Estudos em história da igreja a era da reforma protestante
1. Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior
Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
ESTUDOS DE HISTÓRIA
DA IGREJA
A ERA DA REFORMA
PR. ARY QUEIROZ VIEIRA JÚNIOR
2. Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior
Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
Sumário
I. A Causa Imediata da Reforma, Lutero e o Avanço do Luteranismo ......................................... 3
1. Introdução. ............................................................................................................................ 3
2. Martinho Lutero (1483-1546). .............................................................................................. 3
3. O impacto de Lutero............................................................................................................ 12
4. O avanço do Luteranismo. .................................................................................................. 13
II. Ulrich Zwínglio, a Reforma na Suíça e os Anabatistas.......................................................... 15
1. Introdução. .......................................................................................................................... 15
2. Ulrich Zwínglio................................................................................................................... 15
3. Os Anabatistas..................................................................................................................... 20
III. João Calvino e a Reforma em Genebra................................................................................. 26
1. João Calvino e a Reforma em Genebra............................................................................... 26
2. Atividades missionárias de Calvino. ................................................................................... 31
3. Missões Calvinistas no Brasil Colonial............................................................................... 33
4. A obra, a pregação e a influência de Calvino...................................................................... 37
5. O pensamento de Calvino: Calvinismo ou Fé Reformada. ................................................. 42
IV. O Calvinismo Além da Suíça................................................................................................ 50
1. O Calvinismo na Alemanha e o Catecismo de Heidelberg................................................. 50
2. O Calvinismo na Hungria, Escócia e Irlanda. ..................................................................... 51
3. O Calvinismo na França...................................................................................................... 53
V. O Calvinismo Além da Suíça................................................................................................. 57
1. A Reforma na Holanda........................................................................................................ 57
2. A Confissão Belga, a Controvérsia Arminiana e o Sínodo e os Cânones de Dort.............. 60
3. O Calvinismo Holandês no Brasil Colônia. ........................................................................ 65
VI. A Reforma na Inglaterra ....................................................................................................... 71
1. Introdução. .......................................................................................................................... 71
2. A Reforma sob Henrique VIII (1509-1547)........................................................................ 71
3. A Reforma sob Eduardo VI (1547-1533)............................................................................ 73
4. A reação católica de Maria Tudor (1553-1558).................................................................. 74
5. A reforma sob Elizabeth: a Era Elizabetana (1558-1603)................................................... 76
6. O puritanismo...................................................................................................................... 77
7. Os puritanos congregacionais: separatistas e independentes............................................... 78
8. O governo da Igreja e sua relação com o Estado nas diversas tradições protestantes......... 86
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9. Ascensão e declínio do puritanismo.................................................................................... 91
VII. A (Contra-)Reforma Católica Romana, a ameaça sociniana e a síntese da Reforma
Protestante................................................................................................................................... 97
1. A (Contra-)Reforma Católica Romana................................................................................ 97
2. A ameaça sociniana........................................................................................................... 101
3. A síntese da Reforma. ....................................................................................................... 103
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A Reforma Protestante
I. A Causa Imediata da Reforma, Lutero e o Avanço do Luteranismo
1. Introdução.
Diversos fatores se conjugaram para formar o ambiente no qual floresceu a
reforma religiosa do século XVI, dentre eles as transformações nos campos político,
social, econômico, intelectual e geográfico. Entretanto, a causa imediata da Reforma
Protestante envolveu diretamente as ações corajosas de um monge alemão agostiniano
chamado Martinho Lutero, sobre quem nos concentraremos nesse momento de nosso
estudo.
2. Martinho Lutero (1483-1546).
2.1) Da formação à experiência da torre. Lutero nasceu em 10 de
novembro de 1483, na vila de Eisleben, na Saxônia, Alemanha. Seu pai, Hans Luder, era
minerador de prata e sua mãe, Margarethe, uma católica fervorosa, embora bastante
supersticiosa. Seu pai tudo fez para que Lutero seguisse a carreira jurídica, dando-lhe a
melhor educação possível.
Sobre a infância do reformador, Justo L. Gonzalez escreveu o seguinte:
“Seus pais eram extremamente severos com ele e muitos anos mais tarde ele mesmo
contava com amargura alguns dos castigos que lhe eram impostos... Na escola suas
primeiras experiências não foram melhores, pois também posteriormente se queixava de
como o tinham golpeado por não saber suas lições”.
Aos 14 anos, foi enviado para estudar em Mansfeld, e depois em
Magdeberg, onde estudou com os Irmãos da Vida Comum. Entre os anos de 1498 a 1501,
estudou na escola de Eisenach. Em 1501, já estava na Universidade de Erfurt, onde
recebeu grau de bacharel em artes (em 1502) e de mestre em artes (em 1505).
Tudo estava como planejado pelo velho Hans. Chegara o momento de
ingressar no curso de direito. Mesmo Lutero tinha a intenção de tornar-se advogado. Mas,
num certo dia de 1505, durante uma tempestade, ele foi atingido por um raio e, lançado
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ao chão, clamou por Santa Ana, a padroeira dos mineiros: “Santa Ana, salve-me! E me
tornarei monge”. Para a completa insatisfação dos pais, Lutero manteve a promessa e no
dia 17 de julho de 1505, com 22 anos, ingressou no convento dos monges agostinianos.
Em 1507, Lutero foi ordenado sacerdote na Catedral de Santa Maria e, em
1508, seu superior, Johann von Staupitz, o compeliu a tornar-se doutor em teologia, grau
que colou em 1512. Antes, porém, entre os anos de 1510 e 1511, sua ordem o enviou a
Roma, ocasião em que ficou impressionado com a luxúria da Igreja Romana.
Em 1512, começou a preparar-se para fazer uma série de preleções na
faculdade de teologia da Universidade de Wittenberg. Entre 1513 e 1515, deu aulas sobre
os Salmos; entre o fim de 1515 e 1517, lecionou sobre Romanos, Gálatas e Hebreus; e,
entre 1518 e 1519, sobre os Salmos outra vez. Foi durante essas preleções que o
reformador começou a adquirir uma nova compreensão das Escrituras. Escrevendo mais
tarde, ele disse: “No transcorrer desses estudos, o papado soltou-se de mim” (citado por
Franklin Ferreira).
Enquanto monge, Lutero era de uma dedicação quase obcecada. Estava
sempre atormentado com a ideia da majestade de Deus e pelo senso de sua
pecaminosidade. Às vezes, engajava-se em penitências que extrapolavam os limites
suportados pelo corpo, chegando a jejuar três dias e a dormir no inverno sem cobertor.
Sobre sua primeira missa, ele disse: “Eu estava completamente estupefato e aterrorizado.
Pensava comigo mesmo: ‘Quem sou eu para erguer os olhos e as mãos para a divina
majestade? Pois sou pó e cinzas, e cheio de pecado, e estou falando com o Deus vivo,
eterno e verdadeiro’”.
Anos depois, Lutero falou o seguinte sobre a sua conduta como monge: “Eu
obedecia as regras tão rigidamente, que posso afirmar que, se um monge fosse para o céu
por sua dedicação, esse monge seria eu. Se tivesse continuado dessa forma por mais
tempo, teria me matado com vigílias, orações, leituras e outros trabalhos”. Durante esses
anos tentando aplacar a agonia da alma, o confessor de Lutero o orientou que ele amasse
a Deus, e um dia ele desabafou: “Eu não amo a Deus! Eu o odeio!”
Assim Lutero seguiu até novembro de 1515, quando começou a expor a
Epístola de Paulo aos Romanos, aulas que perdurou até setembro de 1516. Foi nesse
período que compreendeu a doutrina paulina da justificação pela fé somente, a partir da
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leitura de Romanos 1:17: “visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em
fé, como está escrito: ‘o justo viverá por fé’”. Ele escreveu o seguinte sobre a experiência
da torre (como é chamada, por ter ocorrido na torre do Castelo Negro de Wittenberg):
“Ansiava muito por compreender a Epístola de Paulo aos Romanos, e nada me
impedia o caminho, senão a expressão ‘a justiça de Deus’, porque a entendia
como se referindo àquela justiça pela qual Deus é justo e age com justiça
quando pune os injustos... Noite e dia eu refletia até que... captei a verdade de
que a justiça de Deus é aquela justiça pela qual, mediante a graça e a pura
misericórdia, Ele nos justifica pela fé. Daí em diante, senti-me renascer e
atravessar os portais abertos do paraíso. Toda a Escritura ganhou novo
significado e, ao passo que antes ‘a justiça de Deus’ me enchia de ódio, agora
se me tornava indizivelmente bela e me enchia e maior amor. Esta passagem
veio a ser para mim uma porta para o céu” (citado por F. F. Bruce).
2.2) Das 95 teses ao rompimento com Roma. Enquanto Lutero descobre a
futilidade das obras e a suficiência da fé no sacrifício de Jesus para a salvação, um monge
dominicano chamado Johann Tetzel, representando o papa Leão X, começou a vender
indulgências em Juterborg, próximo a Wittenberg, cuja parte da arrecadação seria
destinada a Roma, à construção da Catedral de São Pedro.
A venda de indulgências tanto tinha relação com os interesses do papa, em
Roma, como com os poderosos senhores feudais locais. Alberto de Brandeburgo, membro
da casa dos Hohenzollern, que já tinha duas sedes episcopais, desejava ocupar também o
arcebispado de Mainz. Para tanto, acordou com Leão X no sentido deste lhe conceder o
desejo em troca de dez mil ducados, uma soma considerável de dinheiro. Foi para
arrecadar esse valor que o papa autorizou Alberto a lançar uma venda em larga escala de
indulgências, que, a seu turno, encarregou Tetzel da mercancia. “Logo, a grande basílica
que hoje é o orgulho da igreja romana foi uma das causas indiretas da reforma protestante”
(J. L. Gonzalez).
Indulgências eram diplomas que garantiam o pleno perdão de pecados, ou a
redução da punição. Enquanto oferecia seu “produto”, Tetzel afirmava: “‘Não vale a pena
atormentar-se: podes resgatar seus pecados com dinheiro! Pagando, podes escapar dos
sofrimentos do purgatório e aliviar os dos outros!’, e tudo embalado pelo cântico: ‘Na
hora em que a moeda no cofre cai, uma alma do purgatório sai’” (Franklin Ferreira); “As
indulgências deixam o pecador mais limpo do que quando saiu do batismo”; “A cruz do
vendedor de indulgências tem tanto poder quanto a cruz de Cristo”...
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Em resposta àquilo que considerou abusivo, Lutero afixou suas 95 teses na
porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, no dia 31 de outubro de 1517, com o título
Debate para o Esclarecimento do Valor das Indulgências. Ele escolheu aquela data
propositalmente, pois no dia seguinte se comemoraria a festa de Todos os Santos. Flaklin
Ferreira anotou que “O fato de afixar uma tese na porta da igreja não era grande coisa,
pois os eruditos naquele tempo faziam isso; mas, com a invenção da imprensa, essas teses
foram traduzidas e se espalharam pela Europa, dando início à batalha”.
Eis algumas teses de Lutero:
1ª. Tese: Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo: “Arrependei-vos”,
certamente quer que toda a vida dos crentes na terra seja contínuo
arrependimento. 2ª. Tese: E esta expressão não pode e não deve ser interpretada
como referindo-se ao sacramento da penitência, isto é, à confissão e satisfação,
a cargo do ofício dos sacerdotes. (...) 21ª. Tese: Eis porque erram os
apregoadores de indulgências ao afirmarem ser o homem perdoado de todas as
penas e salvo mediante a indulgência do papa. (...) 27ª. Tese: Pregam
futilidades humanas quantos alegam que no momento em que a moeda soa ao
cair na caixa a alma se vai do purgatório. 28ª. Tese: Certo é que no momento
em que a moeda soa na caixa vem o lucro e o amor ao dinheiro cresce e
aumenta; a ajuda, porém, ou a intercessão da Igreja tão só correspondem à
vontade e ao agrado de Deus. (...) 62ª. Tese: O verdadeiro tesouro da Igreja é
o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus. 63ª. Tese: Este tesouro,
porém, é muito desprezado e odiado, porquanto fez com que os primeiros
sejam os últimos. 64ª. Tese: Enquanto isso o tesouro das indulgências é
sabiamente o mais apreciado, porquanto faz com que os últimos sejam os
primeiros. (...) 82ª. Tese: Eis um exemplo: Porque o papa não tira duma só vez
todas as almas do purgatório, movido por santíssima caridade e em face da
mais premente necessidade das almas, que seria justíssimo motivo para tanto,
quando em troca de vil dinheiro para a catedral de São Pedro, livra um sem
número de almas, logo por motivo bastante insignificante? (...) 86ª. Tese:
Ainda: Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior que a dos mais ricos, não
prefere edificar a Catedral de São Pedro de seu próprio bolso em vez de o fazer
com o dinheiro dos fieis pobres?
