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REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F
SCIENCE INSTITUTE
ISSN 1984-5804




         NOTA SOBRE O TEMA DA DILACERAÇÃO DA VONTADE NAS
                CONFISSÕES DE AGOSTINHO DE HIPONA




                                                                       Marcelo Pereira de Andrade1




RESUMO

O presente trabalho pretende realizar uma sondagem das profundas observações, descrições
dramáticas e relatos da dilaceração da vontade experimentados pelo próprio Agostinho, conforme
algumas passagens das Confissões, em que aparece o tema da não-coincidência da alma consigo
mesma como empecilho à felicidade humana.
Palavras-Chave: Dilaceração – confissões – felicidade humana.


RÉSUMÉ

Le présent document se propose de mener une enquête sur les observations profondes, des
descriptions dramatiques et les rapportes d´une lacération de la volonté vécus par Augustin lui-
même, selon certains passages des Confessions, dans lequelles arrive la question de la non-
coïncidence de l'âme avec elle-même comme un obstacle au bonheur humain.
Mots-clés: Déchirure - Confessions - le bonheur de l'homme.




1
    Doutorando em Filosofia pela PUC-SP. E-mail: marcelopereiraandrade@hotmail.com.
                                                                                                14
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INTRODUÇÃO



            A vontade constitui um dos temas fundamentais do pensamento agostiniano e, sem
dúvida, um dos legados à posteridade filosófica de maior repercussão. Contudo, não há uma
teoria – no sentido moderno do termo – sobre a vontade em Agostinho. E onde o conceito de
vontade é usado, seu caráter é bastante impreciso. Aliás, o caráter impreciso da terminologia do
pensamento agostiniano constitui uma de suas peculiaridades2. Nesse sentido, a análise de
GILSON sobre a resistência do pensamento agostiniano em se deixar reduzir a exposições
sintéticas se mostra pertinente. Segundo ele (1987, p. 01), isso se deve à compreensão de filosofia
que Agostinho possui: um desejo de fruição do bem que torna o homem feliz e não apenas um
esforço teórico na solução de problemas. Agostinho compreenderia a sabedoria sempre a
relacionando com a beatitude e, por isso, o homem faria filosofia: porque, acima de tudo, deseja
ser feliz3.

            Não se trata aqui de uma tentativa de conceptualização da vontade agostiniana, senão de
realizar uma sondagem das profundas observações, descrições dramáticas e relatos da dilaceração
da vontade experimentados pelo próprio Agostinho, conforme algumas passagens das Confissões.
Em outras palavras, em Confissões podemos encontrar a experiência vivida pelo próprio
Agostinho da não-coincidência da alma consigo mesma, empecilho à própria felicidade.



1. A NARRATIVA DA DILACERAÇÃO



          O episódio do furto das pêras narrado por Agostinho é um ponto de partida interessante à
nossa tentativa de introdução ao tema da dilaceração da vontade. Após roubar as pêras de uma
pereira vizinha com seus amigos, diz ele, as que sobraram foram jogadas aos porcos. “Nosso
prazer era apenas praticar o que era proibido” (Confissões II, iv, 9). No fundo, Agostinho
reconhece: “...não eram os frutos que me atraíam, mas a ação má que eu cometia em companhia

2
    GILSON, 1987, p. 53 n. 1; MARROU, 1938, p. 215.
3
    De civ. Dei XIX, i, 3.
                                                                                                15
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de amigos que comigo pecavam” (Ibid., viii, 16). Um affectus animi o movia. E “que afeto da
alma era aquele?” (Ibid., ix, 17).


                            “[era] ...como um riso que excitava o coração ao pensar que estávamos enganando
                            os que não esperavam de nós semelhante ato e muito o detestariam. Por que me
                            deleitava de não ter pecado sozinho? (...) Sozinho eu não teria praticado tal
                            ação...” (Ibidem).



           O afeto da alma fora despertado pela atração que a ação má causava em Agostinho;
atração pela própria maldade:


                            “Ó, sedução misteriosa da mente, vontade de fazer o mal por brincadeira ou
                            diversão, gracejo, prazer de lesar os outros sem vantagem pessoal ou sede de
                            vingança!” (Ibidem).



           Ao afirmar que sozinho não teria praticado o furto, Agostinho não está tentando se isentar
de culpa, mas alertando para a influência do coletivo na ação individual. Seduzido pelo mal,
Agostinho percebe que a nimis amicitia (a amizade inimiga) o levara a realizar a maldade. Sente-
se atraído pelo mal, porém, ao mesmo tempo, não o praticaria se estivesse sozinho. Não se trata
de dilaceração ainda, mas da percepção de uma espécie de feixe de sensações interiores que
Agostinho chama simplesmente nodus (nó). E “quem desatará este nó assim tão tortuoso e
emaranhado?” (Ibid., x, 18). A vida interior – representada pela imagem do nó – é, para
Agostinho, a magna questão: “Tornei-me uma grande questão para mim mesmo...” (Conf. IV, iv,
9). Dentre as perplexidades que a interioridade suscita, uma das mais dramáticas é, sem dúvida, a
do “emaranhado” ou nó dos afetos interiores.

