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Giselda Laporta Nicolelis
O
Portão
do
Paraíso
GISELDA LAPORTA NICOLELIS
O PORTÃO DO PARAÍSO
A gravidez infantil discutida com a força e a maturidade da franqueza.
Taís é uma garota que leva uma vida tranquila: de casa pra escola, encontros com amigas, passeios no shopping, enfim, coisas de adolescente. Certo dia, Gelcimar
vem morar na casa dela.
Aos poucos, um encantamento mútuo acontece. Gelcimar, mais experiente, e usando de sua capacidade de sedução, leva Taís, muito ingênua, a se relacionar
sexualmente com ele.
Ela só vai ter noção das consequências do seu ato ao descobrir que está grávida.
Então chega a hora de cair no mundo real que é muito diferente dos seus sonhos — ela não passa de uma criança, esperando outra criança — com todos os
desdobramentos que tal situação vai causar em sua vida dali pra frente...

Para Maria Helena Martins Silva,
pela amizade de trinta anos,
e pelo tempo para escrever
meus livros...
Este diário pertence à Taís

Meu Diário
Meu nome é Taís e tenho treze anos. Antes eu não gostava desse nome. Mas a minha vida mudou tanto! Por isso resolvi escrever este diário, só pra desabafar.
Ninguém pode ler além de mim. Tenho uma história pra contar que até parece coisa de filme, de novela ou romance.
No ano passado, quando eu tinha doze anos, estudava numa escola municipal. Eu gostava da escola, principalmente por causa da merenda.
Nunca teve muita fartura aqui em casa, não. O pai vive de bicos. Ele tá na caixa do Inamps desde que sofreu um acidente: era pedreiro e caiu do andaime. Só que a
caixa paga uma miséria, então o pai sai por aí fazendo bicos. Pinta parede, cuida de jardim, essas coisas.
A mãe olha os bebês das vizinhas que trabalham fora. Ela cobra por mês e olha várias crianças. Ela faz isso agora pra ficar em casa. Antes trabalhava de faxineira,
saía cedinho e só voltava de noite. Tomava umas quatro conduções por dia, um suplício. A vida dela mudou muito também. Mas deixa eu começar bem do
começo. Eu ia na escola, como falei, estava na quinta série. Era até boa aluna, sabe? Tinha umas matérias de que eu não gostava muito, como Matemática. Minha
escola tinha sala de leitura. A gente podia biblioteca circulante pra casa. De certa forma, eu era até feliz. Minha vida era ir pra escola, voltar pra casa, preparar a
janta pra mãe que chegava, moída de cansaço, esperar o pai voltar do trabalho .Os meus dois irmãos, o Emerson e o Vânderson, iam direto do trabalho pra escola
noturna. Eles sempre foram muito esforçados. A mãe vivia dizendo: "Cuidado com má companhia, que por aí tá cheio. Olha, que a polícia atira primeiro e pergunta
depois". A mãe estava coberta de razão. Carecia mesmo tomar muito cuidado. Além da polícia ir atirando logo, confundindo marginal com gente boa, tinha
também a turma do Mané Quim, um justiceiro famoso aqui no bairro.
Vou explicar pra você, meu diário, o que é justiceiro. Alguns comerciantes, geralmente da periferia, contratam uns caras, que chamam de "justiceiros", pra matar os
assaltantes de bares, padarias, lojas... Só que, no fundo, os justiceiros são também bandidos e começam a matar a torto e a direito, só por prazer, então, de ouvir
dizer: "Aquele é traficante de drogas, o outro rouba carro, aquele assalta casa", e por aí... Então morre gente inocente, como o Zeca da dona Margarida: ele vinha
voltando da escola quando levou um tiro bem no meio da testa, foi confundido com marginal. Não deu nem pra dizer "ai". Ficou jogado no meio da rua, feito
cachorro atropelado. E teve outros como ele. Mas tô desviando o assunto, quero mesmo é falar da minha vida. Eu tinha muitas colegas lá na escola, mas amigas
mesmo eram a Deolinda, a Miracê e a Cejana. Todas da minha idade. A gente vivia colecionando fotos de artistas de cinema, de tevê e de cantores de rock...
Fizemos até um fã-clube do nosso cantor preferido. Às vezes, dava pra pegar um cineminha no domingo de tarde, em algum shopping, quando sobrava dinheiro,
claro. O que mais a gente fazia mesmo era ver tevê e jogar conversa fora. Ah, também gostava muito de colecionar papel de carta, mas ficou caro demais — então
nós paramos, porque só dava pra trocar, e coisa repetida perde a graça.
Quase não tenho visto mais a Miracê, a Deolinda e a Cejana. Elas vieram aqui na minha casa poucas vezes. Estou assim meio sem amigas... Às vezes, me dá uma
saudade do tempo em que eu vivia numa boa, da casa pra escola e da escola pra casa...
Eu tinha tantos sonhos! As minhas amigas também. A Miracê queria ser artista de tevê. A Deolinda sonhava ser modelo. Eu morria de rir, porque ela é gordinha e
baixinha. Mas ela jurava de pé junto que ia fazer regime e crescer... E virar top model de capa de revista, famosa no mundo inteiro, eu que esperasse pra ver.
A Cejana queria ser médica, mas ia ser difícil realizar o sonho, porque a família dela é tão pobre quanto a minha. Cadê dinheiro pra fazer cursinho e conseguir
entrar na faculdade? Ela era a mais estudiosa de nós quatro.
Dizia que só ia casar depois de formada, e nem queria saber de penca de filhos igual à mãe dela, que tem seis. Todo mundo me achava bonita, um corpo quase de
moça: cabelo comprido, preto e liso, e olhos claros que puxei de um avô, que, dizem, era alemão de olhos azuis.
Sou de estatura média, tenho um metro e sessenta, faz tempo que eu medi na escola. Sabe, meu diário, eu pensava que sabia das coisas e, depois, descobri que não
sabia é nada!
Um dia, o pai recebeu uma carta, do irmão lá do norte, dizendo que um filho dele (sobrinho do pai) ia vir pra São Paulo. Ele precisava trabalhar pra ajudar a
família, e não conseguia emprego. E pedia pra ele morar lá em casa.
O pai não gostou muito da ideia. Ouvi ele conversando com mãe:
— Que é que você acha, Carminda? Já temos cinco bocas aqui em casa pra sustentar, e agora vem mais um moço que deve comer por dois...
— Ele vai trabalhar, não vai? — disse a mãe. — Então ajuda nas despesas. O pai girou os olhos de um jeito engraçado:
— E tem a menina aí, a Taís. Tá ficando mocinha.
Irmão é diferente, mas primo dentro de casa...
— Credo, José, que malícia! A Taís é quase uma menina. Imagine se o moço vai mexer com ela... É filho do seu irmão, homem. É quase irmão dos meninos...
— É, não sei se posso negar isso pro mano — respondeu o pai, e foi dormir.
No dia seguinte escreveu pro tio dizendo que o primo podia vir. Mas que ficasse sabendo: a casa tinha muita disciplina. O rapaz não pensasse que estaria morando
em pensão de moço, essas confusões.
Um mês depois o primo chegou. A gente foi buscar ele na rodoviária, senão ele nunca ia achar a nossa casa, num bairro tão distante de periferia.
Quando vi o Gelcimar, até levei um susto: ele parecia um galã de televisão, um gato. Como o nosso avô era o mesmo, o tal alemão, ele tinha olhos bem azuis e
cabelos castanhos.
Ele pegou na minha mão e disse:
— Oi, Taís, você é mais bonita que na fotografia.
— Ué, você tem fotografia minha? — perguntei, um friozinho correndo na boca do estômago. Até a minha boca estava seca.
— Claro que tenho, o tio mandou — disse ele, e sorriu com uns dentes bem bonitos. Tinha uma falha assim do lado direito, mas não atrapalhava nada, nadinha
mesmo.
Enquanto a gente voltava pra casa, o Gelcimar olhava tudo, entusiasmado:
— Puxa, que cidade grande, seo! Nunca vi um mundaréu de carro desse jeito. E como tem gente na rua!
— Também, você veio de uma cidadica de nada — ria a mãe. — Dá pra conhecer todo mundo lá, não dá?
— Todo mundo — concordou o Gelcimar. — Lá todos sabem da vida dos outros: quem nasceu, morreu, fugiu...
— Fugiu? — estranhei.
E, fugiu — continuou o primo. — Às vezes, tem casal de namorado que foge...
Que conversa mais boba — interrompeu o pai.
— Como é que vai a cunhada, o mano?
— Mãinha tá boa; painho também — disse o primo.
— Mandam muitas lembranças. E um presente também.
Uns doces, que a mãe faz, que são uma delícia... Se não derreteram pelo caminho... Tantos dias de estrada.
— Você deve tá cansado — disse a mãe. — Descanse bem esta noite pra procurar emprego amanhã.
Gelcimar sorria pra mim, e o meu coração disparava: bum-que-bum, bum-que-bum, bum-que-bum... Credo, eu tava ficando até tonta. Eu nunca tinha visto olhos
tão bonitos daquele jeito: pareciam um céu aberto, sem nuvens...
A mãe e o pai, graças a Deus, entretidos em mostrar a cidade pro Gelcimar, nem perceberam. Os meus dois irmãos estavam no trabalho. A mãe tinha até faltado no
serviço pra ir junto buscar o primo, a patroa deu folga pra ela.
Chegamos e o Gelcimar disse que a casa era bonita.
Acho que por educação, porque é uma casa muito simples, pobre mesmo. Ele jantou, conversou um pouco, viu televisão... Depois deu boa-noite e foi dormir. Me
deu uma alegria! Uma coisa assim dentro do peito, uma ansiedade, uma vontade de sair correndo... Contar pras amigas que o primo tinha chegado.
Mas era noite. Imagine se o pai ou a mãe iam deixar. Fui dormir pra acordar bem cedo, e cheguei na escola cheia de mistérios:
— Vocês nem sabem da novidade...
— Saiu CD novo do gatinho — disse a Miracê.
— Você ganhou na loteria — falou a Cejana, que só pensava em guardar dinheiro pra poder fazer a faculdade de Medicina.
— Emagreci dois quilos — anunciou a Deolinda, mais interessada nas próprias curvas, que fariam dela a maior top model do Brasil.
— Meu primo chegou — eu disse.
— Bela novidade! — a Miracê fez um muxoxo. — Veio lá do norte, não é? Deve ser o maior caipirão...