Lutero atacou a tiara do papa e a barriga dos frades. “Tiara” é símbolo do
poder papal. A ganância dos frades, por outro lado, foi sacudida. O machado estava posto
à raiz da arvore. Em 15 dias, toda a Alemanha sabia dessas teses. Em quatro semanas,
toda a cristandade sabia delas e, nesse período, foram traduzidas para o holandês e para o
espanhol. Até em Constantinopla foram vendidas.
O papa demorou para reagir. A princípio, acreditou tratar-se de uma briga
entre frades, sem maiores sequelas. A vida de Lutero, por outro lado, mudou
radicalmente. De pacato professor de teologia, dá início a uma sequência de debates e
“Dietas”. O primeiro debate ocorreu em Heidelberg, em maio de 1518, em sua própria
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ordem, sem maiores consequências, visto que só compareceram aqueles que aceitavam
suas ideias, dentre eles Martin Bucer (1491-1551).
O segundo aconteceu em outubro de 1518, na Dieta de Augsburgo. O
cardeal Tomás Cajetano era o representante do papa. Foi ele que exigiu que Lutero se
retratasse e tentou levá-lo cativo a Roma. Lutero se escondeu e, durante a noite, retornou
a Wittenberg. Steven J. Lawson escreve a respeito: “Desde João Huss nenhuma outra
pessoa tinha falado tão ousadamente contra a autoridade papal – e Huss fora executado.
Lutero saiu de Augsburg temendo por sua vida, e retornou a Wittemberg sob a proteção
do príncipe-eleitor Frederico III, da Saxônia”.
Foi em 1518 que chegou em Wittenberg para ensinar grego e hebraico o
jovem Filipe Melanchton (1497-1560), com então 21 anos. Ele nasceu em Bretton, Baden,
em 1947. Seu nome era Philipp Schwarzert (o sobrenome significa “terra negra”), mas,
por muito amar a língua grega, helenizou seu sobrenome, adotando-o como
“Melanchton”, “terra negra” em grego. Melanchton tornou-se muito amigo de Lutero e
útil ao reformador pelo espírito moderado e pelo domínio das línguas originais da Bíblia.
Foi ele o autor e compilador da Confissão de Fé de Augsburgo, de 1530, sobre a qual
ainda teceremos breves comentários.
A disputa seguinte ocorreu em Leipzig, em junho de 1519. Aqui, Lutero não
debate, mas suas ideias são debatidas. Johann Eck representou o papa e Carltadt, Lutero.
Nessa disputa, Lutero negou a infalibilidade dos concílios e rejeitou a autoridade do papa.
Eck acusou Lutero de “hussita” e o declarou inimigo do papa.
Em 1520, Lutero escreveu três importantes panfletos: Discurso à Nobreza
Cristã da Nação Alemã, Do Cativeiro Babilônico da Igreja e Sobre a Liberdade Cristã.
Bruce L. Shelley afirma que essa última obra (Sobre a Liberdade Cristã), “talvez seja a
melhor apresentação de suas principais ideias. Ele não desencorajava boas obras, mas
afirmava que a liberdade espiritual interior que vem da certeza encontrada na fé que leva
à realização de boas obras – por todos os verdadeiros cristãos. ‘Boas obras não tornam o
homem bom’, dizia, ‘mas o homem bom realiza boas obras’”.
Em junho de 1520, o papa Leão X publicou a bula Exsurge Domine, que
condenava Lutero e lhe dava 60 dias para retratar-se de suas ideias, sob pena de
excomunhão. Lutero recebeu a bula em 10 de outubro e, em resposta, em 10 de dezembro
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de 1520, queimou a bula papal, o direito canônico e alguns livros papistas. Aqui, ele
rompe definitivamente com o papado.
No início de 1521, Lutero foi convocado a Worms, para comparecer perante
o imperador Carlos V e os príncipes da Alemanha, para prestar contas de seu ensino. Com
a garantia de proteção de Frederico e outros príncipes germânicos, Lutero compareceu.
Em Worms, depois de dois dias de debates, ele foi instado a retratar-se e a retornar à
comunhão com Roma. Por sentir a gravidade do momento, o reformador pediu um tempo
e, no dia seguinte, ele respondeu:
“Já que me pede uma resposta simples, darei uma que não deixa margem a
dúvidas. A não ser que alguém me convença pelo testemunho da Escritura
Sagrada ou com razões decisivas, não posso retratar-me. Pois não creio nem
na infalibilidade do papa, nem na dos concílios, porque é manifesto que
frequentemente se têm equivocado e contradito. Fui vencido pelos argumentos
bíblicos que acabo de citar e minha consciência está presa na Palavra de Deus.
Não posso e não quero revogar, porque é perigoso, e não é certo agir contra
sua própria consciência. Que Deus me ajude. Amém.”
Assim, na noite de 18 de maio de 1521, Lutero foi excomungado. O
imperador Carlos V ficou impressionado com sua teimosia e o declarou proscrito, um
fora-da-lei. Lutero tinha 21 dias para retornar à Saxônia, antes que a sentença viesse a ser
prolatada.
Sabendo Frederico, o Sábio, que o imperador forçaria a Dieta a condenar
Lutero, tramou uma forma de salvá-lo. Gonzalez narra o episódio: “Um grupo de homens
armados, debaixo de instruções de Frederico, sequestrou o frade e o levou até Wartburgo.
Devido às suas próprias instruções, nem o próprio Frederico sabia onde o tinham
escondido. Muitos o deram por morto e corriam rumores de que fora morto por ordem do
papa e do imperador”.
2.3) De Worms à morte. Durante sua estada no Castelo de Wartburgo, entre
maio de 1521 e março de 1522, Lutero não perdeu tempo. Foi ali que ele deu início à
tradução do Novo Testamento para o alemão, obra concluída dois anos depois. O Antigo
Testamento ainda demorou mais dez anos para estar pronto, em 1534.
Enquanto Lutero estava oculto em Wartburgo, a reforma prosseguia em
passos largos, sobretudo pela operosidade de Carlstadt e Melanchton, influenciando a
forma de vida e de liturgia da Igreja alemã. O culto tornou-se simples e os sermões
começaram a ser pregados em alemão. As missas pelos mortos foram abolidas, os fieis
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começaram a partilhar o cálice e muitos monges e freiras deixaram os conventos. Lutero,
segundo Gonzalez, estava vendo tudo com bons olhos, mas aconselhou moderação
quando Carlstadt e outros de seus seguidores se dedicaram a derrubar imagens.
Nesse período, apareceram em Wittenberg três homens procedentes de
Zwickau, a cidade vizinha, dizendo-se profetas. Para eles, não havia necessidade das
Escrituras, visto que Deus lhes falava diretamente. Melanchton, inseguro quanto ao modo
de responder aos “profetas”, pediu conselhos a Lutero, ainda exilado em Wartburgo. Até
Carlstadt chegou a ser influenciado por eles.
Foi esse episódio que levou o reformador a sair do exílio e a retornar a
Wittenberg. Cairns anota a respeito desse momento da vida do reformador o seguinte:
“Mesmo sob risco de vida, Lutero retornou a Wittenberg em 1522. Depois de oito dias de
sermões candentes, em que salientou a autoridade da Bíblia e a necessidade de uma
mudança gradual na Igreja, Lutero aniquilou os profetas de Zuickau. O setor radical da
Reforma, então, sentiu que não poderia contar com a ajuda de Lutero, que em 1935
rompeu abertamente com o movimento anabatista”.
Entretanto, 1525 foi um dos anos mais agitados na vida agitada de Lutero.
Primeiro, porque foi nesse ano que estourou a revolta dos camponeses; segundo, no
mesmo ano ele também rompeu com os humanistas, tais como Erasmo; terceiro, foi
também em 1525 que ele se casou com a noviça Catherina von Bora, com quem teve seis
filhos.
Para o nosso interesse, vale destacar o debate ocorrido entre Lutero e
Desidério Erasmo (c. 1466-1536), sendo este cerca de dezessete anos mais velho que o
reformador alemão. Erasmo e Lutero tinham muitas coisas em comum. Ambos haviam
passado pela ordem agostiniana, eram dotados de grande erudição e lutaram contra as
crendices e superstições que predominavam na fé popular, com a chancela do papa.
A princípio, Erasmo parecia ser um aliado de Lutero. Mas, Lutero desafiava
os ensinos de Roma sobre salvação e Erasmo continuava doutrinariamente romano. Eles
discordavam acerca do “livre arbítrio”. Para o humanista Erasmo, os homens podem
conquistar a sua salvação. Para Lutero, a salvação é recebida pela graça divina, mediante
a fé somente.
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Conhecido por sua erudição, Erasmo foi pressionado a defender o “livre
arbítrio”, e, apesar de Lutero haver-lhe solicitado que não fizesse tal coisa, o humanista
holandês cedeu e publicou, em 1524, a obra Discussão Sobre o Livre-Arbítrio, tendo
escrito a Henrique VIII o seguinte: “Os dados foram lançados. O livrete sobre o Livre-
Arbítrio acaba de ver a luz do dia”. O livro agradou ao papa, ao Santo Império Romano
e foi elogiado por Henrique VIII.
No ano seguinte, em 1525, Lutero disparou sua resposta na obra A
Escravidão da Vontade, que a introduz com as seguintes palavras: “Martinho Lutero, ao
venerável D. Erasmo de Rotterdam, com os votos de Graça e Paz em Cristo”. Na obra,
Lutero contra-ataca a tese de Erasmo expondo a doutrina do pecado original. “Para
Lutero, a livre vontade é um termo divino, e não cabe a ninguém, a não ser unicamente à
majestade divina. Conceder ao ser humano tal atributo significaria nada menos do que
atribuir-lhe a própria divindade, usurpando a glória do Criador” (Gilson Santos).
Lutero considerava A Escravidão da Vontade sua melhor obra. Gilson
Santos fala com razão, quando observa o seguinte: “O atual ensino de muitos que se
denominam ‘protestantes’ está mais em harmonia com os dogmas papistas, ou com as
ideias de Erasmo, do que com os princípios dos Reformadores; analisando criticamente,
tal ensino está em maior harmonia com os Cânones e decretos do Concílio de Trento do
que com as Confissões de Fé Protestantes e Reformadas”.
Por volta de 1527, Lutero dava claros sinais de cansaço. Sua saúde não
andava bem e a Peste Negra grassava na Alemanha. Enquanto muitos fugiam para
escapar, Lutero permaneceu em Wittenberg e usou sua casa como um hospital, momento
em que quase perdeu um filho pequeno. Foi em meio a essa crise que escreveu seu famoso
hino Castelo Forte, baseado no Salmo 46. Segue uma tradução literal do Hino da
Reforma, como Castelo Forte é conhecido (tradução de IIson Kayser; fonte:
http://www.luteranos.com.br/conteudo/salmos-46-1-7-1-11. Com acesso em
21/08/2014):
“Castelo firme é nosso Deus
Boa defesa e armamento,
Ele nos livra de toda a aflição
Que agora nos atingiu.
O velho malvado inimigo
Agora Investe para valer,
Grande poder e muita astúcia
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
São seu cruel armamento.
Sobre a terra não existe igual a ele.
Ainda que o mundo estivesse
cheio de demônios e nos quisesse devorar,
Não nos apavoraremos demais,
Pois venceremos apesar de tudo.
O príncipe deste mundo,
Por mais raivoso que ele se apresente,
Nada nos fará,
Isso porque já está julgado,
Uma palavrinha pode derrubá-lo.
Com nossa força nada alcançaremos,
Logo estaremos perdidos,
Por nós luta o homem certo,
Que o próprio Deus escolheu.
Perguntas quem é Ele?
Seu nome é Jesus Cristo
O Senhor Zebaote
E não há outro Deus.
