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O UBER NO RECIFE E A INAPLICABILIDADE, AO CASO, DA
REGULAMENTAÇÃO MUNICIPAL PARA OS TAXISTAS
No dia 03/03/2016, o UBER iniciou as suas operações na cidade do Recife,
seguindo-se a Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Goiânia, Porto Alegre, Rio de Janeiro
e São Paulo, engrossando a lista das cidades brasileiras a disponibilizar o serviço e
consolidando, cada vez mais, a marca no país. Ao reboque da notícia, percebem-se as
primeiras movimentações dos mais variados setores da sociedade – uns progressistas,
outros nem tanto.
No centro das discussões sobre a possibilidade ou não da operação do
UBER na cidade do Recife, está a Lei Municipal nº 18.176/2015, que regulamenta, no
âmbito municipal, “a operação, administração ou uso de software aplicativo destinado à
oferta, contratação ou intermediação de serviço individual de transporte de passageiro
no município do Recife.”
À primeira vista, a regulamentação municipal acerca da matéria parece
impedir – ou, ao menos, limitar – a atuação do UBER em seus contornos, uma vez que
exige o registro e autorização, pela Prefeitura do Recife, para a utilização dos aplicativos
destinados à oferta, contratação ou intermediação de serviço individual remunerado de
transporte de passageiros.
O referido diploma municipal, conforme se depreende de sua leitura, não
estabelece distinções entre os softwares aplicativos utilizados para a contratação de
serviço de táxi, a exemplo do 99TAXIS e EASYTAXI, e o UBER. A questão, contudo,
não é tão simples e, ao que nos parece, escapa à competência legislativa municipal.
Ao contrário do defendido pelo legislador municipal, parte-se, aqui, da
premissa de que o UBER não disponibiliza serviço de táxi, mas de transporte privado
individual de passageiros, com aquele não se confundindo. Qualquer comparação entre
as duas modalidades de transporte, portanto, carece de relevância prática ou
sustentação teórica, uma vez que traça paralelos entre institutos distintos,
incomparáveis entre si.
Mas, se o UBER não pode ser confundido com táxi, por que manifesta tanta
insurgência dos taxistas e daqueles simpáticos à sua causa? A análise ultrapassa as
fronteiras do Direito e atinge conceitos econômicos, entre os quais se destaca o conceito
de tecnologia ou inovação disruptiva.
Em termos gerais, as tecnologias disruptivas são aquelas que não se limitam
a aperfeiçoar uma tecnologia existente no mercado, trazendo, efetivamente, conceitos
novos ao mercado, preenchendo uma lacuna ou ocupando, paulatinamente, o local de
tecnologia já existente. São exemplos as máquinas fotográficas digitais, se comparadas
às analógicas, que demandavam a revelação dos filmes, e os computadores portáteis,
em relação aos computadores de mesa.
Mais especificamente, traçando um paralelo entre as tecnologias evolutivas
e disruptivas, esclarece Clayton M. Christensen1
:
“A maioria das tecnologias dá suporte à melhoria do
desempenho de produtos. Chamo a isso de tecnologia
incremental; algumas podem ser descontínuas ou
caracteristicamente radicais, enquanto outras são de natureza
incremental. Tecnologias incrementais têm em comum o efeito
de melhorar o desempenho de produtos estabelecidos, junto
com as dimensões do desempenho que aqueles clientes
habituais têm valorizado historicamente nos maiores mercados.
(...) As tecnologias de ruptura trazem a um mercado uma
proposição de valor muito diferente daquela disponível até
então.”
Em que pese seu pouco tempo de atuação no mercado, parece-nos que o
UBER se encaixa perfeitamente no conceito de inovação disruptiva, forçando os
agentes a tornarem-se mais competitivos e, com isso, favorecerem o consumidor em
razão do avanço tecnológico, da maior oferta de serviços e da consequente redução
dos preços.
Naturalmente, como em qualquer processo de ruptura, a operação do UBER
no Recife implicará em manifestações negativas dos motoristas de táxi, categoria
certamente mais afetada pelo software, demandando a interferência política e jurídica,
a teor do que já se verificou nas demais localidades em que opera o aplicativo.
Buscando esclarecer, ainda que sem pretensão de esgotar o tema, o
regramento jurídico aplicável ao UBER, notadamente quanto ao seu aspecto regulatório,
é de se notar que a Constituição Federal de 1988 é expressa ao disciplinar a ocupação
urbana adequada, no que se inclui a garantia de mobilidade urbana aos cidadãos.
1
CHRISTENSEN, Clayton M. O Dilema da Inovação. São Paulo: M. Books do Brasil, 2012. P. 24.
O conceito de mobilidade urbana, por sua vez, vem insculpido na Lei Federal
nº 12.587/2012 (“Lei de Mobilidade Urbana”), que instituiu as diretrizes da Política
Nacional de Mobilidade Urbana, definindo por mobilidade urbana a “condição em que
se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano” (art. 4º, II).
Por sua vez, a Emenda Constitucional nº 82/2014, que introduziu o § 10,
inciso I, no art. 144 da Constituição Federal, alçou a mobilidade urbana eficiente à
condição de direito fundamental e social do cidadão. A alteração visou garantir o
exercício adequado deste direito, de maneira a dotar de maior eficiência a mobilidade
urbana nas cidades brasileiras.
O direito à mobilidade urbana, na verdade, sempre esteve muito próximo
dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, consignados no art. 3º,
I, III e IV, da CF/1988, uma vez que visam à construção de uma sociedade justa e
solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais,
bem como promover o bem de todos.