— Com dois olhos azuis de matar — eu disse.
— Um gato? — perguntou a Cejana.
— Um gatão — exagerei. — Mais lindo impossível.
— Puxa, a gente podia estudar um pouco hoje na sua casa — propôs a Miracê. — A gente tá ruim pra burro em Matemática.
— Assim você vê o caipirão, né?
— É — disse a Miracê, revirando os olhos.
Quando o Gelcimar saía pra procurar emprego, a casa ficava quieta, sem graça mesmo. O pai e a mãe fora, os meus irmãos no serviço, como sempre. Eu ia pra
escola e voltava correndo... Então via a casa vazia, droga!
Mas, quando ele chegava, parecia que a casa ficava iluminada. Ele enchia a casa de alegria, de brincadeiras:
— Corre, Taís, que eu te pego!
Eu saía correndo pelo quintal e me escondia atrás do pé de laranja-lima que a mãe tinha plantado fazia um tempão e nunca que dava fruta.
— Te peguei!
Eu ria tanto que até engasgava. E aqueles olhos azuis sorrindo pra mim:
— Quantos anos você tem, Gelcimar?
— Vinte.
— Nossa, você é um moço. Eu é que sou criança ainda. Tenho só doze.
— Mas já é bonita pra burro.
— Você acha mesmo?
— Claro que eu acho. A moça mais bonita que eu já vi na minha vida.
Quando ele me chamou de moça, fiquei meio mole de prazer. Sabe, meu diário, eu tinha ficado moça mesmo, fazia uns meses. Levei um susto: a mãe não tinha me
explicado nada. Quando vi aquele sangue, abri o berreiro:
— Mãe, tô morrendo!...
A mãe reagiu na hora:
— Quieta, menina, isso é coisa de mulher. Só uns dias e passa... Pega o pacote de absorvente lá em cima do armário que eu te ensino a usar...
— Mas, mãe, por quê?
— Ora, menina, vá buscar logo! Não carece muita pergunta, não...
Mas eu tinha tanta pergunta presa na garganta: "Por que saía aquele sangue de mim?"; "Por que era coisa de mulher?"; "Por que acontecia aquilo?" A mãe nem deu
confiança. Voltou pro tanque cheio de roupa. O sonho dela de ter uma máquina de lavar roupa nunca que acontecia.
Então eu pus o absorvente como ela ensinou. Ficou engraçado: parecia que eu estava usando fralda de novo, que nem bebê. E fui correndo contar pra Cejana, pra
Deolinda e pra Miracê. A Cejana fez cara de importante.
— Eu já sou moça desde o mês passado...
— Pô, Cê, nem contou pra gente...
— Esqueci. Também não é coisa que a gente sai contando por aí, né?
— A sua mãe falou com você? — perguntei ansiosa.
— Mais ou menos — a Cejana fez mistério. — Disse que é coisa de mulher.
— Isso a minha mãe também disse — falei. — Mas eu quero saber por que a mulher tem dessas coisas...
— Ah, isso eu não sei, não — disse a Cejana.
— Bela médica que você vai dar — rebateu a Deolinda. — Duas burras, vocês. Isso aí é menstruação, a minha irmã me contou. Serve pra mulher ter bebê mais
tarde.
— E como é que faz pra ter bebê? — A Miracê estava muito interessada. —Já ouvi tanta coisa que nem sei mais...
— Só beijo não é, tenho certeza — disse a Deolinda.
— Senão minha irmã tinha nenê todo dia. Do jeito que ela e o namorado se beijam, lá no portão de casa...
— A gente precisa descobrir isso direito — disse a
Cejana. — Deixem comigo. Eu vou perguntar pra mãe.
— Será que ela conta? A minha mãe é uma concha, não tiro uma palavra dela — confessei.
— Vamos ver — a Cejana sempre foi muito misteriosa.
— Eu posso tentar, né? Se descobrir, eu conto tudo!
Todo dia, agora, eu voltava correndo da escola, só pra ver o Gelcimar... Pra ele me chamar de moça de novo. Que gostosura! Ele andava meio quieto e saía todo
dia pra procurar emprego... E nada. Acho que ele tava ficando desanimado.
— Tão precisando de um guarda-noturno nas obras ali do prédio da esquina — disse o pai.
— Tem de trabalhar de noite, né, tio?
— Claro, mas é melhor que coisa nenhuma.
— Deu zebra, tio — desabafou o Gelcimar. — Eu pensei que fosse mais fácil.
— Que nada, rapaz, em todo lugar a coisa tá feia.
Vem muita gente pra cidade grande achando que aqui é o paraíso... Mas na maioria das vezes acaba vivendo ainda pior, nas favelas e cortiços.
— Que sorte a minha ter vocês, senão nem teria onde morar ou comer... Já estava debaixo de alguma ponte.
— Pois trate de pegar esse emprego com as duas mãos — continuou o pai. — Não quero lhe enganar,
Gelcimar. A gente luta muito e você precisa ganhar algum pra colaborar nas despesas.
— Tá bom, tio — o Gelcimar coçou a cabeça, desanimado.
— Eu vou pegar esse emprego por enquanto...
Depois, quem sabe, encontro coisa melhor.
O pai deu uma olhada pra mãe como se dissesse:
"Esse tá querendo pegar o mundo com as mãos..." Eu conhecia aquele olhar do pai. Depois deu boa-noite e
foi dormir. A mãe também. E gritou lá do quarto:
— Apague logo essa luz, Taís, que a conta tá muito cara!
Eu ainda fiquei um tantinho na sala, fazendo companhia pro primo. Ele estava meio deprimido. Me deu uma pena! Então resolvi consolar ele:
— Não fique triste, Gelcimar. Logo você arruma emprego bom. Até que ser guarda-noturno não é tão ruim, né?
— Eu vou ter de dormir de dia. Uma aporrinhação.
E aqui faz frio de madrugada. Não sei se vou acostumar.
— Você logo recebe o ordenado e compra uma jaqueta
— continuei consolando. — Daquelas bem bonitas.
— E será que o dinheiro vai dar? — O Gelcimar ficou sério de repente. — Você é muito boazinha, Taís, mas muito criança ainda, não sabe das coisas. Vá dormir,
vá... Me deu um ódio! Eu consolando, dando a maior força, e ele me chamando de criança. Bobão! Palhaço!
Por que não ficou lá no norte mesmo, com o calorão dos diabos? Que é que veio fazer aqui?
Molhei até o travesseiro de tanto que eu chorei...
De raiva. Ele não tinha me chamado de moça? Como é que eu tinha virado criança assim de repente?
A droga do absorvente tava me incomodando. Tinha ficado de novo menstruada. Taí a maior prova de que eu não era mais criança. A irmã da Deolinda não disse
que servia até pra fazer bebê? Lógico que mais tarde, muito mais tarde, quando eu tivesse um marido bem bonito... Assim como o Gelcimar!
E a mãe que nunca conversava comigo. Seria tão bom que ela parasse um pouco de trabalhar, parecia até uma formigona aflita, e viesse falar comigo... Puxa, eu
tinha tanta pergunta engatilhada que podia ficar um dia inteiro perguntando: "Tem idade certa pra ter filho?"; "Por onde sai o bebê na hora de nascer?"; e, o mais
importante mesmo, aquelas perguntas mais curiosas:
"Como é que o bebê vai parar na barriga da mãe?"; "Como é que faz pra mulher ficar grávida?" Puxa, se a mãe conversasse comigo... De mulher pra mulher. Ué,
isso mesmo, eu também não era mulher, por acaso? Ainda pequena, mas mulher... E eu não ia crescer e virar uma mulher de verdade, um dia? E eu queria tanto
saber!
Mas a mãe só sabia dizer: — Essas coisas não são pra menina conversar. Depois eu conto... Depois... —Mas quando? E as burras da Deolinda, da Miracê e da
Cejana também não sabiam nada! A esperança era que a mãe da Cejana fosse diferente e contasse alguma coisa pra ela... Mas eu duvidava, porque mãe é tudo
igual: mis-te-ri-o-sa! X Então, sabe, meu diário, eu olhava no espelho e via meu corpo... Era meio gordinha, nem sei por quê, nem comia muito. Estava sempre
com fome e o que me salvava era a merenda da escola. Tinha uns seios bem redondos e um pouco de barriguinha... A Cejana, com aquela sua mania de médica,
vivia dizendo que eu precisava fazer regime.
Penteava o cabelo solto nas costas, um cabelão bonito, bem preto, que combinava com meus olhos verdes.
Sempre fui vaidosa, a mãe até dizia que eu vivia me olhando no espelho. Minha maior vontade era ter um espelhão pra me olhar de corpo inteiro, mas precisava me
virar com um espelho partido no guarda-roupa, que dava pra ver só até a barriga.
Eu me sentia moça e bonita, e queria que o Gelcimar me achasse assim. Ele era tão gozado! Às vezes me chamava de moça, outras de criança. Também, ele tinha
vinte anos e eu só tinha doze, uma porcaria.
Ele começou lá no emprego de guarda-noturno, e trabalhava a noite inteira. Quando voltava, eu já estava na escola, estudava de manhã. A hora do almoço era a
melhor coisa que me acontecia. Quando chegava da escola, o pai, a mãe e os irmãos estavam fora. Então eu vinha correndo pra encontrar o Gelcimar, que já estava
acordado.
A mãe deixava a comida em cima do fogão e a gente almoçava junto. Ele perguntava:
— Como é que foi a escola, hoje, Taís?
— Ah, foi bom. E o seu trabalho?
— Uma droga! Quase morri de frio. Que terra fria que é esta aqui, não?
— Pois eu dormi muito bem.
— Sua sonsa — ele ria, mostrando a falha do dente.
— Invocando comigo, é?
— Que nada. Pensei em você passando frio lá na construção. Me deu até pena...
— Eu não quero pena, não.
— O que você quer?
Os olhos azuis também sorriam:
— Quero é ser seu amigo, muito amigo, viu?
— Ué, e a gente não é amigo?
— Mais ainda.
Fiquei vermelha de emoção. Aquele moço feito, como dizia a mãe, querendo ser meu amigo. Então ele não me achava tão criança assim.
— Você deixou namorada lá no norte?
— Um montão.
— Seu convencido. Vai ver que não deixou nenhuma.
— Deixei, sim. Mas nenhuma tão bonita como você.
— Eu sou criança ainda.