Ele há de vencer.
A Palavra eles têm de deixar de pé,
Mesmo que não o queiram,
Ele está agindo entre nós
Com Seu Espírito e dons.
Se [nos] tirarem o corpo,
Bens, honra, filhos e esposa,
Que se vá!
Isso não lhes trás nenhum proveito,
O Reino mesmo assim há de ser nosso”.
Em 1929, Lutero não soube conjugar forças com o reformar suíço Ulrich
Zwínglio, quando teve oportunidade de fazê-lo. Em junho de 1529, o imperador Carlos
V concluiu a guerra contra a França e resolveu voltar-se contra o movimento protestante.
Havia necessidade de uma aliança entre os príncipes de fé luterana e as cidades
reformadas da Suíça para enfrentar o Santo Império.
Assim, em outubro de 1529, com a mediação de um nobre alemão, Filipe de
Hesse, encontraram-se no Castelo de Marburg Lutero e Melanchton, Zwínglio e Johann
Oecolampadius e Bucero, com o fim de fazerem a desejada aliança. Concordaram em 14
pontos dos 15 propostos. O ponto controvertido foi a presença de Cristo na Ceia. Como
Lutero insistiu na interpretação de literal da expressão “isto é o meu corpo”, escreveu-a
em latim (hoc est corpus meum), com giz, na mesa, e cobriu-a com um cetim. Durante a
reunião, quando Zwínglio questionou a posição luterana, o reformador alemão retirou o
pano e grifou a frase previamente escrita. Não houve acordo. Lutero ensinava a
consubstanciação. Para Zwínglio, a Ceia é um memorial. E, mais tarde, Calvino viria a
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
ensinar a presença espiritual de Cristo na Ceia. Ainda em 1529, Lutero concluiu a
elaboração dos seus Catecismos Maior e Menor.
Em 1530, foi convocada a Dieta de Augsburgo. Nela, o imperador pediu que
se lhe apresentasse uma exposição dos pontos doutrinários controvertidos. Para tanto,
Melanchton preparou um documento que ficou conhecido como Confissão de Augsburgo.
Esta confissão tornou-se o credo oficial da Igreja Luterana, “o primeiro dos sete credos
que fizeram do período entre 1517 e 1648 o grande período de formulação doutrinária do
protestantismo, assim como o período de 325 a 451 fora o da formulação dos credos
ecumênicos da Igreja, como o de Nicéia” (Cairns).
Lawson constatou que “Cada conflito fazia que ele [Lutero] perdesse um
pouco de si, deixando-o mais fraco”. Seus amigos temeram por sua morte em 1537,
devido a cálculos de ácido úrico, artrite severa e problemas cardíacos e digestivos.
Restaurado, voltou a ficar doente em 1541. Mas, sua morte só ocorreu em 18 de fevereiro
de 1546, quando tinha 62 anos, em Eisleben, sua terra natal. Suas últimas foram: “Somos
todos mendigos. Isso é verdade”. Seu corpo foi levado a Wittenberg, com milhares de
pranteadores no cortejo fúnebre, e sepultado abaixo do púlpito da Igreja do Castelo, a
mesma onde afixou suas 95 teses, há quase 29 anos.
3. O impacto de Lutero.
Lutero falava com razão, quando disse: “Sou bastante conhecido pelo céu e
pelo inferno”. A propósito do lamento pela morte do reformador, sua esposa Catherina
escreveu: “Quem não se afligiria e se entristeceria com a perda de homem tão precioso
quanto era meu amado senhor. Ele fez grandes coisas, não apenas para a cidade ou para
uma única terra, mas para o mundo inteiro”. Concordamos com Catherina!
Lutero não foi um homem perfeito. Ele transigiu com a bigamia de Filipe
de Hesse. Fez declarações antissemitas assustadoras. Mas, sua contribuição, sobretudo no
campo religioso, foi profunda, extensa e permanente. Lutero foi, acima de tudo, um
pregador das Escrituras. Ele pregou sete mil sermões entre 1510 e 1546, o que significa
uma média de quatro sermões por semana e duzentos por anos. Mesmo em 1528, o ano
marcado pela Peste Negra, Lutero pregou cerca de duzentos sermões.
14. Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior
Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
Os dogmas papais que persistiram durante mil anos de trevas foram todos
sacudidos pelo reformador. Se tomarmos como paradigma da doutrina de Lutero a
Confissão de Augsburgo, veremos que ela estabelece a salvação pela graça, mediante a fé
(Artigo 4), sendo as obras resultado e não causa da salvação (Artigos 6 e 20), define a
igreja cristã como “a congregação de todos os crentes e santos” (Artigo 8), afirma ser
impossível ao “livre-arbítrio” agradar a Deus sem as operações do Espírito Santo (Artigo
18), reconhece apenas dois sacramentos e concede o cálice aos leigos (Artigos 9, 10 e
22), propugna pelo casamento dos sacerdotes (Artigo 23) e retira o aspecto sacrificial da
missa (Artigo 24). Ademais, questiona o culto aos santos (Artigo 21) e o voto monástico
(Artigo 27).
Mais ainda, Lutero questionou a autoridade papal e asseverou o slogan Sola
Scriptura. A Igreja Romana via o papado como acima das Escrituras, e em pé de
igualdade com elas estavam os credos, os concílios e os pais da igreja. Para o reformador,
todavia, somente a Escritura deveria governar a Igreja. Certa vez, dirigindo-se
diretamente ao papa, Lutero declarou: “Meu querido papa, vós não deveis dominar sobre
as Escrituras, nem eu ou qualquer pessoa, de acordo com nossas ideias próprias. É o diabo
que toma tal atitude! Pelo contrário, devemos permitir que a Escritura nos reja e domine,
não sendo nós mesmos os mestres que colocam nossas próprias loucas cabeças acima da
Escritura” (citado por Lawson).
Para Lutero, o Espírito Santo é o autor da Bíblia e o “púlpito é o trono da
Palavra de Deus”. Ele afirmou que “O mais alto culto a Deus está na pregação, porque ali
são louvados o nome e os benefícios de Cristo”. Por isso mesmo, o reformador não
poderia tolerar nada que assumisse o lugar da pregação da Palavra de Deus. Eis a sua voz
de lamento:
“A Palavra de Deus foi silenciada e apenas a leitura e o cântico permanecem
nas igrejas. É o pior dos abusos. Uma multidão de fábulas e mentiras não
cristãs, nas lendas, hinos e sermões foram introduzidos, de maneira horrível de
se ver. A fé desapareceu e todos eram pressionados a entrar no sacerdócio, em
conventos, monastérios, e construir e paramentar igrejas. Uma congregação
cristã jamais deverá se ajuntar sem a pregação da Palavra de Deus e a oração,
por mais breve que seja a reunião, conforme diz o Salmo 102: ‘Quando o rei e
o povo se ajuntam para servir ao Senhor, eles declararão o nome e o louvor de
Deus’. E Paulo em I Coríntios 14:26-31 diz que quando se ajuntam, deve haver
profecia, ensino e admoestação. Assim, quando a Palavra não for ensinada, é
bom que não se cante nem leia, nem mesmo se ajuntem” (citado por Lawson).
4. O avanço do Luteranismo.
15. Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior
Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
Quando o imperador livrou-se dos inimigos externos, voltou-se para
combater o protestantismo alemão. Por esse motivo, tiveram lugar as chamadas guerras
esmalcádicas, entre 1546 e 1552, que só cessaram com a Paz de Augsbrugo, de 1555, que
deu ao luteranismo igualdade com o catolicismo romano na Alemanha.
A partir da Alemanha, a fé luterana alcançou os países escandinavos. Hans
Tausen (1494-1561) fez na Dinamarca o que Lutero fez na Alemanha e, desde essa época,
o luteranismo é a religião oficial daquele país. Da Dinamarca, a fé luterana foi à Noruega,
onde se tornou a religião oficial.
Eisnasen foi o reformador luterano na Islândia e, desde 1554, o luteranismo,
por decreto, tornou-se ali a religião oficial. O reformador na Suécia foi Olavus Petri
(1493-1552), onde desde 1527 o luteranismo foi oficialmente adotado. Da Suécia, a
Reforma passou à Finlândia, onde já em 1528 a fé luterana foi adotada. O reformador
neste país foi Miguel Agricola.
Uma dos principais fatores a influenciar o avanço do luteranismo nos países
escandinavos foi a tradução da Bíblia para os seus respectivos idiomas. “A autoridade da
Bíblia, que os líderes luteranos traduziram para as línguas de seus países, e a doutrina da
justificação pela fé tornaram-se os lemas destes países no século XVI” (Cairns).
16. Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior
Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
II. Ulrich Zwínglio, a Reforma na Suíça e os Anabatistas
1. Introdução.
A Suíça era o território mais livre da Europa. Com efeito, tratava-se de uma
confederação de 13 cantões que possuíam autonomia para reger os próprios negócios.
Essa é a razão pela qual nesse país a Reforma decorreu de uma decisão de governos locais,
livres que estavam para adotar a fé que quisessem. Ademais, o humanismo suíço exerceu
forte influência sobre os acontecimentos religiosos da nação. Foi no ano de 1516, em
Basileia, que Erasmo de Rotterdam editou seu Novo Testamento grego, fato que
influenciaria decisivamente o reformador Ulrich Zwínglio, homem cuja história está
necessariamente ligada à Reforma na Suíça.
Como veremos, a Reforma na Suíça não foi resultado direto da obra de
Lutero, mas ocorreu paralelamente aos episódios na Alemanha. Justo L. Gonzalez
lembrou que “mais tarde o próprio Zwínglio diria que antes de ter conhecido as doutrinas
de Lutero, havia chegado a conclusões semelhantes com base em seus estudos da Bíblia”.
Poder-se-á também observar que na Suíça se desenvolveram três tipos de teologias: os
cantões do Norte, de fala alemã, seguiram Zwínglio; os do sul, liderados por Genebra,
seguiram Calvino; além dos anabatistas, que formavam um setor mais radical da Reforma
cujos líderes haviam trabalhado com Zwínglio.
2. Ulrich Zwínglio.
2.1) Da infância à conversão. Já sabemos que Lutero nasceu em 10 de
novembro de 1483, em uma pequena cidade da Saxônia. Pois bem, quase dois meses
depois, em primeiro de janeiro de 1484, nasceu Ulrich Zwínglio em Wildhaus, no cantão
de St. Gallen, na Suíça de língua alemã. Ele era filho de fazendeiro e magistrado que pode
lhe dar a melhor educação possível para o sacerdócio.
Sabe-se que estudou em Berna, na Universidade de Viena, na Áustria, e em
Basileia, Suíça, onde se tornou bacharel em artes, em 1504, e mestre em artes, em 1506.
Nesse mesmo ano, foi ordenado sacerdote em Constança, no sul da Alemanha, e foi servir
na paróquia de Glarus, na Suíça. Aqui, ele continuou seus estudos e tornou-se grande
erudito no grego. “Diz-se que Zwínglio chegou a decorar todas as epístolas paulinas – em
grego!” (Franklin Ferreira).
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
Zwínglio não foi despertado para a fé evangélica como Lutero, através de
grandes embates espirituais e de forma dramática, mas de forma mais racional, pelo seu
estudo do Novo Testamento editado por Erasmo, em 1516, em Basileia. Ele mesmo
escreveu que, nessa época, foi “Dirigido pela Palavra e pelo Espírito de Deus”, quando
viu “a necessidade de deixar de lado todos esses [ensinamentos humanos] e aprender a
doutrina de Deus diretamente de sua própria Palavra”. Em 1518, um ano após Lutero
haver afixado suas 95 teses na Catedral de Wittenberg, Zwínglio também atacou o sistema
medieval de penitências e relíquias.
Em 1519, Zwínglio foi chamado para ser o sacerdote da Grossmünster, a
Grande Catedral de Zurich, onde ficou até o fim de sua vida. Foi nessa época, ou pouco
antes, que Zwínglio decidiu e anunciou que só pregaria sermões expositivos, capítulo por
capítulo, a partir do evangelho de Mateus, e que dispensaria as homilias tradicionais. Até
1525, o reformador suíço já havia percorrido todo o Novo Testamento, a exceção de
Apocalipse, momento em que se voltou ao Antigo Testamento. Segundo seu amigo e
sucessor Heinrich Bullinger, Zwínglio se recusava “a cortar em pequenos pedaços o
evangelho do Senhor” (citação de F. Ferreira).