Ainda sobre o tema, e não menos importante, vale destacar que o art. 21,
XX, da CF/88 determina ser de competência da União “instituir diretrizes para o
desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes
urbanos”. Ressalte-se, ainda, o art. 22, XI, da Carta da República, segundo o qual
compete à União legislar privativamente sobre trânsito e transportes, e o inciso IV do
mesmo dispositivo, que traz a competência privativa da União para legislar sobre
informática.
Surge, no ponto, a primeira barreira à aplicação da mencionada Lei
Municipal nº 18.176/2015 ao UBER, que, indiscutivelmente se trata de ferramenta
destinada à contratação do serviço de transporte: a competência privativa da União para
legislar sobre o tema.
Isso foi reconhecido, inclusive, pela Ministra do Superior Tribunal de Justiça
Nancy Andrighi, em evento promovido pela Abranet – Associação Brasileira de Internet
em setembro de 2015, ao afirmar que “não compete aos Municípios, aos Estados e ao
Distrito Federal legislar sobre aplicativos de internet de intermediação de transporte”.2
Regulamentando a matéria atinente à mobilidade urbana e aos transportes
no plano infraconstitucional, foi editada a Lei Federal nº 12.587/2012, a qual traça as
2
Cf. http://www.valor.com.br/politica/4243840/cidades-nao-podem-legislar-sobre-uber-diz-ministra-
do-stj. Acesso: 06/03/2016.
diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, com o objetivo de promover a
“integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e
mobilidade das pessoas e cargas no território do Município.”
Assim, se apenas à lei federal cabe estabelecer restrições sobre os sistemas
de transporte, entre os quais se inclui o UBER, e se o tema da mobilidade urbana foi
regulado pela aludida Lei Federal nº 12.587/2012, passemos à breve análise da
normatização trazida pelo diploma, a fim de identificar se há alguma restrição imposta à
operação do aplicativo.
Os serviços de transporte urbanos são classificados, conforme o art. 3º da
lei, da seguinte maneira:
“§ 2º Os serviços de transporte urbano são classificados:
I - quanto ao objeto:
a) de passageiros;
b) de cargas;
II - quanto à característica do serviço:
a) coletivo;
b) individual;
III - quanto à natureza do serviço:
a) público;
b) privado.”
Denota-se, assim, que a lei faz menção ao transporte público individual de
passageiros e ao transporte privado individual de passageiros, de modo distinto. O art.
4º do mesmo diploma, todavia, apenas alude ao transporte público individual, definindo-
o como “serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por
intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas.”
Conforme aponta o constitucionalista Daniel Sarmento, em parecer no qual
lhe foi formulada consulta exatamente acerca da juridicidade do UBER no Brasil3
, o fato
de o legislador ordinário não ter aludido ao transporte privado individual de passageiros
não importa na conclusão de que não tenha reconhecido tal modalidade, mas apenas
que considerou desnecessário defini-la ou regulá-la. Isso porque o art. 4º da Lei Federal
nº 12.587/2012 apenas traz as definições “para os fins” de aplicação do diploma.
Nesse norte, a Lei Federal nº 12.468/2011 estipula que o transporte público
individual de passageiros é reservado aos taxistas, conforme os termos e condições ali
estabelecidos.
Não há, contudo, qualquer disciplina jurídica federal que regulamente ou
restrinja a prestação dos serviços de transporte privado individual de passageiros –
atividade exercida pelo UBER –, ao que se conclui que a atividade, em homenagem à
livre iniciativa e à livre concorrência, não encontra óbices ao seu desenvolvimento.
A inviabilidade de restrição, através de lei municipal, ao funcionamento do
UBER, portanto, esbarra na competência legislativa privativa da União para legislar
sobre transportes e, ademais, nos princípios constitucionais da livre concorrência e da
livre iniciativa, respectivamente princípio da ordem econômica (art. 170, IV) e
fundamento da República (art. 1º, IV).
O vício de competência da lei municipal que pretende regular o UBER, por
si só, já seria capaz de inviabilizar a aplicação daquele diploma no âmbito do município
do Recife. Sem embargo, é de se notar que a questão é muito mais material,
principiológica, que meramente formal.
Na linha do que defende o professor carioca Daniel Sarmento, autor do
mencionado parecer acerca do UBER, a matéria esbarra na tutela do direito do
consumidor assegurada através da liberdade de iniciativa e da liberdade de
concorrência. Em suas palavras:
“Recorde-se, nesse ponto, que, conquanto a liberdade de
concorrência proteja os agentes econômicos diante de
regulações estatais restritivas, o seu foco principal não é a
proteção desses agentes, mas sim a tutela dos interesses dos
consumidores, que são prejudicados pela imposição de limites
injustificados à sua liberdade de escolha. Portanto, a criação de
3
Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/paracer-legalidade-uber.pdf. Acesso: 06/03/2016.
embaraços estatais à competição, com a instituição de reservas
e privilégios a empresas ou grupos específicos, viola não apenas
os direitos dos potenciais concorrentes prejudicados. Mais que
isso, ela ofende os interesses dos consumidores e da própria
sociedade.”4
Entender de modo diverso implicaria em estabelecer reserva de mercado
em favor da categoria dos taxistas, sem qualquer respaldo legal para tanto, haja vista
que, na linha do exposto, a legislação federal que regula o tema nada dispõe acerca do
transporte privado individual, cingindo-se a regulamentar o transporte público individual.
Ora, se o UBER presta serviço de transporte privado individual, não há como
se pretender equipará-lo a serviço público, para efeitos regulatórios. Da conjunção entre
a livre iniciativa e a livre concorrência, ainda no entender de Sarmento, não pode advir
interpretação legislativa que acabe por retirar a livre atuação das empresas privadas em
áreas nas quais não exista qualquer fundamento para a sua exclusão do mercado.
