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O SONO ACABOU, por JONATHAN CRARY
(Revista Piauí_96, Edição de Setembro de 2014)
Quemjá viveuna Costa Oeste da América do Norte deve saber que, em função das estações,
todo ano centenas de espécies de pássaros migram para o norte e para o sul, perfazendo
distâncias variadas ao longo da plataforma continental. O pardal-de-coroa-branca é uma
dessasespécies.Nooutono,elesvoamdoAlascaaté o norte do México; na primavera, voltam
para o norte. Diferentemente da maioria dos outros pássaros, esse pardal tem a capacidade
extraordináriade permaneceracordadoporaté sete diasdurante as migrações,oque permite
a ele voar e navegar de noite e procurar por alimento de dia, sem descansar.
Nosúltimoscincoanos,o Departamentode DefesadosEstadosUnidosgastouuma expressiva
quantiade dinheiroparaestudaressascriaturas. Com recursos do governo, pesquisadores de
diversasuniversidades,notadamente emMadison,noestadode Wisconsin,têm investigado a
atividade cerebral dos pássaros durante esses longos períodos de vigília, com a esperança de
obter conhecimentos aplicáveis aos seres humanos, e descobrir como as pessoas poderiam
ficar sem dormir e funcionar produtiva e eficientemente.
O objetivo inicial é tão somente a criação do soldado sem sono – e o estudo dos pardais-de-
coroa-branca constituiu uma fração de um amplo esforço militar para obter algum controle,
mesmo que limitado, sobre o sono humano. Inspirados pela Darpa (Defense Advanced
Research Projects Agency), divisão de pesquisas avançadas do Pentágono, diversos
laboratórios estão conduzindo testes experimentais de técnicas de privação de sono,
recorrendo a substâncias neuroquímicas, terapia genética e estimulação magnética
transcraniana. O objetivo de curto prazo consiste em desenvolver métodos que permitam a
um combatente ficar sem dormir por pelo menos sete dias, e, no longo prazo, duplicar esse
período,preservandoníveisaltosde desempenhomental e físico. Os atuais meios de indução
à insônia têm apresentado preocupantes déficits cognitivos e psíquicos – como a diminuição
da atenção, por exemplo –, como ocorreu com o uso difundido de anfetaminas em grande
parte das guerras do século XX e, mais recentemente, de medicamentos como o Provigil
[modafinil]. Agora, em vez de investigar formas de estimular a vigília, a ciência pretende
reduzir a necessidade de sono do corpo.
Por mais de duas décadas, a lógica estratégica do planejamento militar dos Estados Unidos
tem procurado remover o indivíduo de algumas etapas do circuito de comando, controle e
execução. Gastam-se incontáveis bilhões de dólares em sistemas de mira e assassinato
robóticose de operaçãoremota,comresultadosdesanimadoramente evidentesnoPaquistão,
no Afeganistãoe emoutroslugares.Apesardasinúmerasreivindicaçõespornovos paradigmas
de material bélico, e ainda que os analistas militares com frequência imputem ao agente
humano o fracasso de operações avançadas, a necessidade militar de grandes contingentes
humanos não vai diminuir no futuro próximo.
Devem-se entender os estudos sobre privação de sono no contexto de uma busca por
soldados cujas capacidades físicas se aproximarão cada vez mais da eficácia de aparatos e
redes não humanos. O complexo científico-militar tem se dedicado à pesquisa de formas de
“cognição ampliada” que prometem aprimorar a interação entre homem e máquina.
Simultaneamente,asForçasArmadastêmfinanciadodiversasoutras áreas de investigação do
cérebro,bancandoinclusiveodesenvolvimentode umadrogacontra o medo.Haveráocasiões
em que, por exemplo, drones armados com mísseis não poderão ser empregados e
esquadrões da morte de soldados resistentes ao sono e à prova de medo serão necessários
para missões de duração indefinida. Como parte desses esforços, o experimento com os
pardais-de-coroa-branca – apartados dos ritmos sazonais do meio ambiente da costa do
Pacífico– deve auxiliar o projeto de impor ao corpo humano um modelo de máquina eficaz e
resistente. A história mostra que inovações relacionadas à guerra são inevitavelmente
assimiladasnaesferasocial maisampla,e osoldadosemsonoseriao precursordotrabalhador
ou do consumidorsemsono. Produtos contra o sono, após agressiva campanha de marketing
das empresas farmacêuticas, iriam se tornar uma opção de estilo de vida e depois, para
muitos, uma necessidade.
Mercados 24/7 (abreviação para 24 horas por dia, 7 dias por semana) e infraestrutura global
para o trabalho e o consumo contínuos existem há algum tempo, mas agora é o homem que
está sendo usado como cobaia para o perfeito funcionamento da engrenagem.
No iníciodosanos 90, umconsórcioespacial russo-europeuanunciouseusplanos de construir
e colocar na órbita terrestre satélites que refletiriam a luz do Sol para a Terra. O esquema
exigia o encadeamento de vários satélites em órbitas sincronizadas com a do Sol, a uma
altitude de 1 700 quilômetros, cada um deles equipado com refletores parabólicos retráteis,
feitosde ummaterial superfino.Quandocompletamente abertos, cada satélite-espelho, com
70 metrosde diâmetro,teriaa capacidade de iluminarumaáreade 25 quilômetros quadrados
da Terra com uma luminosidade quase dez vezes maior do que a da Lua.
Em princípio,o projetovisavaforneceriluminaçãoparao trabalhoindustrial e a exploração de
recursos naturais em regiões remotas com longas noites polares, na Sibéria e no leste da
Rússia,permitindoatividade aoarlivre, noite e dia. Mas o consórcio acabou expandindo seus
planospara a possibilidadede ofereceriluminaçãonoturna a regiões metropolitanas inteiras.
Calculandoque os custos de energia da iluminação elétrica poderiam ser reduzidos, o slogan
da empresa era “Luz do dia a noite toda”.
A oposição ao projeto surgiu de imediato e de diversas frentes. Astrônomos temeram que a
observaçãoespacial apartir da Terra fosse prejudicada.Cientistase ambientalistas apontaram
consequênciasfisiológicasprejudiciaistanto aos animais quanto aos humanos, uma vez que a
ausência de alternância regular entre dia e noite interromperia vários padrões metabólicos,
inclusive o sono. Associações culturais e humanitárias também protestaram, alegando que o
céu noturno é um bem comum ao qual toda a humanidade tem direito, e que desfrutar da
escuridãodanoite e observar as estrelas é um direito humano básico que nenhuma empresa
pode eliminar.De qualquermodo,direitoouprivilégio,ele já está sendo violado para mais da
metade da população do planeta, em cidades que estão permanentemente envoltas na
penumbra da poluição e na intensa iluminação.
Defensores do projeto, todavia, afirmaram que tal tecnologia ajudaria a diminuir o uso
noturno de eletricidade e que a perda da noite e sua escuridão seria um preço razoável,
considerando-se a redução do consumo global de energia. Seja como for, esse
empreendimento ilustra o imaginário contemporâneo, para o qual um estado de iluminação
contínua é inseparável da ininterrupta operação de troca e circulação globais. Em seus
excessosempresariais,oprojetoé umaexpressãohiperbólicade umaintolerânciainstitucional
a tudo que obscureçaou impeçauma situação de visibilidade instrumentalizada e constante.
Desde 2001, a privação de sono tem sido uma prática de tortura aplicada às vítimas de
custódia extrajudicial e a outros presos. As circunstâncias em que um dos detidos em
particular,Mohammedal-Qahtani,se viuenvolvidoforamamplamente divulgadas, ainda que
não fossem muito diferentes do tratamento recebido por centenas de outros presos cujos
casos não foram tão bem documentados. Al-Qahtani foi torturado de acordo com as
especificaçõesdoque agoraé conhecidocomooPrimeiro Plano de Interrogatório Especial do
Pentágono, autorizado por Donald Rumsfeld.
Praticamente privado de sono durante os dois meses em que foi submetido a sessões de
interrogatório que chegavam a durar vinte horas, ele ficou confinado em cubículos onde não
podiadeitar,iluminadoscomforteslâmpadase equipadoscomalto-falantesde onde saía uma
músicamuitoalta.A comunidade de inteligênciadasForçasArmadas se referia a essas prisões
como dark sites [locais escuros], ainda que um dos locais em que Al-Qahtani esteve
encarcerado tenha recebido o codinome Camp Bright Lights [Campo de Luzes Brilhantes].
Certamente nãofoi aprimeiravezque norte-americanosouseuscolaboradoresse valeram da
privação de sono. De certo modo, é equivocado destacar a técnica – para Mohammed al-
Qahtani e muitos outros, a supressão do sono era apenas parte de um programa maior de
espancamentos, humilhações, reclusão prolongada e simulações de afogamento. Muitos
desses “programas” para prisioneiros extrajudiciais eram elaborados sob medida por
psicólogosde equipesde consultoriade ciência do comportamento, que se empenhavam em
explorar vulnerabilidades emocionais e físicas que identificavam em cada um deles.
Aplica-se a tortura da privação do sono há muitos séculos, mas seu uso sistemático coincide
historicamentecoma disponibilidade de luz elétrica e a facilidade de ampliar o som de modo
continuado.Utilizadarotineiramente pelapolíciade Stálinnosanos30, emgeral era a primeira
etapa do que os torturadores do NKVD [Comissariado do Povo para Assuntos Internos]
chamavamde “esteirarolante”–a sequênciaordenada de brutalidades, da violência gratuita
que danificairreparavelmente os seres humanos. Em experimentos, ratos morrem depois de
trêssemanas de insônia. Em humanos, basta um período relativamente curto para tal prática
induzir à psicose; após algumas semanas, surgem os danos neurológicos. A falta de sono
acarreta um estado de extremo desamparo e submissão – é impossível extrair informações
relevantes da vítima, que confessará ou inventará qualquer coisa. A negação do sono é uma
desapropriação violenta do- eu por forças externas, é o estilhaçamento calculado de um
indivíduo.
