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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
      DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV
              COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS




           GLEIDIANE PINTO DA SILVA CUNHA




O PENAR E A PENA: uma investigação policial sob a ótica do
                 discurso feminino




                      Conceição do Coité
                            2011
GLEIDIANE PINTO DA SILVA CUNHA




O PENAR E A PENA: uma investigação policial sob a ótica do
                 discurso feminino




                      Monografia apresentada ao Departamento de Educação
                      da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), curso de
                      Letras Vernáculas, como parte do processo avaliativo
                      para obtenção do grau de Licenciada em Letras.

                      Orientadora: Profa. Ms. Eugênia Mateus de Souza




                      Conceição do Coité
                            2011
O verdadeiro homem quer duas coisas: perigo e jogo. Por isso quer a
mulher: o jogo mais perigoso.
Friedrich Nietzsche


A história da mulher é a história da pior tirania que o mundo
conheceu: a tirania do mais fraco sobre o mais forte.
Oscar Wilde

A mulher é o negro do mundo. A mulher é a escrava dos escravos. Se
ela tenta ser livre, tu dizes que ela não te ama. Se ela pensa, tu dizes
que ela quer ser homem.
John Lennon


Se perdermos a ilusão do conhecimento, se só existem verdades
simuladas, o que seria para nós desvendar um mistério? O que seria
decifrar um enigma? É a tarefa infinita de impor uma interpretação
sobre outra interpretação, o que, não se faz sem violência.
Vera Lúcia Follain de Figueiredo
DEDICATÓRIA


Poderia nesta ocasião usar uma expressão cristalizada do tipo: “Dedico este trabalho a todos
que de alguma maneira contribuíram para minha formação”. No entanto, prefiro apontar
pessoas, que são especiais e ajudaram-me de forma direta a chegar a este momento.

Então...

Dedico este trabalho à minha irmã, colega, amiga... enfim, companheira inseparável, Eliziane,
que partilhou todos os momentos acadêmicos, ora de sufoco, ora de sucesso. Agora, ao
relembrar tudo o que juntas vivemos, vejo o quanto foi importante a sua presença durante esse
percurso. E apesar de tantas “Marias” em sua vida, colaborou de forma satisfatória para que
este estudo fosse concluído.

Dedico, principalmente, à minha mãe, Maria Amélia, que, sempre presente, ouviu meus
lamentos, acalentou meus soluços desesperados, só não pensou comigo meus trabalhos,
minhas leituras, porque, (in)felizmente somente eu poderia fazê-los. Entretanto, esteve ali,
cativa, cuidando de mim, nessa escalada íngreme que subi com muita garra, sentindo sua mão
me sustentando.
AGRADECIMENTOS


A Deus, meu maior mestre, refúgio e renovação. Proporcionou-me esta oportunidade de
conhecer pessoas excelentes com quem houve uma troca efetiva de conhecimentos e a
conquista de alcançar mais este nível de conhecimento e formação, além da graça de teclar
tantas horas a fio e conseguir transpor, ao menos, parte do que me propusera a fazer nesta
pesquisa. O que seria de mim sem a fé que tenho Nele?

A minha mãe, pelo incentivo e cuidado próprio do seu devir efêmero e constante, na sua
simplicidade. Ao meu pai que, com seu ar sério, deixou brilhar nos olhos, muitas vezes, o
orgulho que sentia ao ter suas filhas em uma Universidade.

A minha irmã, Viviane, que, com suas doces palavras, assegurou-me conforto, acalmou-me
no desespero insistente, abriram-se o sorriso da confiança, aquiesceu meu desassossego
contínuo e clarearam o fundo do túnel onde às vezes me encontrava mediante excesso de
leituras e escassez de vontade do relógio em se segurar.

A minha Vó (Terezinha) que, com sua fé inabalável e carinho ilimitado, não se intimidou com
a quantidade de orações e preces a fazer a cada etapa difícil a ser vencida por mim.

Ao meu sobrinho Hiago, disposto à beleza da inocência juvenil, pelos favores e recados
dados, pelas horas quando me fazia rir, embora momentos não propícios à alegria (no caso, a
minha) porque nuvens pesadas assombravam minhas horas com o desespero de quem corre
contra o tempo...

Ao meu esposo, pelo apoio e torcida para que este curso terminasse logo e mais, por
compreender, mesmo com dificuldade, tantas ausências e desatenções;

Ao meu cunhado (Lêu), que no início da minha vida acadêmica carregou-me, literalmente,
nos braços, quando pessoas negaram-me auxilio.

E em especial, à minha Professora orientadora Eugênia Mateus, que me mostrou a beleza da
arte literária através de seu apoio e inspiração no amadurecimento de conceitos e informações
que me levaram a escrita deste trabalho. Mostrou-me também que “penar” é preciso e nos
ajuda, através da desse processo „quase‟ catártico, chegar à “pena”. Foi sofrido, mas... eu
escrevi não com tinta carmim. Brinquei com o preto no branco... uma delícia! Uma
investigação nada convencional!
RESUMO
O estudo na dimensão do olhar patriarcalista versus a transgressão sustenta-se no objetivo de
mapear a construção da escrita de autoria feminina enquanto narrativa policial, apoiado n‟Os
seios de Pandora, de Coutinho, como corpus da pesquisa. Narrativa contemporânea, propícia
à representação dos discursos sobre a mulher - objeto do olhar na literatura de todos os
tempos, porém restrita, na maioria das vezes, à submissão -, o romance retrata o feminino
literário, ameaçado por indicadores, cuja compreensão distancia-se do reconhecimento do
processo antropofágico (HELENA, 1983) pelo qual passaria a mulher. A revelação do sujeito
sob o penar dá-se através de um discurso em crise (CUNHA, 2001) e, pelo desenho autoral
(TELLES, 1992) ambíguo da pena. A questão de gênero (CONFORTIN, 2003; ORSINI,
2003) sobressai de uma caixa mitológica onde Pandora retrata desafios literários que, se não
mata, pode condenar pelo julgamento social, o qual Coutinho intervém, alegoricamente, com
narração sob gênero policial (TODOROV, 2006; PONTES, 2007) para as pistas da morte de
Tessa Laureano, a pintura da transgressão, com a maestria da escrita literária de retórica
convincente plena de literariedade exigida pela arte. Com pesquisa bibliográfica, mais ou
menos precisa, descortinou-se a aventura de um estudo desafiador justificado pelo interesse de
reiterar novas perspectivas mediante ingresso feminino no mundo público, sem
necessariamente, desvencilhar-se do privado. A autora, pois, revista, implicitamente, a
história da opressão feminina e o faz através do gênero policial, a fim de provar, de pena em
punho, que o ser mulher não mais segue padrões preestabelecidos de um penar sem fim.


PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Feminino. Narrativa policial.
ABSTRACT

The study on the dimension of the patriarchalist gaze versus the transgression is sustained in
the goal to map the construction of the writing of feminine authorship while police narrative,
backed in ' Os seios de Pandora, Coutinho, as search corpus. Contemporary narrative,
propitious to the representation of speeches about the woman-object of the gaze in literature
of all time, though restricted in most cases, the submission, - the novel depicts the literary
feminine, threatened by indicators, whose understanding distances from the recognition of the
anthropophagic process (HELENA, 1983) through which the woman would pass. The
revelation of the subject under the languishing takes place through a discourse in crisis
(CUNHA, 2001) and, by authorial drawing (TELLES, 1992) ambiguous sentence. The genre
issue (CONFORTIN, 2003; ORSINI, 2003) stands out from a mythological box which
Pandora depicts literary challenges which, if not kill, you can condemn by social trial, which
Coutinho intervenes, allegorically, with narration in police genre (TODOROV, 2006;
PONTES, 2007) to the vestiges of death of Tessa Laureano, painting of transgression, with
the mastery of literary writing of persuasive rhetoric full of literariness required by art. With
bibliographic search, more or less precise, opened up the adventure of a challenging study
justified in the interest of reiterate new perspective through the participation of women in the
public world without necessarily, extricate itself from private. The author, therefore, revised,
implicitly, the history of women's oppression and does so through the genre police, to prove,
pen in hand that woman being no longer follows predetermined patterns of an endless
languishing.



KEY-WORDS: Discourse. Feminine. Police narrative.
SUMÁRIO



INTRODUÇÃO
Primeiras pistas ...................................................................................................................   08

1   O PENAR E O OLHAR SOBRE A MULHER: narrativa literária e o discurso
    histórico ......................................................................................................................   11
1.1 Mulher e sociedade burguesa: objeto de prazer e de escrita ......................................                                  12
1.2 Antropofagia e o deglutir da imagem feminina no século XX ...................................                                      16
1.3 Tessa Laureano e a contemporaneidade: a pintura de uma revelação ........................                                          20

2       A PENA: a revelação de um discurso em crise .........................................................                          25
2.1     Sônia Coutinho e o desenho discursivo da mulher contemporânea ...........................                                      26
2.2     A ambiguidade da pena na construção do eu feminino ..............................................                              31
2.3     Os seios de Pandora: uma questão de gênero ............................................................                        33

3       PANDORA E SUA CAIXA: as surpresas da narrativa de Sônia Coutinho .............                                                 37
3.1     Seios e Pandora: pistas de um gênero policial ...........................................................                      38
3.2     Tessa Laureano e a morte na Literatura feminina ......................................................                         45
3.3     Um caso para estudo: a transgressão literária e a feminina ........................................                            48

CONCLUSÃO
Desvendando pistas... a queda do penar e a lição deixada pela pena ..................................                                  51

REFERÊNCIAS ................................................................................................................           54
8



INTRODUÇÃO
Primeiras Pistas


       A situação da mulher na sociedade brasileira é um dos temas que tem despertado
muito interesse aos pesquisadores de diversas áreas das Ciências Humanas. Com relação à
Literatura, as mulheres, através da escrita, firmaram-se no amplo universo literário e a
principal mudança pela qual atravessou essa autoria é o fato de essas escritoras
conscientizarem-se quanto a sua liberdade de expressão.
       Este trabalho pretende adentrar discussões que se propõem a analisar, discursivamente,
a escrita feminina em textos literários, bem como ressaltar a situação da mulher enquanto
personagens de romances e como ser social perante uma sociedade preconceituosa. Para tanto,
foi tomado como objeto de pesquisa o romance Os Seios de Pandora, da escritora baiana
Sônia Coutinho, com o objetivo de mapear a construção da escrita de autoria feminina
enquanto narrativa de gênero policial.
       O trabalho foi esquematizado a partir dos seguintes questionamentos: Seriam Os seios
de Pandora uma narrativa contemporânea marcada pelo espaço urbano propício às
transgressões da escrita feminina que aponta para o gênero policial? Quais elementos
utilizados por Sônia Coutinho na construção de Os Seios de Pandora fazem a obra aproximar-
se do gênero policial sem desqualificar o texto literário? Estariam os elementos de
literariedade transpostos na escrita de Os seios de Pandora como um jogo alegórico
afirmativo da qualidade da escrita feminina tanto quanto a masculina?
           Diante desses questionamentos foram levantadas hipóteses que serviram de base
para o desenvolvimento da pesquisa. Nessa perspectiva, supôs-se que Os seios de Pandora
estruturam-se em forma de gênero policial, provavelmente, como estratégia de desvendar
tanto o grande mistério que rodeia o crime de Tessa Laureano – uma das protagonistas da
narrativa – como também buscar pistas para desmascarar a realidade de uma escrita nem
masculina nem feminina, mas aquela que transpira arte, distante da visão da escrita de gênero
ou escrita feminina. Sônia Coutinho, talvez, tenha se utilizado de elementos comuns ao
próprio texto literário, para a confirmação de uma escrita consistente de arte e beleza, porque
denuncia ao passo que desperta o prazer do texto, principal função da literatura. E, ainda, os
elementos de literariedade estariam transpostos na escrita de Os seios de Pandora para criar a
dimensão artística através da alegoria e, assim, dissipar um jogo segundo o qual começa a
história de mulher ativa no meio social, não para se colocar à frente da escrita masculina, mas
9



para igualar-se ao sujeito autor, haja vista a impregnação, no pensamento social, sobre a
inferioridade intelectual feminina.
       Para responder a tais questões, fez-se a releitura e análise da obra com base em críticos
que discutem a escrita literária de Sônia Coutinho, a escrita de autoria feminina, em geral,
bem como a composição literária, além de textos que trazem abordagens a respeito do gênero
policial atrelado a escrita da mulher.
       Utilizou-se a pesquisa bibliográfica para o desenvolvimento desse estudo, pela
natureza do objeto de trabalho. O trabalho estrutura-se em três capítulos por onde tanto a
revisão bibliográfica como a fundamentação teórica percorreram junto à análise da obra, uma
vez que o constante diálogo com autores que discutem sobre o mesmo tema facilitou a escrita
do texto.
       No primeiro capítulo discute-se o olhar que se tem sobre a mulher em narrativas
literárias, tanto como personagens quanto escritoras, além de ilustrar a influência do discurso
histórico na construção literária, haja vista a arte acompanhar todas as transformações sofridas
pela sociedade. A figura feminina, resultado de um processo de antropofagia, revela-se sob
diferentes formas e épocas, contemporâneas ou não aos autores, e, pari passu, ganha voz e
constrói seu próprio discurso.
       O segundo capítulo enfatiza a questão do discurso feminino empregado no processo de
escrita literária e o que o diferencia ou não da escrita masculina. Nesse momento, discute-se o
conceito de autoria feminina e as condições sob as quais a autora Sônia Coutinho escreve seus
textos e abre espaço para as discussões de gênero, além de apresentar personagens que
buscam uma identidade não mais atrelada a parâmetros patriarcalistas. Uma escrita de bases
literárias descrentes do gênero do criador para qualificar a arte.
       No terceiro capítulo expõe-se uma discussão a respeito dos artifícios literários
utilizados por Sônia Coutinho que aproximam a obra do gênero policial sem desqualificar o
texto literário, já que muitos críticos consideram o romance policial como uma degradação da
literatura. Percebe-se, pois, a transgressão tanto literária quanto feminina nos textos da autora,
ao tratar de temas polêmicos que despertam atenção do leitor, como é o caso da morte –
característica recorrente em textos de autoria feminina, como alegoria à divisão que condena
os desafios encarados pela mulher.
       Pretende-se, com esse estudo, o acréscimo das discussões que motivaram o
desenvolvimento da pesquisa e a contribuição à abertura dos horizontes sobre o estudo crítico
da produção literária brasileira de autoria feminina, mais especificamente, na Bahia, a fim de
10



atualizar as leituras sobre o tema. Almeja-se, ainda, ampliar os estudos em torno da obra e
Sônia Coutinho enquanto autora do campo de escritoras que discutem e criam imagens de
mulheres na ficção brasileira contemporânea que a cada dia introduz novos conceitos e
mudanças em sua forma de escrever, como é o caso da escrita de romances no gênero policial.
       Atualmente, o discurso que se faz sobre a mulher não é mais atrelado a padrões
convencionados socialmente, uma vez que, através da escrita de textos, sejam eles engajados
em diferentes gêneros literários, as mulheres romperam com o processo de silenciamento ao
qual foram submetidas. Ao discutir a questão de autoria na contemporaneidade, a figura
feminina agora deve ser encarada como um sujeito que produz seu próprio discurso, seja em
prol da defesa de sua classe, seja para mostrar a sua capacidade intelectual de escrita que, por
muito tempo, fora subestimada.
11



1   O PENAR E O OLHAR SOBRE A MULHER: narrativa literária e o
    discurso histórico


           A narrativa está irrestrita à literatura. Sabe-se que tanto a história quanto a
literatura sempre andaram por caminhos entrecruzados. Um entrecruzamento marcado, por
exemplo, nos romances históricos, embora se saiba que por mais que a ficção ou a história
retomem o passado, ele surge apenas por recomposição. É um tempo fora do alcance, apenas
retratáveis os aspectos sociopoliticoeconômicos de determinado tempo e/ou lugar.
           Há apenas a chance de os olhos da atualidade enxergar o passado. Desse ângulo,
pode-se entender o compromisso maior da história com a aproximação da realidade. À
narrativa literária cabe a liberdade da imaginação, à ficcionalidade descomprometida com
verdades, mas com a plurissignificação por meio de jogos verossímeis, isto é, a possibilidade
de existência. Este processo se dá mediante uma estruturação impregnada de subjetividades.
Seja sob discurso histórico ou narrativa literária, as sociedades estampam-se na escrita e a
existência humana e seus comportamentos encontram-se retratados pelas palavras figuradas
num jogo alegórico próprio de representações do real.
           A arte literária, contudo, procura aproximar o leitor do fato narrado, porém
desinteressada da forma veraz de como o receptor olhará para a narrativa, por exemplo. Os
jogos linguísticos produzem os seres de papel plenos de vida somente no espaço do texto
assim como todos os elementos que se apresentem. Por detrás de seu discurso, pois, haverá
uma carga crítica a ser considerada.
           Com estas colocações, entende-se o quanto o penar feminino demorara tanto para
sucumbir. Autoria masculina viveu sob a prescrição de uma sociedade patriarcalista que
colocara a mulher em um espaço para ser ora venerada ora submissa. Como uma voz sufocada
na garganta poderia manifestar-se com toda a repressão existente?
           Uma “falha” patriarcalista?! Permitiram às senhoras das fragilidades sociais a
leveza da escrita e com que leveza pode-se desenhar todo o manifesto do senhorio feminino.
A pena encontrou novas mãos cujas habilidades puderam mostrar ao mundo o pensamento
feminino que, sob a proteção da arte de criação literária, recompôs um legado histórico para
ser avaliado por olhos leitores perspicazes para alcançarem as críticas ali desenhadas e à
espera de algumas reconsiderações acerca de um legado obscurecido pelo discurso sobre a
fragilidade e submissão da mulher.
12



             Desse modo, Sônia Coutinho adequa-se a esta modalidade de escrita que, ao
lançar ao público suas histórias, deixa sempre por conta das variadas possibilidades de leitura
se repensar a questão de gênero dentro e fora das narrativas. A mulher objeto de desejo e
prazer, com o poder da escrita, mostra-se e como um processo antropofágico pode colaborar
quanto ao repensar a mulher do século atual e como suas revelações chegam à sociedade.



1.1 Mulher e sociedade burguesa: objeto de prazer e escrita


             Desde Platão e Aristóteles até os tempos atuais, a literatura, enquanto arte,
acompanha todas as transformações da sociedade. Diante desse aspecto, é válido salientar que
inúmeras mudanças nas estruturas sociais marcaram o grande processo de expansão mundial
no século XIX, e a literatura inclui-se nesse processo transformador.
             Nesse período, a sociedade impactada vê surgir em seu seio grupos determinados
a conquistar espaços nos mais variados segmentos sociais. Desde trabalhadores aos grupos
feministas vão-se cortinando situações inusitadas ao que se registrara até então. Surgem
movimentos sociais femininos apoiados pela expansão da imprensa e pelo surgimento da
“Nova mulher” (TELLES apud DEL PRIORE, 2007, p. 402). E como consequência desses
avanços, surgiram as primeiras escritoras.
             É possível dizer que para a Literatura, o século XIX é considerado o momento do
romance, quando se exclui, das narrativas, enredos que envolvem mitologias, lendas e
histórias do passado para empregar acontecimentos novos e cotidianos, como a prosa da vida
doméstica – a inserção da figura feminina como protagonista das histórias e não como apenas
objeto de companhia ao homem -, fato que contribui para a edificação da supremacia das
ideias burguesas. Com novos enredos, há também uma mudança no quadro de leitores desses
textos. Esse público aumenta e dentro dele se encontram em grande quantidade as mulheres
burguesas.
             O perfil das mulheres assim como o perfil da Literatura, em geral, modifica-se de
acordo aos interesses e às transformações sofridas pela sociedade. Na Literatura, a mulher,
como protagonista de romance foi apresentada a partir de parâmetros impostos por uma
sociedade patriarcal, onde era predestinada a ser objeto moldado para obedecer e satisfazer às
expectativas dos pais e, posteriormente, as do marido.
             A figura da mulher na literatura, historicamente, como personagem – elemento
constitutivo do texto - foi revelada sob diferentes formas, principalmente, pelos movimentos
13



literários que estabeleciam uma representação de mulher para cada época vivenciada pelos
escritores. No Romantismo, idealizou-se a figura feminina, como anjo, musa ou criatura -
objeto de escrita - nunca criadora. As românticas e angelicais moças desse período eram o
estereótipo da pretensão burguesa. Orsini (2003, p. 87) enfatiza que os romances românticos
desenhavam mulheres heroínas, especiais, frágeis, meigas, virgens... dignas de serem amadas.
             Durante o Realismo e o Naturalismo, teceu-se um discurso objetivo sobre a
mulher por dois ângulos: um pela „força do bem‟, enquanto submissa e dedicada e outro pela
„força do mal‟ transgressora das atividades que lhes eram culturalmente atribuídas (TELLES
apud DEL PRIORE, 2007, p. 402). Neste período, as personagens femininas aparecem como
objeto de prazer. As mulatas retratadas nos romances como objeto sexual, símbolo de
sedução, estavam sempre ligadas a algum estereótipo pelo grande repúdio à figura negra na
sociedade. A Literatura, como representação do real, trouxe pelo Naturalismo a demonstração
de teses extraídas de teorias científicas 1, como por exemplo, a teoria da inferioridade dos
mestiços.
             Os escritores representavam, em seus romances, portanto, a figura feminina de
acordo com suas vivências. As ideias de Cândido (2000, p. 4-7) confirmam que toda escrita
do autor reflete sua concepção de mundo, sua ótica social, visto que, a influência do meio
afeta o comportamento das pessoas, e estas possuem uma enorme ação sobre o artista.
Enfatiza que a análise de uma obra deve observar a sua relação com o real, atentando-se para
o contexto e as condições de produção sob as quais foram escritos. Quando a análise da obra
observa o contexto social, externo e interno revertem-se, a fim de que elementos
extralingüísticos incluam-se como parte constituinte e de grande relevância na obra. A partir
dessa ênfase dada ao externo (social) ilustram-se os costumes, as ideias e as tradições da
época da escrita do texto. Interface história e ficção. Para confirmar essa interface, Gottschalk
(apud HUTCHEON, 1991, p.148), discute que a história é tridimensional. Ela participa da
natureza da ciência, da arte e da filosofia. E Hutcheon (1991, p. 150) ratifica: história e ficção