Nessa linha, esclareça-se que o art. 170, p. único, da CF/1988 estabelece
ser livre o exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de
autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Em outros termos, o
que prescreve a Carta é que, se não houver vedação legal – e desde que eventuais
óbices legais tenham sido editados conforme os requisitos constitucionais, tanto quanto
à forma, como quanto à matéria – é livre a possibilidade de atuação do particular no dito
segmento de mercado. É a máxima segundo a qual, ao particular, é dado fazer tudo
aquilo o que não for expressamente vedado pela lei.
Qualquer restrição legal ao exercício de determinada atividade econômica,
portanto, deve ser devidamente fundamentada e ter por objetivo a tutela de interesses
públicos legítimos, sem oferecer restrição exagerada aos ditames da livre iniciativa e da
livre concorrência. Não é demais reforçar, ainda, que a referida restrição deve ser
estabelecida pelo ente federativo competente para legislar sobre a matéria, sob pena
de vício formal à pretensão regulatória.
Transladando-se a discussão especificamente para o que toca ao UBER,
como visto, a lei federal que regulamentou a profissão de taxista estabelece ser privativa
da categoria a prestação de serviço de transporte público individual de passageiros, não
4
Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/paracer-legalidade-uber.pdf. P. 12. Acesso: 06/03/2016.
lhes atribuindo, contudo, também o monopólio do serviço de transporte privado
individual, o qual, portanto, permanece no âmbito da livre concorrência.
Por não se tratar o UBER de transporte público individual de passageiros,
jamais poderiam suas regras ser as mesmas aplicáveis aos táxis, não merecendo
qualquer guarida a insurgência comum dos taxistas de que deveriam se credenciar e
obedecer aos demais requisitos legais impostos àquela categoria profissional.
Ao pretender equiparar o UBER aos táxis, além de se frustrar a livre iniciativa
e a livre concorrência, acaba-se por afrontar a garantia conferida aos cidadãos,
potenciais usuários dos serviços, de escolher aquela modalidade que melhor lhe
aprouver, em prejuízo do direito do consumidor, cuja defesa também é assegurada por
força do art. 170, V, da Constituição Federal.
Assim é que, se é de competência privativa da União legislar sobre
informática e transportes, e se o UBER congrega exatamente estes dois ramos de
atividade, impende concluir que a sua eventual regulamentação só pode advir da
legislação federal, a qual, até o momento, optou por não o fazer, deixando livre ao
aplicativo o desenvolvimento de suas atividades.
Esse argumento foi, inclusive, utilizado pela Confederação Nacional dos
Serviços – CNS, em sede de ação direta de inconstitucionalidade movida em face da lei
municipal da capital paulista que dispõe acerca da proibição do uso de carros
particulares cadastrados em aplicativos para o transporte remunerado individual de
pessoas no âmbito daquele município (processo nº 2216901-06.2015.8.26.0000, em
trâmite perante o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo).
O professor de Direito do Estado da Universidade de São Paulo e advogado
Floriano de Azevedo Marques Neto, tratando do UBER na cidade de São Paulo, mas
em lição absolutamente transponível ao caso pernambucano, aponta:
“O Uber se apresenta como uma ferramenta de aproximação de
usuários e motoristas autônomos, facilitador do encontro
entre oferta e demanda. Viabiliza o primado do mercado. Os
serviços de taxi são serviços públicos. Só podem explorar estas
atividades aqueles que recebem outorga, são fiscalizados e
sancionados pela administração municipal, recolhem taxas por
essa fiscalização. Ou seja, trata-se de uma atividade reservada
ao Município e exercida sob forte regulação pública.
(...)
O fato de o aplicativo ter, rapidamente, se tornado um
sucesso indica que havia oferta (motoristas que querem
prestar serviço qualificado por sua conta e risco) e demanda
(usuários que não são atendidos pelo serviço público por
insuficiência qualitativa ou quantitativa da oferta de taxis)
frustrados elo serviço público. Fossem os taxis adequados e
suficientes às necessidades do cidadão paulistano e o serviço
não teria tanto sucesso.
Uma atividade pode ser reservada ao regime de serviço
público (e portanto retirada da livre iniciativa) ou porque o
Estado quer universalizar ou porque ela tem características
que impedem a competição (por exemplo, monopólios
naturais) ou, ainda, porque demandam uma regulação
rigorosa.
Ora, o serviço de taxi não se enquadra em nenhuma destas
condições. Não é um serviço que mereça ser universalizado
(seria risível um programa "taxi para todos" ou o subsídio nas
tarifas do transporte individual); não é uma atividade de
competição dificultosa (ao contrário, com o aplicativo a
competição se torna quase perfeita), pois a única barreira
intransponível de entrada de um novo competidor é, justamente,
a reserva de mercado dada pelo número limitado de licenças. E
a regulação, em geral, se presta mais a coibir clandestinos e
proteger os licenciados do que assegurar conformidade no
serviço prestado. Não há exigência de prestação de serviços em
horários noturnos ou finais de semana. O asseio dos veículos e
motoristas, em muitos casos, deixa a desejar. O requisito legal
da cortesia (artigo 6º, § 1º,Lei 8.987/95) nem sempre é presente.
Não há um serviço efetivo de atendimento aos usuários e de
recebimento e retorno de queixas e reclamações.
(...)
A limitação de mercados sem benefícios públicos fere a
Constituição que só admite a restrição da livre iniciativa
quando o interesse público justificar.”5
(grifamos)
A lição é cristalina e leva à reflexão de que a insurgência dos taxistas pode
estar fundamentada não em aspectos jurídicos, mas na simples constatação de que o
serviço por eles prestado é de qualidade inferior e preço superior, o que, com o
surgimento de nova categoria no mercado, acabará por reduzir a procura por seus
serviços, em razão do aumento da oferta e da tecnologia de melhor qualidade e
eficiência.