Sabe-se que osEstadosUnidosestãoenvolvidoshátemposnaprática de tortura, diretamente
ou por meio de governos fantoches. O período pós-11 de Setembro, porém, notabilizou-se
pela naturalidade com que veio à luz a prática, tida como apenas um procedimento entre
outros.Pesquisasde opiniãorevelamque amaioriadapopulaçãoaprova a sevícia em algumas
circunstâncias. As discussões na grande imprensa são unânimes em não qualificar como
tortura a privaçãode sono;ao contrário,considera-se umaformade persuasãopsicológica tão
aceitável quantoaalimentaçãoforçadade prisioneirosemgreve de fome. Jane Mayer relatou
emseulivro The Dark Side(2008) que o Pentágonojustificava cinicamente a privação de sono
alegando que soldados da divisão de elite seal da Marinha eram obrigados a participar de
missões simuladas nas quais passavam dois dias sem dormir.
O tratamento dos assim chamados prisioneiros de “alto interesse” em Guantánamo e em
outros lugares combinava métodos explícitos de tortura com controle absoluto sobre a
experiência sensorial e perceptiva. Os detentos, confinados em celas permanentemente
iluminadas, sem janelas, eram obrigados a usar vendas nos olhos e tampões nos ouvidos.
Assim, luz e som eram sempre bloqueados quando os indivíduos eram conduzidos para fora,
de modo a impedir a consciência do tempo ou de algum estímulo que identificasse seu
paradeiro.Esse regime de privaçãodossentidosmuitasvezes se estende ao contato rotineiro
entre prisioneiros e guardas – estes estão sempre inteiramente paramentados, de luvas e
capacete com visores espelhados de acrílico, impossibilitando que se veja o rosto ou mesmo
um pedaço de pele deles. São técnicas e procedimentos pensados para a indução a estados
abjetos de submissão.
***
O 24/7 é um tempode indiferençacontraoqual a fragilidade da vida humana é cada vez mais
inadequada,e dentrodoqual o sononão é necessárioneminevitável.Em relação ao trabalho,
torna plausível, até normal, a ideia de trabalhar sem pausa, sem limites. Alinha-se com o
inanimado, com o inerte ou com o que não envelhece. Enquanto exortação publicitária,
decreta a disponibilidade absoluta – e, portanto, um estado de necessidades ininterruptas,
sempre encorajadas e nunca aplacadas. A ausência de restrições ao consumo não é
simplesmente temporal. Foi-se o tempo em que a acumulação era, acima de tudo, de coisas.
Agora nossos corpos e identidades assimilam uma superabundância de serviços, imagens,
procedimentose produtos químicos em nível tóxico e muitas vezes fatal. A sobrevivência do
indivíduo, em longo prazo, é sempre dispensável, se para tanto seja preciso contar, mesmo
que indiretamente, com a possibilidade de entreatos sem compras ou o fomento delas. Da
mesma forma, 24/7 é inseparável da catástrofe ambiental, dada a exigência de gasto
permanente e desperdício sem fim para sua manutenção e a interrupção fatal dos ciclos e
estações dos quais depende a integridade ecológica.
Em sua profundainutilidade e intrínseca passividade, com perdas incalculáveis para o tempo
produtivo,acirculaçãoe o consumo,o sonoestará sempre a contrapelo das demandas de um
universo24/7. O fatode passarmosdormindoumbom períododa vida,libertosde umatoleiro
de carências simuladas, subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do
capitalismocontemporâneo.Osonoé um hiato incontornável no roubo de nosso tempo pelo
capitalismo.A maioriadasnecessidades aparentemente irredutíveis da vida humana – fome,
sede, desejo sexual e recentemente a necessidade de amizade – se transformou em
mercadoria ou investimento. O sono afirma a ideia de uma necessidade humana e de um
intervalode tempoque nãopode sercolonizadonemsubmetido a um mecanismo monolítico
de lucratividade,e dessemodopermaneceumaanomalia incongruente e um foco de crise no
presente global. Apesar de todas as pesquisas científicas, frustra e confunde qualquer
estratégia para explorá-lo ou redefini-lo. A verdade chocante, inconcebível, é que nenhum
valor pode ser extraído do sono.
Não surpreende que,emtodolugar,esteja em curso uma corrosão do sono, dada a dimensão
do que está economicamente em jogo. Ao longo do século XX houve incursões regulares
contra o tempo de sono – o adulto norte-americano médio dorme hoje cerca de seis horas e
meiapor noite,umareduçãodo patamar de oito horas da geração anterior e, por incrível que
pareça, de dez horas do começo do século XX. Em meados do século passado, o conhecido
provérbio de que “passamos um terço de nossas vidas dormindo” parecia uma certeza
axiomática, uma certeza que continua sendo minada.
O sonoé um lembrete ubíquo,aindaque despercebido,de uma pré-modernidade que jamais
foi completamentesuperada,douniversoagrícolaque começou a desaparecer há 400 anos. O
escândalo do sono é o enraizamento em nossas vidas das oscilações rítmicas de luz solar e
escuridão,atividadee descanso, de trabalho e recuperação, erradicadas ou neutralizadas em
outros âmbitos. O sono possui, claro, uma história densa, assim como tudo que é
supostamente natural.Jamaisfoi algomonolíticoouimutável,e aolongode séculose milênios
assumiudiversas formas e padrões. Nos anos 30, Marcel Mauss incluiu tanto o sono quanto a
vigília em seu estudo de “técnicas corporais”, no qual mostrou que comportamentos
aparentementeinstintivoseramnaverdade aprendidosde diversas maneiras por imitação ou
educação.Noentanto,aindaassim é possível supor que havia características comuns do sono
na enorme diversidade de sociedades agrárias pré-modernas.
Em meadosdo séculoXVII,osonose desligoudaposiçãoestável que ocupara nas concepções
aristotélicase renascentistas,hojeobsoletas.Suaincompatibilidade com noções modernas de
produtividade e racionalidade passou a ser notada, e Descartes, Hume e Locke foram apenas
alguns dos filósofos que desprezavam o sono por sua irrelevância para o funcionamento da
mente e para a busca de conhecimento. Ele perdeu o valor em face do privilégio conferido à
consciênciae à vontade,anoçõesde utilidade,objetividadee açõeseminteressepróprio.Para
Locke,o sonoera uma interrupçãolamentável,aindaque inevitável,dasprioridades que Deus
estabeleceuparaossereshumanos:seremindustriosose racionais. No primeiro parágrafo do
Tratado da Natureza Humana de Hume, o sono, como a febre e a loucura, é um obstáculo ao
conhecimento. Em meados do século XIX, a relação assimétrica entre sono e vigília passou a
ser caracterizada segundo modelos hierárquicos nos quais o sono era tratado como uma
regressão a um modo inferior e mais primitivo, no qual era inibida a atividade cerebral
supostamente superior e mais complexa. Schopenhauer é um dos raros pensadores que
viraramessa hierarquia contra si mesma e afirmaram que apenas no sono pode-se encontrar
“o verdadeiro cerne” da existência humana.
O status incerto do sono deve ser compreendido em relação à dinâmica particular da
modernidade, que invalida qualquer organização da realidade em conceitos binários
complementares. A força homogeneizadora do capitalismo é incompatível com qualquer
estrutura inerente de diferenciação: sagrado–profano, carnaval–dia útil, natureza–cultura,
máquina–organismo e assim por diante. Assim, tornam-se inaceitáveis quaisquer noções
persistentes do sono como algo de certa forma “natural”. As pessoas continuarão a dormir,
claro,e mesmonasmegalópolesemexpansãohaveráintervalosnoturnosde relativo sossego.
No entanto,osonoé agora uma experiênciadesvinculadade ideiasde necessidadee natureza.
Ao contrário, e como tantas outras coisas, é tratado como uma função variável, mas
controlada, que só pode ser definida instrumental e fisiologicamente.
Pesquisasrecentesmostramque cresce exponencialmente onúmerode pessoasque acordam
uma ou mais vezes durante a noite para verificar mensagens ou informações. Uma figura de
linguagem recorrente e aparentemente inócua é o sleep mode [modo de hibernação],
inspirada nas máquinas. A ideia de um aparelho em modo de consumo reduzido e de
prontidão transforma o sentido mais amplo do sono em mera condição adiada ou diminuída
de operacionalidade e acesso. Ela supera a lógica do desligado/ligado, de maneira que nada
está de fato “desligado” e nunca há um estado real de repouso.
O sono é uma afirmação irracional e intolerável de que não é irrestrita a compatibilidade de
seres vivos com as forças supostamente irresistíveis da modernização. Um dos truísmos
conhecidosdopensamentocríticocontemporâneo é que não existem características naturais
inalteráveis – nem mesmo a morte, segundo aqueles que preveem que em breve estaremos
todostransferindoosdadosde nossamente para umaforma digital de imortalidade.Acreditar
que existamquaisquertraçosessenciaisque distinguemosseresvivosdasmáquinasé, dizem-
nos críticoscélebres,ingênuoe delirante.Porque alguémprotestaria, pode-se argumentar, se
novas drogas nos permitissem trabalhar por 100 horas seguidas? Períodos de sono mais
flexíveise reduzidosnãopossibilitariammaiorliberdade pessoal e organização da própria vida
de acordo com necessidades e desejos individuais? Menos sono não permitiria mais
oportunidadesde “viveravidaao máximo”?Alguémpoderia contestar que os seres humanos
foramfeitosparadormir à noite,que osnossoscorposestãoalinhadoscoma rotação diáriado
planetae que comportamentosque reagemàs estações e à luz do Sol existem na maioria dos
organismosvivos. A resposta provavelmente seria: isso é uma bobagem new age perniciosa,
ou pior, uma nefasta ânsia heideggeriana por alguma conexão com a Terra. No paradigma
neoliberal globalista, dormir é, acima de tudo, para os fracos.