           Agostinho confessa não querer voltar os olhos para o nó, não querer vê-lo, ele é
repugnante; uma verdadeira regio egestatis (região de miséria)4. A miséria interior é descrita de
maneira dramática e intensa:



4
    Confissões II, x, 18.
                                                                                                        16
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                          “Assim era eu então, e por isso me inquietava, gemia, chorava e me agitava, sem
                          encontrar consolo. Trazia a alma despedaçada, a escorrer sangue, qual fardo
                          inoportuno do qual não sabia descartar-me. Não encontrava paz nos bosques
                          amenos, nem nos jogos e cânticos, nem nos jardins perfumados, nem nos
                          banquetes faustosos, nem nos prazeres do amor e tampouco nos livros e na
                          poesia. Tudo era insuportável, até a luz do dia”. (Conf. IV, vii, 12).



           Concisam et cruentam animam, escreve Agostinho; alma despedaçada, dilacerada,
traduzimos nós. A regio egestatis é a região da miséria, da dilaceração, da não coincidência
consigo mesmo. Agostinho admite que Deus era a cura para a dilaceração, porém, seu erro era
depositar a própria alma num phantasma, e não em Deus: “A ti, Senhor, devia ser elevada minha
alma para ser curada. Eu sabia, mas não queria, nem podia” (Ibidem). Assim, ele fazia de si
mesmo um infelix locus (infeliz morada).



2. A DILACERAÇÃO DA ALMA EM PLATÃO



           Platão, por exemplo, havia comparado a situação da alma dilacerada como uma “guerra
civil” (República IV 444b). A alma está dividida, dilacerada. Ele chega a reconhecer que a alma
padece de dolorosos conflitos, e que eles se derramam na pólis. A luta que ocorre na alma entre
razão e paixão encontramos refletida na pólis. Esta alma doente é a alma que vive na
intemperança e, presa a ela, é incapaz de abandonar os vícios5:



                          “(...) tratando-se, não chegam a nada, exceto a complicar e a agravar as suas
                          doenças; e esperam, sempre que se lhes aconselhe um remédio, e que graças a
                          ele se tornarão saudáveis. É a doença desses doentes” (Ibid., 426b).



           Não há remédio exterior algum que a cure, pois a doença verdadeira é o modo de vida que
escolheu viver. A cura exige uma mudança no modo de vida: da intemperança à temperança; da
desagregação à unidade harmônica; do desacordo ao acordo consigo mesmo. Mas aí está a raiz da

5
    Rep. IV, 426a.
                                                                                                      17
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doença da alma – ou “a doença desses doentes”: não querer mudar de vida. Agostinho sabia
disso, sabia onde estava a cura, mas não podia. O “não podia” revela uma distância enorme em
relação à compreensão platônica da dilaceração. A terapia da dilaceração em Platão se dá quando
o homem torna-se senhor de si mesmo6, isto é, quando sua parte superior domina a inferior. Ora,
a parte superior da alma é, para Platão, a razão7. Assim, o homem senhor de si é aquele que
estabelece o domínio da razão sobre os desejos e as paixões. A alma dominada pelos desejos é
dilacerada e infeliz, enquanto a alma governada pela razão goza da calma e da serenidade. “Os
frutos do autodomínio são a unidade consigo mesmo, a calma e a posse serena de si” (TAYLOR,
1997, p. 157). Ser racional é perceber a ordem natural e governar-se pela visão dessa ordem. Ver
a ordem é enxergar que tudo está ordenado para o Bem. Por isso, a alma boa busca o bem para
além dos apetites e instaura a ordem em si mesma8. Na visão da ordem (conhecer) e do bem
(amar) a razão alcança sua plenitude. A sabedoria está em olhar na direção correta. A cura da
enfermidade da alma está em voltar o olhar na direção da ordem e do bem. A alma má não olha
na direção correta, detendo-se nos objetos materiais e se derramando neles. O que a alma
dilacerada deve fazer é realizar uma “conversão” (periagogé) (Rep. IV, 518e). “Assim como o
olho físico só pode ser virado com um giro de todo o corpo, assim deve fazer a alma” (TAYLOR,
1997, p. 165). O problema todo é a direção do olhar da alma: para quais objetos a alma está
voltada? Para o imaterial e eterno ou para o material e mutável? Essas oposições definem as
direções possíveis do olhar da alma em Platão. A alma é a direção do seu olhar. Se está
dilacerada, seu olhar está na direção errada. O que deve fazer é realizar a conversão do olhar e
curar sua dilaceração.




3. O DRAMA DA DILACERAÇÃO DA VONTADE EM AGOSTINHO

6
  Rep. IV, 430e: “Mas não é risível falar de domínio de si mesmo? Pois o senhor de si mesmo é também escravo, e
vice-versa; em suma, é à mesma pessoa a que nos referimos com estas expressões”.
7
  Rep. IV, 442a.
8
  Rep. IV, 442b.