2.2) Do rompimento com Roma à morte. O ano de 1522 - um ano após
Lutero haver enfrentado na Alemanha a Dieta de Worms -, marcou o início do
rompimento entre Zurich e Roma. Foi nesse ano também que Zwínglio se casou
ocultamente com a viúva Anna Reinhard, união que só foi legitimada com um casamento
público em 2 de abril de 1524. Nesse mesmo ano, Zwínglio ainda contendeu com o setor
mais radical da Reforma, cujos seguidores insistiam no “rebatismo”, razão pela qual
foram apelidados de “anabatistas”. Sobre isso, falaremos em um tópico à parte.
Nessa época, Zwínglio havia pregado contra as leis do jejum e da
abstinência, razão pela qual alguns membros de sua paróquia se reuniram para beber
cerveja e comer salsichas na época da quaresma. Esse fato levou o bispo de Constança a
acusá-lo perante o conselho, mas como o reformador defendeu-se com base na Escritura,
foi-lhe permitido continuar pregando.
Pouco depois, o celibato começou a ser criticado por Zwínglio e, a despeito
do papa Alexandre VI fazer-lhe ofertas tentadoras, ele persistiu com seus ataques e
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Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
conseguiu que o bispo marcasse um debate público entre ele e seu vigário geral, Johannes
Fabri, sobre as doutrinas que ele estava pregando.
Chegado o momento do debate, centenas de pessoas compareceram para
assisti-lo. Zwinglio levou consigo seus “Sessenta e Sete Artigos (sculssreden), nos quais
insistia que Jesus Cristo é o único salvador; a verdadeira igreja católica é composta de
todos os crentes em Cristo; as Sagradas Escrituras são a única autoridade em questões de
fé; as boas obras são realizadas unicamente por Cristo; Deus é o único que pode nos
absolver de pecados, rejeitando a confissão auricular; os sacerdotes têm o direito de se
casarem; e condena as práticas católicas não aprovadas pelas Escrituras, como os jejuns
e as vestes clericais” (Flanklin Ferreira).
Quando deram oportunidade a Fabri para que ele demonstrasse os erros de
Zwínglio, ele se negou a fazê-lo. Em consequência, o Conselho da cidade determinou que
já que ninguém refutou as doutrinas de Zwínglio, ele poderia “continuar e manter-se como
antes, proclamando o santo evangelho e as corretas divinas Escrituras com o Espírito de
Deus, de acordo com sua capacidade”. Essa decisão, como ponderou Gonzalez, “marcou
o rompimento de Zurich com o episcopado de Constança e, portanto, com Roma”.
Após o rompimento, a Reforma acelerou os passos. As taxas de batismo e
sepultamento foram abolidas, os fieis passaram a receber o pão e o vinho na Ceia, muitos
monges e freiras se casaram e, em 1525, a missa foi suprimida em Zurich. A partir de
julho desse ano, em todos os dias, exceto nas sextas-feiras e nos domingos, ministros e
estudantes de teologia reuniam-se na Grande Catedral para uma hora de aprofundamento
bíblico. Flanklin Ferreira narra como essas reuniões ocorriam:
“Perante todos os estudantes reunidos, um capítulo da Bíblia era interpretado
da seguinte maneira: depois da oração, um capítulo da Vulgata (tradução latina
da Bíblia) era lido; em seguida, o professor de hebraico – primeiramente o
talentoso Jakob Wiesendanger, e depois da morte deste, aos 26 anos, o famoso
erudito Konrad Pellikan – lia o texto em hebraico e comentava em latim,
comparando com o texto da Vulgata; depois, o próprio Zwínglio lia e
interpretava o mesmo trecho na Septuaginta (tradução grega do Antigo
Testamento). Finalmente, Leo Jud, o ministro da Igreja de São Pedro e amigo
de Zwínglio, explica em alemão o capítulo, segundo a interpretação de
Zwínglio. Varios cidadãos de Zurich ouviam estes sermões, quando paravam
na catedral, no caminho para o trabalho”.
A cidade suíça de Berna foi conquistada para a Reforma através de um
debate semelhante ao que ocorreu em Zurich. Zwínglio participou do debate com suas 10
teses e, em consequência, em 1528, o Conselho da cidade aceitou oficialmente os
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Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
princípios da Reforma. Em 1529, a missa foi abolida em Basileia. Antes, porém, um
sínodo das igrejas que aceitavam as doutrinas zwinglianas foi formado, em 1527, e a
Bíblia foi traduzida à língua do povo.
Entretanto, os cantões que permaneciam fieis a Roma organizaram a União
Cristã de Cantões Católicos – a União dos Cinco Estados - e, em 1529, estourou a guerra
entre cantões católicos e protestantes. Após um período de trégua, na qual ficou acordado
que cada cantão escolheria sua religião, em 11 de outubro de 1531, a União católica
iniciou um ataque surpresa a Zurich. Zwínglio saiu com os primeiros soldados para
oferecer a resistência que pudesse enquanto o exército se preparava.
Na fatídica batalha de Kappel, Zurich foi derrotada, ocasião em que 500 dos
seus soldados e 25 pregadores evangélicos morreram. Zwínglio estava entre os que
faleceram. Seu corpo foi esquartejado e queimado. Seu capacete e espada levados como
troféus, ainda hoje reservados no Museu Nacional Suíço. Uma pedra marca o lugar onde
o reformador morreu, e nela está escrito: “Eles podem matar o corpo, mas não a alma;
assim disse neste lugar Ulrich Zwínglio, morto como herói pela verdade e liberdade da
igreja cristã, em 11 de outubro de 1531”.
Zurich manteve sua independência, mas os cantões do sul se mantiveram
católicos. O sucessor de Zwínglio foi seu amigo Heinrich Bullinger.
2.3) Zwínglio e Lutero. Nesse passo, anotaremos sucintamente as
diferenças entre aqueles que são contados entre os primeiros reformadores: Lutero e
Zwínglio. Se não, vejamos:
Primeiro, Lutero foi, no dizer de Gonzalez, “uma alma atormentada que por
fim encontrou sua paz na mensagem bíblica da justificação pela fé”, enquanto Zwínglio
foi um “erudito humanista”. É dizer, enquanto Lutero conheceu o evangelho de forma
dramática e em meio aos incômodos de uma alma inquieta, Zwínglio o fez através do
estudo do Novo Testamento grego. Para Gonzalez, isso explica por que “a teologia de
Zwínglio é mais racionalista que a de Lutero”.
Segundo, os reformadores discordaram também quanto ao alcance da
Reforma. Para Lutero, era permitido à Igreja cristã tudo aquilo que a Bíblia não proibia.
Zwínglio, a seu turno, ensinava que só deveria ser mantido aquilo que estivesse
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
claramente indicado na Bíblia. Esse princípio norteou o movimento puritano na
Inglaterra, onde foi chamado “princípio regulador”.
Terceiro, Lutero e Zwínglio discordavam quanto à presença de Cristo na
Ceia. Para o reformador alemão, a Ceia possuía um valor sacramental e ele insistia na
presença real de Cristo nos elementos. Para o suíço, os elementos materiais eram sinais
da realidade espiritual e a expressão “isto é o meu corpo” queria dizer simplesmente “isto
simboliza o meu corpo”. Foi essa divergência que fez malograr a tentativa de união no
Colóquio de Marburg, de 1529, como observado alhures. A. A. Hodge apresentou a
concepção zwingliana dos sacramentos com as seguintes palavras: “Resta dizer que Deus,
por meio dos sacramentos, exibe-nos a sua graça, não conferindo-a de fato por meio deles,
mas apresentando-a e colocando-a diante de nossos olhos por meio deles como sinais
claros e evidentes. [...] E essa eficácia não é mais objetiva, exigindo (da nossa parte) uma
faculdade cognitiva que possa aprender aquilo que o sinal apresenta objetivamente à
(nossa) mente. [...] Eles operam sobre nós como sinais, representando à mente a coisa da
qual são sinais. Não se deve procurar neles nenhuma outra eficácia”.
É mesmo possível que muito das diferenças entre Lutero e Zwínglio seja
explicada em termos de certa influência do neo-platonismo no pensamento do reformador
suíço. Nesse sentido, Gonzalez afirmou o seguinte: “O mais notável desses elementos é
a tendência a menosprezar a criação material e estabelecer um profundo contraste entre
ela e as realidades espirituais. Esta era uma das razões pelas quais Zwínglio insistia num
culto simples, que não levasse o crente ao material mediante o exagero dos sentidos.
Lutero, por sua vez, afirmava a doutrina bíblica da criação como boa e, portanto, tratava
de não exagerar no contraste entre o material e o espiritual. Para ele, o material não é um
obstáculo, mas sim uma ajuda à vida espiritual”. Essa divergência pode ser percebida
tanto na concepção do culto quanto na rejeição zwingliana do aspecto sacramental da
Ceia.
2.4) Bulinger e as Confissões Helvéticas. Johann Henrich Bullinger (1504-
1575) foi convertido ao evangelho em 1522 e no ano seguinte conheceu Zwínglio, do
qual se tornou amigo e, em 1531, sucessor na liderança da Reforma suíça. Com vários
colegas, escreveu a Primeira Confissão Helvética.
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
A Primeira Confissão Helvética foi resultado das atitudes conciliatórias dos
reformadores de Estrasburgo, Martin Bucer e Wolfgang Capito, de unir zwinglianos e
luteranos. Apesar da desejada unidade não haver sido conquistada, essa Confissão foi
aprovada formalmente em 27 de março de 1536 pelos delegados dos Conselhos
municipais e todas as cidades suíças que abraçaram a Reforma a adotaram (Zurich,
Basileia, Berna, Schaffenhausen, St. Gallen, Muhlhausen e Biel). Assim, ela tornou-se a
primeira confissão suíça e a primeira confissão reformada com autoridade nacional.
A Segunda Confissão Helvética foi completamente escrita por Bullinger.
Em 1565, o príncipe alemão Frederico III pediu a Bullinger uma exposição detalhada da
fé reformada para apresentá-la ao Parlamento. Além disso, os suíços reclamaram por uma
descrição mais completa de sua fé. Em resposta, Bullinger fez o documento que ficou
conhecido como Segunda Confissão Helvética, publicada em Zurich em 12 de março de
1566 e aceita por todos os cantões reformados. Alderi Souza de Matos afirmou que
posteriormente “foi recebida na Escócia, Hungria, França, Polônia, Inglaterra e Holanda,
tornando-se, ao lado do catecismo de Heidelberg, o documento reformado mais estimado
e influente. Reflete o pensamento maduro de Bullinger e destaca-se por sua catolicidade
e moderação”.
3. Os Anabatistas.
Os anabatistas são parte de um setor mais radical da Reforma na Suíça e na
Alemanha. Como veremos, foram perseguidos por luteranos, zwinglianos e católicos
romanos, em parte por motivos teológicos, em parte porque estavam em diversos pontos
de sua fé além do seu tempo. Os menonitas e os huteritas são ramos que descendem
diretamente dos anabatistas do século XVI.
Lutero desejava retirar da igreja tudo quanto a Bíblia expressamente proibia.
Zwínglio queria mais, e sustentou que só deveria ser praticado pela igreja aquilo que a
Bíblia expressamente prescrevia. Entretanto, tanto Lutero como Zwínglio mantiveram a
usual relação entre Igreja e Estado, nos termos assimilados a partir dos dias de
Constantino, de modo que sociedade e Igreja se confundiam. Em Zurich, por exemplo,
todo recém-nascido batizado era considerado membro da Igreja e, na Alemanha e nos
países escandinavos, as igrejas luteranas eram mantidas pelo Estado e seus ministros,
pagos com os cofres públicos.
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Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
Para os anabatistas, essas reformas não eram suficientes. Eles acreditavam
que toda a união entre Igreja e sociedade deveria ser completamente banida. Insistiam
que uma pessoa não era cristã pelo simples fato de nascer em uma sociedade dita cristã,
visto que a Igreja é uma comunhão voluntária formada pelos verdadeiros discípulos de
Jesus, pessoas que professam conscientemente sua fé em Cristo.