No século XIX, após os piores abusos no trato dos trabalhadores durante a industrialização
europeia,osadministradoresdasfábricasse deramcontade que seria mais lucrativo oferecer
aos empregados módicas horas de descanso a fim de torná-los produtores mais eficazes e
sustentáveis no longo prazo, como mostrou Anson Rabinbach em seu estudo sobre a ciência
da fadiga. Mas nas últimas décadas do século XX e até o presente, com o colapso de formas
controladas ou mitigadas de capitalismo nos Estados Unidos e na Europa, desapareceu a
necessidade interna de repouso e recuperação enquanto componentes do crescimento
econômico e da lucratividade. O tempo para descanso e regeneração dos seres humanos é
simplesmentecarodemaisparaserestruturalmente possível no capitalismo contemporâneo.
***
A desvalorizaçãoemlongoprazodotrabalhovivonãofaz do repouso ou da saúde prioridades
econômicas.Hoje sãopouquíssimososmomentossignificativos na existência humana (com a
exceção colossal do sono) que não tenham sido permeados ou apropriados pelo tempo de
trabalho,peloconsumooupelomarketing.Emsuaanálise docapitalismocontemporâneo,Luc
Boltanski e Ève Chiapello salientaram o leque de forças que valorizam o sujeito
constantemente envolvido, operando, interagindo, comunicando, reagindo ou processando
em algum meio telemático. Em regiões afluentes do planeta, dizem os autores, isso ocorreu
emmeio à dissolução de quase todas as fronteiras entre tempo privado e profissional, entre
trabalhoe consumo.Nesse paradigmade permanenteconexão, o maior prêmio é conferido à
atividade em si mesma, “estar sempre fazendo algo, movimentar, mudar – é o que confere
prestígio, em oposição à estabilidade, muitas vezes sinônimo de inação”. Tal modelo de
atividade não é uma transformação do paradigma anterior da ética do trabalho, mas um
modelode normatividade completamente novo, que demanda temporalidades 24/7 para sua
realização.
Voltemosbrevemente aoprojetodossatélites.Colocarnaórbitaterrestre enormes refletores
de luz solar que eliminariam a escuridão da noite é meio ridículo, parece um projeto de
tecnologiatosca,mecânica,saídodoslivrosde JúlioVerne oudaficçãocientíficadocomeçodo
séculoXX.Naverdade,as primeiras tentativas de lançamento fracassaram – em uma ocasião,
os refletores não abriram corretamente, e em outra a presença de densas nuvens sobre a
cidade escolhida para o teste impediu uma demonstração convincente de seu potencial. As
pretensões de um tal programa nos trazem à mente um amplo conjunto de práticas pan-
ópticasdesenvolvidas nos últimos 200 anos. Isto é, remetem à importância da iluminação no
modelooriginal doPanópticode JeremyBentham, que propunha inundar de luzes os espaços
a fimde suprimirassombras e criar condiçõesde controle graçasà visibilidade completa. Mas
por décadas outros tipos de satélites realizaram, de maneiras muito mais sofisticadas, essas
operações de vigilância e coleta de informação. Um panoptismo modernizado se expandiu
muito além das ondas visíveis de luz, em direção a outras regiões do espectro, para não
mencionar os diversos tipos de escâneres não ópticos e sensores térmicos e biológicos.
Talvez o projeto do satélite deva ser compreendido como a perpetuação de práticas mais
claramente utilitárias que tiveram início no século XIX. Em sua história da tecnologia de
iluminação,WolfgangSchivelbuschmostracomoo desenvolvimentodailuminaçãopúblicapor
voltada décadade 1880 atingiudoisobjetivosinter-relacionados:reduziuantigasansiedadesa
respeito dos perigos associados à escuridão noturna e expandiu a duração e, portanto, a
lucratividade de muitas atividades econômicas. A iluminação noturna constituiu uma
demonstraçãosimbólicadoque osdefensoresdocapitalismoprometeram ao longo de todo o
séculoXIX:seriaa duplagarantiade segurança e ampliação das possibilidades de enriquecer,
melhorandoparatodos,supostamente,otecidodaexistência social. Nesse sentido, o triunfo
de um mundo 24/7 é uma realização daquele projeto anterior, mas com benefícios e
prosperidade que se acumulam sobretudo em favor de uma poderosa elite global.
O 24/7 minapaulatinamente asdistinçõesentrediae noite,entre claro e escuro, entre ação e
repouso.É umazona de insensibilidade, de amnésia, de tudo que impede a possibilidade de
experiência. Parafraseando Maurice Blanchot, é tanto o próprio desastre quanto a
consequênciadodesastre,caracterizadopelocéuvazio,noqual nãose vê nenhumaestrela ou
sinal, em que qualquer referência se perde e nenhuma orientação é possível. Mais
concretamente, é como um estado de emergência, quando um conjunto de refletores é
repentinamente aceso no meio da noite, aparentemente como resposta a circunstâncias
extremas, mas que continuam acesos, transformados em condição permanente. O planeta é
repensado como um local de trabalho ininterrupto ou um shopping center de escolhas,
tarefas, seleções e digressões infinitas, aberto o tempo todo. A insônia é o estado no qual
produção, consumo e descarte ocorrem sem pausa, apressando a exaustão da vida e o
esgotamento dos recursos.
Último obstáculo – na verdade, a última das “barreiras naturais”, para usar a expressão de
Marx – à completa realização do capitalismo 24/7, o sono não pode ser eliminado. Mas pode
serarruinadoe despojado,e existemmétodose motivações para destruí-lo. Odano ao sono é
inseparável do atual desmantelamento da proteção social em outras esferas. Assim como o
acessouniversal àágua potável temsidoexterminado pela poluição e privatização no mundo
todo, somadas à valorização comercial da água engarrafada, não é difícil vislumbrar, em
relação ao sono, um semelhante processo de produção de escassez. Os abusos que ele sofre
criam as condições de insônia nas quais o sono deve ser comprado – mesmo que paguemos
por um estado quimicamente modificado que é apenas uma aproximação do sono real.
As estatísticassobre oaumentodo uso de soníferos mostram que, em 2010, compostos como
Ambien (zolpiden) ou Lunesta (eszopiclone) foram receitados para cerca de 50 milhões de
norte-americanos,e muitosoutrosmilhõescompraramoutrostiposde produtosque induzem
ao sono. Mas seria equivocado imaginar uma melhora nas condições atuais que permitiria às
pessoas dormir profundamente e acordar refeitas. A essa altura, mesmo um mundo
organizado de maneira menos opressiva dificilmente eliminaria a insônia.
O filósofo Emmanuel Lévinas é um dos muitos pensadores que tentaram compreender os
sentidos da insônia no contexto da história recente. A insônia, afirma, é uma forma de
imaginara extremadificuldadedaresponsabilidadeindividual diante das catástrofes de nosso
tempo. Parte do mundo modernizado no qual vivemos é composta da visibilidade ubíqua da
violência inútil e do sofrimento humano que ela causa. Essa visibilidade, em todas as suas
formashíbridas,é um clarão que desestabiliza toda condescendência e impede a desatenção
regeneradoradosono.A insôniacorresponde ànecessidade de vigilância, à recusa de ignorar
o horror e a injustiça que assolam o mundo. É a inquietação do esforço de evitar ignorar o
sofrimento alheio. Mas essa inquietação é também a ineficácia frustrante de uma ética da
vigilância;oatode testemunhare suamonotoniapodem se tornar mera resignação diante da
noite, diante do desastre. Não é nem público nem completamente privado. Para Lévinas, a
insôniasempre pairaentre aintrospecçãoe a despersonalizaçãoradical;nãoexclui ointeresse
pelo outro, mas tampouco oferece uma noção clara de um espaço para sua presença. É onde
enfrentamosaquase impossibilidadede viverhumanamente.A insôniadeve serdistinguidado
fardo da vigília, com sua atenção quase insuportável ao sofrimento e à enorme
responsabilidade que ele impõe.
***
Existemmuitasafirmaçõesde comoavidapúblicae a esferade trabalho eram alienantes para
a maioria das pessoas, como “Deus nos proteja da visão única e do sono de Newton”, de
William Blake; “Sobre as nossas mais nobres faculdades se espalha um sonho repleto de
pesadelos”, de Carlyle; e “O sono arrasta toda a nossa vida diante de nossos olhos”, de
Emerson, até “O espetáculo expressa nada mais do que o desejo de sono da sociedade”, de
Guy Debord.Seriafácil reunircentenasde outrosexemplosdessacaracterização às avessas da
parte desperta da experiência social moderna. Imagens de uma sociedade de adormecidos
vêmda esquerdae da direita,daaltae da baixacultura,e têm sidoumelementoconstante no
cinema, de O Gabinete do Dr. Caligari a Matrix. Essas evocações do sonambulismo em massa
têm em comum a associação de comportamentos rotineiros, habituais ou de quase transe, à
debilitação ou redução das capacidades perceptivas. As teorias sociológicas dominantes, em
sua maioria,sugeremque osindivíduoshoje viveme agem, ainda que de modo intermitente,
emestadosque são enfaticamente distintosdosono – estadosde autoconsciência nos quais o
sujeito pode avaliar eventos e informações, na condição de partícipe racional e objetivo da
vidapública ou cívica. Quaisquer posições que caracterizem as pessoas como desprovidas de
iniciativa,autômatospassivosàmercê damanipulaçãooudo controle de seucomportamento,
são em geral consideradas redutoras ou irresponsáveis.