Instadas a manifestar-se, as cortes brasileiras já apontaram para a
legalidade do UBER e de sua operação no país, a exemplo das decisões proferidas nos
autos dos processos nº 2014831-63.2016.8.26.0000 (5ª Câmara de Direito Público do
Tribunal de Justiça de São Paulo), 0061837-32.2015.8.19.0000 (17ª Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) e 2177604-89.2015.8.26.0000 (7ª Câmara de
Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo).
Em âmbito internacional, as cortes também têm entendido pela legalidade
do aplicativo. Em batalha travada na Suprema Corte do Reino Unido, decidiu-se que o
UBER não funciona da mesma maneira que um táxi e, portanto, não poderia ter
regulamentação e tratamento idênticos.6
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, autarquia federal
vinculada ao Ministério da Justiça cujo objetivo institucional é, precipuamente, a defesa
da livre concorrência em âmbito nacional, divulgou dois estudos, ambos da autoria de
seu economista-chefe, Luiz Alberto Esteves7
, apontando ser positiva a entrada no
mercado de novos agentes prestadores de serviço de transporte individual.
Em um deles, o economista conclui:
“Os resultados obtidos não fornecem qualquer evidência de
que o número de corridas de táxis contratadas nos
municípios do grupo de tratamento (com presença do
5
Disponível em http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI221670,91041-
Estado+contra+o+mercado+Uber+e+o+consumidor. Acesso: 07/03/2016.
6
Cf. http://www.valor.com.br/internacional/4272686/uber-vence-disputa-na-suprema-corte-do-reino-
unido. Acesso: 07/03/2016.
7
Disponíveis em
http://www.cade.gov.br/upload/O%20Mercado%20de%20Transporte%20Individual%20de%20Passageir
os.pdf e http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/12/art20151215-04.pdf. Acesso: 07/03/2016.
aplicativo Uber no período Depois da Entrada) tenham
apresentado desempenho inferior aos do grupo de controle
(sem presença do aplicativo Uber no período Depois da
Entrada). Em termos de exercícios empíricos aplicados à
política antitruste, isso significa que não podemos sequer
assumir (ao menos nos períodos aqui analisados) a hipótese de
que os serviços prestados pelo aplicativo Uber estivessem (até
maio de 2015) no mesmo mercado relevante dos serviços
prestados pelos aplicativos de corridas de táxis 99taxis e Easy
Taxi. Adicionalmente, não é possível descartar a
possibilidade de que o ingresso do aplicativo Uber no
mercado brasileiro de transporte individual de passageiros
tenha sido patrocinado, quase que exclusivamente, pela
expansão e diversificação deste mercado, ou seja, por meio
do atendimento de uma demanda reprimida, até então não
atendida pelos serviços prestados pelos táxis.”8
(grifamos)
Segundo o estudo, portanto, o UBER não demonstrou, efetivamente, haver
retirado a clientela que habitualmente utilizaria o serviço de táxi, mas, ao contrário,
conquistou novos clientes no mercado, sem que se possa cogitar, a princípio, de
qualquer interferência entre os dois segmentos de atuação, em prejuízo da categoria
dos taxistas.
Em julho de 2015, o CADE, após denúncia formulada pelo UBER, pelo
Diretório Central dos Estudantes da Universidade de Brasília e pelo Diretório Central
dos Estudantes do Centro Universitário de Brasília, já havia instaurado processo
administrativo9
para apurar condutas anticompetitivas de taxistas, em clássica hipótese
de sham litigation10
, o que, até o momento, ainda se encontra em fase instrutória.
De qualquer modo, independentemente das práticas eventualmente
anticoncorrenciais adotadas pelos que se opõem à atuação do UBER no Brasil, o que
será devidamente apurado pelas autoridades competentes, é certo que não há como se
8
Cf. http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/12/art20151215-04.pdf. P. 24-25.
9
Proc. nº 08700.006964/2015-71.
10
Em linhas gerais, entende-se por sham litigation o abuso do direito de valer-se do aparelho estatal do
Poder Judiciário, ingressando com ações de modo fraudulento, sem perspectiva de êxito, com a finalidade
de atingir concorrente direto no mercado. No caso específico, a investigação do CADE verificou que foram
ajuizadas três ações por representantes da categoria dos taxistas, todas com o mesmo objeto, e em foros
diferentes, para, supostamente, burlar as regras relativas à distribuição dos processos e dificultar a defesa
dos representantes do UBER, em indícios da prática de litigância de má-fé.
confundir o serviço de transporte público individual de passageiros – de atribuição
exclusiva dos taxistas, conforme regramento federal – e o serviço de transporte privado
individual, categoria ainda não regulamentada e que, portanto, emerge em cenário de
livre concorrência e livre iniciativa, apenas podendo ter sua atuação restringida por lei
federal que respeite o processo legislativo constitucional.
Com efeito, o vínculo que une o particular, usuário do serviço, e o motorista
parceiro do UBER, viabilizado através do aplicativo, é estritamente de natureza privada,
não merecendo a ingerência estatal que permeia a relação entre o particular e os
taxistas em razão da utilidade pública daquele serviço.
Inaplicável, portanto, a Lei Municipal nº 18.176/2015 à espécie, porquanto
pretende regular matéria afeta à reserva de lei federal e imiscuir-se nas garantias de
livre concorrência e livre iniciativa que, por guardarem origem na Carta da República,
apenas podem ser restringidas nos termos e condições previstos no texto constitucional.