A consequência natural desse pensamento foi o desprezo pelo batismo
infantil e a ênfase na necessidade de um novo batismo na fase adulta, razão pela qual
foram chamados pelos seus inimigos de “anabatistas” (ou seja, “rebatizadores”). Como
explica Justo Gonzalez, “esse nome não era de todo exato, porque o que os supostos
rebatizadores diziam não era que era necessário batizar-se de novo, mas sim que o
primeiro batismo não era válido e que assim o que se recebia depois de confessar a fé era
o primeiro e único batismo”.
Inclusive Zwínglio manteve a princípio uma concepção de que “o batismo
infantil não tinha base bíblica”, segundo Cairns. “Ao mesmo tempo”, ainda afirmou esse
historiador, “porque muitas pessoas perderiam sua cidadania, Zwínglio desistiu da sua
primitiva concepção da falta de fundamento bíblico para o batismo infantil”.
Entretanto, devemos observar que o principal motivo pelo qual o batismo
infantil foi praticado a partir dos primeiros séculos e pela Igreja Católica medieval era
noção de batismo como fonte de regeneração. Com o advento da Reforma e a consequente
rejeição da doutrina da regeneração pelo batismo, duas perspectivas surgiram nas
tradições protestantes: a construção de uma nova teologia que justificasse a prática ou o
se abandono.
Os anabatistas e posteriormente os batistas enfatizaram que o batismo
deveria ser ministrado somente àqueles que já foram regenerados. Os menonitas ainda
hoje praticam a aspersão e alguns anabatistas e batistas, que a princípio batizavam por
efusão, passaram a batizar somente por imersão. Por outro lado, Zwínglio e Bullinger,
conforme lição de Flanklin Ferreira e Alan Myatt, perceberam que “o que estava em jogo
não eram apenas as questões doutrinais, mas também questões de ética ‘e os princípios
de ordem a autoridade essenciais a uma sociedade estável’”. Assim, foi nesse debate com
os anabatistas que Zwínglio e Bullinger desenvolveram a teologia da aliança, “uma defesa
inédita do batismo infantil” (Ferreira e Myatt).
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Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
Em 1534, Bullinger escreveu a primeira exposição da teologia da aliança, a
obra Do Único e Eterno Testamento ou Pacto de Deus (De Testamento seu Foedere Dei
Único et aeterno). Embora Bullinger já houvesse lidado com a noção da aliança nos anos
anteriores, essa obra foi escrita no contexto do debate com os anabatistas.
Outras características dos anabatistas ainda serão consideradas logo mais.
No momento, basta citar a sua doutrina do pacifismo extremo. Para os anabatistas, a
consequência natural do ensino do sermão do monte é a completa recusa em participar de
toda e qualquer forma de organização política mundana, inclusive de assumir cargos
públicos e fazer juramentos. Para eles, era também necessário que o cristão jamais
pegasse em armas para se defender. No contexto da Reforma, sobretudo considerando
que a Alemanha vivia ameaçada pelos muçulmanos e que as cidades reformadas alemãs
e suíças viviam na iminência de ataques das regiões e cantões católicos, o pacifismo
anabatista não soou coerente.
3.1) Conrad Grebel e Felix Manz: os primórdios do movimento. Ideias
semelhantes às dos anabatistas ocorreram simultaneamente em diversos lugares da
Europa no século XVI, mas foi em Zurich que foram concebidas de primeira mão, ligadas
a Conrad Grebel e Felix Manz.
Grebel se converteu em 1522 e trabalhou com Zwínglio, até romperem em
1525. Em 1524, a esposa de Grebel deu à luz e sua convicção foi posta à prova. A decisão
dos Grebel foi no sentido de que a acriança não seria batizada, exemplo seguido por
outros. Para solver a celeuma, o Conselho de Zurich marcou um debate em 17 de janeiro
de 1525. Seu resultado foi que representantes do povo declararam Zwínglio e seus
discípulos vencedores e, em consequência, o Conselho concedeu uma semana para que
as famílias batizassem seus filhos, sob pena de serem banidas da cidade.
No dia 21 de janeiro daquele ano, o Conselho proibiu Grebel e Manz de
continuarem seus estudos bíblicos. Como um claro ato de provocação, nesse mesmo dia
- apenas quatro dias após o Conselho haver ordenado que as famílias batizassem seus
filhos no prazo de oito dias – Grebel batizou o padre George Blaurock, junto à fonte que
estava no meio da praça de Zurich. Blaurock, por sua vez, batizou outros irmãos na
mesma ocasião. Após o batismo, o pequeno grupo se retirou para Zollikon, aldeia próxima
de Zurich, dando azo ao surgimento, no final de janeiro de 1525, da congregação
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
anabatista, “a primeira igreja livre (dos laços do Estado) dos tempos modernos” (Bruce
L. Shelley).
O Conselho de Zurich não tardou a reagir. Em 7 de março de 1526, decidiu
que puniria com morte por afogamento a toda pessoa que se rebatizasse. Em 5 de janeiro
de 1527, Felix Manz foi afogado no rio Limmat, tornando-se o primeiro mártir anabatista.
George Blarouck foi apanhado pelas autoridades católicas romanas e queimado na
fogueira em 6 de setembro de 1529.
Em 1528, o imperador Carlos V expediu o decreto da pena de morte aos
anabatistas, aprovado na Dieta de Spira em 1529. A decisão imperial foi obedecida pelos
príncipes luteranos e católicos romanos na Alemanha, a exceção de Felipe de Hesse, que
não aplicou o decreto em seus territórios por razões de consciência. O número de mártires
foi enorme. Talvez em torno de quatro a cinco mil anabatistas executados pelo fogo,
espada ou afogamento.
A dura perseguição forçou os anabatistas a irem ao norte. Encontraram
tolerância na Morávia, onde fundaram uma duradoura comunidade (chamada Bruderhof),
consolidada pela liderança de Jakob Hutter. Hutter morreu em 1536, mas sua influência
foi tal que esses grupos passaram a chamar-se huteritas.
3.2) O anabatismo não pacifista. A distância entre os protestantes alemães
e suíços e os anabatistas aumentou sensivelmente em 1535, com a chamada rebelião de
Münster, cidade próxima dos Países Baixos.
Tudo começou em Strasbourg, a partir da pregação de um homem chamado
Melchior Hoffman. Nessa cidade, onde o anabatismo era relativamente forte, Hoffman
começou a pregar que o dia do Senhor estava próximo e que Strasbourg seria a Nova
Jerusalém. Predisse que seria encarcerado por seis meses e depois viria o fim, em 1533.
Também abandonou o pacifismo inicial e insistiu que nos últimos dias seria necessário
que os cristãos pegassem em armas na batalha contra os filhos das trevas.
A primeira parte da ‘profecia’ cumpriu-se. Hoffman foi encarcerado e uma
multidão afluiu para Strasbourg, a esperar o momento da revolução apocalíptica.
Entretanto, tudo ficou nisso. As autoridades da cidade recrudesceram o combate aos
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Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
radicais e Hoffman permaneceu preso. Essa foi a ocasião na qual alguém profetizou que
a Nova Jerusalém não seria em Strasbourg, mas em Müntser.
O líder do movimento em Münster foi um anabatista quiliasta vindo de
Strasbourg chamado Jan Matthijs. Ele proclamou-se Enoque e enviou delegados a
Münster em 1534, lugar aonde o reino supostamente viria. Matthijs e seu discípulo, Jan
de Leiden, apoderaram-se da cidade, expulsaram os católicos e consideraram infiéis
também os protestantes moderados. O bispo, em represália, sitiou a cidade e conseguiu
matar diversos anabatistas que caíam em suas mãos. Em uma das saídas militares contra
as tropas do bispo, em 1534, Matthijs tombou morto e Jan de Leiden o sucedeu,
apoderando-se do governo e o exercendo como um absoluto tirano, inclusive tomando
para si o título de “Rei Davi”.
Como a matança da batalha e a deserção fizeram o número de homens da
cidade cair, o “Rei Davi” adotou a poligamia e decretou que toda mulher deveria casar-
se com algum homem. Talvez cansados dos desmandos do seu “Rei”, alguns habitantes
da Nova Jerusalém abriram os portões da cidade e as tropas do bispo reconquistaram a
cidade, prenderam “Rei Davi” e seus principais assessores em jaulas individuais e os
expuseram publicamente. Assim caiu a Nova Jerusalém em Münster.
3.3) O anabatismo (re)organizado e a Confissão de Schleitheim. O
anabatismo revolucionário chegou ao fim com a execução de Jan de Leiden, em 1536.
Nesse mesmo ano, um sacerdote católico romano holandês se converteu ao anabatismo.
Seu nome era Menno Simons (c. 1496-1561). Ele se destacou de tal forma na liderança
de um grupo anabatista holandês, a princípio liderado por Obbe Philips, que o grupo
passou a ser chamado “menonita”.
Menno Simons viajou por extensas áreas no norte da Europa pregando a sua
fé. Para ele, pacifismo era fundamental. Os cristãos não podiam também prestar
juramentos e ocupar cargos públicos, para os quais eram exigidos. O batismo seria
realizado jugando água sobre a cabeça, mas somente sobre os adultos que professassem
sua fé. Nem o batismo nem a Ceia conferem graça, sendo somente sinais externos da
graça interna operada por Deus. Ademais, Menno Simons e seus seguidores praticavam
a lavagem mútua dos pés.
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Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
Em 24 de fevereiro de 1527, na cidade de Schleitheim, atualmente na
fronteira entre a Suíça e a Alemanha, foi aprovada pela Conferência dos Irmãos Suíços a
Confissão de Schleitheim, obra principalmente da lavra do jovem monge beneditino
Michael Sattler. Sattler e sua esposa foram mortos pouco tempo depois, ele na fogueira
e ela por afogamento, nas proximidades de Rottenburg-am-Neckar. Na década seguinte a
Confissão de Schleitheim foi adotada por anabatistas de toda a Europa.
Para Cairns, os anabatistas eram “apenas humildes crentes na Bíblia, alguns
dos quais enganados por líderes ignorantes, que interpretavam a Bíblia literalmente para
proveito próprio. Nem os menonitas nem os batistas se envergonhariam de colocá-los
entre os seus predecessores espirituais. Seu conceito de igrejas livres influenciou os
Puritanos Separatistas, Batistas e Quacres”.
27. Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior
Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
III. João Calvino e a Reforma em Genebra
Uma apreciação da Reforma na Suíça não estaria completa sem uma detida
observação em como ela ocorreu em Genebra, história necessariamente entrelaçada com
a vida do reformador francês João Calvino, conforme nosso estudo demonstrará.
Com efeito, foi Calvino que realizou na Suíça a obra iniciada por Zwínglio
e deu forma à terceira tradição protestante – ao lado do luteranismo e do anabatismo -,
denominada “fé reformada”, nome virtualmente idêntico ao que tem sido chamado
também de “calvinismo”. Essa é a tradição herdada pelos presbiterianos e muitas igrejas
congregacionais e batistas, e pelas igrejas reformadas na Alemanha e Holanda.
1. João Calvino e a Reforma em Genebra.
1.1) João Calvino: da infância ao encontro com Farel. João Calvino
nasceu na pequena cidade de Noyon, cidade da província da Picardia, a 160 km a noroeste
de Paris, no dia 10 de julho de 1509. Seu pai, Gérard, foi um advogado e secretário do
bispo e sua mãe, Jeanne, uma mulher piedosa.
Foi enviado para estudar na Universidade de Paris aos quatorze anos, de
onde saiu com mestrado em 1528, aos dezenoves anos. Quando em Paris, certamente
manteve contato com as discussões teológicas em torno das doutrinas de Wycliffe, Huss
e Lutero. Mas, como ele mesmo veio a dizer, “estava obstinadamente atado às
superstições do papado” (citado por Gonzalez). Naquele mesmo ano, foi enviado à
Universidade de Orleans para estudar direito e, depois, estudou grego na Universidade de
Bourges.
Com a morte do pai, em 1531, Calvino retornou a Paris e dedicou-se ao
estudo dos clássicos, seu principal interesse na época. Um ano antes, em 1530, ele fez um
comentário à obra de Sêneca, De Clementia, que veio a ser publicado em 1532.
Entretanto, em 1533, dois anos após a morte de Zwínglio e quatro anos após o Colóquio
de Marburg, converteu-se à fé evangélica de forma “súbita”, como costumava dizer.