Ao mesmo tempo, quase todas as noções de despertar político são consideradas igualmente
perturbadoras,por sugerir um processo de conversão repentino e irracional. Basta lembrar o
principal sloganeleitoral dopartidonazistanocomeçodadécadade 30: Deutschland erwache!
– Despertai, Alemanha! Mais remota historicamente é a Epístola de São Paulo aos Romanos:
“Tanto mais que sabeis em que tempo estamos vivendo: já chegou a hora de acordar [...]
deixemosasobrasdas trevase vistamosaarmadura da luz!”Ou, mais recente e enfadonho, o
chamadodas forças anti-Ceausescuem1989: “Despertai,romenos,do sono profundo em que
fostescolocadospelasmãosde umtirano.”Despertares políticos e religiosos são tratados em
termosperceptivos,comoumahabilidade recém-adquiridade vislumbrar, através de um véu,
um estado verdadeiro das coisas, de discriminar um mundo invertido de outro que está na
ordemcorreta,ou de recuperaruma verdade perdidaque se torna a negação daquela da qual
despertamos.
O despertar – perturbação epifânica da insipidez entorpecida da existência rotineira –
recuperaa autenticidade emoposiçãoaoócioentorpecidodosono. Nesse sentido, ele é uma
forma de decisionismo: a experiência de um momento redentor que parece interromper o
tempo histórico, no qual um indivíduo se submete a um encontro transformador com um
futuro até então desconhecido. Mas toda essa categoria de imagens e metáforas não condiz
mais com um sistema global que nunca dorme, garantia de que nenhum despertar
potencialmente perturbadorsejanecessárioourelevante.Se algosobrevive da iconografia do
pôr e do nascer do sol, é em torno daquilo que Nietzsche identificou como a demanda,
formulada por Sócrates, por “uma permanente luz diurna da razão”.Mas desde os tempos de
Nietzsche tem havido uma transferência enorme e irreversível da “razão” humana às
operações 24/7 de redes de processamento de informação e à incessante transmissão de luz
por circuitos de fibra óptica.
Paradoxalmente,paraasubjetividade osonoé umaimagemsobre a qual o poder opera com a
menorresistênciapolíticapossível eumacondiçãoque não é passível de serinstrumentalizada
ou externamente controlada – que evade ou frustra as demandas da sociedade de consumo
global. Assim, não é preciso lembrar que os muitos clichês do discurso social e cultural
dependemde umsentimentomonolíticoouvaziodosono. Blanchot, Merleau-Ponty e Walter
Benjamin são apenas alguns dos pensadores do século XX que refletiram sobre a profunda
ambiguidade dosonoe sobre a impossibilidade de encaixá-loemqualqueresquemabinário. O
sonodeve serentendidoemrelaçãoàsdistinçõesentre públicoe privado,entre o individual e
o coletivo, mas sempre levando em consideração sua permeabilidade e proximidade. Penso
sobretudo que, no contexto de nosso próprio presente, o sono pode representar a
durabilidade do social, e pode ser análogo a outros pilares nos quais a sociedade poderia se
escorar ou proteger-se a si mesma. O sono – estado mais privado e vulnerável de todos –
depende crucialmente da sociedade para se sustentar.
Um dos exemplosvívidosdainsegurançadoestadode naturezano Leviatã de Thomas Hobbes
é a vulnerabilidade de um indivíduo adormecido diante dos inúmeros perigos e predadores
que se deve temera cada noite.Assim, uma obrigação rudimentar da comunidade é oferecer
segurança para aquele que dorme, não apenas contra perigos reais, mas – igualmente
importante – contra a ansiedade que geram. A proteção daquele que dorme, por parte da
comunidade, ocorre no interior de uma reconfiguração maior da relação social entre
segurança e sono. No início do século XVII, ainda se podem encontrar resquícios de uma
hierarquiaimaginadaque distinguiaascapacidadessobre-humanasdosenhorou do soberano
– cujos poderes oniscientes, ao menos simbolicamente, não sucumbiam às condições
desabilitadoras do sono – dos instintos somáticos de homens e mulheres trabalhadores.
No entanto, em Henrique V, de Shakespeare, e Dom Quixote, nos deparamos tanto com a
formulação quanto com o esvaziamento desse modelo hierárquico. Para o rei Henrique, a
distinção relevante não é apenas entre sono e vigília, mas entre uma vigilância perceptiva
mantidaao longoda “noite totalmentevigiada”e a sonolênciaprofunda, bem como a “mente
vazia”, do pequeno proprietário ou do camponês. Sancho Pança, de outro ponto de vista,
divide o mundo entre aqueles que, como ele próprio, nasceram para dormir e aqueles que,
como seu senhor, nasceram para vigiar. Em ambos os textos, ainda que subsistam as
obrigações associadas à posição na hierarquia, existe uma consciência paralela da
obsolescência e da persistência meramente formal desse modelo paternalista de vigilância.
A obra de Hobbes é um importante indício de uma transformação da garantia de segurança e
das necessidades daqueles que dormem. Novos tipos de perigo substituíram aqueles que
preocupavam Henrique e o senhor de Sancho Pança, e esses perigos são tratados em um
acordo contratual não mais fundado em uma ordem natural de posições terrenas e celestes.
As primeirasgrandesrepúblicasburguesas,assimcomoacomunidade imaginada por Hobbes,
eramexclusivistas,poisexistiamparaserviràsnecessidadesdasclassesproprietárias. Assim, a
segurançaoferecidaàqueleque dorme dizrespeitonão apenas à segurança física ou corporal,
mas à proteção de suapropriedade e de seusbens enquanto está dormindo. Ainda, a ameaça
potencial ao sono pacífico da classe proprietária viria dos pobres e dos indigentes, enquanto
entre aquelescujosonocabiaao rei Henrique zelarestavamincluídososinferiores,até mesmo
o “escravoinfeliz”.A relaçãoentre propriedade e odireito ou privilégio de um sono tranquilo
temsuas origensno século XVII e permanece em vigor nas cidades do século XXI. Os espaços
públicos são agora totalmente planejados com a finalidade de impedir o sono, muitas vezes
incluindo – com uma crueldade particular – o formato serrilhado de bancos e outras
superfícies acima do chão que impedem que um corpo humano se deite sobre eles. O
fenômenodisseminado,massocialmente ignorado,dossem-tetourbanosé sinal de inúmeras
privações,maspoucas são mais agudas do que os riscos e inseguranças do sono desabrigado.
Em um sentido mais amplo, no entanto, o contrato que pretendia oferecer proteção a
qualquer pessoa, proprietária ou não, foi quebrado há muito tempo. Na obra de Kafka
encontramosa ubiquidadedascondições que Hannah Arendt identificou como a ausência de
espaços ou tempos nos quais pode haver repouso e regeneração. O romance O Castelo, a
novela A Construção e outros textos trazem à tona a insônia e a vigilância obrigatória que
acompanham as formas modernas de isolamento e alienação. Em O Castelo há uma inversão
do antigo modelo de proteção soberana: aqui, a vigilância inútil e a vigília aflitiva do
agrimensor marcam sua inferioridade e irrelevância para os funcionários sonolentos da
burocracia do castelo. A Construção, uma história da redução da existência humana à busca
obsessivae ansiosade autopreservação,é umdosretratosmaislúgubres,emtodaa literatura,
da vidacomo solidão,daqual se extirpouqualquerreciprocidade.Éuma visãosombria da vida
humana na ausência de comunidade ou sociedade civil, infinitamente distante das formas
coletivas de vida dos recém-criados kibutzim pelos quais Kafka se sentia tão atraído.
O desastre na fábrica de produtos químicos em Bhopal, na Índia, em 1984, expôs de forma
terrível a absoluta falta de proteção ou segurança para os mais carentes. Pouco depois da
meia-noite de 2 de dezembro, um vazamento de gases altamente tóxicos de um tanque de
armazenamento precariamente mantido matou milhares de moradores da região – a maior
parte deles dormia no momento do acidente. Outros milhares de pessoas morreram nas
semanase mesesseguintes,e houve umnúmeroaindamaiorde feridosouinválidosparatoda
a vida. O desastre de Bhopal é até hoje a revelação definitiva do desacordo entre a
globalização corporativa e a possibilidade
de segurança e sustentabilidade para as comunidades humanas. Nas décadas seguintes, a
insistente negação de responsabilidade ou de justiça em relação às vítimas pela empresa
UnionCarbide confirmaque oprópriodesastre nãopode sertratado como um acidente e que,
no contexto das operações corporativas, as vítimas eram inerentemente supérfluas.
Decerto as consequências teriam sido igualmente horríveis se o acidente tivesse ocorrido
durante o dia, mas o fato de ter acontecido à noite ressalta a vulnerabilidade sem par da
pessoa adormecida em um mundo do qual desapareceram ou foram enfraquecidas antigas
garantias sociais. Diversos pressupostos fundamentais a respeito da coesão das relações
sociaisse aglutinamemtorno da questão do sono – na reciprocidade entre vulnerabilidade e
confiança, entre exposição e proteção. É crucial a dependência da guarda de outros para a
despreocupação revigorante do sono, para um intervalo periódico no qual se está livre de
temores, e para um esquecimento temporário “do mal”. À medida que se intensifica a
corrosão do sono,pode-se compreendermelhorcomoasolicitude essencial emrelaçãoàquele
que dorme não difere qualitativamente da proteção exigida por formas mais imediatamente
óbvias e agudas de sofrimento social.