Por esse motivo, enquanto não sobrevier legislação federal sobre o tema, é
inafastável a conclusão de que o UBER é válido, legítimo e favorável aos direitos do
consumidor, ampliando a oferta dos serviços de transporte individual e favorecendo a
tendência de melhoria da qualidade do serviço e da tecnologia ofertada, não
prosperando qualquer tentativa social ou legislativa de impedir a sua operação no
município do Recife.
Autores:
Edinaldo Paulo do Amaral e Luísa Dubourcq Santana, advogados da equipe de
Infraestrutura e Regulatório do Amaral & Paes de Andrade Advogados.

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Uber no Recife - Inaplicabilidade da Regulamentação Municipal para os Taxistas

  • 1. O UBER NO RECIFE E A INAPLICABILIDADE, AO CASO, DA REGULAMENTAÇÃO MUNICIPAL PARA OS TAXISTAS No dia 03/03/2016, o UBER iniciou as suas operações na cidade do Recife, seguindo-se a Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Goiânia, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, engrossando a lista das cidades brasileiras a disponibilizar o serviço e consolidando, cada vez mais, a marca no país. Ao reboque da notícia, percebem-se as primeiras movimentações dos mais variados setores da sociedade – uns progressistas, outros nem tanto. No centro das discussões sobre a possibilidade ou não da operação do UBER na cidade do Recife, está a Lei Municipal nº 18.176/2015, que regulamenta, no âmbito municipal, “a operação, administração ou uso de software aplicativo destinado à oferta, contratação ou intermediação de serviço individual de transporte de passageiro no município do Recife.” À primeira vista, a regulamentação municipal acerca da matéria parece impedir – ou, ao menos, limitar – a atuação do UBER em seus contornos, uma vez que exige o registro e autorização, pela Prefeitura do Recife, para a utilização dos aplicativos destinados à oferta, contratação ou intermediação de serviço individual remunerado de transporte de passageiros. O referido diploma municipal, conforme se depreende de sua leitura, não estabelece distinções entre os softwares aplicativos utilizados para a contratação de serviço de táxi, a exemplo do 99TAXIS e EASYTAXI, e o UBER. A questão, contudo, não é tão simples e, ao que nos parece, escapa à competência legislativa municipal. Ao contrário do defendido pelo legislador municipal, parte-se, aqui, da premissa de que o UBER não disponibiliza serviço de táxi, mas de transporte privado individual de passageiros, com aquele não se confundindo. Qualquer comparação entre as duas modalidades de transporte, portanto, carece de relevância prática ou sustentação teórica, uma vez que traça paralelos entre institutos distintos, incomparáveis entre si. Mas, se o UBER não pode ser confundido com táxi, por que manifesta tanta insurgência dos taxistas e daqueles simpáticos à sua causa? A análise ultrapassa as fronteiras do Direito e atinge conceitos econômicos, entre os quais se destaca o conceito de tecnologia ou inovação disruptiva.
  • 2. Em termos gerais, as tecnologias disruptivas são aquelas que não se limitam a aperfeiçoar uma tecnologia existente no mercado, trazendo, efetivamente, conceitos novos ao mercado, preenchendo uma lacuna ou ocupando, paulatinamente, o local de tecnologia já existente. São exemplos as máquinas fotográficas digitais, se comparadas às analógicas, que demandavam a revelação dos filmes, e os computadores portáteis, em relação aos computadores de mesa. Mais especificamente, traçando um paralelo entre as tecnologias evolutivas e disruptivas, esclarece Clayton M. Christensen1 : “A maioria das tecnologias dá suporte à melhoria do desempenho de produtos. Chamo a isso de tecnologia incremental; algumas podem ser descontínuas ou caracteristicamente radicais, enquanto outras são de natureza incremental. Tecnologias incrementais têm em comum o efeito de melhorar o desempenho de produtos estabelecidos, junto com as dimensões do desempenho que aqueles clientes habituais têm valorizado historicamente nos maiores mercados. (...) As tecnologias de ruptura trazem a um mercado uma proposição de valor muito diferente daquela disponível até então.” Em que pese seu pouco tempo de atuação no mercado, parece-nos que o UBER se encaixa perfeitamente no conceito de inovação disruptiva, forçando os agentes a tornarem-se mais competitivos e, com isso, favorecerem o consumidor em razão do avanço tecnológico, da maior oferta de serviços e da consequente redução dos preços. Naturalmente, como em qualquer processo de ruptura, a operação do UBER no Recife implicará em manifestações negativas dos motoristas de táxi, categoria certamente mais afetada pelo software, demandando a interferência política e jurídica, a teor do que já se verificou nas demais localidades em que opera o aplicativo. Buscando esclarecer, ainda que sem pretensão de esgotar o tema, o regramento jurídico aplicável ao UBER, notadamente quanto ao seu aspecto regulatório, é de se notar que a Constituição Federal de 1988 é expressa ao disciplinar a ocupação urbana adequada, no que se inclui a garantia de mobilidade urbana aos cidadãos. 1 CHRISTENSEN, Clayton M. O Dilema da Inovação. São Paulo: M. Books do Brasil, 2012. P. 24.
  • 3. O conceito de mobilidade urbana, por sua vez, vem insculpido na Lei Federal nº 12.587/2012 (“Lei de Mobilidade Urbana”), que instituiu as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, definindo por mobilidade urbana a “condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano” (art. 4º, II). Por sua vez, a Emenda Constitucional nº 82/2014, que introduziu o § 10, inciso I, no art. 144 da Constituição Federal, alçou a mobilidade urbana eficiente à condição de direito fundamental e social do cidadão. A alteração visou garantir o exercício adequado deste direito, de maneira a dotar de maior eficiência a mobilidade urbana nas cidades brasileiras. O direito à mobilidade urbana, na verdade, sempre esteve muito próximo dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, consignados no art. 3º, I, III e IV, da CF/1988, uma vez que visam à construção de uma sociedade justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais, bem como promover o bem de todos. Ainda sobre o tema, e não menos importante, vale destacar que o art. 21, XX, da CF/88 determina ser de competência da União “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”. Ressalte-se, ainda, o art. 22, XI, da Carta da República, segundo o qual compete à União legislar privativamente sobre trânsito e transportes, e o inciso IV do mesmo dispositivo, que traz a competência privativa da União para legislar sobre informática. Surge, no ponto, a primeira barreira à aplicação da mencionada Lei Municipal nº 18.176/2015 ao UBER, que, indiscutivelmente se trata de ferramenta destinada à contratação do serviço de transporte: a competência privativa da União para legislar sobre o tema. Isso foi reconhecido, inclusive, pela Ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi, em evento promovido pela Abranet – Associação Brasileira de Internet em setembro de 2015, ao afirmar que “não compete aos Municípios, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre aplicativos de internet de intermediação de transporte”.2 Regulamentando a matéria atinente à mobilidade urbana e aos transportes no plano infraconstitucional, foi editada a Lei Federal nº 12.587/2012, a qual traça as 2 Cf. http://www.valor.com.br/politica/4243840/cidades-nao-podem-legislar-sobre-uber-diz-ministra- do-stj. Acesso: 06/03/2016.
  • 4. diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, com o objetivo de promover a “integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas e cargas no território do Município.” Assim, se apenas à lei federal cabe estabelecer restrições sobre os sistemas de transporte, entre os quais se inclui o UBER, e se o tema da mobilidade urbana foi regulado pela aludida Lei Federal nº 12.587/2012, passemos à breve análise da normatização trazida pelo diploma, a fim de identificar se há alguma restrição imposta à operação do aplicativo. Os serviços de transporte urbanos são classificados, conforme o art. 3º da lei, da seguinte maneira: “§ 2º Os serviços de transporte urbano são classificados: I - quanto ao objeto: a) de passageiros; b) de cargas; II - quanto à característica do serviço: a) coletivo; b) individual; III - quanto à natureza do serviço: a) público; b) privado.” Denota-se, assim, que a lei faz menção ao transporte público individual de passageiros e ao transporte privado individual de passageiros, de modo distinto. O art. 4º do mesmo diploma, todavia, apenas alude ao transporte público individual, definindo- o como “serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas.”
  • 5. Conforme aponta o constitucionalista Daniel Sarmento, em parecer no qual lhe foi formulada consulta exatamente acerca da juridicidade do UBER no Brasil3 , o fato de o legislador ordinário não ter aludido ao transporte privado individual de passageiros não importa na conclusão de que não tenha reconhecido tal modalidade, mas apenas que considerou desnecessário defini-la ou regulá-la. Isso porque o art. 4º da Lei Federal nº 12.587/2012 apenas traz as definições “para os fins” de aplicação do diploma. Nesse norte, a Lei Federal nº 12.468/2011 estipula que o transporte público individual de passageiros é reservado aos taxistas, conforme os termos e condições ali estabelecidos. Não há, contudo, qualquer disciplina jurídica federal que regulamente ou restrinja a prestação dos serviços de transporte privado individual de passageiros – atividade exercida pelo UBER –, ao que se conclui que a atividade, em homenagem à livre iniciativa e à livre concorrência, não encontra óbices ao seu desenvolvimento. A inviabilidade de restrição, através de lei municipal, ao funcionamento do UBER, portanto, esbarra na competência legislativa privativa da União para legislar sobre transportes e, ademais, nos princípios constitucionais da livre concorrência e da livre iniciativa, respectivamente princípio da ordem econômica (art. 170, IV) e fundamento da República (art. 1º, IV). O vício de competência da lei municipal que pretende regular o UBER, por si só, já seria capaz de inviabilizar a aplicação daquele diploma no âmbito do município do Recife. Sem embargo, é de se notar que a questão é muito mais material, principiológica, que meramente formal. Na linha do que defende o professor carioca Daniel Sarmento, autor do mencionado parecer acerca do UBER, a matéria esbarra na tutela do direito do consumidor assegurada através da liberdade de iniciativa e da liberdade de concorrência. Em suas palavras: “Recorde-se, nesse ponto, que, conquanto a liberdade de concorrência proteja os agentes econômicos diante de regulações estatais restritivas, o seu foco principal não é a proteção desses agentes, mas sim a tutela dos interesses dos consumidores, que são prejudicados pela imposição de limites injustificados à sua liberdade de escolha. Portanto, a criação de 3 Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/paracer-legalidade-uber.pdf. Acesso: 06/03/2016.