1
  Na segunda metade do século XIX, o “racismo científico” dominou vastamente o meio intelectual. Estas teorias
raciais desenvolvidas na Europa proclamavam a diferença qualitativa intrínseca entre as raças, e qual a “raça
branca” seria o estágio mais avançado do processo civilizatório da humanidade, e as demais raças (negros e
mulatos) seriam incapazes ou estariam ainda em estágio primitivo do desenvolvimento humano. Para estes
cientistas, a miscigenação formaria um ser mais desqualificado para a civilização do que qualquer raça pudesse
conceber. Na verdade, havia uma preocupação do povo brasileiro em ser branco, já que o brasileiro não possui
uma característica definida (COSTA, 2006, p.134-36)
14



são narrativas que se distinguem por suas estruturas e obtêm suas forças a partir da
verossimilhança2.
             Durante o período Realista da Literatura, muitos fatores influenciavam o destino
da mulher, como por exemplo, a classe social e a etnia. As moças não se casavam por amor,
mas para atender aos interesses familiares. Esse fator veiculava a condição de inferioridade da
mulher com relação ao homem. O espaço que lhe cabia era o do lar, e traições eram
“permitidas” somente para o marido, pois as esposas adúlteras tinham sua imagem maculada
diante da sociedade, principalmente, com moças de classe alta, preparadas somente para o
casamento, além de serem mulheres brancas ou descendentes. As mulheres pobres e mestiças
tinham um outro destino: eram conduzidas ao trabalho doméstico escravo ou à prostituição.
             Ao longo desse século, a temática feminina em romances de autoria masculina
cresceu de forma gradativa, pelo fato de as mulheres serem grandes leitoras desses textos.
Contudo, essa escrita masculina caracterizava-se pela defesa da honra feminina, da virgindade
das moças e da fidelidade das mulheres casadas e pela limitação do espaço doméstico visto
que a incompatibilidade entre casamento e vida profissional feminina sempre fora reforçada
no imaginário social. Argumentava-se que, com a prática de outras atividades, as mulheres
negligenciariam “seus” afazeres e sua atenção e cuidados para com o marido e filhos. Estes
aspectos eram usados para justificar a instabilidade do matrimônio, no entanto, muitas vezes,
essa instabilidade se dava pela incompreensão do cônjuge. Desse modo, todas as mulheres
foram representadas para revelar uma prática idealizada como própria da condição feminina:
aceitação das regras que lhes eram impostas.
             Segundo Kehl (1998, p. 108 apud PATRASSO e GRANT, 2007, p. 135), a
literatura do século XIX visava criar, “os códigos burgueses, de si e do lar, que compuseram o
imaginário feminino sobre o casamento, moldando as expectativas românticas do amor-paixão
pelo lado da literatura [...]”. Nesse contexto, pode-se observar a grande dificuldade da mulher
em criar o próprio discurso a partir de suas representações desse século. Por esse aspecto, é
possível dizer que, em relação à escrita de autoria feminina, o preconceito cresceu se
comparado à mulher apenas como protagonista de romances. Mesmo representadas de modo
tão restrito aos acontecimentos sociais, as mulheres necessitaram romper com o processo de
silenciamento e exclusão que sofreram ao longo da história literária. Desse modo, no Brasil, o

2
  O entendimento sobre verossimilhança é fundamental para o estudo da Literatura. Aristóteles postula que
verossimilhança “não é o oficio do poeta narrar o que aconteceu. É sim, o de representar o que poderia
acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (ARISTÓTELES apud
ALONSO, 2005).
15



surgimento de mulheres escritoras, em especial, no Brasil ocorre a partir do século XIX, em
decorrência do crescimento da imprensa e do início de movimentos a favor dos direitos
femininos.
             A criação literária participou da onda de movimentos em prol da causa feminina, e
a condição da mulher revelou-se um tema de grande repercussão em muitas narrativas,
principalmente, as de autoria feminina, que se expandiram no universo cultural brasileiro e
apresentam características peculiares no que diz respeito à linguagem, ao gênero e aos
artifícios utilizados por cada escritora ao trazer à tona a dialética da ideologia dominante: “Por
meio da Literatura que produzem, as mulheres hoje não só resgatam a própria história
passada, como afirmam confiantes a condição de sujeito atuante no presente com vistas a um
futuro pleno” (PELLEGRINI, 2008, p. 22). Contudo, reafirma-se a postulação de Helena
Parente Cunha (2003, p. 25): a luta da mulher foi intensa para que pudessem ingressar no
terceiro milênio “caminhando com seus próprios pés”, ouvindo um discurso novo pela sua
própria voz.
             A trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil é composta de um grupo
minoritário. Segundo Alves (1999), ao final do século XIX, as publicações de escritoras, em
especial na Bahia, para chegar ao domínio público, tinham que vir protegidas pelo aval do pai,
irmão ou marido ou de um grupo de poetas ou críticos. Há constatações de que algumas
escritoras de classe média da sociedade procuraram proteção e respeito através da Igreja, para
se resguardar da crítica aos escritos e recepção do público leitor.
             É possível dizer que os primeiros textos produzidos em meados do século XIX
reflitam a realidade da sociedade brasileira e os papéis exercidos pelas mulheres através de
uma reprodução dos padrões da época socialmente convencionados. Trata-se de obras que
representam mulheres submissas aos valores patriarcais que encontram sua realização no
casamento e na maternidade. Telles (2000, p. 761 apud PATRASSO e GRANT, 2007, p. 142)
salienta: “Antes a mulher era explicada pelos homens… [...] Agora é a própria mulher que se
desembrulha, se explica”. Essa ideia mostra que, a constante busca por uma escrita feminina
com identidade própria vem se firmando, contudo em processo lento assim como todas as
conquistas femininas ao longo da história, o que confirma a ideia de Luís:



                        Há uma escrita de mulheres. Confusa e embaraçada como elas. [...] No mais
                        das vezes, as mulheres escrevem segundo o modelo dos homens. [...] Agora
                        começa a haver uma literatura feminina, uma forma de a mulher se
                        interrogar; mas inda só balbucia (1985 apud COELHO, 1999, p. 9).
16



              A escrita feminina brasileira amplia-se através de Rachel de Queiroz, no entanto,
Clarice Lispector é que passa a ocupar um lugar significativo no cenário literário do Brasil. “É
uma espécie de abertura de trilhas fundamentais” (PATRICIO, 2006, p. 19). A partir da
década de 70, outras escritoras começaram a se impor diante de tal situação, a exemplo de
Sônia Coutinho, escritora baiana que se inseriu no contexto da Literatura a partir de 1966 e
escreve suas histórias comprometidas com a realidade da mulher, não apenas como reflexo da
situação na qual se encontram, mas também como visão crítica.
              É possível salientar que atualmente, a mulher que se expressa através da ficção
mostra uma consciência crítica acentuada e um tom questionador dos modelos femininos de
submissão herdados da sociedade patriarcal (PELLEGRINI, 2008, p. 24). A ficção feminina
aparece agora como a representação de um espaço simbólico em que expõe a nova condição
social para uma mulher contemporânea. Uma das questões teóricas que tem sido debatida pelo
surgimento da mulher como um novo sujeito literário é a da especificidade de sua escrita.
Lúcia Castelo Branco enfatiza que as produções de escrita feminina incomodam porque
produzem polêmica e se distinguem dos demais “por possuírem um tom, uma dicção, um
ritmo, uma respiração próprios” (BRANCO, 1991, p. 13).



1.2 Antropofagia e o deglutir da imagem feminina no século XX


              O Manisfesto Antropofágico (Antropofagia) 3 foi uma manifestação decorrente do
Movimento Modernista inaugurado, em São Paulo, pela Semana de Arte Moderna de 1922.
Esse movimento mostra a originalidade e o talento de Oswald de Andrade, autor da proposta
de renovação cultural mais radical e polêmica da Literatura brasileira. No entanto, esse
conceito não nasce de Oswald de Andrade, no Arcadismo já se utilizavam de tais
características que, hoje, denominam-se antropofagia. O manifesto ridiculariza a imitação aos
parâmetros culturais e comportamentos eurocêntricos, como a representação da figura
feminina na literatura descrita a partir de modelos artificiais. A partir disso, esse movimento
propunha repensar os aspectos artísticos manifestados em todas as artes. Gomes (2005, p. 47),

3
  A palavra “Antropofagia” vem do grego Anthropophagia e etimologicamente significa o ato de comer carne
humana. Na Literatura, a antropofagia (através do manifesto), para Oswald de Andrade pretende inaugurar
simbolicamente uma outra história que, servindo-se do passado conhecido e a partir dele, desterritorializa os
terrenos da tradição oficial, criando novas territorializações e apontando novos rumos. Esse conceito tem atraído
grande interesse na comunidade acadêmica, tornou-se foco de freqüentes discussões, inclusive na literatura
comparada (GOMES, 2005, p. 48-9).
17



defende que o texto Oswaldiano representa a continuidade e a ruptura, tenta romper,
entretanto, absorve tudo o que for favorável para desfazer com os padrões europeus. Procura
rever o passado, incorporá-lo ao presente para projetar um futuro.
           Quando o Modernismo chega ao Brasil traz resquícios das vanguardas européias.
Com isso, pode-se dizer que o Modernismo utiliza-se da antropofagia para revisar e não para
construir o novo, porque se utiliza do passado para a criação de novos rumos. Helena (1983,
p. 91) enfatiza que, pelo viés da literatura, a antropofagia pode ser discutida a partir de duas
possíveis interpretações: uma focaliza a questão da cultura brasileira desde a literatura do
período colonial aos nossos dias e a outra, como uma vertente da cultura do modernismo, que
se manifesta através de Oswald de Andrade.
           O movimento antropofágico questionava a estrutura política, econômica e cultural
implantada pelo colonizador, na qual se formara a sociedade patriarcal brasileira. Com relação
à questão estética, o movimento valoriza os elementos nativos e primitivos, juntamente com a
assimilação das tendências modernas do pensamento europeu. O Modernismo reavalia os
estragos de uma sociedade embasada nos modelos culturais impostos pelo patriarcalismo
europeu. Quanto à escrita de autoria feminina, a mulher, sempre sob ordens do homem,
sentira certo receio em expressar-se livremente e, portanto, acolheu, em seus textos,
concepções ainda masculinas. Um aspecto a ser ressaltado sobre a escrita de autoria feminina
no século XX é o fato de as escritoras tentarem expor a condição feminina e descrever as
personagens de seus romances diferentemente da escrita de autoria masculina.
           A condição da mulher, vivida e transfigurada esteticamente, é um elemento base
na construção dos textos, não se tratando apenas de um tema literário, mas algo que
fortalecesse a luta das mulheres em busca de libertação. Percebe-se, entretanto, que essas
personagens traziam resquícios de uma escrita masculina, uma vez que a mulher vivia um
constante dilema: cumprir seu papel de esposa e mãe – conduta imposta pelos poderes
patriarcais – e seguir seu próprio percurso ao assumir seu papel de mulher pensante e atuante
na sociedade.
           A mulher vivia um momento dialético, não aceitava certa situação, no entanto não
se encorajava a romper com tais padrões, encontra-se, pois, no entre-lugar, conceito proposto
por Santiago (2000, p. 36). O entre-lugar é um lugar imaginário, abstrato. É a busca de um
lugar que não se encontra. O individuo está preso no passado e não aceita o presente. É a
dúvida do sujeito que não consegue firmar-se num contexto. Não aceita o que fora imposto,
tampouco se identifica com o que está vivenciando (modo de vida, cultura). As personagens
18



descritas pelas autoras retratavam o papel da mulher que se submete as normas sociais, mas
que desejava transgredir.
                 Sabe-se que a maioria dos escritores brasileiros do século XX escreveu sobre
as mulheres e para as mulheres. As descrições físicas e comportamentais do feminino eram
feitas para atender as expectativas masculinas sociais ainda regidas por parâmetros
patriarcalistas. No entanto, não mais era cabível essa escrita estereotipada sobre a mulher e
por ela sofrida neste contexto de expansão. A partir desse século, vê-se, com satisfação, que o
quadro começa a ser alterado e a mulher passa a ocupar outro lugar na Literatura. Nesse
cenário da escritura feminina, surge Sônia Coutinho. A escritora viveu sua juventude nos anos
60, momento em que os jovens manifestavam seus descontentamentos com os valores
burgueses, sobretudo, a condição da mulher.
              Nas narrativas de Sônia Coutinho, há a criação de protagonistas que buscam
“afirmar-se enquanto sujeito-mulher” (PATRÍCIO, 2006, p. 21) para questionar os papéis de
esposa e mãe como únicos modelos a serem seguidos. Em 1998, escreve Os seios de Pandora,
romance que tem mulheres transgressoras como protagonistas. O texto traz uma atmosfera de
mistério que envolve o leitor, e uma personagem jornalista que busca a solução de um crime
em família.
              A obra em análise, Os seios de Pandora (1998), trata de um dos últimos romances
da escritora. Através de uma escrita instigante acerca da condição da mulher na busca de
afirmação e visibilidade numa sociedade fragmentada, ainda regida por resquícios
patriarcalistas, a autora demonstra uma constante preocupação com a situação da figura
feminina e, com esta preocupação cria algumas personagens que aparecem como figuras
preponderantes e que transitam narrativas plenas de conflitos em uma vida de limitações. É o
caso de Tessa Laureano e Dora Diamante, mulheres de classe média urbana, personagens
transgressoras. No romance Os seios de Pandora, Sônia Coutinho, através das descrições da
vida de suas protagonistas, apresenta mulheres que se mostram independentes, intelectuais,
aventureiras – como o próprio título do romance sugere: Os seios de Pandora: uma aventura
de Dora Diamante. No entanto, não se trata apenas de uma grande aventura feminista, mas de
uma descrição do cotidiano realista da mulher.
              Contudo, Sônia Coutinho não retrata em seu romance apenas mulheres livres.
Apresenta também outro perfil de mulher que se encontra atrelada a valores patriarcais, como
é o caso de Lenira – mãe de Tessa Laureano – que não aceitava a condição de a sua filha ser
independente: “Um espanto, aquilo acontecer com a filha aparentemente intocada de uma
19



família da burguesia local” (COUTINHO, 1998, p. 32). E ainda, ao apresentar a protagonista
da narrativa como uma mulher transgressora a constrói de maneira lenta, inicialmente
seguindo padrões para mais tarde rompê-los, assim como se dá a luta feminina em busca de
maior aceitação na sociedade e na Literatura: “Quando jovem, eu me considerava uma pessoa
de cabeça aberta, mas casei virgem. Estava presa aos modelos de Solinas, fui educada
naquelas escolas” (COUTINHO, 1998, p. 25).
             Nessa perspectiva, pode-se dizer que este romance encontra-se sob a vertente da
antropofagia, visto que ao criar suas personagens traz perfis diferentes para mostrar a
continuidade e a ruptura assim como a proposta do movimento antropofágico: a continuidade
representada por Lenira e a ruptura por Tessa Laureano. Esse aspecto pode ainda ter sido mais
um artifício que a autora utilizou para mostrar que a escrita de mulheres não é inferior à
escrita feita por homens.
             Com a construção de suas narrativas, Sônia Coutinho, através da expressão
ficcional passa a demonstrar sua força e sua capacidade de escrita. Cunha (2001, p. 22) afirma
que a partir da segunda metade do século XX, com o rompimento dos critérios hierárquicos os
quais excluíam a obra literária produzida por “segmentos alteritários”, houve a abertura de
espaços para que as vozes marginalizadas fossem ouvidas, como no caso das mulheres, uma
vez que, até o início do século XIX, atribuía-se uma inferioridade intelectual4 às mulheres
assim como se fez com os negros e descendentes. Essa afirmação confirma as ideias de Le
Goff (1993, p. 34) ao afirmar: “Foi necessário chegar ao século XX para que os historiadores
se debruçassem sobre a história de uma metade da humanidade – ou seja, sobre a história das
mulheres”.
             No início do século XX, as mulheres passavam cada vez mais a forçar os limites
do que lhes era permitido. Em meados da década de 60, passam a lutar – através da escrita –
por um lugar na Literatura onde não fossem descritas apenas como objetos maleáveis, cuja
condição poderia ser modelada da forma que fosse mais conveniente para o homem. No
romance Os Seios de Pandora, a autora cria uma personagem que segue a trilha da
protagonista, no entanto, introduz outro fator que transgride a ideia de que o poder deve estar
centrado em mãos masculinas. A personagem Dora Diamante é criada para continuar a busca
por liberdade. Liberdade essa subtraída de Tessa. À Tessa coube o exercício de uma função
até então cabível ao sexo masculino, como é o caso de investigador policial. Esse cargo
demonstra mais uma ruptura aos valores sociais e a partir desse aspecto, Dora era vítima de
4
  Somente em meados do século XIX registrou-se o início da emancipação intelectual da mulher brasileira, sob a
influência européia do cientificismo herdeiro do pensamento iluminista (CUNHA, 2001, p. 23)
20



preconceito por parte da sociedade masculina que a enxergava como incapaz de exercer tal
função: “Ele me achava raceé demais para aquilo. Dizia que eu devia estar na editoria de
moda” (COUTINHO, 1998, p. 31).
            As narrativas femininas de Sônia Coutinho mostram a insatisfação da mulher para
com o lugar de submissão, o conflito entre ser a dona do lar e a pretensão de liberdade e
independência para construir e reconhecer a sua própria identidade. As personagens buscam
construir seu próprio “eu”, no entanto, esse aspecto não se dá pelo fato de a autora querer se
opor à condição masculina, numa procura cega de espaço, mas para mostrar que os conceitos
masculino e feminino são construções discursivas dentro da cultura.



1.3 Tessa Laureano e a contemporaneidade: a pintura de uma revelação



            A Literatura enquanto arte serve de espaço para a articulação de questionamentos
acerca da situação em que se encontra a sociedade. Ela acompanha todos os avanços
impactados no mundo e representa a cópia da realidade. Com a Literatura Pós-Modernista,
coloca-se em evidencia a linguagem, a arte da palavra. Durante esse momento da Literatura,
rejeitaram-se as doutrinas simbolistas quase míticas que haviam influenciado a crítica literária
e acentuou-se a atenção para os aspectos intrínsecos do texto literário. Deseja-se chegar a uma
ciência da Literatura que tivesse por objeto não a Literatura, mas a literariedade do texto, ou
seja, aquilo que lhe confere caráter literário.
            A utilização da Literatura para representar a realidade tornou-se bastante
frequente. Para a construção dessas narrativas, os autores utilizam-se de elementos híbridos.
Toda essa multiplicidade faz com que a caracterização de uma obra pós-modernista seja uma
tarefa um tanto difícil. Para Coutinho (2006, p. 236), “A questão da conceituação de Pós-
modernismo já em si é bastante problemática, uma vez que se trata de um fenômeno
fundamentalmente heterogêneo”.
            Com a Literatura contemporânea, história e ficção mantêm-se ligadas, a partir de
uma revisão do olhar sobre os (pré)conceitos convencionados pela sociedade, inclusive acerca
da condição da mulher na Literatura, tanto como personagem quanto escritora. Sobre a
literatura de autoria feminina, Almeida (1999, p. 699-70) comenta:
21



                        A escrita se torna, então, um espaço alternativo através do qual se possa [...]
                        retomar como uma área de questionamento o espaço do outro, as brechas, os
                        silêncios e ausências do discurso e da representação aos quais o discurso
                        feminino tem sido relegado. A escrita se transforma numa possibilidade,
                        num espaço que serve de impulso subversivo para a expressão de uma voz
                        feminina que encontra em sua própria alteridade os meios de evasão.