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O sono acabou: estudo sobre privação de sono em humanos e pássaros

  • 1. O SONO ACABOU, por JONATHAN CRARY (Revista Piauí_96, Edição de Setembro de 2014) Quemjá viveuna Costa Oeste da América do Norte deve saber que, em função das estações, todo ano centenas de espécies de pássaros migram para o norte e para o sul, perfazendo distâncias variadas ao longo da plataforma continental. O pardal-de-coroa-branca é uma dessasespécies.Nooutono,elesvoamdoAlascaaté o norte do México; na primavera, voltam para o norte. Diferentemente da maioria dos outros pássaros, esse pardal tem a capacidade extraordináriade permaneceracordadoporaté sete diasdurante as migrações,oque permite a ele voar e navegar de noite e procurar por alimento de dia, sem descansar.
  • 2. Nosúltimoscincoanos,o Departamentode DefesadosEstadosUnidosgastouuma expressiva quantiade dinheiroparaestudaressascriaturas. Com recursos do governo, pesquisadores de diversasuniversidades,notadamente emMadison,noestadode Wisconsin,têm investigado a atividade cerebral dos pássaros durante esses longos períodos de vigília, com a esperança de obter conhecimentos aplicáveis aos seres humanos, e descobrir como as pessoas poderiam ficar sem dormir e funcionar produtiva e eficientemente. O objetivo inicial é tão somente a criação do soldado sem sono – e o estudo dos pardais-de- coroa-branca constituiu uma fração de um amplo esforço militar para obter algum controle, mesmo que limitado, sobre o sono humano. Inspirados pela Darpa (Defense Advanced Research Projects Agency), divisão de pesquisas avançadas do Pentágono, diversos laboratórios estão conduzindo testes experimentais de técnicas de privação de sono, recorrendo a substâncias neuroquímicas, terapia genética e estimulação magnética transcraniana. O objetivo de curto prazo consiste em desenvolver métodos que permitam a um combatente ficar sem dormir por pelo menos sete dias, e, no longo prazo, duplicar esse período,preservandoníveisaltosde desempenhomental e físico. Os atuais meios de indução à insônia têm apresentado preocupantes déficits cognitivos e psíquicos – como a diminuição da atenção, por exemplo –, como ocorreu com o uso difundido de anfetaminas em grande parte das guerras do século XX e, mais recentemente, de medicamentos como o Provigil [modafinil]. Agora, em vez de investigar formas de estimular a vigília, a ciência pretende reduzir a necessidade de sono do corpo. Por mais de duas décadas, a lógica estratégica do planejamento militar dos Estados Unidos tem procurado remover o indivíduo de algumas etapas do circuito de comando, controle e execução. Gastam-se incontáveis bilhões de dólares em sistemas de mira e assassinato robóticose de operaçãoremota,comresultadosdesanimadoramente evidentesnoPaquistão, no Afeganistãoe emoutroslugares.Apesardasinúmerasreivindicaçõespornovos paradigmas de material bélico, e ainda que os analistas militares com frequência imputem ao agente humano o fracasso de operações avançadas, a necessidade militar de grandes contingentes humanos não vai diminuir no futuro próximo. Devem-se entender os estudos sobre privação de sono no contexto de uma busca por soldados cujas capacidades físicas se aproximarão cada vez mais da eficácia de aparatos e redes não humanos. O complexo científico-militar tem se dedicado à pesquisa de formas de “cognição ampliada” que prometem aprimorar a interação entre homem e máquina. Simultaneamente,asForçasArmadastêmfinanciadodiversasoutras áreas de investigação do cérebro,bancandoinclusiveodesenvolvimentode umadrogacontra o medo.Haveráocasiões
  • 3. em que, por exemplo, drones armados com mísseis não poderão ser empregados e esquadrões da morte de soldados resistentes ao sono e à prova de medo serão necessários para missões de duração indefinida. Como parte desses esforços, o experimento com os pardais-de-coroa-branca – apartados dos ritmos sazonais do meio ambiente da costa do Pacífico– deve auxiliar o projeto de impor ao corpo humano um modelo de máquina eficaz e resistente. A história mostra que inovações relacionadas à guerra são inevitavelmente assimiladasnaesferasocial maisampla,e osoldadosemsonoseriao precursordotrabalhador ou do consumidorsemsono. Produtos contra o sono, após agressiva campanha de marketing das empresas farmacêuticas, iriam se tornar uma opção de estilo de vida e depois, para muitos, uma necessidade. Mercados 24/7 (abreviação para 24 horas por dia, 7 dias por semana) e infraestrutura global para o trabalho e o consumo contínuos existem há algum tempo, mas agora é o homem que está sendo usado como cobaia para o perfeito funcionamento da engrenagem. No iníciodosanos 90, umconsórcioespacial russo-europeuanunciouseusplanos de construir e colocar na órbita terrestre satélites que refletiriam a luz do Sol para a Terra. O esquema exigia o encadeamento de vários satélites em órbitas sincronizadas com a do Sol, a uma altitude de 1 700 quilômetros, cada um deles equipado com refletores parabólicos retráteis, feitosde ummaterial superfino.Quandocompletamente abertos, cada satélite-espelho, com 70 metrosde diâmetro,teriaa capacidade de iluminarumaáreade 25 quilômetros quadrados da Terra com uma luminosidade quase dez vezes maior do que a da Lua. Em princípio,o projetovisavaforneceriluminaçãoparao trabalhoindustrial e a exploração de recursos naturais em regiões remotas com longas noites polares, na Sibéria e no leste da Rússia,permitindoatividade aoarlivre, noite e dia. Mas o consórcio acabou expandindo seus planospara a possibilidadede ofereceriluminaçãonoturna a regiões metropolitanas inteiras. Calculandoque os custos de energia da iluminação elétrica poderiam ser reduzidos, o slogan da empresa era “Luz do dia a noite toda”. A oposição ao projeto surgiu de imediato e de diversas frentes. Astrônomos temeram que a observaçãoespacial apartir da Terra fosse prejudicada.Cientistase ambientalistas apontaram consequênciasfisiológicasprejudiciaistanto aos animais quanto aos humanos, uma vez que a ausência de alternância regular entre dia e noite interromperia vários padrões metabólicos, inclusive o sono. Associações culturais e humanitárias também protestaram, alegando que o céu noturno é um bem comum ao qual toda a humanidade tem direito, e que desfrutar da
  • 4. escuridãodanoite e observar as estrelas é um direito humano básico que nenhuma empresa pode eliminar.De qualquermodo,direitoouprivilégio,ele já está sendo violado para mais da metade da população do planeta, em cidades que estão permanentemente envoltas na penumbra da poluição e na intensa iluminação. Defensores do projeto, todavia, afirmaram que tal tecnologia ajudaria a diminuir o uso noturno de eletricidade e que a perda da noite e sua escuridão seria um preço razoável, considerando-se a redução do consumo global de energia. Seja como for, esse empreendimento ilustra o imaginário contemporâneo, para o qual um estado de iluminação contínua é inseparável da ininterrupta operação de troca e circulação globais. Em seus excessosempresariais,oprojetoé umaexpressãohiperbólicade umaintolerânciainstitucional a tudo que obscureçaou impeçauma situação de visibilidade instrumentalizada e constante. Desde 2001, a privação de sono tem sido uma prática de tortura aplicada às vítimas de custódia extrajudicial e a outros presos. As circunstâncias em que um dos detidos em particular,Mohammedal-Qahtani,se viuenvolvidoforamamplamente divulgadas, ainda que não fossem muito diferentes do tratamento recebido por centenas de outros presos cujos casos não foram tão bem documentados. Al-Qahtani foi torturado de acordo com as especificaçõesdoque agoraé conhecidocomooPrimeiro Plano de Interrogatório Especial do Pentágono, autorizado por Donald Rumsfeld. Praticamente privado de sono durante os dois meses em que foi submetido a sessões de interrogatório que chegavam a durar vinte horas, ele ficou confinado em cubículos onde não podiadeitar,iluminadoscomforteslâmpadase equipadoscomalto-falantesde onde saía uma músicamuitoalta.A comunidade de inteligênciadasForçasArmadas se referia a essas prisões como dark sites [locais escuros], ainda que um dos locais em que Al-Qahtani esteve encarcerado tenha recebido o codinome Camp Bright Lights [Campo de Luzes Brilhantes]. Certamente nãofoi aprimeiravezque norte-americanosouseuscolaboradoresse valeram da privação de sono. De certo modo, é equivocado destacar a técnica – para Mohammed al- Qahtani e muitos outros, a supressão do sono era apenas parte de um programa maior de espancamentos, humilhações, reclusão prolongada e simulações de afogamento. Muitos desses “programas” para prisioneiros extrajudiciais eram elaborados sob medida por psicólogosde equipesde consultoriade ciência do comportamento, que se empenhavam em explorar vulnerabilidades emocionais e físicas que identificavam em cada um deles.