— Nem tanto. — O Gelcimar me olhou dos pés à cabeça. Me mediu toda. Eu tava lavando a louça na pia, me senti esquisita:
— Não olhe assim, não, Gelcimar.
— Que é que tem você não gosta?
— Até que gosto.
— Então, sua boba. Olhar não tira pedaço.
Todo dia era aquela conversa na hora do almoço.
Depois ele ia flanar lá no portão, enquanto eu acabava de guardar a louça.
E a tarde inteira a gente ficava sozinho, lá em casa.
Fazia café pra ele, e até bolo, quando tinha ovo e farinha.
Ele gostava muito.
A gente ouvia rádio e ficava junto no sofá, batendo papo. Ele contando da sua vida lá no norte: de como nunca fazia frio e ia muito na praia, uma beleza. Só que a
pobreza era grande. Então resolveu vir pra São Paulo tentar a vida. Mas aqui a coisa não era moleza, não. E ainda tinha o frio da peste.
— Você nunca sai, menina? — perguntava ele de vez em quando. — Só fica em casa e vai pra escola. Que vidinha mais besta a sua, não?
— Eu tenho de ajudar a mãe — respondia, sem graça.
— Pois qualquer dia, deixa eu receber meu ordenado, a gente sai por aí... Vai num parque de diversões que tem aqui perto. E eu te compro pipoca e algodão-doce,
tá bom, Taís?
Foi o melhor dia da minha vida, ah se foi! O Gelcimar pediu pro pai e ele deixou. E a gente foi no parque pertinho de casa, onde nunca eu tinha ido.
Ele cumpriu todas as promessas. Me comprou um baita pacote de pipoca e outro de algodão-doce. E me levou pra andar na roda-gigante, no trem-fantasma, na
montanha-russa.
Eu gritava de medo e ele me abraçava, dizendo:
— Tem medo, não, menina, eu tô aqui pra te proteger...
Nessas horas eu nem ligava que ele me chamasse de menina, tava tão bom! O mundo podia parar, meu diário, que eu nem ia perceber. O melhor mesmo foi quando
ele ganhou um prêmio numa barraquinha de tiro ao alvo e deu pra mim.
Era um ursinho branco, e eu pus nele o nome de Gil. Daquele dia em diante, onde eu ia, levava o ursinho.
Na escola a dona Márcia até deu risada:
— É seu namorado, Taís?
— É — eu disse. E de certa forma era mesmo. Mas o que eu queria mesmo era namorar quem tinha me dado o Gil, o Gelcimar.
Sua tonta, pensava, quando é que ele vai dar bola pra uma menina como você? Bonito do jeito que é, deve ter um montão de garotas querendo namorar com ele.
Ele tinha vinte anos e eu...
Se pudesse envelhecer de repente, virar uma garota de uns dezoito anos, pronta pra encarar um namoro.
Que nada, eu olhava no espelho e continuava a menina de antes. Droga!
Depois do dia do parque, a gente sempre saía pra passear. A mãe comentava: — Ela é muito nova, José, pra andar por aí. — Mas o pai dizia: — Deixa a garota sair
um pouco, o Gelcimar toma conta dela.
Meus irmãos, o Emerson e o Vânderson, viviam naquela correria... Mal dava pra dormir em casa. Assim mesmo, eles diziam, de passagem:
— Juízo, hein, menina!
Eu tinha até acostumado a voltar da escola e almoçar com o Gelcimar. Se ele não estava, eu ficava triste. Um dia, vinha voltando, dei com ele conversando com a
vizinha. A Jacirese tinha dezesseis anos e nem era bonita. Fiquei uma fera. Até quebrei dois pratos. A mãe ia dar bronca.
Quando Gelcimar entrou pra almoçar, fiz o prato dele com tanta má vontade que ele reparou:
— Que foi, Taís, cê tá brava comigo?
— Não tô coisa nenhuma, come de uma vez pra eu lavar a louça...
— Credo, que menina mais enfezada — ele ainda por cima caçoou de mim.
— Menina é a tua avó!
— A nossa avó, você quer dizer — riu ele.
— A tua avó. Come logo, assim sobra tempo pra conversar com aquela besta da Jacirese.
Ele levantou da cadeira, todo ardido:
— Ué, menina, tá com ciúme, tá?
— Eu? Cê tá ficando louco! Você não é nada meu.
Por que teria ciúme?...
— Ora — disse ele, aproximando-se mais —, porque você gosta de mim.
— Seu convencido — quase que joguei um prato na cabeça dele. — Gosto coisa nenhuma. Sou sua prima. Só isso.
— Só mesmo?
O Gelcimar veio pro meu lado e, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, me abraçou e beijou. Eu fiquei tão espantada que nem tive reação. E, pra falar a
verdade, eu até gostei. Gostei
— Não tenha mais ciúmes — disse ele baixinho no meu ouvido. — Eu gosto mesmo só de você, Taís...
Saí correndo pro quarto, o coração batendo mais que tambor. Tive até de pôr a mão no peito pra me acalmar. As palavras do Gelcimar me perseguindo: "Gosto
mesmo só de você, Taís, só de você..." Foi depois desse dia que eu comecei a ficar diferente. Sabe, meu diário, fiquei meio avoada, no mundo da lua mesmo. A
dona Márcia foi a primeira a perceber:
— Você tá bem, Taís? Parece tão desligada. Tem algum problema?
A dona Márcia era superlegal. Era a coordenadora lá da escola, conhecia todo mundo, e às vezes aguentava cada barra!
Tinha uns garotões da oitava série que já tinham sido expulsos de escolas particulares e que a escola municipal não podia recusar. Faziam cada coisa!
Um dia, trancaram à chave uma classe e ninguém pôde entrar. O chefe da turma deles, o Robertão, quebrou a chave e escondeu. Todo mundo sabia que tinha sido
ele. Então a dona Márcia telefonou pra mãe dele, que ficou uma fera. Disse que filho dela não fazia aquelas coisas, a dona Márcia nem era a dona da escola, não
mandava nada. A coitada quase caiu dura no telefone, de tantas que a mãe do Robertão disse.
Pois imagine que, dias depois, o Robertão confessou pra outra professora que tinha sido ele mesmo quem tinha trancado a classe, quebrado a chave e escondido no
pátio. Mas, pelo amor de Deus, não contasse nada pra mãe dele, senão perdia as férias. A professora ficou numa sinuca: não podia entregar o Robertão. E ele se
livrou, todo folgado.
E não ficava nisso só, não, meu diário. A turma dele mexia com as coisas dos alunos menores, rasgava cadernos, escrevia besteira nas lousas, e vivia quebrando o
orelhão da esquina. Eram maus elementos mesmo. E a família deles achava que era perseguição da escola, todos uns "anjinhos"...
— Tem certeza de que está bem? — insistia a dona
Márcia. — Estou achando você meio diferente. Os professores me disseram que você nem presta mais atenção às aulas...
Coitada da dona Márcia, tão prestativa. Mas como é que eu podia dizer pra ela que o meu problema era o
Gelcimar, o abraço e o beijo que ele tinha me dado lá na cozinha de casa? E o que ele tinha dito?
Hoje, pensando bem, acho que podia ter falado com ela, sim. Se a mãe não falava comigo, só restava a professora, não é? Ela até comentou comigo, muito depois:
— Por que não se abriu comigo, Taís? Por que não confiou em mim?
Confiar... Puxa, seria tão bom se eu pudesse mesmo confiar em alguém! O meu sossego acabou desde aquele beijo. Quando eu pensava no Gelcimar, ficava
vermelha, me subia um calor! Tinha vontade de fugir dele, mas ao mesmo tempo uma vontade louca de ficar perto. Passei a viver só em função do Gelcimar... Ele
percebia e me olhava todo sorridente, os olhos azuis brilhando. Quando a gente ficava sozinho, ele vinha, me abraçava e beijava. Abraço cada vez mais apertado,
beijo cada vez mais demorado. Eu pedia:
— Para, Gelcimar, o pai pode chegar...
— Ih, ele tá longe, no serviço.
— Então a mãe...
— Pior ainda, ela só chega de noite.
— Os meus irmãos... — eu suplicava.
— Eles só vêm pra dormir, fica sossegada, Taís. Vem sentar aqui no sofá, vem...
Eu ia. E então ele me abraçava e beijava mais. Vou ser sincera, eu gostava. Mas gostava de um jeito meio
sem jeito, mas com muito medo que a mãe ou o pai chegassem e me vissem beijando o Gelcimar. Acho que eu caía durinha no chão.
De noite eu dormia mal, me sentia assim esquisita porque nunca tinha feito nada escondido do pai e da mãe. Mas era tão bom! Uma coisa tão boa não podia ser
ruim, podia?
Um dia, de tão aflita, até tentei conversar de novo com a mãe. Ela tava passando roupa:
— Dá pra gente conversar, mãe? Só um pouco?
— Fala rápido que eu tenho muita coisa pra fazer, Taís.
Tinha de ser uma conversa meio comprida. Rápido não dava.
— Só um pouco, mãe, vai?
— Que foi, tá precisando de alguma coisa? Mais material escolar? Essa escola pensa que somos ricos?
— Não é material escolar, não, mãe, é outra coisa...
— Que coisa? — a mãe empilhava a roupa passada sem paciência. — Você tá doente?
— Doente? Não, não tô, não.
— Dor de dente?
— Também não.
— Algum problema lá na escola? Não me diga que por causa daquelas suas coleguinhas que só falam em artista de novela você não vai passar de ano...
— Não é isso, não, mãe, é outra coisa...
— Me deixe trabalhar, menina. Vá cuidar da sua obrigação. Ponha o feijão de molho pra mim.
Nunca dava pra conversar com a mãe, nunca mesmo.
E com a dona Márcia eu tinha vergonha. O que eu ia dizer pra ela? "Olha, dona Márcia, eu tô gostando do meu primo, aquele que mora lá em casa, o Gelcimar. Ele
tem vinte anos, é muito bonito e vive me abraçando e beijando, dando uns amassos... Isso tá errado?" Ah, eu não tinha coragem, não. E se eu falasse com a Cejana
e mandasse ela perguntar pra mãe dela? Ou pra Miracê ou a Deolinda? Elas sabiam menos do que eu, mas... Quem sabe.
Tentei me abrir com elas. Quase caíram:
— Nossa, cê tá namorando um homem tão mais velho... É bom ou ruim? — perguntou a Cejana.
— Os dois — eu disse. — Tem horas que eu gosto, tem horas que tenho medo...
— E o que ele... faz? — quis saber a Deolinda.