            Hutcheon (1991, p.83) afirma que o Pós-modernismo assimilou muitas
características inerentes ao Modernismo, no entanto criou novas perspectivas – o que se
convencionou chamar de literatura contemporânea que, por sua vez, cedeu espaço às
minorias, inclusive aos discursos de gênero.
            O romance Os Seios de Pandora é uma obra Pós-modernista por apresentar
características inovadoras principalmente quando a autora descreve as suas personagens
femininas. Tessa Laureano, protagonista da narrativa, mulher desafiadora aos valores
convencionados socialmente, mostra-se aparentemente independente, mas carrega consigo
medos e depressões por conta dos problemas enfrentados por ser uma mulher que busca novos
rumos para a sua história. Seu comportamento não condizia aos costumes e modos de vida da
cidade onde nascera: “Casou e descasou algumas vezes, com pessoas sempre inesperadas.
Seus amores eram um prato cheio para os mexeriqueiros da provinciana Solinas”
(COUTINHO, 1998, p. 15). Esses problemas eram causados pela própria família, inimiga
cruel, uma vez que não aceitava a condição de vida escolhida por Tessa. Ela vive sob
constantes ameaças e é vítima fatal de uma cilada: “Puxa vida, não aguentaram uma mulher
como ela, pensei. Talentosa e livre, desafiadora” (COUTINHO, 1998, p. 16).
            Ressalta-se, porém, um dado importante: o fato de que, nas narrativas de Sônia
Coutinho, a figura masculina aparece mais como planos de fundo para os romances. Em Os
Seios de Pandora, a figura do pai é ausente e deixa uma herança que passa a ser o estopim
para uma guerra familiar: de um lado, a mãe, o irmão e a filha, do outro Tessa, emancipada,
no entanto sofre pressões da família por ainda necessitar de ajuda financeira para suprir as
suas necessidades materiais: “Logo após a morte do meu pai, minha mãe, a inventariante dos
bens, me telefonou e perguntou se eu não abriria mão da minha parte da herança em favor de
minha filha, Zelda [...]” (COUTINHO, 1998, p. 10).
            Herdar do pai, para a família da protagonista, representaria concessão de poder
econômico à mulher – principal entrave para a emancipação feminina. Sem o apoio da
família, a protagonista apela às artes plásticas para preencher o espaço que lhes sobra por falta
desse apoio. Com isso, Tessa deixa transparecer que, para a mulher, as inquietações vão
22



acontecer nas regras de relacionamentos e de papéis designados para a mulher. E tais papéis
excluem o direito de a mulher realizar-se fora do casamento, em outro caminho que não seja o
do lar.
            A pintura – que seria o outro caminho escolhido por Tessa Laureano – serve como
um refúgio para a personagem expor seus sentimentos no que diz respeito à relação
homem/mulher, já que suas telas possuem imagens de vaginas e pênis: “[...] Mas seu trabalho
tinha outras facetas. Seu erotismo, por exemplo, flores-vaginas, caules-pênis. Masculino e
feminino, como em Louise Bourgeois (COUTINHO, 1998, p. 38) – mais um motivo para que
a sociedade a veja como algo ameaçador e atrevido, já que o trabalho feminino sempre fora
reforçado no imaginário social como algo desestabilizador dos lares, pois se argumentava que,
com a prática de outras atividades, as mulheres negligenciariam “seus” afazeres domésticos e
sua atenção e cuidados para com o marido e filhos: “[...] a atividade profissional feminina é
considerada sem valor próprio, incapaz de fundar uma identidade plena (LYPOVETSKY,
2000, p. 221).
            Para a construção da sua narrativa, Sônia Coutinho utiliza-se de elementos
comuns à literatura contemporânea, como a forma pela qual o romance é escrito: os capítulos
não são intitulados e há uma alternância de narradores. Ora quem fala é Tessa Laureano, que
conta a sua trajetória de vida, ora é Dora Diamante que serve como uma espécie de ouvinte
das histórias e dos fatos que envolvem Tessa para, a partir disso, construir a sua voz no texto.
Outro aspecto é a relação entre texto e leitor, uma vez que a importância dada ao receptor é
uma característica das rupturas pós-modernistas. Em relação a isso Compagnon comenta:



                        Para a teoria literária, nascida do estruturalismo e marcada pela vontade de
                        descrever o funcionamento neutro do texto, o leitor empírico foi igualmente
                        um intruso. Ao invés de favorecer a emergência de uma hermenêutica da
                        leitura, a narratologia e a poética, quando chegaram a atribuir um lugar ao
                        leitor em suas análises, contentaram-se com um leitor abstrato ou perfeito
                        (1999, p. 142).


            O leitor deve estar atento às pistas deixadas pelos narradores para saber distinguir
quem na verdade está empregando o seu discurso no texto, visto que as narradoras-
personagens possuem uma história de vida que se assemelham. Para que haja o entendimento
do texto, o leitor deve adentrar a narrativa para ressignificá-la. Deve servir como uma espécie
de “investigador”, já que o próprio texto traz indícios de ser uma narrativa policial, e toda
narrativa dessa espécie necessita de um detetive.
23



             Sobre a relação entre texto e leitor, Rogel Samuel discute a respeito da
importância do leitor numa obra literária e enfatiza que diante de um texto, o leitor projeta
expectativas que podem ser satisfeitas ou não, diz ainda que “a obra de arte não está nem no
texto, nem na leitura, mas entre os dois. Acontece um ponto de convergência entre o texto e o
leitor, um ponto que nunca pode ser definido completamente” (2002, p. 120).
             Além desse aspecto, a obra também apresenta outros artifícios que mostram o
rompimento com as estruturas tradicionais de romance. Estruturas estas a que os leitores se
acostumaram. A falta de uma narrativa linear, uma vez que há a mistura das histórias de vida
de duas personagens – uma que conta a sua vida de luta em prol de liberdade social e
financeira; outra que tenta desvendar um crime exercendo uma profissão aceitável somente
para homens. Há a mistura de gêneros textuais, quando introduz trechos de cartas e notícias
jornalísticas durante o discurso do narrador. Com isso, a autora rompe com o estilo clássico
de escrita, liberta-se dos paradigmas literários. Para construir a trajetória de vida das
protagonistas, Coutinho utiliza a morte como metáfora para o fim da “ousadia” feminina.
Outro fator presente em sua narrativa é a intertextualidade 5 e se acentua ainda mais quando
descreve as ações das suas personagens a partir de mitologias a respeito da condição da
mulher:



                           Uma história que se embaralha na memória. Uma história que aconteceu há muito
                           tempo, cujos detalhes se esfumaram. Que, recriada, se torna outra. Processo de
                           inventar uma história verdadeira.
                           A história de Pandora, que abriu sua caixa e, de dentro, saíram pragas, a ruína e a
                           morte.
                           É o que me ocorre agora, recostada nos travesseiros, anos depois, segurando a pasta
                           com as cartas de Tessa Laureano (COUTINHO, 1998, p. 24).



                 A romancista Sônia Coutinho tem se destacado no cenário da Literatura
nacional não só pela qualidade de sua ficção na qual oferece uma visão feminina da realidade,
mas também pela análise crítica a respeito da sociedade brasileira contemporânea. Questiona
a situação das mulheres de classe média nas últimas décadas do século XX. Envolve nesta
análise as relações de gênero, os preconceitos e a sexualidade dessas mulheres. As
personagens, a exemplo de Tessa Laureano que se revelou uma mulher corajosa ao quebrar os
paradigmas impostos pela sociedade através de sua família, têm sido a base para a escritora

5
 A intertextualidade foi introduzida na Literatura por Júlia Kristeva (1966), por influência da dialogicidade de
Bakhtin. A palavra intertextualidade significa interação entre textos, um diálogo entre eles. É texto no sentido
amplo: um conjunto de signos organizados para transmitir uma mensagem, portanto, no mundo atual da
multimídia, ela acontece entre textos de signos diferentes.
24



interrogar e tentar subverter as perspectivas sociais impostas à mulher brasileira
contemporânea.
25



2 A PENA: a revelação de um discurso em crise


            A escrita feminina embala o ritmo ainda lento do movimento, enquanto
deslocamento, da mulher nos espaços sociais. Qualquer movimento de luta parte da escrita e,
embora essa tenha sido habitual, sua ação meio estática revela-se contraditória, uma vez que
se entende a movimentação acionada por aqueles que lêem.
            O discurso, como exposição metódica de determinado assunto, visa interferir no
raciocínio ou nos sentimentos do ouvinte ou leitor. Os recursos linguísticos ou
extralinguísticos presentes, no discurso, materializam-no ideologicamente. Seja lógico,
dialético, retórico ou poético, ele permite a comunicação humana focada em um objetivo.
            O discurso que entra em crise abalara-se pela competição incoerente das
formações e funções sociais. Na literatura de Sônia Coutinho não se pretende a veracidade
absoluta, haja vista a presença de um discurso poético e dialético, isto é, embora saiba a
improbabilidade da verdade absoluta, abandona a razão em prol da ficção ao passo que revela
duas afirmações antagônicas: tese e antítese. Enquanto a tese apresenta uma afirmação ou
situação, a antítese opõe-se e o conflto gera a síntese cuja nova afirmação é refutada pela
antítese gerando nova síntese... um jogo infinito.
            Estas contradições desfilam em Os seios de Pandora. Ora, a autora põe frente à
frente mulheres ideologicamente distantes. Cabe ao leitor, em meio a narrativa, buscar suas
reflexões fruídas da poética do discurso. Embebe-se o leitor de um discurso um movimento
em prol da consciência de novos tempos, novas funções sociais e novos desafios quanto à
expectativa nas relaçõs de gênero.
            Sônia Coutinho desenha discursivamente a mulher contemporânea. O paradoxo
entre suas personagens contempla a ambiguidade da pena na construção do eu feminino. Pena
como um sentimento àquelas aprisionadas pelas convenções e conceitos cristalizados por
parte dessa sociedade patriarcalista ou ainda como instrumento favorável à difusão do
comportamento “transgressor”, na perspectiva tradicionalista. Mulher não se constrói no
discurso de Coutinho, ela se desconstrói, quebra paradigmas e mostra-se socialmente como
sujeito de sua própria história. História enigmática pincelada por Tessa Laureano cujas pistas
conduzem Dora Diamante a mais um exercício transgressor dos moldes predestinados |à
mulher. Revestida de detetive, Dora faz sua ronda em busca de pista que respondam sobre um
assassinato alegórico da morte da transgressão à ótica patriarcalista.
26



            Os seios de Pandora, pois, configura-se em uma questão de gênero, porém, a ele
não se restringe, porque a literatura de Sônia Coutinho amplia esse universo para abstrair além
de um discurso em defesa da mulher. Seu texto de qualidade explora a perspicácia do leitor
não apenas para desvendar os mistérios, mas, fá-lo abrir a caixa de Pandora. Nela, além das
maldades humanas, há a esperança. E Os seios de Pandora metaforizam o discurso mitológico
na contemporaneidade com a pena enquanto meio simbólico da prisão/liberdade feminina ao
longo do(s) século(s).



2.1 Sônia Coutinho e o desenho discursivo da mulher contemporânea



            O conceito de autoria, de acordo com Foucault (2001, p. 24), se estabelece, na
cultura moderna, no final do século XVIII e início do século XIX, quando se instaura a noção
de texto como propriedade cujos direitos passam a pertencer ao autor. Ele aparece na cultura
moderna a partir do momento quando se começa a atribuir aos textos uma individualidade.
            A tradição literária e ainda questões mais modernas à produção escrita exaltam a
figura do autor e o consideram em algumas correntes como a função que o eu assume
enquanto produtor de linguagem, ou ainda, como indivíduo falante que pronunciou ou
escreveu um texto.
            Para contrapor a essa última ideia, Orlandi (1993, p. 78-9) traz a concepção de
autor e defende que não basta falar para ser autor, falando, o indivíduo é apenas falante, “o
autor é o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos, representa pela
linguagem, um papel, na ordem social em que está inserido”. Além dessas funções, há uma
outra, de acordo com o princípio de autoria estabelecido por Foucault (2001, p. 77) no qual
ele postula que “o autor é o princípio de agrupamento dos discursos, unidade e origem de suas
significações. O autor está na base da coerência do discurso”.
            A questão da autoria é algo bastante complexo, principalmente, quando se discute
a respeito de autoria masculina e autoria feminina, pois é fato gramatical e cultural instituído
que o gênero masculino engloba o feminino e a mulher aparece sempre como algo pertencente
a alguém. No entanto, nas últimas décadas, tem-se demonstrado que os significados para os
pares de palavras que denotam diferenças de gênero não são os mesmos, e na verdade, “autora
não é feminino de autor nem linguística, nem literária, nem culturalmente (TELLES, 1992,
p.46). Mas, se a mulher é tão diferente do homem em termos de produção, que aspectos
27



mostram essa diferença, uma vez que se discute muito com relação à busca de igualdade? Um
desses aspectos são os discursos presentes nos textos escritos, visto que a mulher agora não
mais aceita ser representada da mesma maneira que fora durante muito tempo pela escrita
masculina. Segundo Cunha (1999, p. 11), por mais diferentes que sejam as formas de escrita
da mulher, há características comuns que as identifica: “São estruturadas ou amalgamadas
com a própria vivência do feminino, do ser-mulher, no ato de viver”
             A vida oprimida no passado reflete no comportamento feminino hoje, pois é
próprio do ser humano se questionar, buscar a si quando a rotina lhe incomoda. Assim, a
mulher descobriu na escrita uma forma de desmascarar os comportamentos masculinos para
com a figura feminina. Por tanto sofrimento da mulher é que lhes foi “permitido” depois do
penar, a pena6. Primeiro a mulher “penou”, sofreu os preconceitos e esteve sob as ordens
masculinas. Em seguida, a “pena” surge em novas mãos e a escrita serve como uma espécie
de refúgio, onde as mulheres poderiam expor seus sentimentos, sofrimentos, e outras
mulheres tomariam também consciência da situação na qual a classe feminina se encontrava.
             É nessa vertente que aparece Sônia Coutinho, escritora que desenha um perfil de
mulher não como vítima da sua história de subjugação ao homem, mas como causadora dos
conflitos, manipuladora dos comportamentos masculinos, a exemplo de Alice – protagonista
do romance O caso Alice (1991), texto que antecede a publicação de Os Seios de Pandora –
que comete o homicídio contra o namorado, talvez para se vingar daquilo que sofreu durante a
infância. Suas ações futuras foram influenciadas por situações passadas:



                          Seguro o revolver com as duas mãos e faço pontaria em direção ao rosto de
                          Dalmo – de tio Max? – é quando, num relance, imagino que tudo ainda pode
                          ser revogado, que sou capaz de perdoar. Mas então se faz escuridão, os
                          registros de minha memória se apagam (COUTINHO, 1991, p. 106).


             Vale salientar que cada pessoa tem o seu ideal linguístico e social. A língua
coloca múltiplo repertório de possibilidades à disposição de cada um. Segundo Proença Filho
(1999, p. 24), ao assumir o discurso, o indivíduo busca escolher os meios de expressão que
melhor configurem suas ideias, pensamentos e desejos. Esses fatores é que caracterizam o
estilo de cada autor.



6
  Discurso da professora Eugênia Mateus de Souza em uma aula do Componente Curricular Estudo da Produção
literária baiana (09/07/2010), na qual se discutia a respeito da escrita de autoria feminina na literatura.
28



               Para definir discurso, podem-se utilizar as palavras de Barthes (2004, p. 68)
quando diz que “[...] discurso é um ato individual de seleção e atualização”. O discurso
possibilita operar a ligação necessária entre o nível linguístico e o extralinguístico. Na
concepção bakhtiniana, os discursos não são autossuficientes nem indiferentes uns aos outros;
está repleto de ecos e lembranças de outros discursos. Nesse caso, o discurso é a rearticulação
do passado e projeção do futuro, carregado pelas marcas sociais, políticas, culturais e
ideológicas. É o que acontece no discurso de Sônia Coutinho quando escreve romances
femininos: adota inicialmente concepções masculinas ao construir personagens que mostram
o comportamento feminino baseado no sistema patriarcalista e depois traz outros perfis
femininos para desafiar a sociedade. Articula o passado para a projeção do futuro, como bem
foi apontado no capítulo anterior.
               Dentre outras ideias, Foucault tem o discurso como um jogo estratégico e
polêmico, assim como a luta feminina para defender sua liberdade de expressão e sua
representação em obras masculinas: “O discurso não pode ser mais analisado simplesmente
sob seu aspecto linguístico, mas como jogo estratégico de ação e de reação, de pergunta e de
resposta, de dominação e de esquiva e também como luta” (2001, p. 31).
               Diante das concepções acima, vale ressaltar que todo discurso é carregado de
           7
ideologias . Para confirmar essa ideia, Brandão discute a respeito da carga ideologia existente
nos discursos e defende que:



                          A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que
                          serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento;
                          a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social;
                          ela não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa
                          intencionalidade) e nem natural, por isso o lugar privilegiado de
                          manifestação ideológica (1997, p. 12).


               Diante desse aspecto, pode-se dizer que Sônia Coutinho não escreve apenas para
mostrar a sua capacidade de escrita e se colocar a frente à inteligência masculina. A sua
escrita possui uma ideologia, um propósito. Para tanto, utiliza-se do discurso literário para


7
  Segundo Chauí (1981, p. 23) o termo ideologia nasceu como sinônimo da atividade científica que procurava
analisar a faculdade de pensar, tratando as ideias como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo
humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. No entanto, para contrariar esse significado, o termo
passa a ter um sentido pejorativo, pela primeira vez, com Napoleão que qualifica os ideólogos franceses de
“abstratos, nebulosos, idealistas e perigosos‟ (para o poder) por causa do seu desconhecimento dos problemas
concretos. Desse modo, a ideologia passa a ser vista então como uma doutrina irrealista e sectária, sem
fundamento objetivo e perigosa para a ordem estabelecida.
29



retratar os perfis e comportamentos femininos contemporâneos além de desmascarar os
preconceitos sofridos pela mulher na sociedade e na literatura, inclusive enquanto escritoras.
Sobre discurso literário, Maingueneau (2006, p. 8) enfatiza que esse tipo de discurso causa
ambiguidade, uma vez que a literatura tenta representar a realidade através da verossimilhança
e pode apresentar mais de uma “verdade” sobre a história que, nesse caso, é a história da luta
feminina. Desse modo, a literatura é utilizada como uma forma de arte e de instrumento
social:



                        [...] discurso literário soa ambíguo. De um lado, designa em nossa sociedade
                        um verdadeiro tipo de discurso, vinculado a um estatuto pragmático
                        relativamente bem caracterizado; de outro, é rótulo que não designa uma
                        unidade estável, mas permite agrupar um conjunto de fenômenos que são
                        parte de épocas e sociedades muito diversas entre si.


            Nessa vertente, pode-se dizer que através de seus romances, em especial, Os seios
de Pandora, Coutinho analisa a situação social da mulher brasileira do século XX. A obra
compreende as relações de gênero, sexualidade, maternidade e o envelhecimento, considerado
por Bailey (1999) como um “fenômeno sociológico” e de questionamento às expectativas
sociais conferidas à mulher brasileira contemporânea.
            Assim, através da suas personagens, a autora mostra a mulher que desestrutura as
convenções, à revelia da história. Para exemplificar esse aspecto, têm-se as protagonistas do
romance em análise. Através de um discurso instigante, Sônia Coutinho apresenta mulheres
que desafiam a sociedade em busca da autoafirmação. São personagens com a idade entre os
quarenta anos, “maduras”, ou seja, já refletem sobre seus atos. Uma é considerada atrevida,
por desafiar a família burguesa e buscar sua independência financeira e pessoal; a outra,
abusiva, por exercer uma função até então masculina, e, ainda, por investigar o assassinato da
primeira. Personagens com histórias de vida parecidas e que sofrem preconceitos e ameaças
por conta da coragem em enfrentar grandes desafios que, para a sociedade da época era algo
extremamente transgressor.
            Uma das questões teóricas bastante discutidas a respeito do surgimento desse
novo sujeito literário – o sujeito mulher – é a da especificidade de sua escrita. A mulher agora
enquanto escritora além de desafiar a sociedade através da criação de personagens, desafia
30



também o próprio cânone literário 8. Esse cânone se refere ao que fora imposto pelo sistema
patriarcal falocêntrico.
             Muitos críticos defendem a ideia de que a escrita feminina tem crescido de forma
acentuada. De acordo com Cunha (1999, p. 12), “o fenômeno mais significativo da Literatura
deste último quartel do século é o produzido pelas mulheres”. Através dessa expansão da
produção literária feminina discute-se hoje que essa escrita revela um discurso-em-crise. Esse
aspecto acontece pelo fato de as escritoras lançarem tantos desafios em sua forma de escrever
e representar a condição feminina na arte.
             Diante de tais colocações, é possível dizer que Sônia Coutinho encontra-se nesse
rol de escritoras que revelam um discurso-em-crise. No entanto, esse discurso não representa
uma escrita embaraçada e confusa, como deixa transparecer na palavra “crise”. É que os
leitores estão acostumados a ler obras femininas apenas sob a ótica da defesa da mulher.
Coutinho utiliza a condição feminina como fonte para suas narrativas, entretanto, utiliza-se de
outros elementos para descrever essa condição, como a desordem da nova linguagem poética
ou ficcional, o fragmentarismo e a ambiguidade. Não retrata um olhar maniqueísta sobre a
situação da mulher, mostra agora uma consciência fragmentada. Trata-se de um discurso
narrativo que exige intensa participação do leitor na busca para uma possível interpretação.
              Ao se tornar sujeito do discurso, Sônia Coutinho entra em conflito com a
passividade e obediência. Os textos expressam as novas experiências da mulher de modo
peculiar e revelador e retrata a diferença do olhar feminino sobre o mundo e a diferença do
mundo que observa o feminino.
             Com todas as inovações na forma de escrever, a concepção que se tem sobre a
escrita feminina torna-se ambígua, quando as autoras possibilitam ao leitor repensar a questão
da escrita não focada apenas para representar a mulher e o espaço que tem garantido no
âmbito social, tampouco entrar em uma disputa cega por prestígio, mas mostrar que através da
escrita, as mulheres tem se conscientizado e ganhado força para construir uma identidade que
não servisse apenas de suporte para o homem.




8
  Segundo Reis (1992), o cânone literário é o conjunto de obras e seus autores, consolidadas como “as maiores” e
atemporais, bem como reprodutoras de valores, normalmente ditas universais, e por isso, dignas de estudo e
transmissão às futuras gerações.
31



2.2 A ambiguidade da pena na construção do eu feminino



            A questão da identidade é um dos temas de grande repercussão em discussões na
teoria social. A ideia de que as “velhas identidades” que durante tanto tempo trouxeram
estabilidade para o mundo estão em declínio e com isso surgem novas identidades. Como
conseqüência tem-se a fragmentação do individuo moderno até então encarado como um
sujeito unificado (HALL, 2003, p.7). Os teóricos argumentam que as rápidas e sucessivas
transformações do mundo globalizado têm causado uma mudança na forma de os indivíduos
verem a sociedade e os sujeitos. A partir de todas as transformações no quadro social, a
identidade pessoal é também atingida na medida em que há a multiplicação dos meios de
representação e significação cultural.
            Com relação à identidade feminina, muitos estudiosos defendem que o
movimento feminista é um dos responsáveis pelo descentramento do individuo moderno, uma
vez que reivindica a posição social das mulheres que passaram a questionar a formação de
identidades próprias. Nessa vertente, a representação da identidade feminina sofre mudanças:
o papel que exercia na sociedade, que antes era certo (mesmo que convencionado
socialmente), agora é representado sob diferentes formas. O discurso a respeito de uma
identidade feminina fragilizada tem decaído devido aos espaços de atuação da mulher. Isso
acontece por causa das transformações do mundo moderno que conduziu a mulher a atuar em
domínios, antes, privilégios masculinos. Um dos espaços conquistados é a escrita literária.
            Ao se tratar do tema identidade feminina na Literatura, principalmente, quando os
textos forem escritos por mulheres, deve-se levar em consideração a duas posições que a
mulher exerce dentro das narrativas: a escritora – que cria personagens femininas – e a
personagem que é um indivíduo diferente daquele que escreve. Nesse aspecto, podem-se
analisar as personagens femininas de Sônia Coutinho. A autora as constrói para mostrar a
busca incansável por uma identidade feminina respeitada pela sociedade onde estão inseridas.
Nesse mesmo contexto, tem-se a autora, que, através de sua escrita, tenta neutralizar as
diferenças entre os sexos e mostrar que a mulher capaz de lidar com a arte escrita. Há,
portanto, dúbio sentido quando se fala da busca pela construção da identidade feminina.
            Em Os Seios de Pandora, as protagonistas buscam a sua identidade através de
desafios lançados à sociedade. Tentam exercer muitos papéis e com isso causam conflitos
familiares e sociais. Pode-se dizer, portanto, que a narrativa traz uma abordagem das grandes
questões individuais e sociais que afetam as pessoas em situações diversas, como é o caso de
32



Tessa Laureano. Apesar de apresentar características inerentes à mulher contemporânea,
busca uma identidade fixa que coloque em evidência a sua capacidade de desempenhar várias
funções e ser independente. Sabe-se, entretanto, que a procura pela identidade definida é algo
extremamente complexo, uma vez que de acordo com Stuart Hall “A identidade plenamente
unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2003, p. 13).
            O sujeito pós-moderno é definido por Hall como não possuindo uma identidade
essencial ou permanente, ela é formada e transformada de acordo ao sistema cultural que o
indivíduo está inserido. Assim, Tessa Laurenao, ao exercer tantas funções, seu próprio “eu”
entra em conflito. Ora, sente-se forte por conseguir desafiar as ideias da época, ora se sente
frágil por ainda depender do apoio de outras pessoas para se manter livre: “[...] a própria
Tessa não tinha muita clareza quanto ao que estava acontecendo com ela. Só sabia que
enfrentava uma série de obstáculos e infortúnios. Às vezes achava que era tudo vingança da
mãe, mas não sabia o motivo” (COUTINHO, 1998, p. 36).
            Essa crise de identidade faz parte de um processo amplo de transformações
sofridas pela sociedade moderna. Com isso, há um abalo nos quadros de referência que davam
aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. Sobre essa crise e a adversidade da
construção identitária, Stuart Hall, discute:



                        Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes
                        direções, de tal modo que nossas identificações estão continuamente
                        deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o
                        nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória
                        sobre nós mesmos [...] (HALL, 2003, p. 13).


            A identidade é definida historicamente e não biologicamente (HALL, 2003, p.25).
Em se tratando de Tessa Laureano, nasceu em uma cidade interiorana regida por ideias
patriarcalistas, no entanto, assume identidades diferentes em diversos momentos. Identidades
essas que não unificadas ao redor de um “eu” coerente (HALL, 2003, p.14), vive como a
profissional em busca do produto de seu trabalho, quer a independência financeira e procura o
reconhecimento da maternidade. Por conta de tantas funções sente-se, muitas vezes, solitária,
confusa, fragmentada.
            Ao falar em fragmentação do sujeito pós-moderno, a teoria de Homi Bhabha
(1994. p. 26) torna-se de grande importância para essa discussão e para a análise da
personagem, uma vez que, para o autor, o ser humano encontra-se em um momento de
33



trânsito, onde espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas cujas identidades
são extremamente fragmentadas e em um constante processo de construção, e exatamente por
isso, levando a uma certa sensação de desorientação e, algumas vezes, até mesmo de
exclusão.
            Sônia Coutinho, através da escrita, apresenta mulheres que buscam uma
identidade capaz de sustentar sua condição de sujeito apto ao exercício de várias funções. É
possível dizer ainda que essa escrita feminina seja decorrente de um conflito identitário da
relação da mulher com a busca pela sua própria identidade.
            Os Seios de Pandora, assim como outros textos da autora, apresentam mulheres
em busca de uma identidade desvinculadas de valores convencionados pela sociedade. Não se
trata de textos em defesa da causa feminina. A autora assume uma visão equilibrada acerca do
processo de emancipação da mulher e apresenta, através da ficção, os avanços, os problemas e
os limites, quando dramatiza situações vivenciadas por personagens misteriosas e
desafiadoras. Diante desse aspecto, não se pode negar que a sua ficção serve como uma ponte
para as discussões a respeito da questão de gênero na Literatura.



2.3 Os seios de Pandora: uma questão de gênero


            O estabelecimento do gênero como uma categoria importante à análise literária
causou alguns abalos à tradição ocidental. Com o rompimento do papel que vinha
desempenhando através de séculos – o de ser somente sujeito passivo da história – e com o
ingresso em domínios públicos, as mulheres trouxeram grandes transformações nas estruturas
psíquicas, tanto dos homens quanto delas próprias. Para a reflexão a respeito dessas
transformações, as discussões acerca das questões de gênero têm ganhado força, sobretudo na
Literatura, a partir do crescente número de publicações femininas e dos estudos sobre a
mulher e a sua escrita. Helena Confortin (2003, p. 108) postula que o conceito de gênero é
ainda para a sociedade algo bastante polêmico, haja vista ser recente em termos de ciência. É
usado há menos de vinte anos e foi introduzido pelas feministas anglo-saxãs. Campos (1992,
p. 113) ainda traz outra definição a respeito de gênero e como esse termo foi sendo
desenvolvido em outras camadas além da história de luta feminina:



                     Gênero concerne à experiência social e pessoal de um e de outro sexo;
                      desenvolve-se enquanto categoria analítica a partir do pensamento feminista,
34



                        nos anos 80 [...] e assinalando uma transformação relativamente a centros de
                        interesse da década anterior, tais como uma história das mulheres, a questão
                        da ginocrítica, isto é, do estudo feminista da escrita da mulher, pressupondo-
                        a marcada pelo sexo. Transcedendo, porém, as fronteiras da pesquisa
                        feminina vão inscrever-se nas categorias das ciências humana e sociais, de
                        sorte que sua utilização paraleliza-se às demais categorias indicadoras de
                        diferença.


            Em muitas pesquisas, a questão de gênero tem sido utilizada como sinônimo de
mulheres. Esse aspecto preocupa alguns estudiosos, uma vez que, a partir dessa concepção de
gênero, os estudos femininos se centrariam nas mulheres de maneira estreita. Dessa forma, a
noção de gênero definiria as mulheres e os homens em termos recíprocos, não podendo ser
entendidos de forma individual. No entanto, deve-se repensar a questão de gênero como “uma
categoria útil à história e não apenas à história das mulheres [...]. O gênero dá significado às
distinções entre os sexos, ele transforma seres biologicamente machos e fêmeas em homens e
mulheres, seres sociais” (SCOTT, 1992, p. 64).
            Para Scott, os estudos sobre gênero devem incluir o homem e a mulher em suas
múltiplas vinculações, prioridades e relações de poder. Esse termo pode enfatizar a história
das mulheres, mas também a dos homens e até das relações entre homens e mulheres, além de
oferecer um espaço para a análise das desigualdades e das hierarquias entre esses segmentos
sociais. Para reafirmar essas concepções, Costa et al (1985, p. 5) discutem que, a partir dos
estudos de gênero houve uma mudança significativa no olhar sobre a mulher e sua relação
com o homem e a sociedade. A partir desse ponto de vista haverá maior entendimento sobre
as desigualdades enfrentadas pelas mulheres em detrimento dos homens:



                        Há um esforço para dar visibilidade à mulher como agente social e histórico,
                        como sujeito; portanto, o tema sai das notas de rodapé e ganha o corpo dos
                        trabalhos. Surgem estudos preocupados não só em desvendar a opressão das
                        mulheres, como também demonstrar que a abordagem destas questões pode
                        trazer contribuições importantes ao entendimento da sociedade.


            É nessa vertente que se encontra, além de outros aspectos, o romance Os Seios de
Pandora, haja vista a autora utilizar o espaço da escrita para mostrar a relação existente entre
o sexo masculino e o feminino, o primeiro sendo ainda abordado como ser superior tanto no
aspecto intelectual quanto social e o segundo como agente paciente de todas as ações
praticadas pelo homem, além de desmascarar os preconceitos sofridos pela figura feminina
quando procuram igualar-se à masculina em termos de independência financeira e profissão:
35



“Estava triste. Imaginou o que veriam nela as pessoas com quem cruzava. Uma mulher
machucada, barriguinha proeminente, bolsas em cima das pálpebras. Uma mulher a quem
ninguém mais dava importância” (COUTINHO, 1998, p. 64).
            Os Seios de Pandora tratam de um texto que faz repensar a questão de gênero não
mais centrada somente no feminino, mas em gênero como mudança, “[...] ultrapassando a fase
da denúncia e opressão e a descrição das experiências e/ou vivências femininas”
(CONFORTIN, 2003, p. 110). Com a exposição do cotidiano realista da mulher, a autora quer
mostrar as diferenças que existem entre os sexos e o modo pelo qual essas diferenças têm sido
entendidas como desigualdades. Por ser mulher e escrever sobre mulheres não faz com que a
autora utilize seus textos somente como argumentos para a defesa feminina, apenas tenta
mostrar que não há diferenças entre os sexos, apenas os homens, ao possuírem o poder da
escrita, a utilizaram para beneficiarem a si próprios e à sociedade a qual pertenciam.
            Não se pode negar que há diferenças biológicas na caracterização do masculino e
do feminino, no entanto, essas características não devem ser vistas como algo que dê
superioridade ao ser masculino. Discursos biológicos em torno dessas diferenças tentam
convencer a sociedade de que o cérebro da mulher é desenvolvido de uma determinada forma
e o do homem de outra, de maneira que faz com que os homens sejam mais lógicos, mais
racionais, capazes de tomar decisões difíceis e as mulheres sejam intuitivas, frágeis,
sentimentais. Essas ideias de diferenças entre os sexos é que geram preconceitos contra a
mulher. No caso do romance em análise, a personagem Dora Diamante ao procurar emprego
como redatora de jornal foi dispensada porque naquele momento só havia vaga para a sessão
policial e no pensamento do chefe de departamento, uma mulher não poderia preencher tal
vaga: “A vaga estava ocupada por outro redator. O único lugar disponível era na policia. Eu
voltaria para a variedade, prometeu ele, logo que surgisse oportunidade” (COUTINHO, 1998,
p. 19).
            A obra de Sônia Coutinho mostra-se muito representativa da modernidade
narrativa, sobretudo quando pretende destacar e discutir a questão de gênero. A autora,
através do romance Os Seios de Pandora revela o universo feminino do ponto de vista da
própria mulher. E este aspecto permite abordar com maior autoridade as questões que
envolvem o feminino. As suas personagens exemplificam como a sociedade ainda encara a
mulher a partir de vários estereótipos com os quais as mulheres “modernas” precisam lidar,
mesmo vivendo no século XXI. Os perfis escolhidos, conforme são apresentados na obra,
mostram mulheres em transformação, na qual está em busca de sua identidade e precisa
36



enfrentar diversos conflitos para buscar sua valorização enquanto ser humano sem levar em
consideração o sexo ao qual pertencem.
37



3 PANDORA E SUA CAIXA: as surpresas da narrativa de Sônia Coutinho




            A narratologia contemporânea permeia os espaços artisticoliterários e tal como a
literatura clássica prescinde dos recursos intertextuais. A caixa de Pandora e seus mistérios
metaforizam a escrita de Os seios de Pandora. Todo um mistério, a busca por pistas e os
segredos por se revelarem à luz de olhos perspicazes como os de Dora Diamante.
            Dora, nome de origem grega, significa presente, dádiva. Indica uma pessoa que
resolve tudo devagar, pacientemente e de modo ordenado; bom senso e moderação. Diamante,
também grego, significa inconquistável, indomável, por sua dureza. Eis um bom perfil para a
personagem que viria a desvendar os enigmas que circulavam a morte de Tessa - forma
diminutiva do inglês Therese, Teresa.
            Certamente origina-se do grego theros, verão, ou therizo, colher. Laureano,
expressão latina, significa coroado com louros, vitorioso. Tessa Laureano traduz a liberdade e
a vitória de uma mulher que, acusada pela família e pela sociedade, perde a vida
misteriosamente e cabe à Dora Diamante, com sua vontade férrea e prudência, aniquilar os
segredos de uma perseguição.
            As pistas a serem seguidas eram tão obscuras quanto o título Os seios de Pandora.
Faz-se necessário conhecer o mito de Pandora e sua caixa de maus fluidos quebrantáveis
apenas por um único elemento: a esperança. Tem-se, pois, um caso para estudo. O gênero
policial, mais indicado para a tessitura do texto, imbrica-se nas teias literárias e desfaz o
estereótipo de subliteratura. Há um texto de elaboração exemplar aberto às discussões desde
criação literária à quebra, à transgressão de escrita.
            Literatura Contemporânea, repaginada e mais consistente, retrata as transgressões
sociais com mais veemência. A arte relendo a vida com imagens atemporais próprias à
metaforização de fatos e ou acontecimentos relegados a espaços sociais. A linguagem literária
plena de prazer e fruição permite ao leitor o sabor e o saber de expressões norteadoras para
compreensão de comportamentos.
              Como a morte é veiculada nessa arte em Os seios de Pandora? A morte do
sonho de liberdade ressignificada por olhares que resgatam pistas e demonstram que a mulher
morre na representação de seus desejos, mas permanece na luta por encontrar o espaço e o
direito social de ir e vir, de possuir vida privada e pública. O gênero policial de Sônia
Coutinho como reinvenção de estilo. Uma personagem detetive que estabelece a distância
38



entre a mulher e a mulher, isto é, há modelos que são revisitados e decifrados nesse gênero
policial: mistério e investigação.



3.1 Seios e Pandora: pistas de um gênero policial


            Cada século traz consigo afirmações e inúmeras mudanças nas estruturas sociais.
Durante o século XX, com o aumento da violência urbana, coube à Literatura o papel de
representar também tais acontecimentos. Os crimes passaram a ser tema de textos literários e
a partir desse aspecto um novo gênero é introduzido na Literatura: o gênero policial.
            Atribui-se o surgimento do romance policial ao escritor Edgard Allan Poe com a
publicação de contos utilizando-se do ambiente urbano com a mistura de elementos como o
crime, o detetive e a investigação, elementos estes que passaram a ser peças-chave para o
surgimento de textos no gênero policial.
            No Brasil, é possível dizer que não há uma tradição de produzir esse tipo de
romance como houvera sempre nos Estados Unidos. Contudo, observa-se que, nas últimas
décadas, houve um crescente número de escritores e escritoras que adentram a esse gênero e o
sucesso de público tem sido o mesmo que em outros países cuja produção é ainda maior.
            Assim como Edgard Allan Poe pode ser considerado o introdutor do texto
policial, há também a “versão feminina” que se destaca no cenário desse tipo de escritura:
Agatha Christie, que já vendeu milhões de exemplares dos seus livros e se sobressai ainda por
ter sido a grande precursora da figura do detetive feminino.
            Desde sua origem, o romance policial tem sido escrito por um grande número de
mulheres que até recentemente adotavam modelos masculinos para suas narrativas. No
entanto, o amadurecimento crítico resultou numa transformação radical da escrita feita pela
mulher: passou de uma literatura sentimental, que apreciava a emoção para uma literatura de
perfil questionador, revolucionário, político, que coloca em evidência a ação. Desse modo, o
“amor” passa a ser um tema pouco explorado (no entanto, não esquecido) e dá-se ênfase à
exploração de aspectos que até então diziam respeito ao homem, fator tão discutido na
literatura feminina contemporânea.
            Com o aparecimento de escritoras no contexto policial, o próprio gênero passa
agora a ter um novo olhar, uma vez que as mulheres impõem em seus textos, uma visão
feminina da realidade e a partir desse aspecto outros elementos, típicos da escrita de autoria
39



feminina são introduzidos para mostrar uma nova concepção de romance policial longe de
estratégias tradicionais masculinas.
            Nesse âmbito de inovações na escrita de romances surge Sônia Coutinho. A
autora tenta romper paradigmas acerca da escrita de autoria feminina, introduzindo, em seus
textos, aspectos inerentes ao gênero de romance policial, considerado por muitos críticos
literários como uma degradação na Literatura, isto é, subliteratura. No entanto, Mario Pontes
(2007, p. 68) defende a ideia de que não se deve julgar esse gênero como uma “desprezível
subliteratura”. Ele tem seus processos, com suas próprias regras.
            Em Os seios de Pandora, há outros elementos a serem discutidos - além da
questão da figura feminina na Literatura -, uma vez que o texto traz uma atmosfera de
mistério que envolve o leitor e uma personagem que tenta investigar a vida da protagonista
após certos acontecimentos misteriosos – aspectos marcantes na escrita da autora, uma vez
que o romance em questão segue uma trilogia de romances que podem estar inseridos no
gênero policial.
            Sônia Coutinho enquanto autora do campo de escritoras que discutem e criam
imagens de mulheres na ficção brasileira contemporânea introduz novos conceitos e
mudanças em sua forma de escrever. De acordo com Mario Pontes (2007, p. 56), as mulheres
começaram a escrever e publicar contos e romances policiais. Começaram a se tornar
importantes por capacidade e “ousadia” de utilizarem as mesmas estratégias de autores que as
precederam, uma questão de influência, muito comum a toda escrita. Isso vem confirmar as
ideias de Sônia Coutinho quando discute a respeito da inserção de mulheres no contexto do
gênero policial: “[...] as escritoras de livros policiais, até bem recentemente, adotavam elas
próprias modelos masculinos para suas histórias e personagens, criando detetives homens,
calcados nos tipos consagrados do gênero” (COUTINHO, 1994. p. 17).
            No que diz respeito às características estéticas do romance policial, teóricos como
François Fosca (apud Tzvetan Todorov, 2006, p. 95) descrevem este tipo de romance da
seguinte forma: Parte-se de um caso de aparência inexplicável, uma personagem é culpada
injustamente, a partir de indícios superficiais. Aparece a figura do detetive (geralmente,
homem) que investiga, raciocina para desvendar o mistério do caso. A solução é sempre
imprevista e coerente e quanto maior for o mistério, mais simples será a sua explicação.
            Para muitos autores, o romance policial é uma narrativa de massa fundamentada
em conceitos fixos que chegam ao ponto de tentar encaixá-los em fórmulas. Nessa vertente,
Tzvetan Todorov (2006, p. 95), ao utilizar a noção de estrutura, estabeleceu uma tipologia
40



para o romance policial, que se tornou referência obrigatória. O autor classifica o policial em
três modalidades: o romance de enigma que apresenta um sempre um crime misterioso a ser
esclarecido e, além disso, os crimes são sempre solucionados sem riscos nem ameaças para o
detetive; o romance negro, cujas histórias se fundem, a narrativa coincide com a ação do
crime; e o romance de suspense que combina as propriedades das anteriores, serve de
transição entre o romance de enigma e o romance negro.
           No romance em análise a autora utiliza elementos próprios do gênero policial,
como uma morte, um suspeito, mistérios e ainda a presença de uma personagem que se dispõe
a fazer uma investigação acerca da morte da protagonista: “Enquanto penteava a matéria
sobre espancamento, o assassinato de Tessa foi me enchendo de raiva”. [...] E me ocorreu que
eu podia fazer uma bela reportagem, um protesto, em torno do seu assassinato (COUTINHO,
1998, p. 16). No entanto, essas características são apresentadas sob uma nova perspectiva.
Não segue necessariamente as regras que são impostas à produção de romance policial.
           A figura do detetive – característica do gênero policial - não se encontra na
narrativa de Sônia Coutinho. Essa característica tem sido abordada pela escritora de forma
diferente do romance policial de autoria masculina, uma vez que alguns elementos do
romance escrito pela ótica masculina não fazem parte ou são alterados, quando escritos sob o
olhar da mulher. No entanto, é possível salientar que, com todas as transformações que a
escrita feminina tem sofrido, o próprio gênero policial passa por um processo de
desconstrução, com o aparecimento da ótica feminina, pela qual se trocam modelos
tipicamente masculinos por abordagens femininas, criando detetives mulheres que,
consequentemente, desconstroem essa imagem cristalizada de detetive homem.
           Freitas (2005, p. 04) discute a respeito de características modernas do romance
policial e destaca que, na Literatura brasileira das últimas décadas do século XX, o romance
policial, remodelado, emerge como exercício de questionamento. Investigar não se restringe
mais à busca de culpados, mas sim, à exposição das dúvidas sobre os impasses humanos e
sobre a própria experiência artística. É o que acontece com a investigadora Dora Diamante ao
buscar desvendar os mistérios que envolvem a morte de Tessa Laureano. Não busca apenas
identificar o assassino, mas também tenta desvendar o motivo pelo qual levou à morte uma
mulher que para ela era extremamente corajosa.
           Como bem postula Coutinho (1994, p. 14), a evolução do romance policial através
da inserção da voz feminina nesses textos trouxe inúmeras inovações. As mulheres passaram
O penar e a pena uma investigação policial sob a ótica do discurso feminino
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1984 - literatura e Modernidde
 

O penar e a pena uma investigação policial sob a ótica do discurso feminino

  • 1. UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS GLEIDIANE PINTO DA SILVA CUNHA O PENAR E A PENA: uma investigação policial sob a ótica do discurso feminino Conceição do Coité 2011
  • 2. GLEIDIANE PINTO DA SILVA CUNHA O PENAR E A PENA: uma investigação policial sob a ótica do discurso feminino Monografia apresentada ao Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), curso de Letras Vernáculas, como parte do processo avaliativo para obtenção do grau de Licenciada em Letras. Orientadora: Profa. Ms. Eugênia Mateus de Souza Conceição do Coité 2011
  • 3. O verdadeiro homem quer duas coisas: perigo e jogo. Por isso quer a mulher: o jogo mais perigoso. Friedrich Nietzsche A história da mulher é a história da pior tirania que o mundo conheceu: a tirania do mais fraco sobre o mais forte. Oscar Wilde A mulher é o negro do mundo. A mulher é a escrava dos escravos. Se ela tenta ser livre, tu dizes que ela não te ama. Se ela pensa, tu dizes que ela quer ser homem. John Lennon Se perdermos a ilusão do conhecimento, se só existem verdades simuladas, o que seria para nós desvendar um mistério? O que seria decifrar um enigma? É a tarefa infinita de impor uma interpretação sobre outra interpretação, o que, não se faz sem violência. Vera Lúcia Follain de Figueiredo
  • 4. DEDICATÓRIA Poderia nesta ocasião usar uma expressão cristalizada do tipo: “Dedico este trabalho a todos que de alguma maneira contribuíram para minha formação”. No entanto, prefiro apontar pessoas, que são especiais e ajudaram-me de forma direta a chegar a este momento. Então... Dedico este trabalho à minha irmã, colega, amiga... enfim, companheira inseparável, Eliziane, que partilhou todos os momentos acadêmicos, ora de sufoco, ora de sucesso. Agora, ao relembrar tudo o que juntas vivemos, vejo o quanto foi importante a sua presença durante esse percurso. E apesar de tantas “Marias” em sua vida, colaborou de forma satisfatória para que este estudo fosse concluído. Dedico, principalmente, à minha mãe, Maria Amélia, que, sempre presente, ouviu meus lamentos, acalentou meus soluços desesperados, só não pensou comigo meus trabalhos, minhas leituras, porque, (in)felizmente somente eu poderia fazê-los. Entretanto, esteve ali, cativa, cuidando de mim, nessa escalada íngreme que subi com muita garra, sentindo sua mão me sustentando.
  • 5. AGRADECIMENTOS A Deus, meu maior mestre, refúgio e renovação. Proporcionou-me esta oportunidade de conhecer pessoas excelentes com quem houve uma troca efetiva de conhecimentos e a conquista de alcançar mais este nível de conhecimento e formação, além da graça de teclar tantas horas a fio e conseguir transpor, ao menos, parte do que me propusera a fazer nesta pesquisa. O que seria de mim sem a fé que tenho Nele? A minha mãe, pelo incentivo e cuidado próprio do seu devir efêmero e constante, na sua simplicidade. Ao meu pai que, com seu ar sério, deixou brilhar nos olhos, muitas vezes, o orgulho que sentia ao ter suas filhas em uma Universidade. A minha irmã, Viviane, que, com suas doces palavras, assegurou-me conforto, acalmou-me no desespero insistente, abriram-se o sorriso da confiança, aquiesceu meu desassossego contínuo e clarearam o fundo do túnel onde às vezes me encontrava mediante excesso de leituras e escassez de vontade do relógio em se segurar. A minha Vó (Terezinha) que, com sua fé inabalável e carinho ilimitado, não se intimidou com a quantidade de orações e preces a fazer a cada etapa difícil a ser vencida por mim. Ao meu sobrinho Hiago, disposto à beleza da inocência juvenil, pelos favores e recados dados, pelas horas quando me fazia rir, embora momentos não propícios à alegria (no caso, a minha) porque nuvens pesadas assombravam minhas horas com o desespero de quem corre contra o tempo... Ao meu esposo, pelo apoio e torcida para que este curso terminasse logo e mais, por compreender, mesmo com dificuldade, tantas ausências e desatenções; Ao meu cunhado (Lêu), que no início da minha vida acadêmica carregou-me, literalmente, nos braços, quando pessoas negaram-me auxilio. E em especial, à minha Professora orientadora Eugênia Mateus, que me mostrou a beleza da arte literária através de seu apoio e inspiração no amadurecimento de conceitos e informações que me levaram a escrita deste trabalho. Mostrou-me também que “penar” é preciso e nos ajuda, através da desse processo „quase‟ catártico, chegar à “pena”. Foi sofrido, mas... eu escrevi não com tinta carmim. Brinquei com o preto no branco... uma delícia! Uma investigação nada convencional!
  • 6. RESUMO O estudo na dimensão do olhar patriarcalista versus a transgressão sustenta-se no objetivo de mapear a construção da escrita de autoria feminina enquanto narrativa policial, apoiado n‟Os seios de Pandora, de Coutinho, como corpus da pesquisa. Narrativa contemporânea, propícia à representação dos discursos sobre a mulher - objeto do olhar na literatura de todos os tempos, porém restrita, na maioria das vezes, à submissão -, o romance retrata o feminino literário, ameaçado por indicadores, cuja compreensão distancia-se do reconhecimento do processo antropofágico (HELENA, 1983) pelo qual passaria a mulher. A revelação do sujeito sob o penar dá-se através de um discurso em crise (CUNHA, 2001) e, pelo desenho autoral (TELLES, 1992) ambíguo da pena. A questão de gênero (CONFORTIN, 2003; ORSINI, 2003) sobressai de uma caixa mitológica onde Pandora retrata desafios literários que, se não mata, pode condenar pelo julgamento social, o qual Coutinho intervém, alegoricamente, com narração sob gênero policial (TODOROV, 2006; PONTES, 2007) para as pistas da morte de Tessa Laureano, a pintura da transgressão, com a maestria da escrita literária de retórica convincente plena de literariedade exigida pela arte. Com pesquisa bibliográfica, mais ou menos precisa, descortinou-se a aventura de um estudo desafiador justificado pelo interesse de reiterar novas perspectivas mediante ingresso feminino no mundo público, sem necessariamente, desvencilhar-se do privado. A autora, pois, revista, implicitamente, a história da opressão feminina e o faz através do gênero policial, a fim de provar, de pena em punho, que o ser mulher não mais segue padrões preestabelecidos de um penar sem fim. PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Feminino. Narrativa policial.
  • 7. ABSTRACT The study on the dimension of the patriarchalist gaze versus the transgression is sustained in the goal to map the construction of the writing of feminine authorship while police narrative, backed in ' Os seios de Pandora, Coutinho, as search corpus. Contemporary narrative, propitious to the representation of speeches about the woman-object of the gaze in literature of all time, though restricted in most cases, the submission, - the novel depicts the literary feminine, threatened by indicators, whose understanding distances from the recognition of the anthropophagic process (HELENA, 1983) through which the woman would pass. The revelation of the subject under the languishing takes place through a discourse in crisis (CUNHA, 2001) and, by authorial drawing (TELLES, 1992) ambiguous sentence. The genre issue (CONFORTIN, 2003; ORSINI, 2003) stands out from a mythological box which Pandora depicts literary challenges which, if not kill, you can condemn by social trial, which Coutinho intervenes, allegorically, with narration in police genre (TODOROV, 2006; PONTES, 2007) to the vestiges of death of Tessa Laureano, painting of transgression, with the mastery of literary writing of persuasive rhetoric full of literariness required by art. With bibliographic search, more or less precise, opened up the adventure of a challenging study justified in the interest of reiterate new perspective through the participation of women in the public world without necessarily, extricate itself from private. The author, therefore, revised, implicitly, the history of women's oppression and does so through the genre police, to prove, pen in hand that woman being no longer follows predetermined patterns of an endless languishing. KEY-WORDS: Discourse. Feminine. Police narrative.
  • 8. SUMÁRIO INTRODUÇÃO Primeiras pistas ................................................................................................................... 08 1 O PENAR E O OLHAR SOBRE A MULHER: narrativa literária e o discurso histórico ...................................................................................................................... 11 1.1 Mulher e sociedade burguesa: objeto de prazer e de escrita ...................................... 12 1.2 Antropofagia e o deglutir da imagem feminina no século XX ................................... 16 1.3 Tessa Laureano e a contemporaneidade: a pintura de uma revelação ........................ 20 2 A PENA: a revelação de um discurso em crise ......................................................... 25 2.1 Sônia Coutinho e o desenho discursivo da mulher contemporânea ........................... 26 2.2 A ambiguidade da pena na construção do eu feminino .............................................. 31 2.3 Os seios de Pandora: uma questão de gênero ............................................................ 33 3 PANDORA E SUA CAIXA: as surpresas da narrativa de Sônia Coutinho ............. 37 3.1 Seios e Pandora: pistas de um gênero policial ........................................................... 38 3.2 Tessa Laureano e a morte na Literatura feminina ...................................................... 45 3.3 Um caso para estudo: a transgressão literária e a feminina ........................................ 48 CONCLUSÃO Desvendando pistas... a queda do penar e a lição deixada pela pena .................................. 51 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 54
  • 9. 8 INTRODUÇÃO Primeiras Pistas A situação da mulher na sociedade brasileira é um dos temas que tem despertado muito interesse aos pesquisadores de diversas áreas das Ciências Humanas. Com relação à Literatura, as mulheres, através da escrita, firmaram-se no amplo universo literário e a principal mudança pela qual atravessou essa autoria é o fato de essas escritoras conscientizarem-se quanto a sua liberdade de expressão. Este trabalho pretende adentrar discussões que se propõem a analisar, discursivamente, a escrita feminina em textos literários, bem como ressaltar a situação da mulher enquanto personagens de romances e como ser social perante uma sociedade preconceituosa. Para tanto, foi tomado como objeto de pesquisa o romance Os Seios de Pandora, da escritora baiana Sônia Coutinho, com o objetivo de mapear a construção da escrita de autoria feminina enquanto narrativa de gênero policial. O trabalho foi esquematizado a partir dos seguintes questionamentos: Seriam Os seios de Pandora uma narrativa contemporânea marcada pelo espaço urbano propício às transgressões da escrita feminina que aponta para o gênero policial? Quais elementos utilizados por Sônia Coutinho na construção de Os Seios de Pandora fazem a obra aproximar- se do gênero policial sem desqualificar o texto literário? Estariam os elementos de literariedade transpostos na escrita de Os seios de Pandora como um jogo alegórico afirmativo da qualidade da escrita feminina tanto quanto a masculina? Diante desses questionamentos foram levantadas hipóteses que serviram de base para o desenvolvimento da pesquisa. Nessa perspectiva, supôs-se que Os seios de Pandora estruturam-se em forma de gênero policial, provavelmente, como estratégia de desvendar tanto o grande mistério que rodeia o crime de Tessa Laureano – uma das protagonistas da narrativa – como também buscar pistas para desmascarar a realidade de uma escrita nem masculina nem feminina, mas aquela que transpira arte, distante da visão da escrita de gênero ou escrita feminina. Sônia Coutinho, talvez, tenha se utilizado de elementos comuns ao próprio texto literário, para a confirmação de uma escrita consistente de arte e beleza, porque denuncia ao passo que desperta o prazer do texto, principal função da literatura. E, ainda, os elementos de literariedade estariam transpostos na escrita de Os seios de Pandora para criar a dimensão artística através da alegoria e, assim, dissipar um jogo segundo o qual começa a história de mulher ativa no meio social, não para se colocar à frente da escrita masculina, mas
  • 10. 9 para igualar-se ao sujeito autor, haja vista a impregnação, no pensamento social, sobre a inferioridade intelectual feminina. Para responder a tais questões, fez-se a releitura e análise da obra com base em críticos que discutem a escrita literária de Sônia Coutinho, a escrita de autoria feminina, em geral, bem como a composição literária, além de textos que trazem abordagens a respeito do gênero policial atrelado a escrita da mulher. Utilizou-se a pesquisa bibliográfica para o desenvolvimento desse estudo, pela natureza do objeto de trabalho. O trabalho estrutura-se em três capítulos por onde tanto a revisão bibliográfica como a fundamentação teórica percorreram junto à análise da obra, uma vez que o constante diálogo com autores que discutem sobre o mesmo tema facilitou a escrita do texto. No primeiro capítulo discute-se o olhar que se tem sobre a mulher em narrativas literárias, tanto como personagens quanto escritoras, além de ilustrar a influência do discurso histórico na construção literária, haja vista a arte acompanhar todas as transformações sofridas pela sociedade. A figura feminina, resultado de um processo de antropofagia, revela-se sob diferentes formas e épocas, contemporâneas ou não aos autores, e, pari passu, ganha voz e constrói seu próprio discurso. O segundo capítulo enfatiza a questão do discurso feminino empregado no processo de escrita literária e o que o diferencia ou não da escrita masculina. Nesse momento, discute-se o conceito de autoria feminina e as condições sob as quais a autora Sônia Coutinho escreve seus textos e abre espaço para as discussões de gênero, além de apresentar personagens que buscam uma identidade não mais atrelada a parâmetros patriarcalistas. Uma escrita de bases literárias descrentes do gênero do criador para qualificar a arte. No terceiro capítulo expõe-se uma discussão a respeito dos artifícios literários utilizados por Sônia Coutinho que aproximam a obra do gênero policial sem desqualificar o texto literário, já que muitos críticos consideram o romance policial como uma degradação da literatura. Percebe-se, pois, a transgressão tanto literária quanto feminina nos textos da autora, ao tratar de temas polêmicos que despertam atenção do leitor, como é o caso da morte – característica recorrente em textos de autoria feminina, como alegoria à divisão que condena os desafios encarados pela mulher. Pretende-se, com esse estudo, o acréscimo das discussões que motivaram o desenvolvimento da pesquisa e a contribuição à abertura dos horizontes sobre o estudo crítico da produção literária brasileira de autoria feminina, mais especificamente, na Bahia, a fim de
  • 11. 10 atualizar as leituras sobre o tema. Almeja-se, ainda, ampliar os estudos em torno da obra e Sônia Coutinho enquanto autora do campo de escritoras que discutem e criam imagens de mulheres na ficção brasileira contemporânea que a cada dia introduz novos conceitos e mudanças em sua forma de escrever, como é o caso da escrita de romances no gênero policial. Atualmente, o discurso que se faz sobre a mulher não é mais atrelado a padrões convencionados socialmente, uma vez que, através da escrita de textos, sejam eles engajados em diferentes gêneros literários, as mulheres romperam com o processo de silenciamento ao qual foram submetidas. Ao discutir a questão de autoria na contemporaneidade, a figura feminina agora deve ser encarada como um sujeito que produz seu próprio discurso, seja em prol da defesa de sua classe, seja para mostrar a sua capacidade intelectual de escrita que, por muito tempo, fora subestimada.
  • 12. 11 1 O PENAR E O OLHAR SOBRE A MULHER: narrativa literária e o discurso histórico A narrativa está irrestrita à literatura. Sabe-se que tanto a história quanto a literatura sempre andaram por caminhos entrecruzados. Um entrecruzamento marcado, por exemplo, nos romances históricos, embora se saiba que por mais que a ficção ou a história retomem o passado, ele surge apenas por recomposição. É um tempo fora do alcance, apenas retratáveis os aspectos sociopoliticoeconômicos de determinado tempo e/ou lugar. Há apenas a chance de os olhos da atualidade enxergar o passado. Desse ângulo, pode-se entender o compromisso maior da história com a aproximação da realidade. À narrativa literária cabe a liberdade da imaginação, à ficcionalidade descomprometida com verdades, mas com a plurissignificação por meio de jogos verossímeis, isto é, a possibilidade de existência. Este processo se dá mediante uma estruturação impregnada de subjetividades. Seja sob discurso histórico ou narrativa literária, as sociedades estampam-se na escrita e a existência humana e seus comportamentos encontram-se retratados pelas palavras figuradas num jogo alegórico próprio de representações do real. A arte literária, contudo, procura aproximar o leitor do fato narrado, porém desinteressada da forma veraz de como o receptor olhará para a narrativa, por exemplo. Os jogos linguísticos produzem os seres de papel plenos de vida somente no espaço do texto assim como todos os elementos que se apresentem. Por detrás de seu discurso, pois, haverá uma carga crítica a ser considerada. Com estas colocações, entende-se o quanto o penar feminino demorara tanto para sucumbir. Autoria masculina viveu sob a prescrição de uma sociedade patriarcalista que colocara a mulher em um espaço para ser ora venerada ora submissa. Como uma voz sufocada na garganta poderia manifestar-se com toda a repressão existente? Uma “falha” patriarcalista?! Permitiram às senhoras das fragilidades sociais a leveza da escrita e com que leveza pode-se desenhar todo o manifesto do senhorio feminino. A pena encontrou novas mãos cujas habilidades puderam mostrar ao mundo o pensamento feminino que, sob a proteção da arte de criação literária, recompôs um legado histórico para ser avaliado por olhos leitores perspicazes para alcançarem as críticas ali desenhadas e à espera de algumas reconsiderações acerca de um legado obscurecido pelo discurso sobre a fragilidade e submissão da mulher.
  • 13. 12 Desse modo, Sônia Coutinho adequa-se a esta modalidade de escrita que, ao lançar ao público suas histórias, deixa sempre por conta das variadas possibilidades de leitura se repensar a questão de gênero dentro e fora das narrativas. A mulher objeto de desejo e prazer, com o poder da escrita, mostra-se e como um processo antropofágico pode colaborar quanto ao repensar a mulher do século atual e como suas revelações chegam à sociedade. 1.1 Mulher e sociedade burguesa: objeto de prazer e escrita Desde Platão e Aristóteles até os tempos atuais, a literatura, enquanto arte, acompanha todas as transformações da sociedade. Diante desse aspecto, é válido salientar que inúmeras mudanças nas estruturas sociais marcaram o grande processo de expansão mundial no século XIX, e a literatura inclui-se nesse processo transformador. Nesse período, a sociedade impactada vê surgir em seu seio grupos determinados a conquistar espaços nos mais variados segmentos sociais. Desde trabalhadores aos grupos feministas vão-se cortinando situações inusitadas ao que se registrara até então. Surgem movimentos sociais femininos apoiados pela expansão da imprensa e pelo surgimento da “Nova mulher” (TELLES apud DEL PRIORE, 2007, p. 402). E como consequência desses avanços, surgiram as primeiras escritoras. É possível dizer que para a Literatura, o século XIX é considerado o momento do romance, quando se exclui, das narrativas, enredos que envolvem mitologias, lendas e histórias do passado para empregar acontecimentos novos e cotidianos, como a prosa da vida doméstica – a inserção da figura feminina como protagonista das histórias e não como apenas objeto de companhia ao homem -, fato que contribui para a edificação da supremacia das ideias burguesas. Com novos enredos, há também uma mudança no quadro de leitores desses textos. Esse público aumenta e dentro dele se encontram em grande quantidade as mulheres burguesas. O perfil das mulheres assim como o perfil da Literatura, em geral, modifica-se de acordo aos interesses e às transformações sofridas pela sociedade. Na Literatura, a mulher, como protagonista de romance foi apresentada a partir de parâmetros impostos por uma sociedade patriarcal, onde era predestinada a ser objeto moldado para obedecer e satisfazer às expectativas dos pais e, posteriormente, as do marido. A figura da mulher na literatura, historicamente, como personagem – elemento constitutivo do texto - foi revelada sob diferentes formas, principalmente, pelos movimentos