  • 5. Aplica-se a tortura da privação do sono há muitos séculos, mas seu uso sistemático coincide historicamentecoma disponibilidade de luz elétrica e a facilidade de ampliar o som de modo continuado.Utilizadarotineiramente pelapolíciade Stálinnosanos30, emgeral era a primeira etapa do que os torturadores do NKVD [Comissariado do Povo para Assuntos Internos] chamavamde “esteirarolante”–a sequênciaordenada de brutalidades, da violência gratuita que danificairreparavelmente os seres humanos. Em experimentos, ratos morrem depois de trêssemanas de insônia. Em humanos, basta um período relativamente curto para tal prática induzir à psicose; após algumas semanas, surgem os danos neurológicos. A falta de sono acarreta um estado de extremo desamparo e submissão – é impossível extrair informações relevantes da vítima, que confessará ou inventará qualquer coisa. A negação do sono é uma desapropriação violenta do- eu por forças externas, é o estilhaçamento calculado de um indivíduo. Sabe-se que osEstadosUnidosestãoenvolvidoshátemposnaprática de tortura, diretamente ou por meio de governos fantoches. O período pós-11 de Setembro, porém, notabilizou-se pela naturalidade com que veio à luz a prática, tida como apenas um procedimento entre outros.Pesquisasde opiniãorevelamque amaioriadapopulaçãoaprova a sevícia em algumas circunstâncias. As discussões na grande imprensa são unânimes em não qualificar como tortura a privaçãode sono;ao contrário,considera-se umaformade persuasãopsicológica tão aceitável quantoaalimentaçãoforçadade prisioneirosemgreve de fome. Jane Mayer relatou emseulivro The Dark Side(2008) que o Pentágonojustificava cinicamente a privação de sono alegando que soldados da divisão de elite seal da Marinha eram obrigados a participar de missões simuladas nas quais passavam dois dias sem dormir. O tratamento dos assim chamados prisioneiros de “alto interesse” em Guantánamo e em outros lugares combinava métodos explícitos de tortura com controle absoluto sobre a experiência sensorial e perceptiva. Os detentos, confinados em celas permanentemente iluminadas, sem janelas, eram obrigados a usar vendas nos olhos e tampões nos ouvidos. Assim, luz e som eram sempre bloqueados quando os indivíduos eram conduzidos para fora, de modo a impedir a consciência do tempo ou de algum estímulo que identificasse seu paradeiro.Esse regime de privaçãodossentidosmuitasvezes se estende ao contato rotineiro entre prisioneiros e guardas – estes estão sempre inteiramente paramentados, de luvas e capacete com visores espelhados de acrílico, impossibilitando que se veja o rosto ou mesmo um pedaço de pele deles. São técnicas e procedimentos pensados para a indução a estados abjetos de submissão.
  • 6. *** O 24/7 é um tempode indiferençacontraoqual a fragilidade da vida humana é cada vez mais inadequada,e dentrodoqual o sononão é necessárioneminevitável.Em relação ao trabalho, torna plausível, até normal, a ideia de trabalhar sem pausa, sem limites. Alinha-se com o inanimado, com o inerte ou com o que não envelhece. Enquanto exortação publicitária, decreta a disponibilidade absoluta – e, portanto, um estado de necessidades ininterruptas, sempre encorajadas e nunca aplacadas. A ausência de restrições ao consumo não é simplesmente temporal. Foi-se o tempo em que a acumulação era, acima de tudo, de coisas. Agora nossos corpos e identidades assimilam uma superabundância de serviços, imagens, procedimentose produtos químicos em nível tóxico e muitas vezes fatal. A sobrevivência do indivíduo, em longo prazo, é sempre dispensável, se para tanto seja preciso contar, mesmo que indiretamente, com a possibilidade de entreatos sem compras ou o fomento delas. Da mesma forma, 24/7 é inseparável da catástrofe ambiental, dada a exigência de gasto permanente e desperdício sem fim para sua manutenção e a interrupção fatal dos ciclos e estações dos quais depende a integridade ecológica. Em sua profundainutilidade e intrínseca passividade, com perdas incalculáveis para o tempo produtivo,acirculaçãoe o consumo,o sonoestará sempre a contrapelo das demandas de um universo24/7. O fatode passarmosdormindoumbom períododa vida,libertosde umatoleiro de carências simuladas, subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismocontemporâneo.Osonoé um hiato incontornável no roubo de nosso tempo pelo capitalismo.A maioriadasnecessidades aparentemente irredutíveis da vida humana – fome, sede, desejo sexual e recentemente a necessidade de amizade – se transformou em mercadoria ou investimento. O sono afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalode tempoque nãopode sercolonizadonemsubmetido a um mecanismo monolítico de lucratividade,e dessemodopermaneceumaanomalia incongruente e um foco de crise no presente global. Apesar de todas as pesquisas científicas, frustra e confunde qualquer estratégia para explorá-lo ou redefini-lo. A verdade chocante, inconcebível, é que nenhum valor pode ser extraído do sono. Não surpreende que,emtodolugar,esteja em curso uma corrosão do sono, dada a dimensão do que está economicamente em jogo. Ao longo do século XX houve incursões regulares contra o tempo de sono – o adulto norte-americano médio dorme hoje cerca de seis horas e
  • 7. meiapor noite,umareduçãodo patamar de oito horas da geração anterior e, por incrível que pareça, de dez horas do começo do século XX. Em meados do século passado, o conhecido provérbio de que “passamos um terço de nossas vidas dormindo” parecia uma certeza axiomática, uma certeza que continua sendo minada. O sonoé um lembrete ubíquo,aindaque despercebido,de uma pré-modernidade que jamais foi completamentesuperada,douniversoagrícolaque começou a desaparecer há 400 anos. O escândalo do sono é o enraizamento em nossas vidas das oscilações rítmicas de luz solar e escuridão,atividadee descanso, de trabalho e recuperação, erradicadas ou neutralizadas em outros âmbitos. O sono possui, claro, uma história densa, assim como tudo que é supostamente natural.Jamaisfoi algomonolíticoouimutável,e aolongode séculose milênios assumiudiversas formas e padrões. Nos anos 30, Marcel Mauss incluiu tanto o sono quanto a vigília em seu estudo de “técnicas corporais”, no qual mostrou que comportamentos aparentementeinstintivoseramnaverdade aprendidosde diversas maneiras por imitação ou educação.Noentanto,aindaassim é possível supor que havia características comuns do sono na enorme diversidade de sociedades agrárias pré-modernas. Em meadosdo séculoXVII,osonose desligoudaposiçãoestável que ocupara nas concepções aristotélicase renascentistas,hojeobsoletas.Suaincompatibilidade com noções modernas de produtividade e racionalidade passou a ser notada, e Descartes, Hume e Locke foram apenas alguns dos filósofos que desprezavam o sono por sua irrelevância para o funcionamento da mente e para a busca de conhecimento. Ele perdeu o valor em face do privilégio conferido à consciênciae à vontade,anoçõesde utilidade,objetividadee açõeseminteressepróprio.Para Locke,o sonoera uma interrupçãolamentável,aindaque inevitável,dasprioridades que Deus estabeleceuparaossereshumanos:seremindustriosose racionais. No primeiro parágrafo do Tratado da Natureza Humana de Hume, o sono, como a febre e a loucura, é um obstáculo ao conhecimento. Em meados do século XIX, a relação assimétrica entre sono e vigília passou a ser caracterizada segundo modelos hierárquicos nos quais o sono era tratado como uma regressão a um modo inferior e mais primitivo, no qual era inibida a atividade cerebral supostamente superior e mais complexa. Schopenhauer é um dos raros pensadores que viraramessa hierarquia contra si mesma e afirmaram que apenas no sono pode-se encontrar “o verdadeiro cerne” da existência humana. O status incerto do sono deve ser compreendido em relação à dinâmica particular da modernidade, que invalida qualquer organização da realidade em conceitos binários complementares. A força homogeneizadora do capitalismo é incompatível com qualquer estrutura inerente de diferenciação: sagrado–profano, carnaval–dia útil, natureza–cultura,
  • 8. máquina–organismo e assim por diante. Assim, tornam-se inaceitáveis quaisquer noções persistentes do sono como algo de certa forma “natural”. As pessoas continuarão a dormir, claro,e mesmonasmegalópolesemexpansãohaveráintervalosnoturnosde relativo sossego. No entanto,osonoé agora uma experiênciadesvinculadade ideiasde necessidadee natureza. Ao contrário, e como tantas outras coisas, é tratado como uma função variável, mas controlada, que só pode ser definida instrumental e fisiologicamente. Pesquisasrecentesmostramque cresce exponencialmente onúmerode pessoasque acordam uma ou mais vezes durante a noite para verificar mensagens ou informações. Uma figura de linguagem recorrente e aparentemente inócua é o sleep mode [modo de hibernação], inspirada nas máquinas. A ideia de um aparelho em modo de consumo reduzido e de prontidão transforma o sentido mais amplo do sono em mera condição adiada ou diminuída de operacionalidade e acesso. Ela supera a lógica do desligado/ligado, de maneira que nada está de fato “desligado” e nunca há um estado real de repouso. O sono é uma afirmação irracional e intolerável de que não é irrestrita a compatibilidade de seres vivos com as forças supostamente irresistíveis da modernização. Um dos truísmos conhecidosdopensamentocríticocontemporâneo é que não existem características naturais inalteráveis – nem mesmo a morte, segundo aqueles que preveem que em breve estaremos todostransferindoosdadosde nossamente para umaforma digital de imortalidade.Acreditar que existamquaisquertraçosessenciaisque distinguemosseresvivosdasmáquinasé, dizem- nos críticoscélebres,ingênuoe delirante.Porque alguémprotestaria, pode-se argumentar, se novas drogas nos permitissem trabalhar por 100 horas seguidas? Períodos de sono mais flexíveise reduzidosnãopossibilitariammaiorliberdade pessoal e organização da própria vida de acordo com necessidades e desejos individuais? Menos sono não permitiria mais oportunidadesde “viveravidaao máximo”?Alguémpoderia contestar que os seres humanos foramfeitosparadormir à noite,que osnossoscorposestãoalinhadoscoma rotação diáriado planetae que comportamentosque reagemàs estações e à luz do Sol existem na maioria dos organismosvivos. A resposta provavelmente seria: isso é uma bobagem new age perniciosa, ou pior, uma nefasta ânsia heideggeriana por alguma conexão com a Terra. No paradigma neoliberal globalista, dormir é, acima de tudo, para os fracos. No século XIX, após os piores abusos no trato dos trabalhadores durante a industrialização europeia,osadministradoresdasfábricasse deramcontade que seria mais lucrativo oferecer aos empregados módicas horas de descanso a fim de torná-los produtores mais eficazes e
  • 9. sustentáveis no longo prazo, como mostrou Anson Rabinbach em seu estudo sobre a ciência da fadiga. Mas nas últimas décadas do século XX e até o presente, com o colapso de formas controladas ou mitigadas de capitalismo nos Estados Unidos e na Europa, desapareceu a necessidade interna de repouso e recuperação enquanto componentes do crescimento econômico e da lucratividade. O tempo para descanso e regeneração dos seres humanos é simplesmentecarodemaisparaserestruturalmente possível no capitalismo contemporâneo. *** A desvalorizaçãoemlongoprazodotrabalhovivonãofaz do repouso ou da saúde prioridades econômicas.Hoje sãopouquíssimososmomentossignificativos na existência humana (com a exceção colossal do sono) que não tenham sido permeados ou apropriados pelo tempo de trabalho,peloconsumooupelomarketing.Emsuaanálise docapitalismocontemporâneo,Luc Boltanski e Ève Chiapello salientaram o leque de forças que valorizam o sujeito constantemente envolvido, operando, interagindo, comunicando, reagindo ou processando em algum meio telemático. Em regiões afluentes do planeta, dizem os autores, isso ocorreu emmeio à dissolução de quase todas as fronteiras entre tempo privado e profissional, entre trabalhoe consumo.Nesse paradigmade permanenteconexão, o maior prêmio é conferido à atividade em si mesma, “estar sempre fazendo algo, movimentar, mudar – é o que confere prestígio, em oposição à estabilidade, muitas vezes sinônimo de inação”. Tal modelo de atividade não é uma transformação do paradigma anterior da ética do trabalho, mas um modelode normatividade completamente novo, que demanda temporalidades 24/7 para sua realização. Voltemosbrevemente aoprojetodossatélites.Colocarnaórbitaterrestre enormes refletores de luz solar que eliminariam a escuridão da noite é meio ridículo, parece um projeto de tecnologiatosca,mecânica,saídodoslivrosde JúlioVerne oudaficçãocientíficadocomeçodo séculoXX.Naverdade,as primeiras tentativas de lançamento fracassaram – em uma ocasião, os refletores não abriram corretamente, e em outra a presença de densas nuvens sobre a cidade escolhida para o teste impediu uma demonstração convincente de seu potencial. As pretensões de um tal programa nos trazem à mente um amplo conjunto de práticas pan- ópticasdesenvolvidas nos últimos 200 anos. Isto é, remetem à importância da iluminação no modelooriginal doPanópticode JeremyBentham, que propunha inundar de luzes os espaços
  • 10. a fimde suprimirassombras e criar condiçõesde controle graçasà visibilidade completa. Mas por décadas outros tipos de satélites realizaram, de maneiras muito mais sofisticadas, essas operações de vigilância e coleta de informação. Um panoptismo modernizado se expandiu muito além das ondas visíveis de luz, em direção a outras regiões do espectro, para não mencionar os diversos tipos de escâneres não ópticos e sensores térmicos e biológicos. Talvez o projeto do satélite deva ser compreendido como a perpetuação de práticas mais claramente utilitárias que tiveram início no século XIX. Em sua história da tecnologia de iluminação,WolfgangSchivelbuschmostracomoo desenvolvimentodailuminaçãopúblicapor voltada décadade 1880 atingiudoisobjetivosinter-relacionados:reduziuantigasansiedadesa respeito dos perigos associados à escuridão noturna e expandiu a duração e, portanto, a lucratividade de muitas atividades econômicas. A iluminação noturna constituiu uma demonstraçãosimbólicadoque osdefensoresdocapitalismoprometeram ao longo de todo o séculoXIX:seriaa duplagarantiade segurança e ampliação das possibilidades de enriquecer, melhorandoparatodos,supostamente,otecidodaexistência social. Nesse sentido, o triunfo de um mundo 24/7 é uma realização daquele projeto anterior, mas com benefícios e prosperidade que se acumulam sobretudo em favor de uma poderosa elite global. O 24/7 minapaulatinamente asdistinçõesentrediae noite,entre claro e escuro, entre ação e repouso.É umazona de insensibilidade, de amnésia, de tudo que impede a possibilidade de experiência. Parafraseando Maurice Blanchot, é tanto o próprio desastre quanto a consequênciadodesastre,caracterizadopelocéuvazio,noqual nãose vê nenhumaestrela ou sinal, em que qualquer referência se perde e nenhuma orientação é possível. Mais concretamente, é como um estado de emergência, quando um conjunto de refletores é repentinamente aceso no meio da noite, aparentemente como resposta a circunstâncias extremas, mas que continuam acesos, transformados em condição permanente. O planeta é repensado como um local de trabalho ininterrupto ou um shopping center de escolhas, tarefas, seleções e digressões infinitas, aberto o tempo todo. A insônia é o estado no qual produção, consumo e descarte ocorrem sem pausa, apressando a exaustão da vida e o esgotamento dos recursos. Último obstáculo – na verdade, a última das “barreiras naturais”, para usar a expressão de Marx – à completa realização do capitalismo 24/7, o sono não pode ser eliminado. Mas pode serarruinadoe despojado,e existemmétodose motivações para destruí-lo. Odano ao sono é inseparável do atual desmantelamento da proteção social em outras esferas. Assim como o
  • 11. acessouniversal àágua potável temsidoexterminado pela poluição e privatização no mundo todo, somadas à valorização comercial da água engarrafada, não é difícil vislumbrar, em relação ao sono, um semelhante processo de produção de escassez. Os abusos que ele sofre criam as condições de insônia nas quais o sono deve ser comprado – mesmo que paguemos por um estado quimicamente modificado que é apenas uma aproximação do sono real. As estatísticassobre oaumentodo uso de soníferos mostram que, em 2010, compostos como Ambien (zolpiden) ou Lunesta (eszopiclone) foram receitados para cerca de 50 milhões de norte-americanos,e muitosoutrosmilhõescompraramoutrostiposde produtosque induzem ao sono. Mas seria equivocado imaginar uma melhora nas condições atuais que permitiria às pessoas dormir profundamente e acordar refeitas. A essa altura, mesmo um mundo organizado de maneira menos opressiva dificilmente eliminaria a insônia. O filósofo Emmanuel Lévinas é um dos muitos pensadores que tentaram compreender os sentidos da insônia no contexto da história recente. A insônia, afirma, é uma forma de imaginara extremadificuldadedaresponsabilidadeindividual diante das catástrofes de nosso tempo. Parte do mundo modernizado no qual vivemos é composta da visibilidade ubíqua da violência inútil e do sofrimento humano que ela causa. Essa visibilidade, em todas as suas formashíbridas,é um clarão que desestabiliza toda condescendência e impede a desatenção regeneradoradosono.A insôniacorresponde ànecessidade de vigilância, à recusa de ignorar o horror e a injustiça que assolam o mundo. É a inquietação do esforço de evitar ignorar o sofrimento alheio. Mas essa inquietação é também a ineficácia frustrante de uma ética da vigilância;oatode testemunhare suamonotoniapodem se tornar mera resignação diante da noite, diante do desastre. Não é nem público nem completamente privado. Para Lévinas, a insôniasempre pairaentre aintrospecçãoe a despersonalizaçãoradical;nãoexclui ointeresse pelo outro, mas tampouco oferece uma noção clara de um espaço para sua presença. É onde enfrentamosaquase impossibilidadede viverhumanamente.A insôniadeve serdistinguidado fardo da vigília, com sua atenção quase insuportável ao sofrimento e à enorme responsabilidade que ele impõe. *** Existemmuitasafirmaçõesde comoavidapúblicae a esferade trabalho eram alienantes para a maioria das pessoas, como “Deus nos proteja da visão única e do sono de Newton”, de William Blake; “Sobre as nossas mais nobres faculdades se espalha um sonho repleto de