— Dá beijo que nem nas novelas?
A Miracê então nem falava, de tanta ansiedade.
— Igualzinho. Mas eu tô ficando com medo...
— Medo de quê? — disse a Deolinda, bancando a sabida. — Eu já disse que beijo não tem perigo. A minha irmã...
Eu sei — falei. — Mas quem garante?
— Ah, garantir eu não posso — concordou a Deolinda. — Só se eu perguntar de novo pra ela...
Finalmente a Miracê abriu a boca:
— E do que é que você tem medo?
— Eu nunca tive namorado antes, né? — desabafei.
— E ele tem vinte anos. Mas nunca ia fazer nenhuma barbaridade comigo, afinal, eu sou prima dele...
— Que barbaridade? — a Cejana engoliu em seco.
— Sei lá, transar... Eu não sei bem como é que é isso...
— Transar? — a Miracê até arregalou os olhos.
— Por enquanto a gente tá só ficando: dando beijos, abraços, uns amassos... agora, transar como marido e
mulher, como será?
A Cejana suspirou fundo e entregou: — Um dia eu entrei de supetão no quarto do pai e da mãe. Eles tavam abraçados, lá na cama. Só que, no escuro, não deu pra
ver direito...
— Abraçados de que jeito? — aquilo me interessou muito.
— Ué, abraçados — disse a Cejana. — Parecia que o pai tava por cima da mãe... Mas eles me deram uma bronca e me mandaram sair do quarto. Deviam estar
transando, só pode ser isso.
— Eu precisava saber com certeza...
— Pergunte pra sua mãe — disse a Deolinda. — É o único jeito. Ou então pra dona Márcia... Ou pro seu primo.
— A mãe não fala nada, tá sempre ocupada. Com a dona Márcia eu morro de vergonha. Com o Gelcimar...
Ele vai pensar que sou uma tonta. Nem morta!
— Então, como vai ser? — quis saber a Miracê.
— Vou ter de descobrir sozinha. Vocês também, que bando de bobocas. Não sabem nada. Droga de turma que eu arranjei!
Eu estava apaixonada pelo Gelcimar, meu diário. Já não imaginava a vida sem ele. Era um amor tão bonito, como nos filmes ou romances...
Dormia pensando nele e sonhava com ele... Nós dois sempre juntos, morando numa casa com jardim na frente, onde esperava ele voltar do trabalho...
Quando acordava, meu primeiro pensamento também era pro Gelcimar: ainda está no serviço, que pena, só vou ver ele na hora do almoço...
Deitada na cama, ficava fantasiando, sabe, meu diário?
Era como se o Gelcimar estivesse ali me abraçando, beijando... Até sentia o calor dos seus braços e a doçura dos seus beijos... Aí, me dava um; Pra lá de boa, e eu
flutuava... Dep uma sensação esquisita,
Depois, uma moleza!
Nem acreditava como podia ter vivido tanto tempo sem conhecer alguém tão maravilhoso como o Gelcimar! tava me esperando, lá no sofá da sala. Perguntei:
— Tá com fome, Gê? Quer que faça o seu prato? Acho que tem dobradinha que você gosta.
Ele não pareceu se importar muito. Me olhou de um
— Ué, não quer almoçar? "
— Depois, a gente tem muito tempo. Agora vem cá que eu quero te mostrar uma coisa...
Puxa, pensei, será que é um presente? Corri pro sofá. Nem deu tempo de sentar, o Gelcimar me agarrou forte, me deu o maior beijo. Quase que perco até o fôlego:
— Nossa, que foi que deu em você?
— A gente já esperou demais, garota. De hoje não passa...
— Passa o quê? — fiquei curiosa.
O Gelcimar estava tão estranho, o olhar parado, eu nunca tinha visto ele assim...
— Me beija, me abraça! — pediu, e me agarrou de novo. No começo até gostei, depois fui achando que já era demais:
— Pára, Gelcimar!
Um dia, cheguei mais cedo da escola e o Gelcimar jeito engraçado:
— Vem cá, vem, gracinha...
Mas ele não parou de jeito nenhum. Tinha a voz rouca e respirava de um jeito gozado. Então ele começou a tirar a minha roupa...
— O que você tá fazendo, Gelcimar?
— Você vai gostar, nenê, eu prometo. Fique calma, ninguém vai chegar. A gente tem todo o tempo do mundo.
O Gelcimar desabotoou a minha blusa e começou a bolinar os meus seios... Aí tive uma sensação que nunca tinha tido antes... Me deu um calor, o Gelcimar
falando no meu ouvido:
— Não tenha medo, Taís, vai ser bom... — A gente sempre dava uns amassos, sentado lá no sofá, mas agora o Gelcimar fazia força pra eu deitar. Ele era forte e o
calor que vinha do corpo dele era tão gostoso... Então fui deitando devagarinho... enquanto ele continuava tirando a minha roupa... Fiquei meio confusa: seria real o
que estava acontecendo comigo?
Depois o Gelcimar também tirou a roupa dele bem na minha frente... Brincadeira: foi a primeira vez que eu vi um homem nu na minha vida!
Já sei o que você vai dizer, meu diário! E os seus irmãos? Acontece que sou a caçula lá de casa e, depois que eles cresceram, nunca mais ficaram sem roupa na
minha frente, nem eles nem o pai. Também trancavam sempre a porta do banheiro. E, mesmo com toda a minha curiosidade, nunca pude ver alguém pelado. Então,
o Gelcimar ali, nu, na minha frente, foi
mesmo um choque!
Ao mesmo tempo me bateu uma curiosidade! "O
que é que o Gelcimar ia fazer, afinal?" Quando comecei
a me perguntar, ele pediu:
— Quietinha, Taís, vai ser uma boa... pode crer,
gostosinha...
Então o Gelcimar veio vindo, vindo... Aquilo até parecia
um sonho... Ele deitou em cima de mim e escutei o
coração dele batendo forte de encontro ao meu peito.
Então uma coisa começou a fazer força como se
quisesse entrar dentro do meu corpo. Eu não sabia direito
o que era. Mas sentia uma sensação esquisita, de prazer
e medo ao mesmo tempo... Como se eu fosse outra
pessoa.
Aí, de repente, senti uma dor, e aquela coisa agora
se mexia dentro de mim, enquanto o Gelcimar me abraçava
cada vez mais forte...
Nem sei dizer quanto tempo demorou aquilo... Parecia
que o tempo tinha parado... Até que a coisa parou
de mexer... O Gelcimar foi se acalmando, mas ficou ainda
um tempo sobre mim... Depois se levantou e disse:
— Foi bom, não foi, Taís? Mas, olha lá, não conta
pra ninguém, ouviu?
— Você não quer que eu conte o que aconteceu
aqui, é isso?
— Você não vai contar nada, Taís, porque não aconteceu
nada, entendeu? — ele parecia preocupado.
— Entendi. — Falei, só pra encerrar aquele papo
meio besta.
Mas não tinha entendido coisa nenhuma.
Só sei que escorria um leite meio aguado pelas minhas
pernas, além de uma mancha de sangue no sofá.
Corri pra me lavar, e depois lavei também o sofá. A
mãe tinha feito prestação pra comprar ele. Se encontrasse
sujo de sangue, ia me dar a maior bronca!
Desde esse dia, fiquei cismada. Por que o Gelcimar
não queria que eu contasse pra ninguém o que havia
acontecido entre a gente? Ele gostava de mim e eu dele,
que importância podia ter? Mas o que me encucava mesmo
era saber que coisa era aquela...
Isso porque eu lembrava a história dos pais da Cejana.
Então uma pergunta começou a martelar na minha cabeça:
"Será que eu e o Gelcimar tínhamos feito igualzinho
o que fazem marido e mulher?"
Só de pensar me dava um frio na espinha! O Gelcimar
tinha razão. Nunca que eu ia contar pra mãe ou pra dona
Márcia. Pro pai nem pensar. Pras meninas... Talvez... Se
tivesse coragem. Eu nem sabia se ia ter.
Agora o Gelcimar ficava sempre me esperando, quando
eu voltava da escola:
— Vem cá, vem, Taís!
Às vezes eu ia porque ainda gostava dele. Mas ele
não me levava mais pra passear, como antes. De repente,
ficou com cara de todo mundo. Não sei por quê, mas
acho que tinha perdido a graça, sabe como é?
Ele até percebeu:
— Não gosta mais de mim, Taís?
— Gosto.
— Só gosta?
— Sei lá, acho que gosto.
— Pois eu gosto muito de você.
— Quanto?
— Muito, até demais.
Foi só quando vi a Cejana comprando absorvente
na farmácia que lembrei:
— Nossa, nem fiquei menstruada este mês. Será que
é assim mesmo?
— Pois a minha irmã menstrua todo mês e fica numa
alegria — disse a Deolinda.
— Ué, alegria por quê? — perguntou a Miracê. — É
tão chato e ela gosta?
— Deve gostar, né? — a Deolinda fez um muxoxo.
Apesar de ter a minha idade, ela nem tinha ficado menstruada
ainda. Nem a Miracê.
A mãe, em casa, também reparou:
— Não pede mais absorvente, Taís?
— Não fiquei menstruada, mãe.
— Como, não ficou? — Era impressão minha ou a
mãe parecia preocupada?
— Não fiquei, mãe.
— Vai ver tá precisando de vitaminas. Se falhar o
mês que vem, levo você no médico do posto.
Mas a minha menstruação não veio mais. Nem no
mês seguinte, nem no outro... A mãe acabou esquecendo
de me levar ao médico. Ela nunca tinha tempo pra
nada, pô, uma correria de vida!
Então comecei a passar mal na escola. Um enjôo no
meio das aulas, tonturas... Às vezes até vomitava na classe
ou no recreio. Um sono... Parecia que eu não dormia
nunca. E percebi também uma coisa engraçada: a minha
barriga estava crescendo. Como se tivesse engolido um
balão, desses que a gente vai enchendo de ar, bem devagar...
Cada vez que eu me olhava no espelho, tomava
um susto! O que estava acontecendo comigo?
Até que a dona Márcia, a coordenadora da escola,
mandou me chamar lá na sala dela:
— Estou preocupada, Taís. Primeiro você fica esquisita,
depois começa a passar mal na escola e ultimamente
vem engordando. Houve alguma coisa, minha filha?
— Não, por quê?
— Ora, por nada — disse a dona Márcia. — Sua
menstruação está vindo certinha?