  • 6. embaraços estatais à competição, com a instituição de reservas e privilégios a empresas ou grupos específicos, viola não apenas os direitos dos potenciais concorrentes prejudicados. Mais que isso, ela ofende os interesses dos consumidores e da própria sociedade.”4 Entender de modo diverso implicaria em estabelecer reserva de mercado em favor da categoria dos taxistas, sem qualquer respaldo legal para tanto, haja vista que, na linha do exposto, a legislação federal que regula o tema nada dispõe acerca do transporte privado individual, cingindo-se a regulamentar o transporte público individual. Ora, se o UBER presta serviço de transporte privado individual, não há como se pretender equipará-lo a serviço público, para efeitos regulatórios. Da conjunção entre a livre iniciativa e a livre concorrência, ainda no entender de Sarmento, não pode advir interpretação legislativa que acabe por retirar a livre atuação das empresas privadas em áreas nas quais não exista qualquer fundamento para a sua exclusão do mercado. Nessa linha, esclareça-se que o art. 170, p. único, da CF/1988 estabelece ser livre o exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Em outros termos, o que prescreve a Carta é que, se não houver vedação legal – e desde que eventuais óbices legais tenham sido editados conforme os requisitos constitucionais, tanto quanto à forma, como quanto à matéria – é livre a possibilidade de atuação do particular no dito segmento de mercado. É a máxima segundo a qual, ao particular, é dado fazer tudo aquilo o que não for expressamente vedado pela lei. Qualquer restrição legal ao exercício de determinada atividade econômica, portanto, deve ser devidamente fundamentada e ter por objetivo a tutela de interesses públicos legítimos, sem oferecer restrição exagerada aos ditames da livre iniciativa e da livre concorrência. Não é demais reforçar, ainda, que a referida restrição deve ser estabelecida pelo ente federativo competente para legislar sobre a matéria, sob pena de vício formal à pretensão regulatória. Transladando-se a discussão especificamente para o que toca ao UBER, como visto, a lei federal que regulamentou a profissão de taxista estabelece ser privativa da categoria a prestação de serviço de transporte público individual de passageiros, não 4 Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/paracer-legalidade-uber.pdf. P. 12. Acesso: 06/03/2016.
  • 7. lhes atribuindo, contudo, também o monopólio do serviço de transporte privado individual, o qual, portanto, permanece no âmbito da livre concorrência. Por não se tratar o UBER de transporte público individual de passageiros, jamais poderiam suas regras ser as mesmas aplicáveis aos táxis, não merecendo qualquer guarida a insurgência comum dos taxistas de que deveriam se credenciar e obedecer aos demais requisitos legais impostos àquela categoria profissional. Ao pretender equiparar o UBER aos táxis, além de se frustrar a livre iniciativa e a livre concorrência, acaba-se por afrontar a garantia conferida aos cidadãos, potenciais usuários dos serviços, de escolher aquela modalidade que melhor lhe aprouver, em prejuízo do direito do consumidor, cuja defesa também é assegurada por força do art. 170, V, da Constituição Federal. Assim é que, se é de competência privativa da União legislar sobre informática e transportes, e se o UBER congrega exatamente estes dois ramos de atividade, impende concluir que a sua eventual regulamentação só pode advir da legislação federal, a qual, até o momento, optou por não o fazer, deixando livre ao aplicativo o desenvolvimento de suas atividades. Esse argumento foi, inclusive, utilizado pela Confederação Nacional dos Serviços – CNS, em sede de ação direta de inconstitucionalidade movida em face da lei municipal da capital paulista que dispõe acerca da proibição do uso de carros particulares cadastrados em aplicativos para o transporte remunerado individual de pessoas no âmbito daquele município (processo nº 2216901-06.2015.8.26.0000, em trâmite perante o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo). O professor de Direito do Estado da Universidade de São Paulo e advogado Floriano de Azevedo Marques Neto, tratando do UBER na cidade de São Paulo, mas em lição absolutamente transponível ao caso pernambucano, aponta: “O Uber se apresenta como uma ferramenta de aproximação de usuários e motoristas autônomos, facilitador do encontro entre oferta e demanda. Viabiliza o primado do mercado. Os serviços de taxi são serviços públicos. Só podem explorar estas atividades aqueles que recebem outorga, são fiscalizados e sancionados pela administração municipal, recolhem taxas por essa fiscalização. Ou seja, trata-se de uma atividade reservada ao Município e exercida sob forte regulação pública.
  • 8. (...) O fato de o aplicativo ter, rapidamente, se tornado um sucesso indica que havia oferta (motoristas que querem prestar serviço qualificado por sua conta e risco) e demanda (usuários que não são atendidos pelo serviço público por insuficiência qualitativa ou quantitativa da oferta de taxis) frustrados elo serviço público. Fossem os taxis adequados e suficientes às necessidades do cidadão paulistano e o serviço não teria tanto sucesso. Uma atividade pode ser reservada ao regime de serviço público (e portanto retirada da livre iniciativa) ou porque o Estado quer universalizar ou porque ela tem características que impedem a competição (por exemplo, monopólios naturais) ou, ainda, porque demandam uma regulação rigorosa. Ora, o serviço de taxi não se enquadra em nenhuma destas condições. Não é um serviço que mereça ser universalizado (seria risível um programa "taxi para todos" ou o subsídio nas tarifas do transporte individual); não é uma atividade de competição dificultosa (ao contrário, com o aplicativo a competição se torna quase perfeita), pois a única barreira intransponível de entrada de um novo competidor é, justamente, a reserva de mercado dada pelo número limitado de licenças. E a regulação, em geral, se presta mais a coibir clandestinos e proteger os licenciados do que assegurar conformidade no serviço prestado. Não há exigência de prestação de serviços em horários noturnos ou finais de semana. O asseio dos veículos e motoristas, em muitos casos, deixa a desejar. O requisito legal da cortesia (artigo 6º, § 1º,Lei 8.987/95) nem sempre é presente. Não há um serviço efetivo de atendimento aos usuários e de recebimento e retorno de queixas e reclamações. (...)