  • 14. 13 literários que estabeleciam uma representação de mulher para cada época vivenciada pelos escritores. No Romantismo, idealizou-se a figura feminina, como anjo, musa ou criatura - objeto de escrita - nunca criadora. As românticas e angelicais moças desse período eram o estereótipo da pretensão burguesa. Orsini (2003, p. 87) enfatiza que os romances românticos desenhavam mulheres heroínas, especiais, frágeis, meigas, virgens... dignas de serem amadas. Durante o Realismo e o Naturalismo, teceu-se um discurso objetivo sobre a mulher por dois ângulos: um pela „força do bem‟, enquanto submissa e dedicada e outro pela „força do mal‟ transgressora das atividades que lhes eram culturalmente atribuídas (TELLES apud DEL PRIORE, 2007, p. 402). Neste período, as personagens femininas aparecem como objeto de prazer. As mulatas retratadas nos romances como objeto sexual, símbolo de sedução, estavam sempre ligadas a algum estereótipo pelo grande repúdio à figura negra na sociedade. A Literatura, como representação do real, trouxe pelo Naturalismo a demonstração de teses extraídas de teorias científicas 1, como por exemplo, a teoria da inferioridade dos mestiços. Os escritores representavam, em seus romances, portanto, a figura feminina de acordo com suas vivências. As ideias de Cândido (2000, p. 4-7) confirmam que toda escrita do autor reflete sua concepção de mundo, sua ótica social, visto que, a influência do meio afeta o comportamento das pessoas, e estas possuem uma enorme ação sobre o artista. Enfatiza que a análise de uma obra deve observar a sua relação com o real, atentando-se para o contexto e as condições de produção sob as quais foram escritos. Quando a análise da obra observa o contexto social, externo e interno revertem-se, a fim de que elementos extralingüísticos incluam-se como parte constituinte e de grande relevância na obra. A partir dessa ênfase dada ao externo (social) ilustram-se os costumes, as ideias e as tradições da época da escrita do texto. Interface história e ficção. Para confirmar essa interface, Gottschalk (apud HUTCHEON, 1991, p.148), discute que a história é tridimensional. Ela participa da natureza da ciência, da arte e da filosofia. E Hutcheon (1991, p. 150) ratifica: história e ficção 1 Na segunda metade do século XIX, o “racismo científico” dominou vastamente o meio intelectual. Estas teorias raciais desenvolvidas na Europa proclamavam a diferença qualitativa intrínseca entre as raças, e qual a “raça branca” seria o estágio mais avançado do processo civilizatório da humanidade, e as demais raças (negros e mulatos) seriam incapazes ou estariam ainda em estágio primitivo do desenvolvimento humano. Para estes cientistas, a miscigenação formaria um ser mais desqualificado para a civilização do que qualquer raça pudesse conceber. Na verdade, havia uma preocupação do povo brasileiro em ser branco, já que o brasileiro não possui uma característica definida (COSTA, 2006, p.134-36)
  • 15. 14 são narrativas que se distinguem por suas estruturas e obtêm suas forças a partir da verossimilhança2. Durante o período Realista da Literatura, muitos fatores influenciavam o destino da mulher, como por exemplo, a classe social e a etnia. As moças não se casavam por amor, mas para atender aos interesses familiares. Esse fator veiculava a condição de inferioridade da mulher com relação ao homem. O espaço que lhe cabia era o do lar, e traições eram “permitidas” somente para o marido, pois as esposas adúlteras tinham sua imagem maculada diante da sociedade, principalmente, com moças de classe alta, preparadas somente para o casamento, além de serem mulheres brancas ou descendentes. As mulheres pobres e mestiças tinham um outro destino: eram conduzidas ao trabalho doméstico escravo ou à prostituição. Ao longo desse século, a temática feminina em romances de autoria masculina cresceu de forma gradativa, pelo fato de as mulheres serem grandes leitoras desses textos. Contudo, essa escrita masculina caracterizava-se pela defesa da honra feminina, da virgindade das moças e da fidelidade das mulheres casadas e pela limitação do espaço doméstico visto que a incompatibilidade entre casamento e vida profissional feminina sempre fora reforçada no imaginário social. Argumentava-se que, com a prática de outras atividades, as mulheres negligenciariam “seus” afazeres e sua atenção e cuidados para com o marido e filhos. Estes aspectos eram usados para justificar a instabilidade do matrimônio, no entanto, muitas vezes, essa instabilidade se dava pela incompreensão do cônjuge. Desse modo, todas as mulheres foram representadas para revelar uma prática idealizada como própria da condição feminina: aceitação das regras que lhes eram impostas. Segundo Kehl (1998, p. 108 apud PATRASSO e GRANT, 2007, p. 135), a literatura do século XIX visava criar, “os códigos burgueses, de si e do lar, que compuseram o imaginário feminino sobre o casamento, moldando as expectativas românticas do amor-paixão pelo lado da literatura [...]”. Nesse contexto, pode-se observar a grande dificuldade da mulher em criar o próprio discurso a partir de suas representações desse século. Por esse aspecto, é possível dizer que, em relação à escrita de autoria feminina, o preconceito cresceu se comparado à mulher apenas como protagonista de romances. Mesmo representadas de modo tão restrito aos acontecimentos sociais, as mulheres necessitaram romper com o processo de silenciamento e exclusão que sofreram ao longo da história literária. Desse modo, no Brasil, o 2 O entendimento sobre verossimilhança é fundamental para o estudo da Literatura. Aristóteles postula que verossimilhança “não é o oficio do poeta narrar o que aconteceu. É sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (ARISTÓTELES apud ALONSO, 2005).
  • 16. 15 surgimento de mulheres escritoras, em especial, no Brasil ocorre a partir do século XIX, em decorrência do crescimento da imprensa e do início de movimentos a favor dos direitos femininos. A criação literária participou da onda de movimentos em prol da causa feminina, e a condição da mulher revelou-se um tema de grande repercussão em muitas narrativas, principalmente, as de autoria feminina, que se expandiram no universo cultural brasileiro e apresentam características peculiares no que diz respeito à linguagem, ao gênero e aos artifícios utilizados por cada escritora ao trazer à tona a dialética da ideologia dominante: “Por meio da Literatura que produzem, as mulheres hoje não só resgatam a própria história passada, como afirmam confiantes a condição de sujeito atuante no presente com vistas a um futuro pleno” (PELLEGRINI, 2008, p. 22). Contudo, reafirma-se a postulação de Helena Parente Cunha (2003, p. 25): a luta da mulher foi intensa para que pudessem ingressar no terceiro milênio “caminhando com seus próprios pés”, ouvindo um discurso novo pela sua própria voz. A trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil é composta de um grupo minoritário. Segundo Alves (1999), ao final do século XIX, as publicações de escritoras, em especial na Bahia, para chegar ao domínio público, tinham que vir protegidas pelo aval do pai, irmão ou marido ou de um grupo de poetas ou críticos. Há constatações de que algumas escritoras de classe média da sociedade procuraram proteção e respeito através da Igreja, para se resguardar da crítica aos escritos e recepção do público leitor. É possível dizer que os primeiros textos produzidos em meados do século XIX reflitam a realidade da sociedade brasileira e os papéis exercidos pelas mulheres através de uma reprodução dos padrões da época socialmente convencionados. Trata-se de obras que representam mulheres submissas aos valores patriarcais que encontram sua realização no casamento e na maternidade. Telles (2000, p. 761 apud PATRASSO e GRANT, 2007, p. 142) salienta: “Antes a mulher era explicada pelos homens… [...] Agora é a própria mulher que se desembrulha, se explica”. Essa ideia mostra que, a constante busca por uma escrita feminina com identidade própria vem se firmando, contudo em processo lento assim como todas as conquistas femininas ao longo da história, o que confirma a ideia de Luís: Há uma escrita de mulheres. Confusa e embaraçada como elas. [...] No mais das vezes, as mulheres escrevem segundo o modelo dos homens. [...] Agora começa a haver uma literatura feminina, uma forma de a mulher se interrogar; mas inda só balbucia (1985 apud COELHO, 1999, p. 9).
  • 17. 16 A escrita feminina brasileira amplia-se através de Rachel de Queiroz, no entanto, Clarice Lispector é que passa a ocupar um lugar significativo no cenário literário do Brasil. “É uma espécie de abertura de trilhas fundamentais” (PATRICIO, 2006, p. 19). A partir da década de 70, outras escritoras começaram a se impor diante de tal situação, a exemplo de Sônia Coutinho, escritora baiana que se inseriu no contexto da Literatura a partir de 1966 e escreve suas histórias comprometidas com a realidade da mulher, não apenas como reflexo da situação na qual se encontram, mas também como visão crítica. É possível salientar que atualmente, a mulher que se expressa através da ficção mostra uma consciência crítica acentuada e um tom questionador dos modelos femininos de submissão herdados da sociedade patriarcal (PELLEGRINI, 2008, p. 24). A ficção feminina aparece agora como a representação de um espaço simbólico em que expõe a nova condição social para uma mulher contemporânea. Uma das questões teóricas que tem sido debatida pelo surgimento da mulher como um novo sujeito literário é a da especificidade de sua escrita. Lúcia Castelo Branco enfatiza que as produções de escrita feminina incomodam porque produzem polêmica e se distinguem dos demais “por possuírem um tom, uma dicção, um ritmo, uma respiração próprios” (BRANCO, 1991, p. 13). 1.2 Antropofagia e o deglutir da imagem feminina no século XX O Manisfesto Antropofágico (Antropofagia) 3 foi uma manifestação decorrente do Movimento Modernista inaugurado, em São Paulo, pela Semana de Arte Moderna de 1922. Esse movimento mostra a originalidade e o talento de Oswald de Andrade, autor da proposta de renovação cultural mais radical e polêmica da Literatura brasileira. No entanto, esse conceito não nasce de Oswald de Andrade, no Arcadismo já se utilizavam de tais características que, hoje, denominam-se antropofagia. O manifesto ridiculariza a imitação aos parâmetros culturais e comportamentos eurocêntricos, como a representação da figura feminina na literatura descrita a partir de modelos artificiais. A partir disso, esse movimento propunha repensar os aspectos artísticos manifestados em todas as artes. Gomes (2005, p. 47), 3 A palavra “Antropofagia” vem do grego Anthropophagia e etimologicamente significa o ato de comer carne humana. Na Literatura, a antropofagia (através do manifesto), para Oswald de Andrade pretende inaugurar simbolicamente uma outra história que, servindo-se do passado conhecido e a partir dele, desterritorializa os terrenos da tradição oficial, criando novas territorializações e apontando novos rumos. Esse conceito tem atraído grande interesse na comunidade acadêmica, tornou-se foco de freqüentes discussões, inclusive na literatura comparada (GOMES, 2005, p. 48-9).
  • 18. 17 defende que o texto Oswaldiano representa a continuidade e a ruptura, tenta romper, entretanto, absorve tudo o que for favorável para desfazer com os padrões europeus. Procura rever o passado, incorporá-lo ao presente para projetar um futuro. Quando o Modernismo chega ao Brasil traz resquícios das vanguardas européias. Com isso, pode-se dizer que o Modernismo utiliza-se da antropofagia para revisar e não para construir o novo, porque se utiliza do passado para a criação de novos rumos. Helena (1983, p. 91) enfatiza que, pelo viés da literatura, a antropofagia pode ser discutida a partir de duas possíveis interpretações: uma focaliza a questão da cultura brasileira desde a literatura do período colonial aos nossos dias e a outra, como uma vertente da cultura do modernismo, que se manifesta através de Oswald de Andrade. O movimento antropofágico questionava a estrutura política, econômica e cultural implantada pelo colonizador, na qual se formara a sociedade patriarcal brasileira. Com relação à questão estética, o movimento valoriza os elementos nativos e primitivos, juntamente com a assimilação das tendências modernas do pensamento europeu. O Modernismo reavalia os estragos de uma sociedade embasada nos modelos culturais impostos pelo patriarcalismo europeu. Quanto à escrita de autoria feminina, a mulher, sempre sob ordens do homem, sentira certo receio em expressar-se livremente e, portanto, acolheu, em seus textos, concepções ainda masculinas. Um aspecto a ser ressaltado sobre a escrita de autoria feminina no século XX é o fato de as escritoras tentarem expor a condição feminina e descrever as personagens de seus romances diferentemente da escrita de autoria masculina. A condição da mulher, vivida e transfigurada esteticamente, é um elemento base na construção dos textos, não se tratando apenas de um tema literário, mas algo que fortalecesse a luta das mulheres em busca de libertação. Percebe-se, entretanto, que essas personagens traziam resquícios de uma escrita masculina, uma vez que a mulher vivia um constante dilema: cumprir seu papel de esposa e mãe – conduta imposta pelos poderes patriarcais – e seguir seu próprio percurso ao assumir seu papel de mulher pensante e atuante na sociedade. A mulher vivia um momento dialético, não aceitava certa situação, no entanto não se encorajava a romper com tais padrões, encontra-se, pois, no entre-lugar, conceito proposto por Santiago (2000, p. 36). O entre-lugar é um lugar imaginário, abstrato. É a busca de um lugar que não se encontra. O individuo está preso no passado e não aceita o presente. É a dúvida do sujeito que não consegue firmar-se num contexto. Não aceita o que fora imposto, tampouco se identifica com o que está vivenciando (modo de vida, cultura). As personagens
  • 19. 18 descritas pelas autoras retratavam o papel da mulher que se submete as normas sociais, mas que desejava transgredir. Sabe-se que a maioria dos escritores brasileiros do século XX escreveu sobre as mulheres e para as mulheres. As descrições físicas e comportamentais do feminino eram feitas para atender as expectativas masculinas sociais ainda regidas por parâmetros patriarcalistas. No entanto, não mais era cabível essa escrita estereotipada sobre a mulher e por ela sofrida neste contexto de expansão. A partir desse século, vê-se, com satisfação, que o quadro começa a ser alterado e a mulher passa a ocupar outro lugar na Literatura. Nesse cenário da escritura feminina, surge Sônia Coutinho. A escritora viveu sua juventude nos anos 60, momento em que os jovens manifestavam seus descontentamentos com os valores burgueses, sobretudo, a condição da mulher. Nas narrativas de Sônia Coutinho, há a criação de protagonistas que buscam “afirmar-se enquanto sujeito-mulher” (PATRÍCIO, 2006, p. 21) para questionar os papéis de esposa e mãe como únicos modelos a serem seguidos. Em 1998, escreve Os seios de Pandora, romance que tem mulheres transgressoras como protagonistas. O texto traz uma atmosfera de mistério que envolve o leitor, e uma personagem jornalista que busca a solução de um crime em família. A obra em análise, Os seios de Pandora (1998), trata de um dos últimos romances da escritora. Através de uma escrita instigante acerca da condição da mulher na busca de afirmação e visibilidade numa sociedade fragmentada, ainda regida por resquícios patriarcalistas, a autora demonstra uma constante preocupação com a situação da figura feminina e, com esta preocupação cria algumas personagens que aparecem como figuras preponderantes e que transitam narrativas plenas de conflitos em uma vida de limitações. É o caso de Tessa Laureano e Dora Diamante, mulheres de classe média urbana, personagens transgressoras. No romance Os seios de Pandora, Sônia Coutinho, através das descrições da vida de suas protagonistas, apresenta mulheres que se mostram independentes, intelectuais, aventureiras – como o próprio título do romance sugere: Os seios de Pandora: uma aventura de Dora Diamante. No entanto, não se trata apenas de uma grande aventura feminista, mas de uma descrição do cotidiano realista da mulher. Contudo, Sônia Coutinho não retrata em seu romance apenas mulheres livres. Apresenta também outro perfil de mulher que se encontra atrelada a valores patriarcais, como é o caso de Lenira – mãe de Tessa Laureano – que não aceitava a condição de a sua filha ser independente: “Um espanto, aquilo acontecer com a filha aparentemente intocada de uma
  • 20. 19 família da burguesia local” (COUTINHO, 1998, p. 32). E ainda, ao apresentar a protagonista da narrativa como uma mulher transgressora a constrói de maneira lenta, inicialmente seguindo padrões para mais tarde rompê-los, assim como se dá a luta feminina em busca de maior aceitação na sociedade e na Literatura: “Quando jovem, eu me considerava uma pessoa de cabeça aberta, mas casei virgem. Estava presa aos modelos de Solinas, fui educada naquelas escolas” (COUTINHO, 1998, p. 25). Nessa perspectiva, pode-se dizer que este romance encontra-se sob a vertente da antropofagia, visto que ao criar suas personagens traz perfis diferentes para mostrar a continuidade e a ruptura assim como a proposta do movimento antropofágico: a continuidade representada por Lenira e a ruptura por Tessa Laureano. Esse aspecto pode ainda ter sido mais um artifício que a autora utilizou para mostrar que a escrita de mulheres não é inferior à escrita feita por homens. Com a construção de suas narrativas, Sônia Coutinho, através da expressão ficcional passa a demonstrar sua força e sua capacidade de escrita. Cunha (2001, p. 22) afirma que a partir da segunda metade do século XX, com o rompimento dos critérios hierárquicos os quais excluíam a obra literária produzida por “segmentos alteritários”, houve a abertura de espaços para que as vozes marginalizadas fossem ouvidas, como no caso das mulheres, uma vez que, até o início do século XIX, atribuía-se uma inferioridade intelectual4 às mulheres assim como se fez com os negros e descendentes. Essa afirmação confirma as ideias de Le Goff (1993, p. 34) ao afirmar: “Foi necessário chegar ao século XX para que os historiadores se debruçassem sobre a história de uma metade da humanidade – ou seja, sobre a história das mulheres”. No início do século XX, as mulheres passavam cada vez mais a forçar os limites do que lhes era permitido. Em meados da década de 60, passam a lutar – através da escrita – por um lugar na Literatura onde não fossem descritas apenas como objetos maleáveis, cuja condição poderia ser modelada da forma que fosse mais conveniente para o homem. No romance Os Seios de Pandora, a autora cria uma personagem que segue a trilha da protagonista, no entanto, introduz outro fator que transgride a ideia de que o poder deve estar centrado em mãos masculinas. A personagem Dora Diamante é criada para continuar a busca por liberdade. Liberdade essa subtraída de Tessa. À Tessa coube o exercício de uma função até então cabível ao sexo masculino, como é o caso de investigador policial. Esse cargo demonstra mais uma ruptura aos valores sociais e a partir desse aspecto, Dora era vítima de 4 Somente em meados do século XIX registrou-se o início da emancipação intelectual da mulher brasileira, sob a influência européia do cientificismo herdeiro do pensamento iluminista (CUNHA, 2001, p. 23)
  • 21. 20 preconceito por parte da sociedade masculina que a enxergava como incapaz de exercer tal função: “Ele me achava raceé demais para aquilo. Dizia que eu devia estar na editoria de moda” (COUTINHO, 1998, p. 31). As narrativas femininas de Sônia Coutinho mostram a insatisfação da mulher para com o lugar de submissão, o conflito entre ser a dona do lar e a pretensão de liberdade e independência para construir e reconhecer a sua própria identidade. As personagens buscam construir seu próprio “eu”, no entanto, esse aspecto não se dá pelo fato de a autora querer se opor à condição masculina, numa procura cega de espaço, mas para mostrar que os conceitos masculino e feminino são construções discursivas dentro da cultura. 1.3 Tessa Laureano e a contemporaneidade: a pintura de uma revelação A Literatura enquanto arte serve de espaço para a articulação de questionamentos acerca da situação em que se encontra a sociedade. Ela acompanha todos os avanços impactados no mundo e representa a cópia da realidade. Com a Literatura Pós-Modernista, coloca-se em evidencia a linguagem, a arte da palavra. Durante esse momento da Literatura, rejeitaram-se as doutrinas simbolistas quase míticas que haviam influenciado a crítica literária e acentuou-se a atenção para os aspectos intrínsecos do texto literário. Deseja-se chegar a uma ciência da Literatura que tivesse por objeto não a Literatura, mas a literariedade do texto, ou seja, aquilo que lhe confere caráter literário. A utilização da Literatura para representar a realidade tornou-se bastante frequente. Para a construção dessas narrativas, os autores utilizam-se de elementos híbridos. Toda essa multiplicidade faz com que a caracterização de uma obra pós-modernista seja uma tarefa um tanto difícil. Para Coutinho (2006, p. 236), “A questão da conceituação de Pós- modernismo já em si é bastante problemática, uma vez que se trata de um fenômeno fundamentalmente heterogêneo”. Com a Literatura contemporânea, história e ficção mantêm-se ligadas, a partir de uma revisão do olhar sobre os (pré)conceitos convencionados pela sociedade, inclusive acerca da condição da mulher na Literatura, tanto como personagem quanto escritora. Sobre a literatura de autoria feminina, Almeida (1999, p. 699-70) comenta:
  • 22. 21 A escrita se torna, então, um espaço alternativo através do qual se possa [...] retomar como uma área de questionamento o espaço do outro, as brechas, os silêncios e ausências do discurso e da representação aos quais o discurso feminino tem sido relegado. A escrita se transforma numa possibilidade, num espaço que serve de impulso subversivo para a expressão de uma voz feminina que encontra em sua própria alteridade os meios de evasão. Hutcheon (1991, p.83) afirma que o Pós-modernismo assimilou muitas características inerentes ao Modernismo, no entanto criou novas perspectivas – o que se convencionou chamar de literatura contemporânea que, por sua vez, cedeu espaço às minorias, inclusive aos discursos de gênero. O romance Os Seios de Pandora é uma obra Pós-modernista por apresentar características inovadoras principalmente quando a autora descreve as suas personagens femininas. Tessa Laureano, protagonista da narrativa, mulher desafiadora aos valores convencionados socialmente, mostra-se aparentemente independente, mas carrega consigo medos e depressões por conta dos problemas enfrentados por ser uma mulher que busca novos rumos para a sua história. Seu comportamento não condizia aos costumes e modos de vida da cidade onde nascera: “Casou e descasou algumas vezes, com pessoas sempre inesperadas. Seus amores eram um prato cheio para os mexeriqueiros da provinciana Solinas” (COUTINHO, 1998, p. 15). Esses problemas eram causados pela própria família, inimiga cruel, uma vez que não aceitava a condição de vida escolhida por Tessa. Ela vive sob constantes ameaças e é vítima fatal de uma cilada: “Puxa vida, não aguentaram uma mulher como ela, pensei. Talentosa e livre, desafiadora” (COUTINHO, 1998, p. 16). Ressalta-se, porém, um dado importante: o fato de que, nas narrativas de Sônia Coutinho, a figura masculina aparece mais como planos de fundo para os romances. Em Os Seios de Pandora, a figura do pai é ausente e deixa uma herança que passa a ser o estopim para uma guerra familiar: de um lado, a mãe, o irmão e a filha, do outro Tessa, emancipada, no entanto sofre pressões da família por ainda necessitar de ajuda financeira para suprir as suas necessidades materiais: “Logo após a morte do meu pai, minha mãe, a inventariante dos bens, me telefonou e perguntou se eu não abriria mão da minha parte da herança em favor de minha filha, Zelda [...]” (COUTINHO, 1998, p. 10). Herdar do pai, para a família da protagonista, representaria concessão de poder econômico à mulher – principal entrave para a emancipação feminina. Sem o apoio da família, a protagonista apela às artes plásticas para preencher o espaço que lhes sobra por falta desse apoio. Com isso, Tessa deixa transparecer que, para a mulher, as inquietações vão