Até achei gozada a pergunta. O que é que a dona
Márcia tinha a ver com isso?
— Pra falar a verdade, não tem vindo, não. A mãe até falou em me levar lá no posto e...
A dona Márcia ficou meio pálida e eu pensei: "Quem devia estar com algum problema era ela, não eu".
— Tá se sentindo bem, dona Márcia?
— Tudo bem, minha filha, vou chamar sua mãe pra gente conversar. Mas, antes, me diga: você tem namorado?
Me finji de tonta. Eu não podia entregar o Gelcimar assim de bandeja.
— Mais ou menos.

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Giselda laporta

  • 1. Giselda Laporta Nicolelis O Portão do Paraíso GISELDA LAPORTA NICOLELIS O PORTÃO DO PARAÍSO A gravidez infantil discutida com a força e a maturidade da franqueza. Taís é uma garota que leva uma vida tranquila: de casa pra escola, encontros com amigas, passeios no shopping, enfim, coisas de adolescente. Certo dia, Gelcimar vem morar na casa dela. Aos poucos, um encantamento mútuo acontece. Gelcimar, mais experiente, e usando de sua capacidade de sedução, leva Taís, muito ingênua, a se relacionar sexualmente com ele. Ela só vai ter noção das consequências do seu ato ao descobrir que está grávida. Então chega a hora de cair no mundo real que é muito diferente dos seus sonhos — ela não passa de uma criança, esperando outra criança — com todos os desdobramentos que tal situação vai causar em sua vida dali pra frente... Para Maria Helena Martins Silva, pela amizade de trinta anos, e pelo tempo para escrever meus livros... Este diário pertence à Taís Meu Diário Meu nome é Taís e tenho treze anos. Antes eu não gostava desse nome. Mas a minha vida mudou tanto! Por isso resolvi escrever este diário, só pra desabafar. Ninguém pode ler além de mim. Tenho uma história pra contar que até parece coisa de filme, de novela ou romance. No ano passado, quando eu tinha doze anos, estudava numa escola municipal. Eu gostava da escola, principalmente por causa da merenda. Nunca teve muita fartura aqui em casa, não. O pai vive de bicos. Ele tá na caixa do Inamps desde que sofreu um acidente: era pedreiro e caiu do andaime. Só que a caixa paga uma miséria, então o pai sai por aí fazendo bicos. Pinta parede, cuida de jardim, essas coisas. A mãe olha os bebês das vizinhas que trabalham fora. Ela cobra por mês e olha várias crianças. Ela faz isso agora pra ficar em casa. Antes trabalhava de faxineira, saía cedinho e só voltava de noite. Tomava umas quatro conduções por dia, um suplício. A vida dela mudou muito também. Mas deixa eu começar bem do começo. Eu ia na escola, como falei, estava na quinta série. Era até boa aluna, sabe? Tinha umas matérias de que eu não gostava muito, como Matemática. Minha escola tinha sala de leitura. A gente podia biblioteca circulante pra casa. De certa forma, eu era até feliz. Minha vida era ir pra escola, voltar pra casa, preparar a janta pra mãe que chegava, moída de cansaço, esperar o pai voltar do trabalho .Os meus dois irmãos, o Emerson e o Vânderson, iam direto do trabalho pra escola noturna. Eles sempre foram muito esforçados. A mãe vivia dizendo: "Cuidado com má companhia, que por aí tá cheio. Olha, que a polícia atira primeiro e pergunta depois". A mãe estava coberta de razão. Carecia mesmo tomar muito cuidado. Além da polícia ir atirando logo, confundindo marginal com gente boa, tinha também a turma do Mané Quim, um justiceiro famoso aqui no bairro. Vou explicar pra você, meu diário, o que é justiceiro. Alguns comerciantes, geralmente da periferia, contratam uns caras, que chamam de "justiceiros", pra matar os assaltantes de bares, padarias, lojas... Só que, no fundo, os justiceiros são também bandidos e começam a matar a torto e a direito, só por prazer, então, de ouvir dizer: "Aquele é traficante de drogas, o outro rouba carro, aquele assalta casa", e por aí... Então morre gente inocente, como o Zeca da dona Margarida: ele vinha voltando da escola quando levou um tiro bem no meio da testa, foi confundido com marginal. Não deu nem pra dizer "ai". Ficou jogado no meio da rua, feito cachorro atropelado. E teve outros como ele. Mas tô desviando o assunto, quero mesmo é falar da minha vida. Eu tinha muitas colegas lá na escola, mas amigas mesmo eram a Deolinda, a Miracê e a Cejana. Todas da minha idade. A gente vivia colecionando fotos de artistas de cinema, de tevê e de cantores de rock... Fizemos até um fã-clube do nosso cantor preferido. Às vezes, dava pra pegar um cineminha no domingo de tarde, em algum shopping, quando sobrava dinheiro, claro. O que mais a gente fazia mesmo era ver tevê e jogar conversa fora. Ah, também gostava muito de colecionar papel de carta, mas ficou caro demais — então nós paramos, porque só dava pra trocar, e coisa repetida perde a graça. Quase não tenho visto mais a Miracê, a Deolinda e a Cejana. Elas vieram aqui na minha casa poucas vezes. Estou assim meio sem amigas... Às vezes, me dá uma saudade do tempo em que eu vivia numa boa, da casa pra escola e da escola pra casa... Eu tinha tantos sonhos! As minhas amigas também. A Miracê queria ser artista de tevê. A Deolinda sonhava ser modelo. Eu morria de rir, porque ela é gordinha e baixinha. Mas ela jurava de pé junto que ia fazer regime e crescer... E virar top model de capa de revista, famosa no mundo inteiro, eu que esperasse pra ver. A Cejana queria ser médica, mas ia ser difícil realizar o sonho, porque a família dela é tão pobre quanto a minha. Cadê dinheiro pra fazer cursinho e conseguir entrar na faculdade? Ela era a mais estudiosa de nós quatro. Dizia que só ia casar depois de formada, e nem queria saber de penca de filhos igual à mãe dela, que tem seis. Todo mundo me achava bonita, um corpo quase de moça: cabelo comprido, preto e liso, e olhos claros que puxei de um avô, que, dizem, era alemão de olhos azuis. Sou de estatura média, tenho um metro e sessenta, faz tempo que eu medi na escola. Sabe, meu diário, eu pensava que sabia das coisas e, depois, descobri que não sabia é nada! Um dia, o pai recebeu uma carta, do irmão lá do norte, dizendo que um filho dele (sobrinho do pai) ia vir pra São Paulo. Ele precisava trabalhar pra ajudar a família, e não conseguia emprego. E pedia pra ele morar lá em casa. O pai não gostou muito da ideia. Ouvi ele conversando com mãe: — Que é que você acha, Carminda? Já temos cinco bocas aqui em casa pra sustentar, e agora vem mais um moço que deve comer por dois... — Ele vai trabalhar, não vai? — disse a mãe. — Então ajuda nas despesas. O pai girou os olhos de um jeito engraçado: — E tem a menina aí, a Taís. Tá ficando mocinha. Irmão é diferente, mas primo dentro de casa... — Credo, José, que malícia! A Taís é quase uma menina. Imagine se o moço vai mexer com ela... É filho do seu irmão, homem. É quase irmão dos meninos... — É, não sei se posso negar isso pro mano — respondeu o pai, e foi dormir. No dia seguinte escreveu pro tio dizendo que o primo podia vir. Mas que ficasse sabendo: a casa tinha muita disciplina. O rapaz não pensasse que estaria morando em pensão de moço, essas confusões. Um mês depois o primo chegou. A gente foi buscar ele na rodoviária, senão ele nunca ia achar a nossa casa, num bairro tão distante de periferia. Quando vi o Gelcimar, até levei um susto: ele parecia um galã de televisão, um gato. Como o nosso avô era o mesmo, o tal alemão, ele tinha olhos bem azuis e cabelos castanhos. Ele pegou na minha mão e disse: — Oi, Taís, você é mais bonita que na fotografia. — Ué, você tem fotografia minha? — perguntei, um friozinho correndo na boca do estômago. Até a minha boca estava seca. — Claro que tenho, o tio mandou — disse ele, e sorriu com uns dentes bem bonitos. Tinha uma falha assim do lado direito, mas não atrapalhava nada, nadinha mesmo. Enquanto a gente voltava pra casa, o Gelcimar olhava tudo, entusiasmado: — Puxa, que cidade grande, seo! Nunca vi um mundaréu de carro desse jeito. E como tem gente na rua! — Também, você veio de uma cidadica de nada — ria a mãe. — Dá pra conhecer todo mundo lá, não dá? — Todo mundo — concordou o Gelcimar. — Lá todos sabem da vida dos outros: quem nasceu, morreu, fugiu... — Fugiu? — estranhei.
  • 2. E, fugiu — continuou o primo. — Às vezes, tem casal de namorado que foge... Que conversa mais boba — interrompeu o pai. — Como é que vai a cunhada, o mano? — Mãinha tá boa; painho também — disse o primo. — Mandam muitas lembranças. E um presente também. Uns doces, que a mãe faz, que são uma delícia... Se não derreteram pelo caminho... Tantos dias de estrada. — Você deve tá cansado — disse a mãe. — Descanse bem esta noite pra procurar emprego amanhã. Gelcimar sorria pra mim, e o meu coração disparava: bum-que-bum, bum-que-bum, bum-que-bum... Credo, eu tava ficando até tonta. Eu nunca tinha visto olhos tão bonitos daquele jeito: pareciam um céu aberto, sem nuvens... A mãe e o pai, graças a Deus, entretidos em mostrar a cidade pro Gelcimar, nem perceberam. Os meus dois irmãos estavam no trabalho. A mãe tinha até faltado no serviço pra ir junto buscar o primo, a patroa deu folga pra ela. Chegamos e o Gelcimar disse que a casa era bonita. Acho que por educação, porque é uma casa muito simples, pobre mesmo. Ele jantou, conversou um pouco, viu televisão... Depois deu boa-noite e foi dormir. Me deu uma alegria! Uma coisa assim dentro do peito, uma ansiedade, uma vontade de sair correndo... Contar pras amigas que o primo tinha chegado. Mas era noite. Imagine se o pai ou a mãe iam deixar. Fui dormir pra acordar bem cedo, e cheguei na escola cheia de mistérios: — Vocês nem sabem da novidade... — Saiu CD novo do gatinho — disse a Miracê. — Você ganhou na loteria — falou a Cejana, que só pensava em guardar dinheiro pra poder fazer a faculdade de Medicina. — Emagreci dois quilos — anunciou a Deolinda, mais interessada nas próprias curvas, que fariam dela a maior top model do Brasil. — Meu primo chegou — eu disse. — Bela novidade! — a Miracê fez um muxoxo. — Veio lá do norte, não é? Deve ser o maior caipirão... — Com dois olhos azuis de matar — eu disse. — Um gato? — perguntou a Cejana. — Um gatão — exagerei. — Mais lindo impossível. — Puxa, a gente podia estudar um pouco hoje na sua casa — propôs a Miracê. — A gente tá ruim pra burro em Matemática. — Assim você vê o caipirão, né? — É — disse a Miracê, revirando os olhos. Quando o Gelcimar saía pra procurar emprego, a casa ficava quieta, sem graça mesmo. O pai e a mãe fora, os meus irmãos no serviço, como sempre. Eu ia pra escola e voltava correndo... Então via a casa vazia, droga! Mas, quando ele chegava, parecia que a casa ficava iluminada. Ele enchia a casa de alegria, de brincadeiras: — Corre, Taís, que eu te pego! Eu saía correndo pelo quintal e me escondia atrás do pé de laranja-lima que a mãe tinha plantado fazia um tempão e nunca que dava fruta. — Te peguei! Eu ria tanto que até engasgava. E aqueles olhos azuis sorrindo pra mim: — Quantos anos você tem, Gelcimar? — Vinte. — Nossa, você é um moço. Eu é que sou criança ainda. Tenho só doze. — Mas já é bonita pra burro. — Você acha mesmo? — Claro que eu acho. A moça mais bonita que eu já vi na minha vida. Quando ele me chamou de moça, fiquei meio mole de prazer. Sabe, meu diário, eu tinha ficado moça mesmo, fazia uns meses. Levei um susto: a mãe não tinha me explicado nada. Quando vi aquele sangue, abri o berreiro: — Mãe, tô morrendo!... A mãe reagiu na hora: — Quieta, menina, isso é coisa de mulher. Só uns dias e passa... Pega o pacote de absorvente lá em cima do armário que eu te ensino a usar... — Mas, mãe, por quê? — Ora, menina, vá buscar logo! Não carece muita pergunta, não... Mas eu tinha tanta pergunta presa na garganta: "Por que saía aquele sangue de mim?"; "Por que era coisa de mulher?"; "Por que acontecia aquilo?" A mãe nem deu confiança. Voltou pro tanque cheio de roupa. O sonho dela de ter uma máquina de lavar roupa nunca que acontecia. Então eu pus o absorvente como ela ensinou. Ficou engraçado: parecia que eu estava usando fralda de novo, que nem bebê. E fui correndo contar pra Cejana, pra Deolinda e pra Miracê. A Cejana fez cara de importante. — Eu já sou moça desde o mês passado... — Pô, Cê, nem contou pra gente... — Esqueci. Também não é coisa que a gente sai contando por aí, né? — A sua mãe falou com você? — perguntei ansiosa. — Mais ou menos — a Cejana fez mistério. — Disse que é coisa de mulher. — Isso a minha mãe também disse — falei. — Mas eu quero saber por que a mulher tem dessas coisas... — Ah, isso eu não sei, não — disse a Cejana. — Bela médica que você vai dar — rebateu a Deolinda. — Duas burras, vocês. Isso aí é menstruação, a minha irmã me contou. Serve pra mulher ter bebê mais tarde. — E como é que faz pra ter bebê? — A Miracê estava muito interessada. —Já ouvi tanta coisa que nem sei mais... — Só beijo não é, tenho certeza — disse a Deolinda. — Senão minha irmã tinha nenê todo dia. Do jeito que ela e o namorado se beijam, lá no portão de casa... — A gente precisa descobrir isso direito — disse a Cejana. — Deixem comigo. Eu vou perguntar pra mãe. — Será que ela conta? A minha mãe é uma concha, não tiro uma palavra dela — confessei. — Vamos ver — a Cejana sempre foi muito misteriosa. — Eu posso tentar, né? Se descobrir, eu conto tudo! Todo dia, agora, eu voltava correndo da escola, só pra ver o Gelcimar... Pra ele me chamar de moça de novo. Que gostosura! Ele andava meio quieto e saía todo dia pra procurar emprego... E nada. Acho que ele tava ficando desanimado. — Tão precisando de um guarda-noturno nas obras ali do prédio da esquina — disse o pai. — Tem de trabalhar de noite, né, tio? — Claro, mas é melhor que coisa nenhuma. — Deu zebra, tio — desabafou o Gelcimar. — Eu pensei que fosse mais fácil. — Que nada, rapaz, em todo lugar a coisa tá feia. Vem muita gente pra cidade grande achando que aqui é o paraíso... Mas na maioria das vezes acaba vivendo ainda pior, nas favelas e cortiços. — Que sorte a minha ter vocês, senão nem teria onde morar ou comer... Já estava debaixo de alguma ponte. — Pois trate de pegar esse emprego com as duas mãos — continuou o pai. — Não quero lhe enganar, Gelcimar. A gente luta muito e você precisa ganhar algum pra colaborar nas despesas. — Tá bom, tio — o Gelcimar coçou a cabeça, desanimado. — Eu vou pegar esse emprego por enquanto... Depois, quem sabe, encontro coisa melhor. O pai deu uma olhada pra mãe como se dissesse: "Esse tá querendo pegar o mundo com as mãos..." Eu conhecia aquele olhar do pai. Depois deu boa-noite e foi dormir. A mãe também. E gritou lá do quarto:
  • 3. — Apague logo essa luz, Taís, que a conta tá muito cara! Eu ainda fiquei um tantinho na sala, fazendo companhia pro primo. Ele estava meio deprimido. Me deu uma pena! Então resolvi consolar ele: — Não fique triste, Gelcimar. Logo você arruma emprego bom. Até que ser guarda-noturno não é tão ruim, né? — Eu vou ter de dormir de dia. Uma aporrinhação. E aqui faz frio de madrugada. Não sei se vou acostumar. — Você logo recebe o ordenado e compra uma jaqueta — continuei consolando. — Daquelas bem bonitas. — E será que o dinheiro vai dar? — O Gelcimar ficou sério de repente. — Você é muito boazinha, Taís, mas muito criança ainda, não sabe das coisas. Vá dormir, vá... Me deu um ódio! Eu consolando, dando a maior força, e ele me chamando de criança. Bobão! Palhaço! Por que não ficou lá no norte mesmo, com o calorão dos diabos? Que é que veio fazer aqui? Molhei até o travesseiro de tanto que eu chorei... De raiva. Ele não tinha me chamado de moça? Como é que eu tinha virado criança assim de repente? A droga do absorvente tava me incomodando. Tinha ficado de novo menstruada. Taí a maior prova de que eu não era mais criança. A irmã da Deolinda não disse que servia até pra fazer bebê? Lógico que mais tarde, muito mais tarde, quando eu tivesse um marido bem bonito... Assim como o Gelcimar! E a mãe que nunca conversava comigo. Seria tão bom que ela parasse um pouco de trabalhar, parecia até uma formigona aflita, e viesse falar comigo... Puxa, eu tinha tanta pergunta engatilhada que podia ficar um dia inteiro perguntando: "Tem idade certa pra ter filho?"; "Por onde sai o bebê na hora de nascer?"; e, o mais importante mesmo, aquelas perguntas mais curiosas: "Como é que o bebê vai parar na barriga da mãe?"; "Como é que faz pra mulher ficar grávida?" Puxa, se a mãe conversasse comigo... De mulher pra mulher. Ué, isso mesmo, eu também não era mulher, por acaso? Ainda pequena, mas mulher... E eu não ia crescer e virar uma mulher de verdade, um dia? E eu queria tanto saber! Mas a mãe só sabia dizer: — Essas coisas não são pra menina conversar. Depois eu conto... Depois... —Mas quando? E as burras da Deolinda, da Miracê e da Cejana também não sabiam nada! A esperança era que a mãe da Cejana fosse diferente e contasse alguma coisa pra ela... Mas eu duvidava, porque mãe é tudo igual: mis-te-ri-o-sa! X Então, sabe, meu diário, eu olhava no espelho e via meu corpo... Era meio gordinha, nem sei por quê, nem comia muito. Estava sempre com fome e o que me salvava era a merenda da escola. Tinha uns seios bem redondos e um pouco de barriguinha... A Cejana, com aquela sua mania de médica, vivia dizendo que eu precisava fazer regime. Penteava o cabelo solto nas costas, um cabelão bonito, bem preto, que combinava com meus olhos verdes. Sempre fui vaidosa, a mãe até dizia que eu vivia me olhando no espelho. Minha maior vontade era ter um espelhão pra me olhar de corpo inteiro, mas precisava me virar com um espelho partido no guarda-roupa, que dava pra ver só até a barriga. Eu me sentia moça e bonita, e queria que o Gelcimar me achasse assim. Ele era tão gozado! Às vezes me chamava de moça, outras de criança. Também, ele tinha vinte anos e eu só tinha doze, uma porcaria. Ele começou lá no emprego de guarda-noturno, e trabalhava a noite inteira. Quando voltava, eu já estava na escola, estudava de manhã. A hora do almoço era a melhor coisa que me acontecia. Quando chegava da escola, o pai, a mãe e os irmãos estavam fora. Então eu vinha correndo pra encontrar o Gelcimar, que já estava acordado. A mãe deixava a comida em cima do fogão e a gente almoçava junto. Ele perguntava: — Como é que foi a escola, hoje, Taís? — Ah, foi bom. E o seu trabalho? — Uma droga! Quase morri de frio. Que terra fria que é esta aqui, não? — Pois eu dormi muito bem. — Sua sonsa — ele ria, mostrando a falha do dente. — Invocando comigo, é? — Que nada. Pensei em você passando frio lá na construção. Me deu até pena... — Eu não quero pena, não. — O que você quer? Os olhos azuis também sorriam: — Quero é ser seu amigo, muito amigo, viu? — Ué, e a gente não é amigo? — Mais ainda. Fiquei vermelha de emoção. Aquele moço feito, como dizia a mãe, querendo ser meu amigo. Então ele não me achava tão criança assim. — Você deixou namorada lá no norte? — Um montão. — Seu convencido. Vai ver que não deixou nenhuma. — Deixei, sim. Mas nenhuma tão bonita como você. — Eu sou criança ainda. — Nem tanto. — O Gelcimar me olhou dos pés à cabeça. Me mediu toda. Eu tava lavando a louça na pia, me senti esquisita: — Não olhe assim, não, Gelcimar. — Que é que tem você não gosta? — Até que gosto. — Então, sua boba. Olhar não tira pedaço. Todo dia era aquela conversa na hora do almoço. Depois ele ia flanar lá no portão, enquanto eu acabava de guardar a louça. E a tarde inteira a gente ficava sozinho, lá em casa. Fazia café pra ele, e até bolo, quando tinha ovo e farinha. Ele gostava muito. A gente ouvia rádio e ficava junto no sofá, batendo papo. Ele contando da sua vida lá no norte: de como nunca fazia frio e ia muito na praia, uma beleza. Só que a pobreza era grande. Então resolveu vir pra São Paulo tentar a vida. Mas aqui a coisa não era moleza, não. E ainda tinha o frio da peste. — Você nunca sai, menina? — perguntava ele de vez em quando. — Só fica em casa e vai pra escola. Que vidinha mais besta a sua, não? — Eu tenho de ajudar a mãe — respondia, sem graça. — Pois qualquer dia, deixa eu receber meu ordenado, a gente sai por aí... Vai num parque de diversões que tem aqui perto. E eu te compro pipoca e algodão-doce, tá bom, Taís? Foi o melhor dia da minha vida, ah se foi! O Gelcimar pediu pro pai e ele deixou. E a gente foi no parque pertinho de casa, onde nunca eu tinha ido. Ele cumpriu todas as promessas. Me comprou um baita pacote de pipoca e outro de algodão-doce. E me levou pra andar na roda-gigante, no trem-fantasma, na montanha-russa. Eu gritava de medo e ele me abraçava, dizendo: — Tem medo, não, menina, eu tô aqui pra te proteger... Nessas horas eu nem ligava que ele me chamasse de menina, tava tão bom! O mundo podia parar, meu diário, que eu nem ia perceber. O melhor mesmo foi quando ele ganhou um prêmio numa barraquinha de tiro ao alvo e deu pra mim. Era um ursinho branco, e eu pus nele o nome de Gil. Daquele dia em diante, onde eu ia, levava o ursinho. Na escola a dona Márcia até deu risada: — É seu namorado, Taís? — É — eu disse. E de certa forma era mesmo. Mas o que eu queria mesmo era namorar quem tinha me dado o Gil, o Gelcimar. Sua tonta, pensava, quando é que ele vai dar bola pra uma menina como você? Bonito do jeito que é, deve ter um montão de garotas querendo namorar com ele. Ele tinha vinte anos e eu... Se pudesse envelhecer de repente, virar uma garota de uns dezoito anos, pronta pra encarar um namoro. Que nada, eu olhava no espelho e continuava a menina de antes. Droga!