Escrevendo anos depois, Calvino afirmou sobre sua conversão: “Minha mente, que a
despeito de minha juventude, estivera por demais empedernida em tais assuntos, agora
28. Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior
Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
estava preparada para uma atenção séria. Por uma súbita conversão, Deus transformou-a
e trouxe à docilidade”.
No ano seguinte, em 1534, Calvino foi obrigado a fugir de Paris, por haver
sido acusado de ser a influência que estava por detrás de um discurso reformista de
Nicholas Cop, então reitor da Universidade de Paris. O reformador encontrou refúgio em
Basileia, onde, em março de 1535, aos 26 anos de idade, publicou a primeira edição das
Institutas da Religião Cristã, obra em que Calvino trabalhou durante quase toda a vida.
As Institutas foram escritas na ocasião em que o rei francês católico romano
Francisco I intentava perseguir os protestantes franceses. Calvino desejava defender os
huguenotes e pedir ao rei, a quem a obra foi endereçada, que aceitasse as ideias da
Reforma. Sobre as Institutas da Religião Cristã, Flanklin Ferreira anotou o seguinte:
“O êxito dessa obra foi imediato e surpreendente. Em nove meses se esgotou
a edição, que, por estar em latim, era acessível a leitores de diversas
nacionalidades. Calvino continuou preparando edições sucessivas das
Institutas, que foi crescendo conforme iam passando os anos. Foram editadas
cerca de nove vezes, sendo que as últimas edições datam de 1559 e 1560 e se
tornou uma das obras mais influentes do pensamento cristão e ocidental”.
Em 1536, quando viajava a Strasbourg, Calvino pernoitou em Genebra, uma
vez que a guerra entre a França e a Espanha havia fechado o caminho àquela cidade.
Strasbourg era, segundo Calvino pensava, a cidade ideal para os seus propósitos. Lá, a
causa da Reforma havia avançado, para não falar da “atividade teológica e literária que
lhe parecia oferecer um ambiente propício para seus trabalhos” (Justo Gonzalez).
Em Genebra, Calvino planejou passar apenas uma noite, visto que a cidade
vivia tempos caóticos e não lhe iria propiciar, segundo pensava, o isolamento adequado
que tanto desejava para dedicar-se aos estudos. Foi nesse pernoite providencial que
encontrou-se com Guillaume Farel (1489-1565).
Farel, cerca de vinte anos mais velho que Calvino, foi um grande batalhador
pela causa da Reforma. Era francês e ainda bem cedo, em 1521, aceitou a doutrina
luterana da justificação pela fé. Participou de debates em Berna e Basileia, e ganhou para
a causa protestante as cidades de Montbelliard, Neuchatel e Aigle. Em 1532, Farel iniciou
seu trabalho em Genebra e, em 1535, um ano antes do encontro com Calvino, venceu um
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Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
debate com os inimigos da Reforma, o que fez a cidade, no ano seguinte, adotar
formalmente as ideias dos reformadores na Assembleia geral dos Cidadãos.
Assim, quando Calvino pousou em Genebra naquela noite, Farel não pode
deixar de perceber que a Providência tinha-o conduzido e, ao mesmo tempo, não perdeu
tempo algum. Tão logo soube da presença do jovem francês, Farel foi ao seu encontro,
lhe falou sobre as grandes necessidades de Genebra e lhe pediu veementemente que ali
ficasse. Quando Calvino declinou do convite, alegando que tinha estudos especiais a
realizar, Farel respondeu: “Deus amaldiçoe teu descanso e a tranquilidade que buscas para
estudar, se diante de uma necessidade tão grande te retiras e te negas a prestar socorro e
ajuda” (citado por Gonzalez). Calvino ficou aterrorizado e permaneceu em Genebra.
Sobre esse encontro com Farel, veio a escrever: “essas palavras me espantaram e me
quebrantaram e desisti da viagem que tinha empreendido”.
Mais tarde, Calvino escreveu o seguinte sobre como Deus o conduziu por
caminhos que ele mesmo jamais ambicionou:
“Por [eu] ser por natureza um tanto anti-social e tímido, sempre apreciei o
isolamento e a paz (...). Mas Deus me envolveu com inúmeros acontecimentos
e nunca me deixou descansar em lugar nenhum. E apesar de minha inclinação
natural, empurrou-me para o palco e me obrigou a ‘entrar no jogo’, como se
diz” (citado por Sheley).
1.2) Do encontro com Farel à morte. Em Genebra, Calvino recebeu um
emprego de “Mestre das Sagradas Escrituras” e deu início a um árduo trabalho com Farel.
Em 1537, Calvino e Farel prepararam a Instrução na Fé, ocasião em que conseguiram
que a cidade adotasse datas pré-estabelecidas para a Ceia do Senhor, o canto
congregacional e a disciplina da excomunhão a membros impenitentes.
Entretanto, os embates na cidade recrudesceram quando os reformadores se
recusaram a dar a Ceia do Senhor para alguns, o que soou ao Conselho da cidade como
um rigor desnecessário. Shelley anota que o programa moral e disciplinar que imprimiram
foi o mais rigoroso “dentro do protestantismo, e ia um pouco além daquilo que as
autoridades religiosas da cidade haviam negociado”. Até que em 1538 o Conselho da
cidade determinou que Calvino e Farel deixassem a cidade. Farel foi a Neuchatel;
Calvino, para Strasbourg.
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
Calvino permaneceu em Strasbourg entre 1538 e 1541. Nesse período, ele
foi pastor de uma igreja de refugiados franceses, tornou-se amigo de Martin Bucer e Filipe
Melanchton e casou-se com Idelette de Bure, viúva de um pastor anabatista e mãe de dois
filhos. Com Idelette, teve um único filho que morreu ainda criança.
Ainda em Strasbourg, Calvino produziu sua segunda edição das Institutas,
publicou seu Comentário de Romanos e produziu uma liturgia em francês para os
refugiados franceses, chegando a traduzir vários Salmos e outros hinos para o canto
congregacional do culto dos refugiados.
Em 1541, as forças reformadas tomaram outra vez Genebra, ocasião em que
o Conselho da cidade o convidou a retornar. Persuadido por Bucer, Calvino retornou a
Genebra em 13 de setembro daquele ano e foi nomeado pastor da Catedral de Saint-
Pierre. Em Genebra, uma das primeiras ações de Calvino foi preparar as Ordenanças
Eclesiásticas. Nesse documento, ele estabeleceu quatro tipos de oficiais para a igreja: os
pastores, que dirigiam a disciplina; os mestres, que ensinavam a doutrina; os diáconos,
que administravam as obras de misericórdia; e o Consistório, composto pelos ministros e
doze anciãos, responsável pelo governo da igreja. O nome presbiteriano origina-se da
forma de governo utilizada por Calvino em Genebra.
Em abril de 1549, Idalette faleceu. Calvino nunca mais casou-se. Ele
permaneceu na companhia dos dois enteados que criou e compartilhando a casa com o
irmão e oito filhos deste.
Como se podia esperar, houve épocas de muita oposição. Várias vezes,
Calvino esteve perto de novo banimento. Segundo Gonzalez, “houve conflitos repetidos
entre o Consistório e o governo da cidade, pois o corpo eclesiástico, seguindo a inspiração
de Calvino, tratava de regular os costumes com uma severidade que nem sempre era do
agrado do governo”. A influência do reformador fez de Genebra um lugar adequado para
refugiados oriundos de perseguições católicas romanas e treinamento de pastores que
depois regressariam a seus países de origem para disseminar a fé reformada. Um dos seus
alunos foi o fundador do protestantismo escocês, John Knox, para quem Genebra era “a
mais perfeita escola de Cristo jamais vista na terra desde os tempos dos apóstolos”.
Entretanto, houve abusos em Genebra. “Para garantir a eficácia do sistema”,
afirma Cairns, Calvino estabeleceu penalidades mais severas que a excomunhão. Em
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
1546, diz esse historiador, “28 pessoas foram executadas e 76 exiladas”. Em 1553,
segundo Shelley, “durante um momento de menor influência de Calvino”, o médico
espanhol Miguel Servetus refugiou-se em Genebra por negar o dogma da Trindade,
quando fugia da perseguição católica romana, mas lá não teve destino melhor. Servetus
morreu na fogueira!
É difícil para o homem do século XXI ler essas “histórias horrendas”, o que
de fato são. Não é possível justificar Calvino, nem o Consistório da igreja genebrina. No
entanto, devemos nos recordar que no século XVI não se concebia generalizadamente
uma completa dissociação entre Igreja e Estado. Assim, desobedecer à religião oficial do
Estado era desobedecer ao Estado. Religião não era um tema de mera convicção pessoal,
mas uma questão de Estado.
Em 5 de maio de 1559, Calvino fundou a Universidade de Genebra,
iniciando com seiscentos alunos e aumentando ainda no primeiro ano para novecentos.
Foi na Universidade de Genebra que estudaram alunos vindos de outras cidades da Suíça,
França, Holanda, Inglaterra, Escócia, Alemanha e Hungria. “A academia tornou-se
grandemente respeitada em toda a Europa” (Flanklin Ferreira).
Em 6 de fevereiro de 1564, Calvino, bastante doente, foi transportado para
a igreja em uma cadeira, ocasião em que pregou seu último sermão. Em 2 de abril, foi
levado à igreja pela última vez e, mesmo enfermo, participou da Ceia e cantou com a
congregação. No dia 28 de abril, convocou os ministros de Genebra à sua casa e despediu-
se com as seguintes palavras:
“A respeito de minha doutrina, ensinei fielmente e Deus me deu a graça de
escrever. Fiz isso do modo mais fiel possível e nunca corrompi uma só
passagem das Escrituras, nem conscientemente as distorci. Quando fui tentado
a requintes, resisti à tentação e estudei a simplicidade. Nunca escrevi nada com
ódio de alguém, mas sempre coloquei fielmente diante de mim o que julguei
ser a glória de Deus”.
João Calvino morreu em 27 de maio de 1564, faltando menos de dois meses
para completar cinquenta e cinco anos. Suas últimas palavras, extraídas de uma carta
endereçada a Farel no mês da sua morte, são estas: “É suficiente para mim viver e morrer
para Cristo, que é, para todos os seus seguidores, um ganho tanto na vida quanto na
morte”. Informa-nos Flanklin Ferreira que ele foi enterrado em cemitério comum e, em
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
atenção a sua vontade, “não se ergueu nenhuma lápide sobre a sepultura. Ele não queria
que nada obscurecesse a glória de Deus”.
Seu sucessor foi Theodore Beza, outro refugiado francês. Quando Beza foi
levar aos alunos da Universidade de Genebra a notícia da morte de Calvino, suas palavras
foram: “Tenho sido um expectador de sua vida por 16 anos... agora posso declarar que
nele todo homem pode ver um belo exemplo do caráter de Cristo, um exemplo que é fácil
vituperarmos e difícil imitarmos” (citação de Joel Beeke).
2. Atividades missionárias de Calvino.
Tem sido corriqueiro admitir que os reformadores em geral - e Calvino em
particular - eram contrários a empreendimentos missionários. De fato, os protestantes não
se lançaram em missões ao novo mundo do modo como fizeram os católicos romanos.
Primeiro, porque estavam mais preocupados em se proteger ante ao forte movimento de
contra-reforma; segundo, porque o mundo em volta estava-lhes fechado. Nesse sentido,
Fred Klooster escreveu:
“Sabemos o quão difícil era para [os reformadores] propagar o evangelho
mesmo dentro da Europa sob governos geralmente controlados por príncipes,
reis e imperadores Católicos Romanos. Praticamente todas as portas para o
mundo pagão estavam fechadas a Calvino, bem como para outros
reformadores, pois o mundo do Islã ao sul e a leste eram guardados por
exércitos turcos, enquanto as marinhas da Espanha e Portugal impediam o
acesso ao novo mundo recém-descoberto. O Papa Alexandre VI em 1493 deu
às coroas Portuguesa e Espanhola direitos exclusivos para essas áreas e,
posteriormente, papas e tratados reafirmariam essas doações” (citado por
Michael Horton).