  • 12. pesadelos”, de Carlyle; e “O sono arrasta toda a nossa vida diante de nossos olhos”, de Emerson, até “O espetáculo expressa nada mais do que o desejo de sono da sociedade”, de Guy Debord.Seriafácil reunircentenasde outrosexemplosdessacaracterização às avessas da parte desperta da experiência social moderna. Imagens de uma sociedade de adormecidos vêmda esquerdae da direita,daaltae da baixacultura,e têm sidoumelementoconstante no cinema, de O Gabinete do Dr. Caligari a Matrix. Essas evocações do sonambulismo em massa têm em comum a associação de comportamentos rotineiros, habituais ou de quase transe, à debilitação ou redução das capacidades perceptivas. As teorias sociológicas dominantes, em sua maioria,sugeremque osindivíduoshoje viveme agem, ainda que de modo intermitente, emestadosque são enfaticamente distintosdosono – estadosde autoconsciência nos quais o sujeito pode avaliar eventos e informações, na condição de partícipe racional e objetivo da vidapública ou cívica. Quaisquer posições que caracterizem as pessoas como desprovidas de iniciativa,autômatospassivosàmercê damanipulaçãooudo controle de seucomportamento, são em geral consideradas redutoras ou irresponsáveis. Ao mesmo tempo, quase todas as noções de despertar político são consideradas igualmente perturbadoras,por sugerir um processo de conversão repentino e irracional. Basta lembrar o principal sloganeleitoral dopartidonazistanocomeçodadécadade 30: Deutschland erwache! – Despertai, Alemanha! Mais remota historicamente é a Epístola de São Paulo aos Romanos: “Tanto mais que sabeis em que tempo estamos vivendo: já chegou a hora de acordar [...] deixemosasobrasdas trevase vistamosaarmadura da luz!”Ou, mais recente e enfadonho, o chamadodas forças anti-Ceausescuem1989: “Despertai,romenos,do sono profundo em que fostescolocadospelasmãosde umtirano.”Despertares políticos e religiosos são tratados em termosperceptivos,comoumahabilidade recém-adquiridade vislumbrar, através de um véu, um estado verdadeiro das coisas, de discriminar um mundo invertido de outro que está na ordemcorreta,ou de recuperaruma verdade perdidaque se torna a negação daquela da qual despertamos. O despertar – perturbação epifânica da insipidez entorpecida da existência rotineira – recuperaa autenticidade emoposiçãoaoócioentorpecidodosono. Nesse sentido, ele é uma forma de decisionismo: a experiência de um momento redentor que parece interromper o tempo histórico, no qual um indivíduo se submete a um encontro transformador com um futuro até então desconhecido. Mas toda essa categoria de imagens e metáforas não condiz mais com um sistema global que nunca dorme, garantia de que nenhum despertar potencialmente perturbadorsejanecessárioourelevante.Se algosobrevive da iconografia do
  • 13. pôr e do nascer do sol, é em torno daquilo que Nietzsche identificou como a demanda, formulada por Sócrates, por “uma permanente luz diurna da razão”.Mas desde os tempos de Nietzsche tem havido uma transferência enorme e irreversível da “razão” humana às operações 24/7 de redes de processamento de informação e à incessante transmissão de luz por circuitos de fibra óptica. Paradoxalmente,paraasubjetividade osonoé umaimagemsobre a qual o poder opera com a menorresistênciapolíticapossível eumacondiçãoque não é passível de serinstrumentalizada ou externamente controlada – que evade ou frustra as demandas da sociedade de consumo global. Assim, não é preciso lembrar que os muitos clichês do discurso social e cultural dependemde umsentimentomonolíticoouvaziodosono. Blanchot, Merleau-Ponty e Walter Benjamin são apenas alguns dos pensadores do século XX que refletiram sobre a profunda ambiguidade dosonoe sobre a impossibilidade de encaixá-loemqualqueresquemabinário. O sonodeve serentendidoemrelaçãoàsdistinçõesentre públicoe privado,entre o individual e o coletivo, mas sempre levando em consideração sua permeabilidade e proximidade. Penso sobretudo que, no contexto de nosso próprio presente, o sono pode representar a durabilidade do social, e pode ser análogo a outros pilares nos quais a sociedade poderia se escorar ou proteger-se a si mesma. O sono – estado mais privado e vulnerável de todos – depende crucialmente da sociedade para se sustentar. Um dos exemplosvívidosdainsegurançadoestadode naturezano Leviatã de Thomas Hobbes é a vulnerabilidade de um indivíduo adormecido diante dos inúmeros perigos e predadores que se deve temera cada noite.Assim, uma obrigação rudimentar da comunidade é oferecer segurança para aquele que dorme, não apenas contra perigos reais, mas – igualmente importante – contra a ansiedade que geram. A proteção daquele que dorme, por parte da comunidade, ocorre no interior de uma reconfiguração maior da relação social entre segurança e sono. No início do século XVII, ainda se podem encontrar resquícios de uma hierarquiaimaginadaque distinguiaascapacidadessobre-humanasdosenhorou do soberano – cujos poderes oniscientes, ao menos simbolicamente, não sucumbiam às condições desabilitadoras do sono – dos instintos somáticos de homens e mulheres trabalhadores. No entanto, em Henrique V, de Shakespeare, e Dom Quixote, nos deparamos tanto com a formulação quanto com o esvaziamento desse modelo hierárquico. Para o rei Henrique, a distinção relevante não é apenas entre sono e vigília, mas entre uma vigilância perceptiva mantidaao longoda “noite totalmentevigiada”e a sonolênciaprofunda, bem como a “mente vazia”, do pequeno proprietário ou do camponês. Sancho Pança, de outro ponto de vista, divide o mundo entre aqueles que, como ele próprio, nasceram para dormir e aqueles que,
  • 14. como seu senhor, nasceram para vigiar. Em ambos os textos, ainda que subsistam as obrigações associadas à posição na hierarquia, existe uma consciência paralela da obsolescência e da persistência meramente formal desse modelo paternalista de vigilância. A obra de Hobbes é um importante indício de uma transformação da garantia de segurança e das necessidades daqueles que dormem. Novos tipos de perigo substituíram aqueles que preocupavam Henrique e o senhor de Sancho Pança, e esses perigos são tratados em um acordo contratual não mais fundado em uma ordem natural de posições terrenas e celestes. As primeirasgrandesrepúblicasburguesas,assimcomoacomunidade imaginada por Hobbes, eramexclusivistas,poisexistiamparaserviràsnecessidadesdasclassesproprietárias. Assim, a segurançaoferecidaàqueleque dorme dizrespeitonão apenas à segurança física ou corporal, mas à proteção de suapropriedade e de seusbens enquanto está dormindo. Ainda, a ameaça potencial ao sono pacífico da classe proprietária viria dos pobres e dos indigentes, enquanto entre aquelescujosonocabiaao rei Henrique zelarestavamincluídososinferiores,até mesmo o “escravoinfeliz”.A relaçãoentre propriedade e odireito ou privilégio de um sono tranquilo temsuas origensno século XVII e permanece em vigor nas cidades do século XXI. Os espaços públicos são agora totalmente planejados com a finalidade de impedir o sono, muitas vezes incluindo – com uma crueldade particular – o formato serrilhado de bancos e outras superfícies acima do chão que impedem que um corpo humano se deite sobre eles. O fenômenodisseminado,massocialmente ignorado,dossem-tetourbanosé sinal de inúmeras privações,maspoucas são mais agudas do que os riscos e inseguranças do sono desabrigado. Em um sentido mais amplo, no entanto, o contrato que pretendia oferecer proteção a qualquer pessoa, proprietária ou não, foi quebrado há muito tempo. Na obra de Kafka encontramosa ubiquidadedascondições que Hannah Arendt identificou como a ausência de espaços ou tempos nos quais pode haver repouso e regeneração. O romance O Castelo, a novela A Construção e outros textos trazem à tona a insônia e a vigilância obrigatória que acompanham as formas modernas de isolamento e alienação. Em O Castelo há uma inversão do antigo modelo de proteção soberana: aqui, a vigilância inútil e a vigília aflitiva do agrimensor marcam sua inferioridade e irrelevância para os funcionários sonolentos da burocracia do castelo. A Construção, uma história da redução da existência humana à busca obsessivae ansiosade autopreservação,é umdosretratosmaislúgubres,emtodaa literatura, da vidacomo solidão,daqual se extirpouqualquerreciprocidade.Éuma visãosombria da vida humana na ausência de comunidade ou sociedade civil, infinitamente distante das formas coletivas de vida dos recém-criados kibutzim pelos quais Kafka se sentia tão atraído.
  • 15. O desastre na fábrica de produtos químicos em Bhopal, na Índia, em 1984, expôs de forma terrível a absoluta falta de proteção ou segurança para os mais carentes. Pouco depois da meia-noite de 2 de dezembro, um vazamento de gases altamente tóxicos de um tanque de armazenamento precariamente mantido matou milhares de moradores da região – a maior parte deles dormia no momento do acidente. Outros milhares de pessoas morreram nas semanase mesesseguintes,e houve umnúmeroaindamaiorde feridosouinválidosparatoda a vida. O desastre de Bhopal é até hoje a revelação definitiva do desacordo entre a globalização corporativa e a possibilidade de segurança e sustentabilidade para as comunidades humanas. Nas décadas seguintes, a insistente negação de responsabilidade ou de justiça em relação às vítimas pela empresa UnionCarbide confirmaque oprópriodesastre nãopode sertratado como um acidente e que, no contexto das operações corporativas, as vítimas eram inerentemente supérfluas. Decerto as consequências teriam sido igualmente horríveis se o acidente tivesse ocorrido durante o dia, mas o fato de ter acontecido à noite ressalta a vulnerabilidade sem par da pessoa adormecida em um mundo do qual desapareceram ou foram enfraquecidas antigas garantias sociais. Diversos pressupostos fundamentais a respeito da coesão das relações sociaisse aglutinamemtorno da questão do sono – na reciprocidade entre vulnerabilidade e confiança, entre exposição e proteção. É crucial a dependência da guarda de outros para a despreocupação revigorante do sono, para um intervalo periódico no qual se está livre de temores, e para um esquecimento temporário “do mal”. À medida que se intensifica a corrosão do sono,pode-se compreendermelhorcomoasolicitude essencial emrelaçãoàquele que dorme não difere qualitativamente da proteção exigida por formas mais imediatamente óbvias e agudas de sofrimento social.