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         Agostinho reconhece que sua alma é prisioneira das coisas temporais9, sabe onde (ou,
antes, em quem) está a superação da dilaceração; mas não pode. Para Platão, não há conflito entre
visão e desejo pelo que se viu. Além de falar do ponto de vista da primeira pessoa – “assim era eu
então” (quod ego tunc eram) – e com uma intensidade dramática incomparável, Agostinho não
entende a relação conhecimento e vontade como Platão. Se para este, conhecer a ordem é querê-
la, para Agostinho, a vontade não depende do conhecimento. Posso conhecer o bem e fazer o mal
ou, segundo as palavras do Apóstolo, “querer o bem está ao meu alcance, não, porém, praticá-lo,
visto que não faço o bem, que quero, e faço o mal, que não quero. (Rm 7, 18-19).

         Podemos encontrar em Agostinho diversos aspectos da teoria platônica10, entretanto há
novidades fundamentais11. De modo bem resumido, podemos dizer que para Agostinho não sou
simplesmente a direção do meu olhar. Posso olhar, e não amar; o problema é o amor ou, mais
exatamente, os amores. O problema se desloca da visão para o amor, do conhecimento para a
vontade. Mas tanto a razão quanto a vontade estão aprisionadas numa cadeia maléfica,
identificada por Agostinho:



                          “...da vontade perversa nasce o desejo, do desejo atendido nasce o hábito, e da
                          não-resistência ao hábito, provém a necessidade; e como se fossem anéis


9
  Conf. IV, vi, 11.
10
   Como é sabido, Agostinho conheceu as doutrinas de Platão através de Plotino, Porfírio e Cícero. Podemos
encontrar em TAYLOR (1997, pp. 169-171) um resumo da apropriação agostiniana de Platão. Segundo ele, a) as
oposições platônicas foram adaptadas às oposições do cristianismo: espírito-carne; alma-corpo; reino superior-
mundo natural; eterno-mutável; b) as Idéias passam a ser os pensamentos de Deus; c) fusão da doutrina platônica da
participação com a doutrina da criação ex nihilo do Gênesis: tudo é participação-semelhença a Deus e as coisas são
signos de Seus pensamentos; d) tudo o que existe é bom e ordenado para o bem; e) perigo da absorção no sensível,
por isso, a alma precisa ser girada e mudar a direção de sua atenção/desejo.
11
   As novidades fundamentais inseridas por Agostinho, segundo TAYLOR (1997, pp. 169-171), teriam sido: a) a
doutrina das duas direções do olhar em Platão é expressa em Agostinho como doutrina de dois amores: caridade e
concupiscência. Não sou simplesmente a direção do meu olhar, mas aquilo que eu amo; b) a reminiscência não é
mais a memória de vida anterior, mas a memória presente; c) oposições platônico-cristãs são pensadas em termos de
exterior-interior. O caminho que leva do inferior ao superior (a conversão platônica), agora é descrito como do
exterior ao interior (conversão à interioridade). A conversão será ir para dentro de nós mesmos, pois “é no interior do
homem que habita a verdade” (De vera religione XXXIX, 72); d) Se para Platão o caminho passava pelos entes que as
Idéias sustentam, em Agostinho o caminho somos nós mesmos. “Deus não é apenas um objeto transcendente, mas
princípio subjacente à nossa atividade cognitiva. Agostinho muda o foco dos objetos conhecidos para a atividade de
conhecer.
                                                                                                                     19
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                            enlaçados entre si – por isso chamei cadeia – mantinha-me em escravidão” (Conf.
                            VIII, v, 10).


           Eis a descrição do nó interior no furto das pêras: da vontade perversa nasce o desejo, a
amizade inimiga influencia no atendimento do desejo; do desejo atendido nasce o hábito, do
hábito, a necessidade12. Mas Agostinho também afirma:



                             “preso não por ferros estranhos, mas por minha férrea vontade. Possuía meu
                             querer o inimigo, e dele havia feito uma cadeia com a que me tinha aprisionado”
                             (Ibidem).



           Como Agostinho pode julgar-se aprisionado por própria vontade se o “inimigo” possuía
seu querer? “... suspirava por ti, mas estava aprisionado” (Ibidem). Suspirava por Deus, mas o
inimigo possuía seu querer! Como entender tamanho paradoxo? Na verdade, o paradoxo é da
própria vontade.

           Em De diuersis quaestionibus 83, 8, Agostinho define a vontade como “movimento não
espacial”. Sendo o amor, “vontade intensa” (De Trinitate XV, xxi, 41), sendo também que “meu
peso é meu amor” e o peso leva em direção ao lugar que é meu (Confissões XIII, ix, 10), a alma
se move em direção ao seu amor, que é sua felicidade. Mas para querer, é preciso querer
inteiramente:


                            “ir ou chegar junto a ti não é senão um ato de querer ir, mas com vontade forte e
                            inteira, e não titubeante e ferida, numa luta da parte que se ergue contra a parte
                            que fraqueja” (Conf. VIII, viii, 19).


           As partes que lutam entre si não são a razão e a paixão – como em Platão – mas a vontade
dividida. Há várias vontades na alma que lutam entre si, sendo mais fácil mover o corpo que a
própria vontade:




12
     Ver a interessante análise do hábito in BROWN ( 2005, pp. 209-212).
                                                                                                           20
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                          “...pois mais facilmente o corpo me obedecia ao mínimo aceno da alma para
                          mover os membros segundo suas ordens, do que a alma obedecia a si mesma para
                          realizar, de sua própria vontade, o que constituía sua magna vontade” (Ibid., viii,
                          20).



        “A alma comanda o corpo, e este lhe obedece; comanda-se a si mesma, e esta resiste”
(Ibid., ix, 21). Como seria possível o autodomínio platônico e seus frutos: unidade consigo
mesmo, calma e posse serena de si13? Agostinho chama a dilaceração da vontade de monstrum e
pergunta unde hoc monstrum (de onde vem este monstro)? “A alma ordena o querer; não
ordenaria se não o quisesse; no entanto, não executa aquilo que ela mesma ordena” (Ibidem). No
fundo, dirá Agostinho, “como ela não quer totalmente, também não ordena totalmente. Ela
ordena na proporção do querer” (Ibidem). Podemos falar em duas vontades, “mas nenhuma é
completa: o que existe numa, falta na outra” (Ibidem). A dilaceração é tamanha, que alguns
projetam para fora (caso do maniqueísmo, afirmando duas forças antagônicas no universo) o que
acontece no interior14.

        “Não tinha uma vontade plena, nem decidida falta de vontade; daí a luta comigo mesmo,
deixando-me dilacerado” (Ibidem). Para Agostinho, a “monstruosidade” da dilaceração da
vontade é um efeito, um castigo por causa do pecado livremente cometido enquanto filho de
Adão. Mas a vontade dilacerada busca sua cura, isto é, a unidade. Como curar a vontade
dilacerada? Há casos, certamente, em que ela é plena – não está sempre cindida contra si mesma.
O problema aqui é quando um querer não é pleno; aí sim, a vontade divide-se em duas. Nesse
caso, como superar a dilaceração?



        Responderíamos que a superação viria do amor, não fosse a possível confusão que
circunda esta resposta. Caso notório é a de Hanna Arendt. Ela afirma que a superação viria do
amor, mas exclui dele a graça:

13
   “A vontade pode manifestar-se como conflito no interior dela própria (e, note-se, aquém da liberdade da vontade),
um conflito de difícil superação entre querer e não querer; o que é diferente do conflito platônico entre a razão e a
paixão” (CUNHA, 2001, p. 54).
14
   Conf. VIII, x, 22. “Aquilo que o maniqueu vê como embate poderia ser visto como harmonia de opostos (...)
Agostinho critica a projeção do conflito humano para o mundo. Dessa forma, vamos reencontrar o conflito, porém
não mais no mundo, nas antíteses cósmicas, mas sim no homem, enquanto criatura cindida” (NOVAES, 2002, p. 53.)
                                                                                                                  21
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                       “uma vez que descobrira que a fragmentação da vontade era a mesma tanto para
                       a má quanto para a boa vontade; é um tanto difícil imaginar a graça de Deus
                       decidindo se devo ir ao teatro ou cometer adultério...” (ARENDT, apud
                       CUNHA, 2002, p. 59).



        A vontade encontra sua cura ao transformar-se em amor, isto é, ao interromper o conflito
entre quer e não querer, começando a agir. O problema é que essa interpretação conduz ao
pelagianismo. Agostinho não aceita que a cura da vontade ocorra independentemente da graça:



                       “Fostes algum tempo trevas, mas agora sois luz no Senhor (Ef. 5, 8). Por que
                       eles, querendo ser luz não no Senhor, senão em si mesmos, ao julgar que a
                       natureza da alma é a mesma que de Deus, tornam-se trevas cada vez mais
                       densas. Em sua espantosa arrogância, afastam-se cada vez mais de ti, que és luz
                       verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo (Jo 1, 9)” (Conf.
                       VIII, x, 22).



        Vale notar que amor, para Agostinho, é “vontade intensa” (De Trinitate XV, xxi, 41), o
que não significa necessariamente que ele seja sempre unificador, pois pode separar.

        A vontade não é tampouco causa dos males. O mal é priuatio boni (ausência de bem).
Como o mal é privação do bem, não há causa eficiente para o mal, somente “causa deficiente”
(Ibid., xii, 7). A vontade não é causa dos males; a vontade corrompida é que se derrama ao
transitório.




                                                                                                   22
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SCIENCE INSTITUTE
ISSN 1984-5804


CONSIDERAÇÕES FINAIS



                       “Havia, perto da nossa vinha, uma pereira carregada de frutos nada atraentes,
                       nem pela beleza nem pelo sabor. Certa noite, depois de prolongados
                       divertimentos pelas praças até altas horas, como de costume, fomos, jovens
                       malvados que éramos, sacudir a árvore para lhe roubarmos os frutos. Colhemos
                       quantidade considerável, não para nos banquetearmos, se bem que provamos
                       algumas, mas para jogá-las aos porcos. Nosso prazer era apenas praticar o que
                       era proibido. Eis o meu coração, Senhor, o coração que olhaste com misericórdia
                       no fundo do abismo (...) Gostava de arruinar-me, de destruir-me; amava, não o
                       objeto que me arrastava ao nada, mas o aniquilamento em si. Pobre alma
                       embrutecida, que se apartava do teu firme apoio para auto-destruir-se...”
                       (Confissões II, iv, 9).



        “Quid erat ille affectus animi (Que afeto da alma era aquele?)” (Ibid., ix, 17). De onde
vinha o movimento da vontade, afastando-se do sumo bem e se derramando nas coisas mortais?

        Se o homem é a magna questio, não é voltando seu olhar para a regio egestatis que ele se
compreenderá. “Cognoscam te, cognitor meus, cognoscam sicut et cognitus sum (Conheça-te a ti,
conhecedor meu, conheça-te a ti como sou por ti conhecido)” (Conf. X, i,1). Eis a rota apontada
por Agostinho!



BIBLIOGRAFIA:



AGOSTINHO, SANTO. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. 2ª ed. Coleção
Patrística – 10. São Paulo: Paulus, 1997.

___________________. A Trindade. Trad. Agustinho Belmonte. 2ª ed. Coleção Patrística – 7.
São Paulo: Paulus, 1994.

___________________. O livre-arbítrio. Trad. Nair de Assis Oliveira. 3ª ed. Coleção Patrística –
8. São Paulo: Paulus, 1995.

BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Trad. Vera Ribeiro. 2ª ed. SP/RJ: Record,
2005.
                                                                                                   23
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SCIENCE INSTITUTE
ISSN 1984-5804


CUNHA, Mariana Palozzi Sérvulo da. O Movimento da Alma: a invenção por Agostinho do
conceito de vontade. Coleção Filosofia – 123. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

GILSON, Étienne. Introduction a L’Étude de Saint Augustin. Paris: Vrin, 1987.

MARROU, H.-I. Saint Augustin et la fin de la culture antique. Paris: De Boccard, 1938.

NOVAES, Moacyr. Linguagem e Verdade nas Confissões. In: PALACIOS, Pelayo M. (org.).
Tempo e Razão: 1600 anos das Confissões de Agostinho. Leituras Filosóficas. São Paulo: Loyola,
2002.

PLATÃO. República. Trad. Enrico Corvisieri. SP: Nova Cultural. Col. Os Pensadores, 2000.

TAYLOR, C. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Trad. Adail Ubirajara
Sobral & Dinah de Abreu Azevedo. SP: Edições Loyola, 1997.




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Dilaceração da vontade em Agostinho

  • 1. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 NOTA SOBRE O TEMA DA DILACERAÇÃO DA VONTADE NAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO DE HIPONA Marcelo Pereira de Andrade1 RESUMO O presente trabalho pretende realizar uma sondagem das profundas observações, descrições dramáticas e relatos da dilaceração da vontade experimentados pelo próprio Agostinho, conforme algumas passagens das Confissões, em que aparece o tema da não-coincidência da alma consigo mesma como empecilho à felicidade humana. Palavras-Chave: Dilaceração – confissões – felicidade humana. RÉSUMÉ Le présent document se propose de mener une enquête sur les observations profondes, des descriptions dramatiques et les rapportes d´une lacération de la volonté vécus par Augustin lui- même, selon certains passages des Confessions, dans lequelles arrive la question de la non- coïncidence de l'âme avec elle-même comme un obstacle au bonheur humain. Mots-clés: Déchirure - Confessions - le bonheur de l'homme. 1 Doutorando em Filosofia pela PUC-SP. E-mail: marcelopereiraandrade@hotmail.com. 14 www.institutodefilosofia.com.br
  • 2. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 INTRODUÇÃO A vontade constitui um dos temas fundamentais do pensamento agostiniano e, sem dúvida, um dos legados à posteridade filosófica de maior repercussão. Contudo, não há uma teoria – no sentido moderno do termo – sobre a vontade em Agostinho. E onde o conceito de vontade é usado, seu caráter é bastante impreciso. Aliás, o caráter impreciso da terminologia do pensamento agostiniano constitui uma de suas peculiaridades2. Nesse sentido, a análise de GILSON sobre a resistência do pensamento agostiniano em se deixar reduzir a exposições sintéticas se mostra pertinente. Segundo ele (1987, p. 01), isso se deve à compreensão de filosofia que Agostinho possui: um desejo de fruição do bem que torna o homem feliz e não apenas um esforço teórico na solução de problemas. Agostinho compreenderia a sabedoria sempre a relacionando com a beatitude e, por isso, o homem faria filosofia: porque, acima de tudo, deseja ser feliz3. Não se trata aqui de uma tentativa de conceptualização da vontade agostiniana, senão de realizar uma sondagem das profundas observações, descrições dramáticas e relatos da dilaceração da vontade experimentados pelo próprio Agostinho, conforme algumas passagens das Confissões. Em outras palavras, em Confissões podemos encontrar a experiência vivida pelo próprio Agostinho da não-coincidência da alma consigo mesma, empecilho à própria felicidade. 1. A NARRATIVA DA DILACERAÇÃO O episódio do furto das pêras narrado por Agostinho é um ponto de partida interessante à nossa tentativa de introdução ao tema da dilaceração da vontade. Após roubar as pêras de uma pereira vizinha com seus amigos, diz ele, as que sobraram foram jogadas aos porcos. “Nosso prazer era apenas praticar o que era proibido” (Confissões II, iv, 9). No fundo, Agostinho reconhece: “...não eram os frutos que me atraíam, mas a ação má que eu cometia em companhia 2 GILSON, 1987, p. 53 n. 1; MARROU, 1938, p. 215. 3 De civ. Dei XIX, i, 3. 15 www.institutodefilosofia.com.br
  • 3. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 de amigos que comigo pecavam” (Ibid., viii, 16). Um affectus animi o movia. E “que afeto da alma era aquele?” (Ibid., ix, 17). “[era] ...como um riso que excitava o coração ao pensar que estávamos enganando os que não esperavam de nós semelhante ato e muito o detestariam. Por que me deleitava de não ter pecado sozinho? (...) Sozinho eu não teria praticado tal ação...” (Ibidem). O afeto da alma fora despertado pela atração que a ação má causava em Agostinho; atração pela própria maldade: “Ó, sedução misteriosa da mente, vontade de fazer o mal por brincadeira ou diversão, gracejo, prazer de lesar os outros sem vantagem pessoal ou sede de vingança!” (Ibidem). Ao afirmar que sozinho não teria praticado o furto, Agostinho não está tentando se isentar de culpa, mas alertando para a influência do coletivo na ação individual. Seduzido pelo mal, Agostinho percebe que a nimis amicitia (a amizade inimiga) o levara a realizar a maldade. Sente- se atraído pelo mal, porém, ao mesmo tempo, não o praticaria se estivesse sozinho. Não se trata de dilaceração ainda, mas da percepção de uma espécie de feixe de sensações interiores que Agostinho chama simplesmente nodus (nó). E “quem desatará este nó assim tão tortuoso e emaranhado?” (Ibid., x, 18). A vida interior – representada pela imagem do nó – é, para Agostinho, a magna questão: “Tornei-me uma grande questão para mim mesmo...” (Conf. IV, iv, 9). Dentre as perplexidades que a interioridade suscita, uma das mais dramáticas é, sem dúvida, a do “emaranhado” ou nó dos afetos interiores. Agostinho confessa não querer voltar os olhos para o nó, não querer vê-lo, ele é repugnante; uma verdadeira regio egestatis (região de miséria)4. A miséria interior é descrita de maneira dramática e intensa: 4 Confissões II, x, 18. 16 www.institutodefilosofia.com.br
  • 4. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 “Assim era eu então, e por isso me inquietava, gemia, chorava e me agitava, sem encontrar consolo. Trazia a alma despedaçada, a escorrer sangue, qual fardo inoportuno do qual não sabia descartar-me. Não encontrava paz nos bosques amenos, nem nos jogos e cânticos, nem nos jardins perfumados, nem nos banquetes faustosos, nem nos prazeres do amor e tampouco nos livros e na poesia. Tudo era insuportável, até a luz do dia”. (Conf. IV, vii, 12). Concisam et cruentam animam, escreve Agostinho; alma despedaçada, dilacerada, traduzimos nós. A regio egestatis é a região da miséria, da dilaceração, da não coincidência consigo mesmo. Agostinho admite que Deus era a cura para a dilaceração, porém, seu erro era depositar a própria alma num phantasma, e não em Deus: “A ti, Senhor, devia ser elevada minha alma para ser curada. Eu sabia, mas não queria, nem podia” (Ibidem). Assim, ele fazia de si mesmo um infelix locus (infeliz morada). 2. A DILACERAÇÃO DA ALMA EM PLATÃO Platão, por exemplo, havia comparado a situação da alma dilacerada como uma “guerra civil” (República IV 444b). A alma está dividida, dilacerada. Ele chega a reconhecer que a alma padece de dolorosos conflitos, e que eles se derramam na pólis. A luta que ocorre na alma entre razão e paixão encontramos refletida na pólis. Esta alma doente é a alma que vive na intemperança e, presa a ela, é incapaz de abandonar os vícios5: “(...) tratando-se, não chegam a nada, exceto a complicar e a agravar as suas doenças; e esperam, sempre que se lhes aconselhe um remédio, e que graças a ele se tornarão saudáveis. É a doença desses doentes” (Ibid., 426b). Não há remédio exterior algum que a cure, pois a doença verdadeira é o modo de vida que escolheu viver. A cura exige uma mudança no modo de vida: da intemperança à temperança; da desagregação à unidade harmônica; do desacordo ao acordo consigo mesmo. Mas aí está a raiz da 5 Rep. IV, 426a. 17 www.institutodefilosofia.com.br
  • 5. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 doença da alma – ou “a doença desses doentes”: não querer mudar de vida. Agostinho sabia disso, sabia onde estava a cura, mas não podia. O “não podia” revela uma distância enorme em relação à compreensão platônica da dilaceração. A terapia da dilaceração em Platão se dá quando o homem torna-se senhor de si mesmo6, isto é, quando sua parte superior domina a inferior. Ora, a parte superior da alma é, para Platão, a razão7. Assim, o homem senhor de si é aquele que estabelece o domínio da razão sobre os desejos e as paixões. A alma dominada pelos desejos é dilacerada e infeliz, enquanto a alma governada pela razão goza da calma e da serenidade. “Os frutos do autodomínio são a unidade consigo mesmo, a calma e a posse serena de si” (TAYLOR, 1997, p. 157). Ser racional é perceber a ordem natural e governar-se pela visão dessa ordem. Ver a ordem é enxergar que tudo está ordenado para o Bem. Por isso, a alma boa busca o bem para além dos apetites e instaura a ordem em si mesma8. Na visão da ordem (conhecer) e do bem (amar) a razão alcança sua plenitude. A sabedoria está em olhar na direção correta. A cura da enfermidade da alma está em voltar o olhar na direção da ordem e do bem. A alma má não olha na direção correta, detendo-se nos objetos materiais e se derramando neles. O que a alma dilacerada deve fazer é realizar uma “conversão” (periagogé) (Rep. IV, 518e). “Assim como o olho físico só pode ser virado com um giro de todo o corpo, assim deve fazer a alma” (TAYLOR, 1997, p. 165). O problema todo é a direção do olhar da alma: para quais objetos a alma está voltada? Para o imaterial e eterno ou para o material e mutável? Essas oposições definem as direções possíveis do olhar da alma em Platão. A alma é a direção do seu olhar. Se está dilacerada, seu olhar está na direção errada. O que deve fazer é realizar a conversão do olhar e curar sua dilaceração. 3. O DRAMA DA DILACERAÇÃO DA VONTADE EM AGOSTINHO 6 Rep. IV, 430e: “Mas não é risível falar de domínio de si mesmo? Pois o senhor de si mesmo é também escravo, e vice-versa; em suma, é à mesma pessoa a que nos referimos com estas expressões”. 7 Rep. IV, 442a. 8 Rep. IV, 442b. 18 www.institutodefilosofia.com.br
  • 6. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 Agostinho reconhece que sua alma é prisioneira das coisas temporais9, sabe onde (ou, antes, em quem) está a superação da dilaceração; mas não pode. Para Platão, não há conflito entre visão e desejo pelo que se viu. Além de falar do ponto de vista da primeira pessoa – “assim era eu então” (quod ego tunc eram) – e com uma intensidade dramática incomparável, Agostinho não entende a relação conhecimento e vontade como Platão. Se para este, conhecer a ordem é querê- la, para Agostinho, a vontade não depende do conhecimento. Posso conhecer o bem e fazer o mal ou, segundo as palavras do Apóstolo, “querer o bem está ao meu alcance, não, porém, praticá-lo, visto que não faço o bem, que quero, e faço o mal, que não quero. (Rm 7, 18-19). Podemos encontrar em Agostinho diversos aspectos da teoria platônica10, entretanto há novidades fundamentais11. De modo bem resumido, podemos dizer que para Agostinho não sou simplesmente a direção do meu olhar. Posso olhar, e não amar; o problema é o amor ou, mais exatamente, os amores. O problema se desloca da visão para o amor, do conhecimento para a vontade. Mas tanto a razão quanto a vontade estão aprisionadas numa cadeia maléfica, identificada por Agostinho: “...da vontade perversa nasce o desejo, do desejo atendido nasce o hábito, e da não-resistência ao hábito, provém a necessidade; e como se fossem anéis 9 Conf. IV, vi, 11. 10 Como é sabido, Agostinho conheceu as doutrinas de Platão através de Plotino, Porfírio e Cícero. Podemos encontrar em TAYLOR (1997, pp. 169-171) um resumo da apropriação agostiniana de Platão. Segundo ele, a) as oposições platônicas foram adaptadas às oposições do cristianismo: espírito-carne; alma-corpo; reino superior- mundo natural; eterno-mutável; b) as Idéias passam a ser os pensamentos de Deus; c) fusão da doutrina platônica da participação com a doutrina da criação ex nihilo do Gênesis: tudo é participação-semelhença a Deus e as coisas são signos de Seus pensamentos; d) tudo o que existe é bom e ordenado para o bem; e) perigo da absorção no sensível, por isso, a alma precisa ser girada e mudar a direção de sua atenção/desejo. 