De fato, Ruth A. Tucker anotou que “Martinho Lutero tinha tanta certeza da
volta iminente de Cristo que negligenciou a necessidade de missões estrangeiras”. Tucker
acrescentou que Lutero defendia que a Grande Comissão só se aplicava aos apóstolos do
Novo Testamento, e que estes haviam cumprido sua missão. Quanto a Calvino, por outro
lado, ela observou: “O próprio Calvino, porém, era pelo menos aparentemente o
missionário mais inclinado às missões entre os reformadores”.
De fato, Genebra tornou-se um frutífero celeiro de missionários, na medida
em que recebia refugiados oriundos de várias nacionalidades, treinava-os e enviava-os
aos países de origem. Philip E. Hughes escreveu a respeito:
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
“A Genebra de Calvino, todavia, era algo mais do que um abrigo de refúgio
para os aflitos: era também uma escola, na qual, com a ajuda de aulas regulares
e sermões por dia, as pessoas eram instruídas e edificadas para serem fortes na
fé cristã. Ainda mais significativo, havia uma escola de missões: aberta, não só
para receber os refugiados, mas também para enviar testemunhas que iriam
espalhar o ensino da Reforma em terras distantes [...] era um centro dinâmico
de ocupação e atividade missionária”.
Embora não se encontre, da lavra de Calvino, um tratado missiológico, é
certo afirmar que o reformador jamais se opôs à ideia, para dizer o mínimo, e, mais que
isso, que captou a relevância da responsabilidade evangelizadora da Igreja, o que se pode
concluir a partir da análise dos seus comentários bíblicos.
Em seu comentário Harmonia dos Evangelhos Mateus, Marcos e Lucas
(Harmony of Mattheu, Mark and Luke), ao tratar sobre a Grande Comissão, Calvino
afirmou:
“[...] nós aprendemos a partir da enumeração destes eventos que nos são dados
por Mateus que o último destes não aconteceu antes deles terem entrado na
Galileia. O significado é este, ou seja, pela proclamação do evangelho em todos
os lugares, eles deveriam trazer todas as nações à obediência da fé e, depois,
eles deveriam selar e ratificar a doutrina deles pelo sinal do evangelho. Em
Mateus, eles são ensinados, em primeiro lugar, simplesmente a ensinar; mas
Marcos expressa o tipo de doutrina, a fim de que eles pudessem pregar o
evangelho; e, logo depois, o próprio Mateus acrescenta este limite, qual seja,
‘ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. (1) Ide,
portanto, (2) fazei discípulos de todas as nações, (3) batizando-os [...] fazei
discípulos de todas as nações’. Aqui, Cristo, ao remover a distinção, faz os
gentios iguais aos judeus e admite ambos indiscriminadamente a participar da
aliança” (citado por José Roberto de Souza).
Ainda sobre a Grande Comissão, Calvino asseverou: “o Senhor ordena aos
ministros do evangelho que preguem em lugares distantes, com o propósito de espalhar a
salvação em cada parte do mundo”. Comentando I Tm 2:4, declarou que “não existem
pessoas nem classe social no mundo que sejam excluídas da salvação, porque Deus deseja
que o evangelho seja proclamado a todos sem exceção. Agora a pregação do evangelho
dá vida, e por isso... Deus convida todos igualmente a participar da salvação”.
Sobre Gl 4:16, Calvino anotou que “a Igreja enche o mundo todo e é
peregrina sobre a terra”, o que fez Hermisten Maia observar, a propósito do comentário
do reformador, que a “peregrinação da igreja tem um sentido missionário (“até aos
confins da terra”) e escatológico (“até a consumação do século”). Enquanto ela caminha,
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Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
confronta os homens com a mensagem do evangelho, chamando todos ao arrependimento
e à fé em Cristo Jesus, até que ele volte” (citado por José Roberto de Souza).
Em seu percuciente artigo A Presença dos Reformadores Franceses no
Brasil Colonial, Flanklin Ferreira anotou que “Calvino, na realidade, liderou tanto os
protestantes franceses como os de Genebra. E mais de 155 pastores, treinados em
Genebra, foram mandados à França, entre 1555 e 1556”. Ferreira ainda considera os
números do “Registro da Companhia dos Pastores” e de “outras fontes”, sobretudo no
período compreendido entre 1555 e 1562:
“Os nomes mencionados chegam a 88, enviados – sob pseudônimo, a maioria
– para quase todos os campos da Europa, Mas muitos nomes, por medida de
segurança não são mencionados, e por outras fontes, no ano de maio envio,
1561, o número de missionários chega a 142, mais do que muitas forças
missionárias atuais”.
Portanto, pode-se afirmar com Frank James III que “longe de ser
desinteressado em missões, a história mostra que Calvino foi arrebatado por elas”.
3. Missões Calvinistas no Brasil Colonial.
Na década de 1550, a França chegou a ver um aumento notável da presença
protestante, a despeito da cruel perseguição que os huguenotes sofriam. O almirante
Gaspard de Chantillon Coligny era o líder da população protestante e foi ele que, aos 36
anos, patrocinou o envio de huguenotes ao Brasil, atendendo a solicitação do aventureiro
e portador de uma farta experiência militar, o almirante Nicolas Durand de Villegaignon.
Com efeito, o envio de protestantes ao Brasil redundou do encontro de
motivações envolvendo Coligny e Villegaignon. Este, em uma conversa informal, ouviu
sobre o recém-descoberto Brasil e interessou-se pela aventura de explorá-lo. Como sabia
precisar da ajuda de Coligny, o flertou com a ideia de que o Brasil poderia ser um lugar
onde os refugiados franceses perseguidos conseguiriam viver a fé reformada livremente.
Segundo Jean de Léry, o historiador reformado da expedição, Villegaignon manifestou a
vários líderes franceses o desejo não só de “retirar-se para um país longínquo onde
pudesse livremente servir a Deus, de acordo com o evangelho reformado, mas ainda
preparar um refúgio para todos os que desejassem fugir das perseguições” (citado por
Flanklin Ferreira).
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Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
Após os preparativos para a viagem, que incluíram o recrutamento de
seiscentos colonos, a expedição partiu do porto de Havre em 12 de julho de 1555. Mas,
como enfrentou uma forte tempestade que a fez aportar na costa da Inglaterra, em Dieppe,
foi desertada por muitos e partiu definitivamente somente em 14 de agosto de 1555, com
apenas oitenta homens. Após uma viagem perigosa e cheia de contratempos, finalmente,
chegou ao Rio de Janeiro em 10 de novembro de 1555.
Ao aportar na Baía de Guanabara, Villegaignon enfrentou diversos
problemas, tais como a falta de alimento e de água potável e a rebelião de alguns
franceses. Nessa circunstância desfavorável, o almirante da expedição tentou, mas não
logrou conseguir apoio militar com Henrique II, fato que o levou a pedir o apoio de
Genebra, o que fez escrevendo uma carta a Calvino.
Na carta, Villegaignon pediu à Igreja de Genebra que esta enviasse ministros
da Palavra de Deus e com eles pessoas “bem instruídas na religião cristã” a fim de
reformá-lo e a seu povo e “levar os selvagens ao conhecimento da salvação” (citado por
Flanklin Ferreira). Segundo R. Pierce Beaver, “a Igreja de Genebra em uma só voz deu
graças a Deus pela extensão do Reino de Jesus Cristo em um país tão distante, igualmente
tão diferente e entre uma nação inteira sem o conhecimento do Deus verdadeiro”.
Calvino estava em Frankfurt, Alemanha, mas foi informado e deu
orientações. E a Igreja de Genebra escolheu dois ministros para enviar ao Brasil, Pierre
Richier e Guilhaume Chartier, o primeiro com cinquenta e o último com trinta anos. Além
dos ministros, foram recrutados mais onze homens: Pierre Bourdon, Matthieu Verneuil,
Jean de Bourdel, André La Fon, Nicolas Denis, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas
Carmieau, Jacques Rousseau, Jean Gardien e Jean de Léry. Quatro deles eram
carpinteiros, um trabalhava com couro, um era ferreiro, um era alfaiate e, Jean de Léry, o
historiador, era também sapateiro. Phillipe de Corguilleray, o Senhor Du Pont, foi enviado
por Coligny para liderar o grupo huguenote.
Os huguenotes partiram de Genebra no dia 8 de setembro de 1556, levando
cartas de Calvino a Villegaignon, e, após uma breve estada em Paris, reuniram-se a um
grande grupo de huguenotes em Honfleur, perto da Normandia. Ao todo, cerca de
trezentas pessoas partiram ao novo mundo. Em 10 de março de 1557, chegaram no Rio
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Estudos de História da Igreja
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
de Janeiro, onde foram muito bem recebidos por Villegaignon, a quem apresentaram suas
credenciais e entregaram as cartas de Calvino.
Nesse mesmo dia, 10 de março de 1557, uma quarta-feira - 57 anos após a
celebração da primeira missa, em 26 de abril de 1500; 40 após Lutero haver fixado suas
teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg; quando Calvino tinha 47 anos – o pastor
Pierre Richier dirigiu o primeiro culto protestante das Américas. Na ocasião, com toda a
população reunida, a congregação cantou o Salmo 5, metrificado por Clement Marot, com
música de Louis Bourgeois, e Richier pregou a partir do Salmo 27:4. Uma semana depois,
em 21 de março, um domingo, foi celebrada a primeira Ceia das Américas nos moldes
calvinistas.
Entretanto, a paz esvaeceu em poucas semanas. Um homem que havia vindo
ao Brasil com a promessa de Villegaignon de que seria bispo, chamado Jean Contac,
começou a semear discórdia, polemizando acerca da natureza da presença de Cristo na
Ceia e a propagando a necessidade de incluir água no vinho. Após violentos debates,
decidiu-se que Gulhaume Chartier voltaria a Genebra para aconselhar-se com Calvino, o
que fez em 4 de junho de 1557, em um navio carregado de pau-brasil.
Antes da orientação de Calvino, todavia, Richier foi proibido de celebrar a
Ceia segundo o rito calvinista e Villegaignon mandou acrescentar água ao vinho e
determinou que ela fosse celebrada conforme a prática católica romana. O tratamento para
com os huguenotes mudou radicalmente e, após padecerem sob severas humilhações, eles
se refugiaram por dois meses em um povoado chamado La Briqueterie, até que
embarcaram em um navio francês em 4 de janeiro de 1558.
Devido ao excesso de carga, o pequeno barco, o Le Jacques, estava à
iminência de naufragar. Após os reparos, a maioria dos huguenotes decidiu arriscar-se e
seguir a bordo, mas frente à argumentação do comandante do navio quanto à insegurança
da viagem, Jean de Léry e mais cinco protestantes decidiram permanecer no Brasil. Na
hora da saída, um dos huguenotes suplicou a Léry: “Peço-vos que fiqueis conosco, pois
apesar da incerteza que estamos de aportar em França, há mais esperança de nos
salvarmos do lado do Peru ou de qualquer outra ilha do que das garras de Villegaigon,
que, como podeis imaginar, nunca vos dará sossego” (citado por Flanklin Ferreira).
Assim, Jean de Léry foi salvo de colher destino semelhante ao dos irmãos que retornaram,
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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA
os quais foram: Pierre Bourdon, Jean du Bourdel, Mettieu Verneuil, André La Fon e
Jacques le Balleur. Os cinco huguenotes lançaram-se no mar em um escaler sem mastro
e, após várias intempéries, chegaram ao Forte.
Villegaignon, buscando ocasião para executá-los, fez um questionário com
pontos controversos e determinou que lhe dessem resposta no prazo de doze horas. Eles
escolheram Jean du Bourdel para redigir a Confissão de Fé da Guanabara (Confessio
Fluminensis), com dezessete artigos. A Confissão inicia assim:
“Segundo a doutrina de S. Pedro Apóstolo, em sua primeira epístola, todos os
cristãos devem estar sempre prontos para dar razão da esperança que neles há,
e isso com toda doçura e benignidade, nós abaixo assinados, Senhor
Villegaignon, unanimemente (segundo a medida de graça que o Senhor nos
tem concedido) damos razão, a cada ponto, como nos haveis apontado e
ordenado, e começando no primeiro artigo”.
O primeiro artigo da Confissão Fluminense reza sobre a Trindade; o
segundo, sobre a dupla natureza do Salvador. O terceiro artigo ratifica o ensino da Palavra
de Deus, da doutrina apostólica e do “símbolo” sobre o Filho de Deus e o Espírito Santo;
e o quarto afirma a segunda vinda do Salvador para julgar os vivos e os mortos.