  • 23. 22 acontecer nas regras de relacionamentos e de papéis designados para a mulher. E tais papéis excluem o direito de a mulher realizar-se fora do casamento, em outro caminho que não seja o do lar. A pintura – que seria o outro caminho escolhido por Tessa Laureano – serve como um refúgio para a personagem expor seus sentimentos no que diz respeito à relação homem/mulher, já que suas telas possuem imagens de vaginas e pênis: “[...] Mas seu trabalho tinha outras facetas. Seu erotismo, por exemplo, flores-vaginas, caules-pênis. Masculino e feminino, como em Louise Bourgeois (COUTINHO, 1998, p. 38) – mais um motivo para que a sociedade a veja como algo ameaçador e atrevido, já que o trabalho feminino sempre fora reforçado no imaginário social como algo desestabilizador dos lares, pois se argumentava que, com a prática de outras atividades, as mulheres negligenciariam “seus” afazeres domésticos e sua atenção e cuidados para com o marido e filhos: “[...] a atividade profissional feminina é considerada sem valor próprio, incapaz de fundar uma identidade plena (LYPOVETSKY, 2000, p. 221). Para a construção da sua narrativa, Sônia Coutinho utiliza-se de elementos comuns à literatura contemporânea, como a forma pela qual o romance é escrito: os capítulos não são intitulados e há uma alternância de narradores. Ora quem fala é Tessa Laureano, que conta a sua trajetória de vida, ora é Dora Diamante que serve como uma espécie de ouvinte das histórias e dos fatos que envolvem Tessa para, a partir disso, construir a sua voz no texto. Outro aspecto é a relação entre texto e leitor, uma vez que a importância dada ao receptor é uma característica das rupturas pós-modernistas. Em relação a isso Compagnon comenta: Para a teoria literária, nascida do estruturalismo e marcada pela vontade de descrever o funcionamento neutro do texto, o leitor empírico foi igualmente um intruso. Ao invés de favorecer a emergência de uma hermenêutica da leitura, a narratologia e a poética, quando chegaram a atribuir um lugar ao leitor em suas análises, contentaram-se com um leitor abstrato ou perfeito (1999, p. 142). O leitor deve estar atento às pistas deixadas pelos narradores para saber distinguir quem na verdade está empregando o seu discurso no texto, visto que as narradoras- personagens possuem uma história de vida que se assemelham. Para que haja o entendimento do texto, o leitor deve adentrar a narrativa para ressignificá-la. Deve servir como uma espécie de “investigador”, já que o próprio texto traz indícios de ser uma narrativa policial, e toda narrativa dessa espécie necessita de um detetive.
  • 24. 23 Sobre a relação entre texto e leitor, Rogel Samuel discute a respeito da importância do leitor numa obra literária e enfatiza que diante de um texto, o leitor projeta expectativas que podem ser satisfeitas ou não, diz ainda que “a obra de arte não está nem no texto, nem na leitura, mas entre os dois. Acontece um ponto de convergência entre o texto e o leitor, um ponto que nunca pode ser definido completamente” (2002, p. 120). Além desse aspecto, a obra também apresenta outros artifícios que mostram o rompimento com as estruturas tradicionais de romance. Estruturas estas a que os leitores se acostumaram. A falta de uma narrativa linear, uma vez que há a mistura das histórias de vida de duas personagens – uma que conta a sua vida de luta em prol de liberdade social e financeira; outra que tenta desvendar um crime exercendo uma profissão aceitável somente para homens. Há a mistura de gêneros textuais, quando introduz trechos de cartas e notícias jornalísticas durante o discurso do narrador. Com isso, a autora rompe com o estilo clássico de escrita, liberta-se dos paradigmas literários. Para construir a trajetória de vida das protagonistas, Coutinho utiliza a morte como metáfora para o fim da “ousadia” feminina. Outro fator presente em sua narrativa é a intertextualidade 5 e se acentua ainda mais quando descreve as ações das suas personagens a partir de mitologias a respeito da condição da mulher: Uma história que se embaralha na memória. Uma história que aconteceu há muito tempo, cujos detalhes se esfumaram. Que, recriada, se torna outra. Processo de inventar uma história verdadeira. A história de Pandora, que abriu sua caixa e, de dentro, saíram pragas, a ruína e a morte. É o que me ocorre agora, recostada nos travesseiros, anos depois, segurando a pasta com as cartas de Tessa Laureano (COUTINHO, 1998, p. 24). A romancista Sônia Coutinho tem se destacado no cenário da Literatura nacional não só pela qualidade de sua ficção na qual oferece uma visão feminina da realidade, mas também pela análise crítica a respeito da sociedade brasileira contemporânea. Questiona a situação das mulheres de classe média nas últimas décadas do século XX. Envolve nesta análise as relações de gênero, os preconceitos e a sexualidade dessas mulheres. As personagens, a exemplo de Tessa Laureano que se revelou uma mulher corajosa ao quebrar os paradigmas impostos pela sociedade através de sua família, têm sido a base para a escritora 5 A intertextualidade foi introduzida na Literatura por Júlia Kristeva (1966), por influência da dialogicidade de Bakhtin. A palavra intertextualidade significa interação entre textos, um diálogo entre eles. É texto no sentido amplo: um conjunto de signos organizados para transmitir uma mensagem, portanto, no mundo atual da multimídia, ela acontece entre textos de signos diferentes.
  • 25. 24 interrogar e tentar subverter as perspectivas sociais impostas à mulher brasileira contemporânea.
  • 26. 25 2 A PENA: a revelação de um discurso em crise A escrita feminina embala o ritmo ainda lento do movimento, enquanto deslocamento, da mulher nos espaços sociais. Qualquer movimento de luta parte da escrita e, embora essa tenha sido habitual, sua ação meio estática revela-se contraditória, uma vez que se entende a movimentação acionada por aqueles que lêem. O discurso, como exposição metódica de determinado assunto, visa interferir no raciocínio ou nos sentimentos do ouvinte ou leitor. Os recursos linguísticos ou extralinguísticos presentes, no discurso, materializam-no ideologicamente. Seja lógico, dialético, retórico ou poético, ele permite a comunicação humana focada em um objetivo. O discurso que entra em crise abalara-se pela competição incoerente das formações e funções sociais. Na literatura de Sônia Coutinho não se pretende a veracidade absoluta, haja vista a presença de um discurso poético e dialético, isto é, embora saiba a improbabilidade da verdade absoluta, abandona a razão em prol da ficção ao passo que revela duas afirmações antagônicas: tese e antítese. Enquanto a tese apresenta uma afirmação ou situação, a antítese opõe-se e o conflto gera a síntese cuja nova afirmação é refutada pela antítese gerando nova síntese... um jogo infinito. Estas contradições desfilam em Os seios de Pandora. Ora, a autora põe frente à frente mulheres ideologicamente distantes. Cabe ao leitor, em meio a narrativa, buscar suas reflexões fruídas da poética do discurso. Embebe-se o leitor de um discurso um movimento em prol da consciência de novos tempos, novas funções sociais e novos desafios quanto à expectativa nas relaçõs de gênero. Sônia Coutinho desenha discursivamente a mulher contemporânea. O paradoxo entre suas personagens contempla a ambiguidade da pena na construção do eu feminino. Pena como um sentimento àquelas aprisionadas pelas convenções e conceitos cristalizados por parte dessa sociedade patriarcalista ou ainda como instrumento favorável à difusão do comportamento “transgressor”, na perspectiva tradicionalista. Mulher não se constrói no discurso de Coutinho, ela se desconstrói, quebra paradigmas e mostra-se socialmente como sujeito de sua própria história. História enigmática pincelada por Tessa Laureano cujas pistas conduzem Dora Diamante a mais um exercício transgressor dos moldes predestinados |à mulher. Revestida de detetive, Dora faz sua ronda em busca de pista que respondam sobre um assassinato alegórico da morte da transgressão à ótica patriarcalista.
  • 27. 26 Os seios de Pandora, pois, configura-se em uma questão de gênero, porém, a ele não se restringe, porque a literatura de Sônia Coutinho amplia esse universo para abstrair além de um discurso em defesa da mulher. Seu texto de qualidade explora a perspicácia do leitor não apenas para desvendar os mistérios, mas, fá-lo abrir a caixa de Pandora. Nela, além das maldades humanas, há a esperança. E Os seios de Pandora metaforizam o discurso mitológico na contemporaneidade com a pena enquanto meio simbólico da prisão/liberdade feminina ao longo do(s) século(s). 2.1 Sônia Coutinho e o desenho discursivo da mulher contemporânea O conceito de autoria, de acordo com Foucault (2001, p. 24), se estabelece, na cultura moderna, no final do século XVIII e início do século XIX, quando se instaura a noção de texto como propriedade cujos direitos passam a pertencer ao autor. Ele aparece na cultura moderna a partir do momento quando se começa a atribuir aos textos uma individualidade. A tradição literária e ainda questões mais modernas à produção escrita exaltam a figura do autor e o consideram em algumas correntes como a função que o eu assume enquanto produtor de linguagem, ou ainda, como indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto. Para contrapor a essa última ideia, Orlandi (1993, p. 78-9) traz a concepção de autor e defende que não basta falar para ser autor, falando, o indivíduo é apenas falante, “o autor é o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos, representa pela linguagem, um papel, na ordem social em que está inserido”. Além dessas funções, há uma outra, de acordo com o princípio de autoria estabelecido por Foucault (2001, p. 77) no qual ele postula que “o autor é o princípio de agrupamento dos discursos, unidade e origem de suas significações. O autor está na base da coerência do discurso”. A questão da autoria é algo bastante complexo, principalmente, quando se discute a respeito de autoria masculina e autoria feminina, pois é fato gramatical e cultural instituído que o gênero masculino engloba o feminino e a mulher aparece sempre como algo pertencente a alguém. No entanto, nas últimas décadas, tem-se demonstrado que os significados para os pares de palavras que denotam diferenças de gênero não são os mesmos, e na verdade, “autora não é feminino de autor nem linguística, nem literária, nem culturalmente (TELLES, 1992, p.46). Mas, se a mulher é tão diferente do homem em termos de produção, que aspectos
  • 28. 27 mostram essa diferença, uma vez que se discute muito com relação à busca de igualdade? Um desses aspectos são os discursos presentes nos textos escritos, visto que a mulher agora não mais aceita ser representada da mesma maneira que fora durante muito tempo pela escrita masculina. Segundo Cunha (1999, p. 11), por mais diferentes que sejam as formas de escrita da mulher, há características comuns que as identifica: “São estruturadas ou amalgamadas com a própria vivência do feminino, do ser-mulher, no ato de viver” A vida oprimida no passado reflete no comportamento feminino hoje, pois é próprio do ser humano se questionar, buscar a si quando a rotina lhe incomoda. Assim, a mulher descobriu na escrita uma forma de desmascarar os comportamentos masculinos para com a figura feminina. Por tanto sofrimento da mulher é que lhes foi “permitido” depois do penar, a pena6. Primeiro a mulher “penou”, sofreu os preconceitos e esteve sob as ordens masculinas. Em seguida, a “pena” surge em novas mãos e a escrita serve como uma espécie de refúgio, onde as mulheres poderiam expor seus sentimentos, sofrimentos, e outras mulheres tomariam também consciência da situação na qual a classe feminina se encontrava. É nessa vertente que aparece Sônia Coutinho, escritora que desenha um perfil de mulher não como vítima da sua história de subjugação ao homem, mas como causadora dos conflitos, manipuladora dos comportamentos masculinos, a exemplo de Alice – protagonista do romance O caso Alice (1991), texto que antecede a publicação de Os Seios de Pandora – que comete o homicídio contra o namorado, talvez para se vingar daquilo que sofreu durante a infância. Suas ações futuras foram influenciadas por situações passadas: Seguro o revolver com as duas mãos e faço pontaria em direção ao rosto de Dalmo – de tio Max? – é quando, num relance, imagino que tudo ainda pode ser revogado, que sou capaz de perdoar. Mas então se faz escuridão, os registros de minha memória se apagam (COUTINHO, 1991, p. 106). Vale salientar que cada pessoa tem o seu ideal linguístico e social. A língua coloca múltiplo repertório de possibilidades à disposição de cada um. Segundo Proença Filho (1999, p. 24), ao assumir o discurso, o indivíduo busca escolher os meios de expressão que melhor configurem suas ideias, pensamentos e desejos. Esses fatores é que caracterizam o estilo de cada autor. 6 Discurso da professora Eugênia Mateus de Souza em uma aula do Componente Curricular Estudo da Produção literária baiana (09/07/2010), na qual se discutia a respeito da escrita de autoria feminina na literatura.
  • 29. 28 Para definir discurso, podem-se utilizar as palavras de Barthes (2004, p. 68) quando diz que “[...] discurso é um ato individual de seleção e atualização”. O discurso possibilita operar a ligação necessária entre o nível linguístico e o extralinguístico. Na concepção bakhtiniana, os discursos não são autossuficientes nem indiferentes uns aos outros; está repleto de ecos e lembranças de outros discursos. Nesse caso, o discurso é a rearticulação do passado e projeção do futuro, carregado pelas marcas sociais, políticas, culturais e ideológicas. É o que acontece no discurso de Sônia Coutinho quando escreve romances femininos: adota inicialmente concepções masculinas ao construir personagens que mostram o comportamento feminino baseado no sistema patriarcalista e depois traz outros perfis femininos para desafiar a sociedade. Articula o passado para a projeção do futuro, como bem foi apontado no capítulo anterior. Dentre outras ideias, Foucault tem o discurso como um jogo estratégico e polêmico, assim como a luta feminina para defender sua liberdade de expressão e sua representação em obras masculinas: “O discurso não pode ser mais analisado simplesmente sob seu aspecto linguístico, mas como jogo estratégico de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva e também como luta” (2001, p. 31). Diante das concepções acima, vale ressaltar que todo discurso é carregado de 7 ideologias . Para confirmar essa ideia, Brandão discute a respeito da carga ideologia existente nos discursos e defende que: A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa intencionalidade) e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação ideológica (1997, p. 12). Diante desse aspecto, pode-se dizer que Sônia Coutinho não escreve apenas para mostrar a sua capacidade de escrita e se colocar a frente à inteligência masculina. A sua escrita possui uma ideologia, um propósito. Para tanto, utiliza-se do discurso literário para 7 Segundo Chauí (1981, p. 23) o termo ideologia nasceu como sinônimo da atividade científica que procurava analisar a faculdade de pensar, tratando as ideias como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. No entanto, para contrariar esse significado, o termo passa a ter um sentido pejorativo, pela primeira vez, com Napoleão que qualifica os ideólogos franceses de “abstratos, nebulosos, idealistas e perigosos‟ (para o poder) por causa do seu desconhecimento dos problemas concretos. Desse modo, a ideologia passa a ser vista então como uma doutrina irrealista e sectária, sem fundamento objetivo e perigosa para a ordem estabelecida.
  • 30. 29 retratar os perfis e comportamentos femininos contemporâneos além de desmascarar os preconceitos sofridos pela mulher na sociedade e na literatura, inclusive enquanto escritoras. Sobre discurso literário, Maingueneau (2006, p. 8) enfatiza que esse tipo de discurso causa ambiguidade, uma vez que a literatura tenta representar a realidade através da verossimilhança e pode apresentar mais de uma “verdade” sobre a história que, nesse caso, é a história da luta feminina. Desse modo, a literatura é utilizada como uma forma de arte e de instrumento social: [...] discurso literário soa ambíguo. De um lado, designa em nossa sociedade um verdadeiro tipo de discurso, vinculado a um estatuto pragmático relativamente bem caracterizado; de outro, é rótulo que não designa uma unidade estável, mas permite agrupar um conjunto de fenômenos que são parte de épocas e sociedades muito diversas entre si. Nessa vertente, pode-se dizer que através de seus romances, em especial, Os seios de Pandora, Coutinho analisa a situação social da mulher brasileira do século XX. A obra compreende as relações de gênero, sexualidade, maternidade e o envelhecimento, considerado por Bailey (1999) como um “fenômeno sociológico” e de questionamento às expectativas sociais conferidas à mulher brasileira contemporânea. Assim, através da suas personagens, a autora mostra a mulher que desestrutura as convenções, à revelia da história. Para exemplificar esse aspecto, têm-se as protagonistas do romance em análise. Através de um discurso instigante, Sônia Coutinho apresenta mulheres que desafiam a sociedade em busca da autoafirmação. São personagens com a idade entre os quarenta anos, “maduras”, ou seja, já refletem sobre seus atos. Uma é considerada atrevida, por desafiar a família burguesa e buscar sua independência financeira e pessoal; a outra, abusiva, por exercer uma função até então masculina, e, ainda, por investigar o assassinato da primeira. Personagens com histórias de vida parecidas e que sofrem preconceitos e ameaças por conta da coragem em enfrentar grandes desafios que, para a sociedade da época era algo extremamente transgressor. Uma das questões teóricas bastante discutidas a respeito do surgimento desse novo sujeito literário – o sujeito mulher – é a da especificidade de sua escrita. A mulher agora enquanto escritora além de desafiar a sociedade através da criação de personagens, desafia
  • 31. 30 também o próprio cânone literário 8. Esse cânone se refere ao que fora imposto pelo sistema patriarcal falocêntrico. Muitos críticos defendem a ideia de que a escrita feminina tem crescido de forma acentuada. De acordo com Cunha (1999, p. 12), “o fenômeno mais significativo da Literatura deste último quartel do século é o produzido pelas mulheres”. Através dessa expansão da produção literária feminina discute-se hoje que essa escrita revela um discurso-em-crise. Esse aspecto acontece pelo fato de as escritoras lançarem tantos desafios em sua forma de escrever e representar a condição feminina na arte. Diante de tais colocações, é possível dizer que Sônia Coutinho encontra-se nesse rol de escritoras que revelam um discurso-em-crise. No entanto, esse discurso não representa uma escrita embaraçada e confusa, como deixa transparecer na palavra “crise”. É que os leitores estão acostumados a ler obras femininas apenas sob a ótica da defesa da mulher. Coutinho utiliza a condição feminina como fonte para suas narrativas, entretanto, utiliza-se de outros elementos para descrever essa condição, como a desordem da nova linguagem poética ou ficcional, o fragmentarismo e a ambiguidade. Não retrata um olhar maniqueísta sobre a situação da mulher, mostra agora uma consciência fragmentada. Trata-se de um discurso narrativo que exige intensa participação do leitor na busca para uma possível interpretação. Ao se tornar sujeito do discurso, Sônia Coutinho entra em conflito com a passividade e obediência. Os textos expressam as novas experiências da mulher de modo peculiar e revelador e retrata a diferença do olhar feminino sobre o mundo e a diferença do mundo que observa o feminino. Com todas as inovações na forma de escrever, a concepção que se tem sobre a escrita feminina torna-se ambígua, quando as autoras possibilitam ao leitor repensar a questão da escrita não focada apenas para representar a mulher e o espaço que tem garantido no âmbito social, tampouco entrar em uma disputa cega por prestígio, mas mostrar que através da escrita, as mulheres tem se conscientizado e ganhado força para construir uma identidade que não servisse apenas de suporte para o homem. 8 Segundo Reis (1992), o cânone literário é o conjunto de obras e seus autores, consolidadas como “as maiores” e atemporais, bem como reprodutoras de valores, normalmente ditas universais, e por isso, dignas de estudo e transmissão às futuras gerações.