  • 4. Depois do dia do parque, a gente sempre saía pra passear. A mãe comentava: — Ela é muito nova, José, pra andar por aí. — Mas o pai dizia: — Deixa a garota sair um pouco, o Gelcimar toma conta dela. Meus irmãos, o Emerson e o Vânderson, viviam naquela correria... Mal dava pra dormir em casa. Assim mesmo, eles diziam, de passagem: — Juízo, hein, menina! Eu tinha até acostumado a voltar da escola e almoçar com o Gelcimar. Se ele não estava, eu ficava triste. Um dia, vinha voltando, dei com ele conversando com a vizinha. A Jacirese tinha dezesseis anos e nem era bonita. Fiquei uma fera. Até quebrei dois pratos. A mãe ia dar bronca. Quando Gelcimar entrou pra almoçar, fiz o prato dele com tanta má vontade que ele reparou: — Que foi, Taís, cê tá brava comigo? — Não tô coisa nenhuma, come de uma vez pra eu lavar a louça... — Credo, que menina mais enfezada — ele ainda por cima caçoou de mim. — Menina é a tua avó! — A nossa avó, você quer dizer — riu ele. — A tua avó. Come logo, assim sobra tempo pra conversar com aquela besta da Jacirese. Ele levantou da cadeira, todo ardido: — Ué, menina, tá com ciúme, tá? — Eu? Cê tá ficando louco! Você não é nada meu. Por que teria ciúme?... — Ora — disse ele, aproximando-se mais —, porque você gosta de mim. — Seu convencido — quase que joguei um prato na cabeça dele. — Gosto coisa nenhuma. Sou sua prima. Só isso. — Só mesmo? O Gelcimar veio pro meu lado e, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, me abraçou e beijou. Eu fiquei tão espantada que nem tive reação. E, pra falar a verdade, eu até gostei. Gostei — Não tenha mais ciúmes — disse ele baixinho no meu ouvido. — Eu gosto mesmo só de você, Taís... Saí correndo pro quarto, o coração batendo mais que tambor. Tive até de pôr a mão no peito pra me acalmar. As palavras do Gelcimar me perseguindo: "Gosto mesmo só de você, Taís, só de você..." Foi depois desse dia que eu comecei a ficar diferente. Sabe, meu diário, fiquei meio avoada, no mundo da lua mesmo. A dona Márcia foi a primeira a perceber: — Você tá bem, Taís? Parece tão desligada. Tem algum problema? A dona Márcia era superlegal. Era a coordenadora lá da escola, conhecia todo mundo, e às vezes aguentava cada barra! Tinha uns garotões da oitava série que já tinham sido expulsos de escolas particulares e que a escola municipal não podia recusar. Faziam cada coisa! Um dia, trancaram à chave uma classe e ninguém pôde entrar. O chefe da turma deles, o Robertão, quebrou a chave e escondeu. Todo mundo sabia que tinha sido ele. Então a dona Márcia telefonou pra mãe dele, que ficou uma fera. Disse que filho dela não fazia aquelas coisas, a dona Márcia nem era a dona da escola, não mandava nada. A coitada quase caiu dura no telefone, de tantas que a mãe do Robertão disse. Pois imagine que, dias depois, o Robertão confessou pra outra professora que tinha sido ele mesmo quem tinha trancado a classe, quebrado a chave e escondido no pátio. Mas, pelo amor de Deus, não contasse nada pra mãe dele, senão perdia as férias. A professora ficou numa sinuca: não podia entregar o Robertão. E ele se livrou, todo folgado. E não ficava nisso só, não, meu diário. A turma dele mexia com as coisas dos alunos menores, rasgava cadernos, escrevia besteira nas lousas, e vivia quebrando o orelhão da esquina. Eram maus elementos mesmo. E a família deles achava que era perseguição da escola, todos uns "anjinhos"... — Tem certeza de que está bem? — insistia a dona Márcia. — Estou achando você meio diferente. Os professores me disseram que você nem presta mais atenção às aulas... Coitada da dona Márcia, tão prestativa. Mas como é que eu podia dizer pra ela que o meu problema era o Gelcimar, o abraço e o beijo que ele tinha me dado lá na cozinha de casa? E o que ele tinha dito? Hoje, pensando bem, acho que podia ter falado com ela, sim. Se a mãe não falava comigo, só restava a professora, não é? Ela até comentou comigo, muito depois: — Por que não se abriu comigo, Taís? Por que não confiou em mim? Confiar... Puxa, seria tão bom se eu pudesse mesmo confiar em alguém! O meu sossego acabou desde aquele beijo. Quando eu pensava no Gelcimar, ficava vermelha, me subia um calor! Tinha vontade de fugir dele, mas ao mesmo tempo uma vontade louca de ficar perto. Passei a viver só em função do Gelcimar... Ele percebia e me olhava todo sorridente, os olhos azuis brilhando. Quando a gente ficava sozinho, ele vinha, me abraçava e beijava. Abraço cada vez mais apertado, beijo cada vez mais demorado. Eu pedia: — Para, Gelcimar, o pai pode chegar... — Ih, ele tá longe, no serviço. — Então a mãe... — Pior ainda, ela só chega de noite. — Os meus irmãos... — eu suplicava. — Eles só vêm pra dormir, fica sossegada, Taís. Vem sentar aqui no sofá, vem... Eu ia. E então ele me abraçava e beijava mais. Vou ser sincera, eu gostava. Mas gostava de um jeito meio sem jeito, mas com muito medo que a mãe ou o pai chegassem e me vissem beijando o Gelcimar. Acho que eu caía durinha no chão. De noite eu dormia mal, me sentia assim esquisita porque nunca tinha feito nada escondido do pai e da mãe. Mas era tão bom! Uma coisa tão boa não podia ser ruim, podia? Um dia, de tão aflita, até tentei conversar de novo com a mãe. Ela tava passando roupa: — Dá pra gente conversar, mãe? Só um pouco? — Fala rápido que eu tenho muita coisa pra fazer, Taís. Tinha de ser uma conversa meio comprida. Rápido não dava. — Só um pouco, mãe, vai? — Que foi, tá precisando de alguma coisa? Mais material escolar? Essa escola pensa que somos ricos? — Não é material escolar, não, mãe, é outra coisa... — Que coisa? — a mãe empilhava a roupa passada sem paciência. — Você tá doente? — Doente? Não, não tô, não. — Dor de dente? — Também não. — Algum problema lá na escola? Não me diga que por causa daquelas suas coleguinhas que só falam em artista de novela você não vai passar de ano... — Não é isso, não, mãe, é outra coisa... — Me deixe trabalhar, menina. Vá cuidar da sua obrigação. Ponha o feijão de molho pra mim. Nunca dava pra conversar com a mãe, nunca mesmo. E com a dona Márcia eu tinha vergonha. O que eu ia dizer pra ela? "Olha, dona Márcia, eu tô gostando do meu primo, aquele que mora lá em casa, o Gelcimar. Ele tem vinte anos, é muito bonito e vive me abraçando e beijando, dando uns amassos... Isso tá errado?" Ah, eu não tinha coragem, não. E se eu falasse com a Cejana e mandasse ela perguntar pra mãe dela? Ou pra Miracê ou a Deolinda? Elas sabiam menos do que eu, mas... Quem sabe. Tentei me abrir com elas. Quase caíram: — Nossa, cê tá namorando um homem tão mais velho... É bom ou ruim? — perguntou a Cejana. — Os dois — eu disse. — Tem horas que eu gosto, tem horas que tenho medo... — E o que ele... faz? — quis saber a Deolinda. — Dá beijo que nem nas novelas? A Miracê então nem falava, de tanta ansiedade. — Igualzinho. Mas eu tô ficando com medo... — Medo de quê? — disse a Deolinda, bancando a sabida. — Eu já disse que beijo não tem perigo. A minha irmã...