Os artigos V, VI, VII e VIII respondem aos pontos polêmicos envolvendo a
Ceia do Senhor. O nono artigo afirma o batismo e nega as tradições católicas romanas. O
décimo reconhece livre-arbítrio somente em Adão, e antes da Queda, afirma que o livre-
arbítrio é restaurado no cristão, “não todavia em perfeição”, e que os predestinados para
a vida eterna não caem em impenitência.
O artigo XI confere o perdão de pecados somente ao evangelho e à virtude
do Espírito, e nega que o ministro possa realizá-lo; o XII discute a imposição de mãos e
os artigos XIII e XIV estabelecem o ensino sobre casamento, enquanto o XV reprova os
votos monásticos. O artigo XVI confessa que somente Jesus Cristo é o “Mediador,
intercessor e advogado” e o XVII proíbe a intercessão pelos mortos.
A Confissão termina com estas palavras:
“Esta é a resposta que damos aos artigos por vós enviados, segundo a medida
e porção da fé, que Deus nos deu, suplicando que Lhe praza fazer que em nós
não seja morta, antes produza frutos dignos de seus filhos, e assim, fazendo-
nos crescer e perseverar nela, lhe rendamos graças e louvores para sempre,
Assim seja. Jean du Bourdel, Metthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André la
Fon”.
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No dia 9 de fevereiro de 1558, os professantes foram levados a
Villegaignon, ratificaram a Confissão e foram presos. Na manhã de 10 de fevereiro, uma
sexta-feira, o “Caim da América” (como depois ficou conhecido) tentou fazer os
huguenotes negarem sua fé, mas eles mantiveram-se firmes. Jean du Bourdel foi
violentamente esbofeteado e, após estimular os companheiros e cantar um Salmo, foi
lançado ao mar. Metthieu Verneuil foi levado à rocha e, após negar-se a se retratar,
proferiu suas últimas palavras: “Senhor Jesus, tem piedade de mim”. André la Fon foi
poupado por Villegaignon por ser alfaiate, e Jacques Le Balleur, por ser ferreiro. Pierre
Bourdon não havia ido à ilha por estar doente, razão pela qual Villegaignon foi aonde ele
estava e, uma vez que este não negou sua fé, foi estrangulado por um carrasco e seu corpo
foi jogado ao mar. As últimas palavras de Bourdon foram:
“Senhor Deus, sou também como aqueles meus companheiros que com honra
e glória pelejaram o bom combate pelo teu Santo Nome e, por isso, peço-te me
concedas a graça de não sucumbir aos assaltos de Satanás, do mundo e da
carne. E perdoa, Senhor, todos os pecados por mim cometidos contra tua
majestade, e isto eu te imploro em nome do teu Filho muito amado Jesus
Cristo”.
Assim encerrou a missão genebrina-calvinista em terras brasileiras. Calvino
permanece na história como o reformador que enviou missionários para estender o Reino
de Cristo no novo mundo. Não logrou fazer trabalho permanente, pelas razões aqui
apresentadas. Mas, a semente haveria de frutificar, ainda que somente quase trezentos
anos depois.
4. A obra, a pregação e a influência de Calvino.
Calvino foi o grande sistematizador do pensamento da Reforma. Suas
Institutas da Religião Cristã foram editadas pela primeira vez em Basileia, no ano de
1536. Em seu primeiro formato, era um livro de 516 páginas capaz de caber nos amplos
bolsos da época. Como antes adiantamos, a obra foi escrita em defesa dos huguenotes,
que viviam sob cruel perseguição, e endereçada ao rei Francisco I. Como disse Calvino
em sua dedicatória ao rei francês, ele se dedicou “a este trabalho sobretudo pelos nossos
franceses: embora entendesse que muitos deles estivessem famintos e sedentos de Cristo,
percebia que muito poucos eram imbuídos de um conhecimento minimamente correto”.
Anos mais tarde dessa primeira edição, Calvino escreveu o que o
impulsionou ao labor de escrever as Institutas:
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“Mas eis que, enquanto me encontrava escondido em Basileia e era conhecido
por poucos, muitos fieis e não poucos santos estavam sendo queimados vivos
na França (...) Pareceu-me que, a menos que opusesse [aos perpetradores] com
o máximo da minha habilidade, meu silêncio não poderia ser inocentado da
acusação de covardia e traição. Foi essa a consideração que me induziu a
publicar minha Institutas da Religião Cristã (...) Elas foram publicadas por
nenhum outro motivo, senão aquele de fazer com que os homens soubessem
qual a fé daqueles que vi tão vilmente e cruelmente caluniados” (citado por
John Piper).
Quando em Strasbourg, no ano de 1539, publicou a segunda edição das
Institutas. Estas primeiras edições (de 1536 e 1539) foram publicadas em latim. Em 1541,
em sua segunda estada em Genebra, foi publicada a primeira edição em francês. Gonzalez
anota que a partir de então “as edições surgiram aos pares, uma latina seguida de uma
versão francesa, como segue: 1543 e 1545, 1550 e 1551, 1559 e 1560”.
No prefácio da última edição, escrito em primeiro de agosto de 1559,
Calvino falou sobre sua dedicação em enriquecer a obra com “não poucos acréscimos”,
deixou claro que a obra não tinha outro propósito senão o de contribuir para o avanço da
Igreja de Cristo e afirmou sua firmeza em labutar pela edificação dos fieis com as
seguintes palavras:
“Engana-se o diabo, com toda a sua caterva, se, ao me oprimir com fétidas
mentiras, considera que haverei de ser mais alquebrado ou mais indolente,
porquanto confio que Deus, por sua imensa bondade, há de me dar tolerância
equânime para perseverar no curso de seu santo chamado, cujo novo exemplo
exibo nesta edição para os leitores fieis. Além disso, neste trabalho, foi este
meu propósito: preparar e instruir os candidatos ao aprendizado da palavra
divina da sagrada Teologia, para que possam ter um acesso fácil a ela, assim
como prosseguir livremente em seus passos, pois considero ter reunido uma tal
suma da religião em todas as suas partes e a tenha classificado em tal ordem,
que qualquer um que a considere retamente não terá dificuldade em estabelecer
e buscar o que é principal na Escritura, e possa aquele, ao final, referir tudo
que nela está contido”.
A versão final das Institutas é composta de quatro livros, com um total de
80 capítulos. O primeiro livro (com 18 capítulos) trata sobre o conhecimento de Deus
criador; o segundo (com 17 capítulos), sobre Deus redentor, como Ele se nos apresenta
no Antigo Testamento e depois no evangelho de Jesus Cristo; o terceiro (com 25
capítulos), sobre como o Espírito nos leva a participar da graça de Jesus Cristo; e, o quarto
(com 20 capítulos), sobre os “meios exteriores” pelos quais Deus nos chama e nos matem
unidos a Cristo.
Além das Institutas da Religião Cristã, Calvino escreveu comentários, uma
ampla correspondência com quase toda a Europa e participou de inúmeras conferências.
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Entretanto, ele foi antes de tudo um pregador. Quando esteve em Strasbourg,
apascentando a congregação de refugiados franceses, pregou quase todos os dias e duas
vezes aos domingos. Em Genebra, costumava pregar aos domingos pela manhã e à tarde
no Novo Testamento, pregando algumas vezes em Salmos durante a tarde. Nas manhãs
de semanas alternadas, pregava no Antigo Testamento.
Seu estilo de pregação era a lectio continua – exposições consecutivas -, por
meio do qual ele percorreu quase toda a Bíblia pregando verso após verso e livro após
livro. De 25 de agosto de 1549 a março de 1554, pregou uma série de exposições em
Atos. Depois de Atos, pregou 46 sermões em I e II tessalonicenses, 186 em I e II
Coríntios, 86 nas pastorais, 43 em Gálatas e 48 em Efésios, até 1558. Após um intervalo
em que esteve enfermo, retomou em 1559 com a Harmonia dos Evangelhos, série de
sermões que só foi interrompida por sua morte, em 1564. Nestes últimos anos, pregou
159 sermões em Jó, 200 em Deuteronômio, 353 em Isaías, 123 em Gênesis e assim por
diante.
Pelo que se sabe, Calvino pregou do primeiro ao último versículo nos
seguintes livros: Gênesis, Deuteronômio, Jó, Juízes, I e II Samuel, I e II reis, todos os
profetas maiores e menores, os evangelhos, Atos, I e II Coríntios, Gálatas, Efésios, I e II
tessalonicenses, I e II Timóteo, Tito e Hebreus. Seus últimos sermões foram no dia 2 de
fevereiro de 1564, em Reis, e no dia 6 de fevereiro de 1564, nos evangelhos. Segundo
Hernandes Dias Lopes, “calcula-se que Calvino pregou uma média de 290 sermões por
ano. No entanto, muitos desses sermões se perderam. Só 800 foram publicados durante a
vida do pregador e só pouco menos de 1,1 mil estão em edições eruditas modernas.
Calcula-se que mais de 1 mil deles desapareceram”.
Calvino era tão apegado ao estilo lectio continua que, em setembro de 1541,
quando reassumiu o púlpito em Genebra, ele reiniciou suas exposições exatamente no
versículo seguinte ao que havia pregado pela última vez, três anos antes. O mesmo fez o
reformador quando ficou doente em outubro de 1558 e só voltou a pregar em 12 de junho
1559, uma segunda-feira, ocasião em que sequência às exposições de Isaías no ponto em
que havia parado. Para Calvino, “o assunto que deve ser ensinado é a Palavra de Deus e
a melhor forma de ensiná-la... era por meio de uma exposição metódica e constante, livro
após livro” (citado por Steven Lawson).
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Com efeito, as vantagens da lectio continua são inúmeras, mas me contento
em ressaltar as seguintes: primeiro, impede o pregador de selecionar a seu bel prazer os
temas que lhe são mais atraentes, de evitar certas doutrinas e omitir-se quanto aos Textos
mais complicados da Palavra de Deus, a fim de que todo o Conselho de Deus seja pregado
(At 20:27). Segundo, o estilo em comento é uma expressão da confiança do pregador na
inerrância, autoridade e suficiência de toda a Escritura para edificar o povo de Deus (II
Tm 3:16, 17). Terceiro, pela pregação expositiva, a mensagem é necessariamente ditada
pelo Texto, ela emana do Texto, ou seja, o pregador não alimenta consigo uma ideia
preconcebida e, então, parte à Bíblia em busca de amparo. Quanto a isso, Calvino
afirmou: “Quando adentramos o púlpito, não podemos levar conosco nossos próprios
sonhos e fantasias” (citado por John Piper). Quarto, como a lectio continua é nada mais
que a explicação e aplicação do texto, ou, noutro dizer, é uma busca pelo sentido original
do Texto tal qual pretendido por Deus, ela é o melhor remédio contra interpretações e
aplicações fora do contexto, que não podem ser seriamente verificadas no Texto por meio
de uma séria exegese. Finalmente, exposições consecutivas são a melhor forma para quem
escolheu para o ministério os alvos da maturidade espiritual da igreja e a glória de Deus!
Mas, voltemos à pregação do reformador franco-suíço. Calvino conhecia os
idiomas originais das Escrituras, e pregava com os textos do Antigo Testamento em
hebraico e do Novo testamento em grego, sem quaisquer anotações. Foi um homem
chamado Denis Raguenier que começou a fazer um registro escrito dos sermões de
Calvino, utilizando um sistema de taquigrafia. Posteriormente, chegou a ser contratado
para o serviço. Steven J. Lawson registra que “Raguenier realizou seu trabalho com
surpreendente exatidão, dificilmente perdendo uma palavra. Essas exposições escritas
logo foram traduzidas em várias línguas, conquistando uma ampla distribuição”.
Nesse passo, urge responder a questão sobre por que Calvino tanto valorizou
a pregação as Escrituras. As respostas devem, dentre outras, contemplar ao menos os
seguintes pontos: primeiro, Calvino cria que Deus revela Sua majestade nas Escrituras e
a autentica como a Sua Palavra mediante o testemunho interno do Espírito. É dizer, é
através da Escritura que Deus, mediante o testemunho interno do Espírito, concede um
“conhecimento salvador” e põe a Escritura diante de nós como digna de reverência e
aceitação acima de qualquer controvérsia. Ouçamos o próprio Calvino a respeito: