedição do povo por falta de água (20,1-13). segunda (20), por falta de água.
3) De Cades ao Jordão: os edomitas negam Conseqüência ou punição da primeira foi a
passagem pelas suas terras; morte de Arão longa demora da nação inteira no deserto
(20,14-29); queixas do povo e castigo, a da península sinaítica; a segunda deixou a
24. mais profunda impressão na consciência
nacional e na literatura posterior (cf. SI
80;94;105), envolvendo o próprio Moisés, que
por um instante duvidou da clemência divina e
por isso teve de deixar a outros o remate de
sua obra, a conquista de Canaã (cf. Dt 32).
O livro dos Números é importante para a
literatura porque, entre outras coisas, nos
conservou fragmentos de antiquíssimos
cânticos populares (21; 23; 24), com a
indicação de coleções já existentes, como "o
Livro das guerras de Javé" (21,14), do qual não
se tem outra menção.
25. INTRODUÇÃO AO DEUTERONÔMIO
(7), benefícios de Deus, censura da
O quinto e último livro do Pentateuco foi
chamado Deuteronômio, isto é, infidelidade anterior de Israel, promessas
e ameaças (8-11). Leis especiais: 1)
"segunda lei", talvez porque assim tenha Deveres religiosos. Unicidade do
sido traduzida, embora inexatamente
pelos LXX, uma frase hebraica em 17,18. santuário e disposições relativas (12, 1-
28); contra a apostasia (12,29-13-18);
No entanto, convém-lhe perfeitamente alimentos e dízimos (14); ano da remissão
esse nome. O livro não é uma simples
repetição da legislação contida nos livros (15); as três grandes solenidades anuais
(16,1-17). 2) Direito público. Juízes
precedentes, mas além de leis novas, (16,18-17,13), rei (17,14-20),
oferece complementos, esclarecimentos e
modificações às primeiras. É, de certo sacerdotes (18,1-8), profetas (18,9-22);
homicídio involuntário (19), guerra (20),
modo, uma segunda lei, promulgada no homicídio por mão desconhecida (21,1-
fim da longa peregrinação dos israelitas,
paralela à lei dada no Sinai e destinada a 9). 3) Direito familiar e privado. Grande
variedade; os pontos principais são:
regular mais de perto a vida do povo matrimônio (21,10-14;22,13-23,1) e
escolhido, no solo da Terra Prometida à
qual eles estavam para chegar e dela filhos (21,15-20), o divórcio (20,1-4),
levirato (25,5-10), deveres de
tomar posse definitiva. Não é, porém, humanidade (22,1-12;23,16-20;24,6-
simples enumeração de leis e
determinações; o que caracteriza esse 25,4), honestidade (25,11-19), votos
(23,22-24), primícias e dízimos (26).
livro, o que lhe constitui a alma, é um
ardente sabor oratório. O hagiógrafo nos
faz ouvir um Moisés que exorta, encoraja, 3ª parte: 3o e 4o discursos: ordem de
promulgar a lei em Siquém, maldições
invectiva; inculca a observância das leis, a para os transgressores (27), ameaças e
começar dos grandes princípios morais;
apela para os mais poderosos motivos, promessas (28). Exortação à observância
da lei, com a recordação dos fatos
evoca a glória do passado, a missão históricos, das promessas e das ameaças
histórica de Israel, os triunfos do porvir.
Na mente do autor sagrado temos o (29-30).
testamento definitivo, que o grande guia e
legislador deixa ao povo de Deus às 4ª parte. Apêndice histórico. Últimas
vésperas da sua morte. Pelo estilo, o disposições de Moisés, nomeação de
Josué, seu sucessor (31); cântico de
Deuteronômio é um discurso, ou melhor, Moisés (32), bênção das doze tribos (33),
vários discursos, dirigidos por Moisés aos
israelitas. Deduz--se daí a divisão do livro morte de Moisés (34).
em quatro partes:
Amor de Deus, beneficência, alegria no
cumprimento do dever, eis as principais
1a parte: 1o discurso (14): olhar características do Deuteronômio,
retrospectivo aos fatos acontecidos princípios inculcados e repetidos com
desde a partida do Horeb até às últimas
conquistas da TransJordânia (1-3); solicitude incansável. Por isso, perpassa-o
um sopro ardente de sincera e profunda
exortação geral à observância da lei (4,1- piedade para com Deus e uma ternura
40).
simpática pelo homem, que edifica e
comove. Há páginas que se aproximam da
2a parte: — 2o discurso: renovação da sublimidade divina dos ensinamentos
lei 4,44-26,19). Princípios gerais: o
Decálogo (5), o culto e o amor ao único evangélicos, mais do que quaisquer
outras.
Deus verdadeiro (6), guerra à idolatria