  • 32. 31 2.2 A ambiguidade da pena na construção do eu feminino A questão da identidade é um dos temas de grande repercussão em discussões na teoria social. A ideia de que as “velhas identidades” que durante tanto tempo trouxeram estabilidade para o mundo estão em declínio e com isso surgem novas identidades. Como conseqüência tem-se a fragmentação do individuo moderno até então encarado como um sujeito unificado (HALL, 2003, p.7). Os teóricos argumentam que as rápidas e sucessivas transformações do mundo globalizado têm causado uma mudança na forma de os indivíduos verem a sociedade e os sujeitos. A partir de todas as transformações no quadro social, a identidade pessoal é também atingida na medida em que há a multiplicação dos meios de representação e significação cultural. Com relação à identidade feminina, muitos estudiosos defendem que o movimento feminista é um dos responsáveis pelo descentramento do individuo moderno, uma vez que reivindica a posição social das mulheres que passaram a questionar a formação de identidades próprias. Nessa vertente, a representação da identidade feminina sofre mudanças: o papel que exercia na sociedade, que antes era certo (mesmo que convencionado socialmente), agora é representado sob diferentes formas. O discurso a respeito de uma identidade feminina fragilizada tem decaído devido aos espaços de atuação da mulher. Isso acontece por causa das transformações do mundo moderno que conduziu a mulher a atuar em domínios, antes, privilégios masculinos. Um dos espaços conquistados é a escrita literária. Ao se tratar do tema identidade feminina na Literatura, principalmente, quando os textos forem escritos por mulheres, deve-se levar em consideração a duas posições que a mulher exerce dentro das narrativas: a escritora – que cria personagens femininas – e a personagem que é um indivíduo diferente daquele que escreve. Nesse aspecto, podem-se analisar as personagens femininas de Sônia Coutinho. A autora as constrói para mostrar a busca incansável por uma identidade feminina respeitada pela sociedade onde estão inseridas. Nesse mesmo contexto, tem-se a autora, que, através de sua escrita, tenta neutralizar as diferenças entre os sexos e mostrar que a mulher capaz de lidar com a arte escrita. Há, portanto, dúbio sentido quando se fala da busca pela construção da identidade feminina. Em Os Seios de Pandora, as protagonistas buscam a sua identidade através de desafios lançados à sociedade. Tentam exercer muitos papéis e com isso causam conflitos familiares e sociais. Pode-se dizer, portanto, que a narrativa traz uma abordagem das grandes questões individuais e sociais que afetam as pessoas em situações diversas, como é o caso de
  • 33. 32 Tessa Laureano. Apesar de apresentar características inerentes à mulher contemporânea, busca uma identidade fixa que coloque em evidência a sua capacidade de desempenhar várias funções e ser independente. Sabe-se, entretanto, que a procura pela identidade definida é algo extremamente complexo, uma vez que de acordo com Stuart Hall “A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2003, p. 13). O sujeito pós-moderno é definido por Hall como não possuindo uma identidade essencial ou permanente, ela é formada e transformada de acordo ao sistema cultural que o indivíduo está inserido. Assim, Tessa Laurenao, ao exercer tantas funções, seu próprio “eu” entra em conflito. Ora, sente-se forte por conseguir desafiar as ideias da época, ora se sente frágil por ainda depender do apoio de outras pessoas para se manter livre: “[...] a própria Tessa não tinha muita clareza quanto ao que estava acontecendo com ela. Só sabia que enfrentava uma série de obstáculos e infortúnios. Às vezes achava que era tudo vingança da mãe, mas não sabia o motivo” (COUTINHO, 1998, p. 36). Essa crise de identidade faz parte de um processo amplo de transformações sofridas pela sociedade moderna. Com isso, há um abalo nos quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. Sobre essa crise e a adversidade da construção identitária, Stuart Hall, discute: Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos [...] (HALL, 2003, p. 13). A identidade é definida historicamente e não biologicamente (HALL, 2003, p.25). Em se tratando de Tessa Laureano, nasceu em uma cidade interiorana regida por ideias patriarcalistas, no entanto, assume identidades diferentes em diversos momentos. Identidades essas que não unificadas ao redor de um “eu” coerente (HALL, 2003, p.14), vive como a profissional em busca do produto de seu trabalho, quer a independência financeira e procura o reconhecimento da maternidade. Por conta de tantas funções sente-se, muitas vezes, solitária, confusa, fragmentada. Ao falar em fragmentação do sujeito pós-moderno, a teoria de Homi Bhabha (1994. p. 26) torna-se de grande importância para essa discussão e para a análise da personagem, uma vez que, para o autor, o ser humano encontra-se em um momento de
  • 34. 33 trânsito, onde espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas cujas identidades são extremamente fragmentadas e em um constante processo de construção, e exatamente por isso, levando a uma certa sensação de desorientação e, algumas vezes, até mesmo de exclusão. Sônia Coutinho, através da escrita, apresenta mulheres que buscam uma identidade capaz de sustentar sua condição de sujeito apto ao exercício de várias funções. É possível dizer ainda que essa escrita feminina seja decorrente de um conflito identitário da relação da mulher com a busca pela sua própria identidade. Os Seios de Pandora, assim como outros textos da autora, apresentam mulheres em busca de uma identidade desvinculadas de valores convencionados pela sociedade. Não se trata de textos em defesa da causa feminina. A autora assume uma visão equilibrada acerca do processo de emancipação da mulher e apresenta, através da ficção, os avanços, os problemas e os limites, quando dramatiza situações vivenciadas por personagens misteriosas e desafiadoras. Diante desse aspecto, não se pode negar que a sua ficção serve como uma ponte para as discussões a respeito da questão de gênero na Literatura. 2.3 Os seios de Pandora: uma questão de gênero O estabelecimento do gênero como uma categoria importante à análise literária causou alguns abalos à tradição ocidental. Com o rompimento do papel que vinha desempenhando através de séculos – o de ser somente sujeito passivo da história – e com o ingresso em domínios públicos, as mulheres trouxeram grandes transformações nas estruturas psíquicas, tanto dos homens quanto delas próprias. Para a reflexão a respeito dessas transformações, as discussões acerca das questões de gênero têm ganhado força, sobretudo na Literatura, a partir do crescente número de publicações femininas e dos estudos sobre a mulher e a sua escrita. Helena Confortin (2003, p. 108) postula que o conceito de gênero é ainda para a sociedade algo bastante polêmico, haja vista ser recente em termos de ciência. É usado há menos de vinte anos e foi introduzido pelas feministas anglo-saxãs. Campos (1992, p. 113) ainda traz outra definição a respeito de gênero e como esse termo foi sendo desenvolvido em outras camadas além da história de luta feminina: Gênero concerne à experiência social e pessoal de um e de outro sexo; desenvolve-se enquanto categoria analítica a partir do pensamento feminista,
  • 35. 34 nos anos 80 [...] e assinalando uma transformação relativamente a centros de interesse da década anterior, tais como uma história das mulheres, a questão da ginocrítica, isto é, do estudo feminista da escrita da mulher, pressupondo- a marcada pelo sexo. Transcedendo, porém, as fronteiras da pesquisa feminina vão inscrever-se nas categorias das ciências humana e sociais, de sorte que sua utilização paraleliza-se às demais categorias indicadoras de diferença. Em muitas pesquisas, a questão de gênero tem sido utilizada como sinônimo de mulheres. Esse aspecto preocupa alguns estudiosos, uma vez que, a partir dessa concepção de gênero, os estudos femininos se centrariam nas mulheres de maneira estreita. Dessa forma, a noção de gênero definiria as mulheres e os homens em termos recíprocos, não podendo ser entendidos de forma individual. No entanto, deve-se repensar a questão de gênero como “uma categoria útil à história e não apenas à história das mulheres [...]. O gênero dá significado às distinções entre os sexos, ele transforma seres biologicamente machos e fêmeas em homens e mulheres, seres sociais” (SCOTT, 1992, p. 64). Para Scott, os estudos sobre gênero devem incluir o homem e a mulher em suas múltiplas vinculações, prioridades e relações de poder. Esse termo pode enfatizar a história das mulheres, mas também a dos homens e até das relações entre homens e mulheres, além de oferecer um espaço para a análise das desigualdades e das hierarquias entre esses segmentos sociais. Para reafirmar essas concepções, Costa et al (1985, p. 5) discutem que, a partir dos estudos de gênero houve uma mudança significativa no olhar sobre a mulher e sua relação com o homem e a sociedade. A partir desse ponto de vista haverá maior entendimento sobre as desigualdades enfrentadas pelas mulheres em detrimento dos homens: Há um esforço para dar visibilidade à mulher como agente social e histórico, como sujeito; portanto, o tema sai das notas de rodapé e ganha o corpo dos trabalhos. Surgem estudos preocupados não só em desvendar a opressão das mulheres, como também demonstrar que a abordagem destas questões pode trazer contribuições importantes ao entendimento da sociedade. É nessa vertente que se encontra, além de outros aspectos, o romance Os Seios de Pandora, haja vista a autora utilizar o espaço da escrita para mostrar a relação existente entre o sexo masculino e o feminino, o primeiro sendo ainda abordado como ser superior tanto no aspecto intelectual quanto social e o segundo como agente paciente de todas as ações praticadas pelo homem, além de desmascarar os preconceitos sofridos pela figura feminina quando procuram igualar-se à masculina em termos de independência financeira e profissão:
  • 36. 35 “Estava triste. Imaginou o que veriam nela as pessoas com quem cruzava. Uma mulher machucada, barriguinha proeminente, bolsas em cima das pálpebras. Uma mulher a quem ninguém mais dava importância” (COUTINHO, 1998, p. 64). Os Seios de Pandora tratam de um texto que faz repensar a questão de gênero não mais centrada somente no feminino, mas em gênero como mudança, “[...] ultrapassando a fase da denúncia e opressão e a descrição das experiências e/ou vivências femininas” (CONFORTIN, 2003, p. 110). Com a exposição do cotidiano realista da mulher, a autora quer mostrar as diferenças que existem entre os sexos e o modo pelo qual essas diferenças têm sido entendidas como desigualdades. Por ser mulher e escrever sobre mulheres não faz com que a autora utilize seus textos somente como argumentos para a defesa feminina, apenas tenta mostrar que não há diferenças entre os sexos, apenas os homens, ao possuírem o poder da escrita, a utilizaram para beneficiarem a si próprios e à sociedade a qual pertenciam. Não se pode negar que há diferenças biológicas na caracterização do masculino e do feminino, no entanto, essas características não devem ser vistas como algo que dê superioridade ao ser masculino. Discursos biológicos em torno dessas diferenças tentam convencer a sociedade de que o cérebro da mulher é desenvolvido de uma determinada forma e o do homem de outra, de maneira que faz com que os homens sejam mais lógicos, mais racionais, capazes de tomar decisões difíceis e as mulheres sejam intuitivas, frágeis, sentimentais. Essas ideias de diferenças entre os sexos é que geram preconceitos contra a mulher. No caso do romance em análise, a personagem Dora Diamante ao procurar emprego como redatora de jornal foi dispensada porque naquele momento só havia vaga para a sessão policial e no pensamento do chefe de departamento, uma mulher não poderia preencher tal vaga: “A vaga estava ocupada por outro redator. O único lugar disponível era na policia. Eu voltaria para a variedade, prometeu ele, logo que surgisse oportunidade” (COUTINHO, 1998, p. 19). A obra de Sônia Coutinho mostra-se muito representativa da modernidade narrativa, sobretudo quando pretende destacar e discutir a questão de gênero. A autora, através do romance Os Seios de Pandora revela o universo feminino do ponto de vista da própria mulher. E este aspecto permite abordar com maior autoridade as questões que envolvem o feminino. As suas personagens exemplificam como a sociedade ainda encara a mulher a partir de vários estereótipos com os quais as mulheres “modernas” precisam lidar, mesmo vivendo no século XXI. Os perfis escolhidos, conforme são apresentados na obra, mostram mulheres em transformação, na qual está em busca de sua identidade e precisa
  • 37. 36 enfrentar diversos conflitos para buscar sua valorização enquanto ser humano sem levar em consideração o sexo ao qual pertencem.
  • 38. 37 3 PANDORA E SUA CAIXA: as surpresas da narrativa de Sônia Coutinho A narratologia contemporânea permeia os espaços artisticoliterários e tal como a literatura clássica prescinde dos recursos intertextuais. A caixa de Pandora e seus mistérios metaforizam a escrita de Os seios de Pandora. Todo um mistério, a busca por pistas e os segredos por se revelarem à luz de olhos perspicazes como os de Dora Diamante. Dora, nome de origem grega, significa presente, dádiva. Indica uma pessoa que resolve tudo devagar, pacientemente e de modo ordenado; bom senso e moderação. Diamante, também grego, significa inconquistável, indomável, por sua dureza. Eis um bom perfil para a personagem que viria a desvendar os enigmas que circulavam a morte de Tessa - forma diminutiva do inglês Therese, Teresa. Certamente origina-se do grego theros, verão, ou therizo, colher. Laureano, expressão latina, significa coroado com louros, vitorioso. Tessa Laureano traduz a liberdade e a vitória de uma mulher que, acusada pela família e pela sociedade, perde a vida misteriosamente e cabe à Dora Diamante, com sua vontade férrea e prudência, aniquilar os segredos de uma perseguição. As pistas a serem seguidas eram tão obscuras quanto o título Os seios de Pandora. Faz-se necessário conhecer o mito de Pandora e sua caixa de maus fluidos quebrantáveis apenas por um único elemento: a esperança. Tem-se, pois, um caso para estudo. O gênero policial, mais indicado para a tessitura do texto, imbrica-se nas teias literárias e desfaz o estereótipo de subliteratura. Há um texto de elaboração exemplar aberto às discussões desde criação literária à quebra, à transgressão de escrita. Literatura Contemporânea, repaginada e mais consistente, retrata as transgressões sociais com mais veemência. A arte relendo a vida com imagens atemporais próprias à metaforização de fatos e ou acontecimentos relegados a espaços sociais. A linguagem literária plena de prazer e fruição permite ao leitor o sabor e o saber de expressões norteadoras para compreensão de comportamentos. Como a morte é veiculada nessa arte em Os seios de Pandora? A morte do sonho de liberdade ressignificada por olhares que resgatam pistas e demonstram que a mulher morre na representação de seus desejos, mas permanece na luta por encontrar o espaço e o direito social de ir e vir, de possuir vida privada e pública. O gênero policial de Sônia Coutinho como reinvenção de estilo. Uma personagem detetive que estabelece a distância
  • 39. 38 entre a mulher e a mulher, isto é, há modelos que são revisitados e decifrados nesse gênero policial: mistério e investigação. 3.1 Seios e Pandora: pistas de um gênero policial Cada século traz consigo afirmações e inúmeras mudanças nas estruturas sociais. Durante o século XX, com o aumento da violência urbana, coube à Literatura o papel de representar também tais acontecimentos. Os crimes passaram a ser tema de textos literários e a partir desse aspecto um novo gênero é introduzido na Literatura: o gênero policial. Atribui-se o surgimento do romance policial ao escritor Edgard Allan Poe com a publicação de contos utilizando-se do ambiente urbano com a mistura de elementos como o crime, o detetive e a investigação, elementos estes que passaram a ser peças-chave para o surgimento de textos no gênero policial. No Brasil, é possível dizer que não há uma tradição de produzir esse tipo de romance como houvera sempre nos Estados Unidos. Contudo, observa-se que, nas últimas décadas, houve um crescente número de escritores e escritoras que adentram a esse gênero e o sucesso de público tem sido o mesmo que em outros países cuja produção é ainda maior. Assim como Edgard Allan Poe pode ser considerado o introdutor do texto policial, há também a “versão feminina” que se destaca no cenário desse tipo de escritura: Agatha Christie, que já vendeu milhões de exemplares dos seus livros e se sobressai ainda por ter sido a grande precursora da figura do detetive feminino. Desde sua origem, o romance policial tem sido escrito por um grande número de mulheres que até recentemente adotavam modelos masculinos para suas narrativas. No entanto, o amadurecimento crítico resultou numa transformação radical da escrita feita pela mulher: passou de uma literatura sentimental, que apreciava a emoção para uma literatura de perfil questionador, revolucionário, político, que coloca em evidência a ação. Desse modo, o “amor” passa a ser um tema pouco explorado (no entanto, não esquecido) e dá-se ênfase à exploração de aspectos que até então diziam respeito ao homem, fator tão discutido na literatura feminina contemporânea. Com o aparecimento de escritoras no contexto policial, o próprio gênero passa agora a ter um novo olhar, uma vez que as mulheres impõem em seus textos, uma visão feminina da realidade e a partir desse aspecto outros elementos, típicos da escrita de autoria
  • 40. 39 feminina são introduzidos para mostrar uma nova concepção de romance policial longe de estratégias tradicionais masculinas. Nesse âmbito de inovações na escrita de romances surge Sônia Coutinho. A autora tenta romper paradigmas acerca da escrita de autoria feminina, introduzindo, em seus textos, aspectos inerentes ao gênero de romance policial, considerado por muitos críticos literários como uma degradação na Literatura, isto é, subliteratura. No entanto, Mario Pontes (2007, p. 68) defende a ideia de que não se deve julgar esse gênero como uma “desprezível subliteratura”. Ele tem seus processos, com suas próprias regras. Em Os seios de Pandora, há outros elementos a serem discutidos - além da questão da figura feminina na Literatura -, uma vez que o texto traz uma atmosfera de mistério que envolve o leitor e uma personagem que tenta investigar a vida da protagonista após certos acontecimentos misteriosos – aspectos marcantes na escrita da autora, uma vez que o romance em questão segue uma trilogia de romances que podem estar inseridos no gênero policial. Sônia Coutinho enquanto autora do campo de escritoras que discutem e criam imagens de mulheres na ficção brasileira contemporânea introduz novos conceitos e mudanças em sua forma de escrever. De acordo com Mario Pontes (2007, p. 56), as mulheres começaram a escrever e publicar contos e romances policiais. Começaram a se tornar importantes por capacidade e “ousadia” de utilizarem as mesmas estratégias de autores que as precederam, uma questão de influência, muito comum a toda escrita. Isso vem confirmar as ideias de Sônia Coutinho quando discute a respeito da inserção de mulheres no contexto do gênero policial: “[...] as escritoras de livros policiais, até bem recentemente, adotavam elas próprias modelos masculinos para suas histórias e personagens, criando detetives homens, calcados nos tipos consagrados do gênero” (COUTINHO, 1994. p. 17). No que diz respeito às características estéticas do romance policial, teóricos como François Fosca (apud Tzvetan Todorov, 2006, p. 95) descrevem este tipo de romance da seguinte forma: Parte-se de um caso de aparência inexplicável, uma personagem é culpada injustamente, a partir de indícios superficiais. Aparece a figura do detetive (geralmente, homem) que investiga, raciocina para desvendar o mistério do caso. A solução é sempre imprevista e coerente e quanto maior for o mistério, mais simples será a sua explicação. Para muitos autores, o romance policial é uma narrativa de massa fundamentada em conceitos fixos que chegam ao ponto de tentar encaixá-los em fórmulas. Nessa vertente, Tzvetan Todorov (2006, p. 95), ao utilizar a noção de estrutura, estabeleceu uma tipologia
  • 41. 40 para o romance policial, que se tornou referência obrigatória. O autor classifica o policial em três modalidades: o romance de enigma que apresenta um sempre um crime misterioso a ser esclarecido e, além disso, os crimes são sempre solucionados sem riscos nem ameaças para o detetive; o romance negro, cujas histórias se fundem, a narrativa coincide com a ação do crime; e o romance de suspense que combina as propriedades das anteriores, serve de transição entre o romance de enigma e o romance negro. No romance em análise a autora utiliza elementos próprios do gênero policial, como uma morte, um suspeito, mistérios e ainda a presença de uma personagem que se dispõe a fazer uma investigação acerca da morte da protagonista: “Enquanto penteava a matéria sobre espancamento, o assassinato de Tessa foi me enchendo de raiva”. [...] E me ocorreu que eu podia fazer uma bela reportagem, um protesto, em torno do seu assassinato (COUTINHO, 1998, p. 16). No entanto, essas características são apresentadas sob uma nova perspectiva. Não segue necessariamente as regras que são impostas à produção de romance policial. A figura do detetive – característica do gênero policial - não se encontra na narrativa de Sônia Coutinho. Essa característica tem sido abordada pela escritora de forma diferente do romance policial de autoria masculina, uma vez que alguns elementos do romance escrito pela ótica masculina não fazem parte ou são alterados, quando escritos sob o olhar da mulher. No entanto, é possível salientar que, com todas as transformações que a escrita feminina tem sofrido, o próprio gênero policial passa por um processo de desconstrução, com o aparecimento da ótica feminina, pela qual se trocam modelos tipicamente masculinos por abordagens femininas, criando detetives mulheres que, consequentemente, desconstroem essa imagem cristalizada de detetive homem. Freitas (2005, p. 04) discute a respeito de características modernas do romance policial e destaca que, na Literatura brasileira das últimas décadas do século XX, o romance policial, remodelado, emerge como exercício de questionamento. Investigar não se restringe mais à busca de culpados, mas sim, à exposição das dúvidas sobre os impasses humanos e sobre a própria experiência artística. É o que acontece com a investigadora Dora Diamante ao buscar desvendar os mistérios que envolvem a morte de Tessa Laureano. Não busca apenas identificar o assassino, mas também tenta desvendar o motivo pelo qual levou à morte uma mulher que para ela era extremamente corajosa. Como bem postula Coutinho (1994, p. 14), a evolução do romance policial através da inserção da voz feminina nesses textos trouxe inúmeras inovações. As mulheres passaram