  • 5. Eu sei — falei. — Mas quem garante? — Ah, garantir eu não posso — concordou a Deolinda. — Só se eu perguntar de novo pra ela... Finalmente a Miracê abriu a boca: — E do que é que você tem medo? — Eu nunca tive namorado antes, né? — desabafei. — E ele tem vinte anos. Mas nunca ia fazer nenhuma barbaridade comigo, afinal, eu sou prima dele... — Que barbaridade? — a Cejana engoliu em seco. — Sei lá, transar... Eu não sei bem como é que é isso... — Transar? — a Miracê até arregalou os olhos. — Por enquanto a gente tá só ficando: dando beijos, abraços, uns amassos... agora, transar como marido e mulher, como será? A Cejana suspirou fundo e entregou: — Um dia eu entrei de supetão no quarto do pai e da mãe. Eles tavam abraçados, lá na cama. Só que, no escuro, não deu pra ver direito... — Abraçados de que jeito? — aquilo me interessou muito. — Ué, abraçados — disse a Cejana. — Parecia que o pai tava por cima da mãe... Mas eles me deram uma bronca e me mandaram sair do quarto. Deviam estar transando, só pode ser isso. — Eu precisava saber com certeza... — Pergunte pra sua mãe — disse a Deolinda. — É o único jeito. Ou então pra dona Márcia... Ou pro seu primo. — A mãe não fala nada, tá sempre ocupada. Com a dona Márcia eu morro de vergonha. Com o Gelcimar... Ele vai pensar que sou uma tonta. Nem morta! — Então, como vai ser? — quis saber a Miracê. — Vou ter de descobrir sozinha. Vocês também, que bando de bobocas. Não sabem nada. Droga de turma que eu arranjei! Eu estava apaixonada pelo Gelcimar, meu diário. Já não imaginava a vida sem ele. Era um amor tão bonito, como nos filmes ou romances... Dormia pensando nele e sonhava com ele... Nós dois sempre juntos, morando numa casa com jardim na frente, onde esperava ele voltar do trabalho... Quando acordava, meu primeiro pensamento também era pro Gelcimar: ainda está no serviço, que pena, só vou ver ele na hora do almoço... Deitada na cama, ficava fantasiando, sabe, meu diário? Era como se o Gelcimar estivesse ali me abraçando, beijando... Até sentia o calor dos seus braços e a doçura dos seus beijos... Aí, me dava um; Pra lá de boa, e eu flutuava... Dep uma sensação esquisita, Depois, uma moleza! Nem acreditava como podia ter vivido tanto tempo sem conhecer alguém tão maravilhoso como o Gelcimar! tava me esperando, lá no sofá da sala. Perguntei: — Tá com fome, Gê? Quer que faça o seu prato? Acho que tem dobradinha que você gosta. Ele não pareceu se importar muito. Me olhou de um — Ué, não quer almoçar? " — Depois, a gente tem muito tempo. Agora vem cá que eu quero te mostrar uma coisa... Puxa, pensei, será que é um presente? Corri pro sofá. Nem deu tempo de sentar, o Gelcimar me agarrou forte, me deu o maior beijo. Quase que perco até o fôlego: — Nossa, que foi que deu em você? — A gente já esperou demais, garota. De hoje não passa... — Passa o quê? — fiquei curiosa. O Gelcimar estava tão estranho, o olhar parado, eu nunca tinha visto ele assim... — Me beija, me abraça! — pediu, e me agarrou de novo. No começo até gostei, depois fui achando que já era demais: — Pára, Gelcimar! Um dia, cheguei mais cedo da escola e o Gelcimar jeito engraçado: — Vem cá, vem, gracinha... Mas ele não parou de jeito nenhum. Tinha a voz rouca e respirava de um jeito gozado. Então ele começou a tirar a minha roupa... — O que você tá fazendo, Gelcimar? — Você vai gostar, nenê, eu prometo. Fique calma, ninguém vai chegar. A gente tem todo o tempo do mundo. O Gelcimar desabotoou a minha blusa e começou a bolinar os meus seios... Aí tive uma sensação que nunca tinha tido antes... Me deu um calor, o Gelcimar falando no meu ouvido: — Não tenha medo, Taís, vai ser bom... — A gente sempre dava uns amassos, sentado lá no sofá, mas agora o Gelcimar fazia força pra eu deitar. Ele era forte e o calor que vinha do corpo dele era tão gostoso... Então fui deitando devagarinho... enquanto ele continuava tirando a minha roupa... Fiquei meio confusa: seria real o que estava acontecendo comigo? Depois o Gelcimar também tirou a roupa dele bem na minha frente... Brincadeira: foi a primeira vez que eu vi um homem nu na minha vida! Já sei o que você vai dizer, meu diário! E os seus irmãos? Acontece que sou a caçula lá de casa e, depois que eles cresceram, nunca mais ficaram sem roupa na minha frente, nem eles nem o pai. Também trancavam sempre a porta do banheiro. E, mesmo com toda a minha curiosidade, nunca pude ver alguém pelado. Então, o Gelcimar ali, nu, na minha frente, foi mesmo um choque! Ao mesmo tempo me bateu uma curiosidade! "O que é que o Gelcimar ia fazer, afinal?" Quando comecei a me perguntar, ele pediu: — Quietinha, Taís, vai ser uma boa... pode crer, gostosinha... Então o Gelcimar veio vindo, vindo... Aquilo até parecia um sonho... Ele deitou em cima de mim e escutei o coração dele batendo forte de encontro ao meu peito. Então uma coisa começou a fazer força como se quisesse entrar dentro do meu corpo. Eu não sabia direito o que era. Mas sentia uma sensação esquisita, de prazer e medo ao mesmo tempo... Como se eu fosse outra pessoa. Aí, de repente, senti uma dor, e aquela coisa agora se mexia dentro de mim, enquanto o Gelcimar me abraçava cada vez mais forte... Nem sei dizer quanto tempo demorou aquilo... Parecia que o tempo tinha parado... Até que a coisa parou de mexer... O Gelcimar foi se acalmando, mas ficou ainda um tempo sobre mim... Depois se levantou e disse: — Foi bom, não foi, Taís? Mas, olha lá, não conta pra ninguém, ouviu? — Você não quer que eu conte o que aconteceu aqui, é isso?
  • 6. — Você não vai contar nada, Taís, porque não aconteceu nada, entendeu? — ele parecia preocupado. — Entendi. — Falei, só pra encerrar aquele papo meio besta. Mas não tinha entendido coisa nenhuma. Só sei que escorria um leite meio aguado pelas minhas pernas, além de uma mancha de sangue no sofá. Corri pra me lavar, e depois lavei também o sofá. A mãe tinha feito prestação pra comprar ele. Se encontrasse sujo de sangue, ia me dar a maior bronca! Desde esse dia, fiquei cismada. Por que o Gelcimar não queria que eu contasse pra ninguém o que havia acontecido entre a gente? Ele gostava de mim e eu dele, que importância podia ter? Mas o que me encucava mesmo era saber que coisa era aquela... Isso porque eu lembrava a história dos pais da Cejana. Então uma pergunta começou a martelar na minha cabeça: "Será que eu e o Gelcimar tínhamos feito igualzinho o que fazem marido e mulher?" Só de pensar me dava um frio na espinha! O Gelcimar tinha razão. Nunca que eu ia contar pra mãe ou pra dona Márcia. Pro pai nem pensar. Pras meninas... Talvez... Se tivesse coragem. Eu nem sabia se ia ter. Agora o Gelcimar ficava sempre me esperando, quando eu voltava da escola: — Vem cá, vem, Taís! Às vezes eu ia porque ainda gostava dele. Mas ele não me levava mais pra passear, como antes. De repente, ficou com cara de todo mundo. Não sei por quê, mas acho que tinha perdido a graça, sabe como é? Ele até percebeu: — Não gosta mais de mim, Taís? — Gosto. — Só gosta? — Sei lá, acho que gosto. — Pois eu gosto muito de você. — Quanto? — Muito, até demais. Foi só quando vi a Cejana comprando absorvente na farmácia que lembrei: — Nossa, nem fiquei menstruada este mês. Será que é assim mesmo? — Pois a minha irmã menstrua todo mês e fica numa alegria — disse a Deolinda. — Ué, alegria por quê? — perguntou a Miracê. — É tão chato e ela gosta? — Deve gostar, né? — a Deolinda fez um muxoxo. Apesar de ter a minha idade, ela nem tinha ficado menstruada ainda. Nem a Miracê. A mãe, em casa, também reparou: — Não pede mais absorvente, Taís? — Não fiquei menstruada, mãe. — Como, não ficou? — Era impressão minha ou a mãe parecia preocupada? — Não fiquei, mãe. — Vai ver tá precisando de vitaminas. Se falhar o mês que vem, levo você no médico do posto. Mas a minha menstruação não veio mais. Nem no mês seguinte, nem no outro... A mãe acabou esquecendo de me levar ao médico. Ela nunca tinha tempo pra nada, pô, uma correria de vida! Então comecei a passar mal na escola. Um enjôo no meio das aulas, tonturas... Às vezes até vomitava na classe ou no recreio. Um sono... Parecia que eu não dormia nunca. E percebi também uma coisa engraçada: a minha barriga estava crescendo. Como se tivesse engolido um balão, desses que a gente vai enchendo de ar, bem devagar... Cada vez que eu me olhava no espelho, tomava um susto! O que estava acontecendo comigo? Até que a dona Márcia, a coordenadora da escola, mandou me chamar lá na sala dela: — Estou preocupada, Taís. Primeiro você fica esquisita, depois começa a passar mal na escola e ultimamente vem engordando. Houve alguma coisa, minha filha? — Não, por quê? — Ora, por nada — disse a dona Márcia. — Sua menstruação está vindo certinha? Até achei gozada a pergunta. O que é que a dona Márcia tinha a ver com isso? — Pra falar a verdade, não tem vindo, não. A mãe até falou em me levar lá no posto e... A dona Márcia ficou meio pálida e eu pensei: "Quem devia estar com algum problema era ela, não eu". — Tá se sentindo bem, dona Márcia?
  • 7. — Tudo bem, minha filha, vou chamar sua mãe pra gente conversar. Mas, antes, me diga: você tem namorado? Me finji de tonta. Eu não podia entregar o Gelcimar assim de bandeja. — Mais ou menos.