  • 9. A limitação de mercados sem benefícios públicos fere a Constituição que só admite a restrição da livre iniciativa quando o interesse público justificar.”5 (grifamos) A lição é cristalina e leva à reflexão de que a insurgência dos taxistas pode estar fundamentada não em aspectos jurídicos, mas na simples constatação de que o serviço por eles prestado é de qualidade inferior e preço superior, o que, com o surgimento de nova categoria no mercado, acabará por reduzir a procura por seus serviços, em razão do aumento da oferta e da tecnologia de melhor qualidade e eficiência. Instadas a manifestar-se, as cortes brasileiras já apontaram para a legalidade do UBER e de sua operação no país, a exemplo das decisões proferidas nos autos dos processos nº 2014831-63.2016.8.26.0000 (5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo), 0061837-32.2015.8.19.0000 (17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) e 2177604-89.2015.8.26.0000 (7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo). Em âmbito internacional, as cortes também têm entendido pela legalidade do aplicativo. Em batalha travada na Suprema Corte do Reino Unido, decidiu-se que o UBER não funciona da mesma maneira que um táxi e, portanto, não poderia ter regulamentação e tratamento idênticos.6 O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça cujo objetivo institucional é, precipuamente, a defesa da livre concorrência em âmbito nacional, divulgou dois estudos, ambos da autoria de seu economista-chefe, Luiz Alberto Esteves7 , apontando ser positiva a entrada no mercado de novos agentes prestadores de serviço de transporte individual. Em um deles, o economista conclui: “Os resultados obtidos não fornecem qualquer evidência de que o número de corridas de táxis contratadas nos municípios do grupo de tratamento (com presença do 5 Disponível em http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI221670,91041- Estado+contra+o+mercado+Uber+e+o+consumidor. Acesso: 07/03/2016. 6 Cf. http://www.valor.com.br/internacional/4272686/uber-vence-disputa-na-suprema-corte-do-reino- unido. Acesso: 07/03/2016. 7 Disponíveis em http://www.cade.gov.br/upload/O%20Mercado%20de%20Transporte%20Individual%20de%20Passageir os.pdf e http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/12/art20151215-04.pdf. Acesso: 07/03/2016.
  • 10. aplicativo Uber no período Depois da Entrada) tenham apresentado desempenho inferior aos do grupo de controle (sem presença do aplicativo Uber no período Depois da Entrada). Em termos de exercícios empíricos aplicados à política antitruste, isso significa que não podemos sequer assumir (ao menos nos períodos aqui analisados) a hipótese de que os serviços prestados pelo aplicativo Uber estivessem (até maio de 2015) no mesmo mercado relevante dos serviços prestados pelos aplicativos de corridas de táxis 99taxis e Easy Taxi. Adicionalmente, não é possível descartar a possibilidade de que o ingresso do aplicativo Uber no mercado brasileiro de transporte individual de passageiros tenha sido patrocinado, quase que exclusivamente, pela expansão e diversificação deste mercado, ou seja, por meio do atendimento de uma demanda reprimida, até então não atendida pelos serviços prestados pelos táxis.”8 (grifamos) Segundo o estudo, portanto, o UBER não demonstrou, efetivamente, haver retirado a clientela que habitualmente utilizaria o serviço de táxi, mas, ao contrário, conquistou novos clientes no mercado, sem que se possa cogitar, a princípio, de qualquer interferência entre os dois segmentos de atuação, em prejuízo da categoria dos taxistas. Em julho de 2015, o CADE, após denúncia formulada pelo UBER, pelo Diretório Central dos Estudantes da Universidade de Brasília e pelo Diretório Central dos Estudantes do Centro Universitário de Brasília, já havia instaurado processo administrativo9 para apurar condutas anticompetitivas de taxistas, em clássica hipótese de sham litigation10 , o que, até o momento, ainda se encontra em fase instrutória. De qualquer modo, independentemente das práticas eventualmente anticoncorrenciais adotadas pelos que se opõem à atuação do UBER no Brasil, o que será devidamente apurado pelas autoridades competentes, é certo que não há como se 8 Cf. http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/12/art20151215-04.pdf. P. 24-25. 9 Proc. nº 08700.006964/2015-71. 10 Em linhas gerais, entende-se por sham litigation o abuso do direito de valer-se do aparelho estatal do Poder Judiciário, ingressando com ações de modo fraudulento, sem perspectiva de êxito, com a finalidade de atingir concorrente direto no mercado. No caso específico, a investigação do CADE verificou que foram ajuizadas três ações por representantes da categoria dos taxistas, todas com o mesmo objeto, e em foros diferentes, para, supostamente, burlar as regras relativas à distribuição dos processos e dificultar a defesa dos representantes do UBER, em indícios da prática de litigância de má-fé.
  • 11. confundir o serviço de transporte público individual de passageiros – de atribuição exclusiva dos taxistas, conforme regramento federal – e o serviço de transporte privado individual, categoria ainda não regulamentada e que, portanto, emerge em cenário de livre concorrência e livre iniciativa, apenas podendo ter sua atuação restringida por lei federal que respeite o processo legislativo constitucional. Com efeito, o vínculo que une o particular, usuário do serviço, e o motorista parceiro do UBER, viabilizado através do aplicativo, é estritamente de natureza privada, não merecendo a ingerência estatal que permeia a relação entre o particular e os taxistas em razão da utilidade pública daquele serviço. Inaplicável, portanto, a Lei Municipal nº 18.176/2015 à espécie, porquanto pretende regular matéria afeta à reserva de lei federal e imiscuir-se nas garantias de livre concorrência e livre iniciativa que, por guardarem origem na Carta da República, apenas podem ser restringidas nos termos e condições previstos no texto constitucional. Por esse motivo, enquanto não sobrevier legislação federal sobre o tema, é inafastável a conclusão de que o UBER é válido, legítimo e favorável aos direitos do consumidor, ampliando a oferta dos serviços de transporte individual e favorecendo a tendência de melhoria da qualidade do serviço e da tecnologia ofertada, não prosperando qualquer tentativa social ou legislativa de impedir a sua operação no município do Recife. Autores: Edinaldo Paulo do Amaral e Luísa Dubourcq Santana, advogados da equipe de Infraestrutura e Regulatório do Amaral & Paes de Andrade Advogados.