11 As novidades fundamentais inseridas por Agostinho, segundo TAYLOR (1997, pp. 169-171), teriam sido: a) a doutrina das duas direções do olhar em Platão é expressa em Agostinho como doutrina de dois amores: caridade e concupiscência. Não sou simplesmente a direção do meu olhar, mas aquilo que eu amo; b) a reminiscência não é mais a memória de vida anterior, mas a memória presente; c) oposições platônico-cristãs são pensadas em termos de exterior-interior. O caminho que leva do inferior ao superior (a conversão platônica), agora é descrito como do exterior ao interior (conversão à interioridade). A conversão será ir para dentro de nós mesmos, pois “é no interior do homem que habita a verdade” (De vera religione XXXIX, 72); d) Se para Platão o caminho passava pelos entes que as Idéias sustentam, em Agostinho o caminho somos nós mesmos. “Deus não é apenas um objeto transcendente, mas princípio subjacente à nossa atividade cognitiva. Agostinho muda o foco dos objetos conhecidos para a atividade de conhecer. 19 www.institutodefilosofia.com.br
  • 7. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 enlaçados entre si – por isso chamei cadeia – mantinha-me em escravidão” (Conf. VIII, v, 10). Eis a descrição do nó interior no furto das pêras: da vontade perversa nasce o desejo, a amizade inimiga influencia no atendimento do desejo; do desejo atendido nasce o hábito, do hábito, a necessidade12. Mas Agostinho também afirma: “preso não por ferros estranhos, mas por minha férrea vontade. Possuía meu querer o inimigo, e dele havia feito uma cadeia com a que me tinha aprisionado” (Ibidem). Como Agostinho pode julgar-se aprisionado por própria vontade se o “inimigo” possuía seu querer? “... suspirava por ti, mas estava aprisionado” (Ibidem). Suspirava por Deus, mas o inimigo possuía seu querer! Como entender tamanho paradoxo? Na verdade, o paradoxo é da própria vontade. Em De diuersis quaestionibus 83, 8, Agostinho define a vontade como “movimento não espacial”. Sendo o amor, “vontade intensa” (De Trinitate XV, xxi, 41), sendo também que “meu peso é meu amor” e o peso leva em direção ao lugar que é meu (Confissões XIII, ix, 10), a alma se move em direção ao seu amor, que é sua felicidade. Mas para querer, é preciso querer inteiramente: “ir ou chegar junto a ti não é senão um ato de querer ir, mas com vontade forte e inteira, e não titubeante e ferida, numa luta da parte que se ergue contra a parte que fraqueja” (Conf. VIII, viii, 19). As partes que lutam entre si não são a razão e a paixão – como em Platão – mas a vontade dividida. Há várias vontades na alma que lutam entre si, sendo mais fácil mover o corpo que a própria vontade: 12 Ver a interessante análise do hábito in BROWN ( 2005, pp. 209-212). 20 www.institutodefilosofia.com.br
  • 8. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 “...pois mais facilmente o corpo me obedecia ao mínimo aceno da alma para mover os membros segundo suas ordens, do que a alma obedecia a si mesma para realizar, de sua própria vontade, o que constituía sua magna vontade” (Ibid., viii, 20). “A alma comanda o corpo, e este lhe obedece; comanda-se a si mesma, e esta resiste” (Ibid., ix, 21). Como seria possível o autodomínio platônico e seus frutos: unidade consigo mesmo, calma e posse serena de si13? Agostinho chama a dilaceração da vontade de monstrum e pergunta unde hoc monstrum (de onde vem este monstro)? “A alma ordena o querer; não ordenaria se não o quisesse; no entanto, não executa aquilo que ela mesma ordena” (Ibidem). No fundo, dirá Agostinho, “como ela não quer totalmente, também não ordena totalmente. Ela ordena na proporção do querer” (Ibidem). Podemos falar em duas vontades, “mas nenhuma é completa: o que existe numa, falta na outra” (Ibidem). A dilaceração é tamanha, que alguns projetam para fora (caso do maniqueísmo, afirmando duas forças antagônicas no universo) o que acontece no interior14. “Não tinha uma vontade plena, nem decidida falta de vontade; daí a luta comigo mesmo, deixando-me dilacerado” (Ibidem). Para Agostinho, a “monstruosidade” da dilaceração da vontade é um efeito, um castigo por causa do pecado livremente cometido enquanto filho de Adão. Mas a vontade dilacerada busca sua cura, isto é, a unidade. Como curar a vontade dilacerada? Há casos, certamente, em que ela é plena – não está sempre cindida contra si mesma. O problema aqui é quando um querer não é pleno; aí sim, a vontade divide-se em duas. Nesse caso, como superar a dilaceração? Responderíamos que a superação viria do amor, não fosse a possível confusão que circunda esta resposta. Caso notório é a de Hanna Arendt. Ela afirma que a superação viria do amor, mas exclui dele a graça: 13 “A vontade pode manifestar-se como conflito no interior dela própria (e, note-se, aquém da liberdade da vontade), um conflito de difícil superação entre querer e não querer; o que é diferente do conflito platônico entre a razão e a paixão” (CUNHA, 2001, p. 54). 14 Conf. VIII, x, 22. “Aquilo que o maniqueu vê como embate poderia ser visto como harmonia de opostos (...) Agostinho critica a projeção do conflito humano para o mundo. Dessa forma, vamos reencontrar o conflito, porém não mais no mundo, nas antíteses cósmicas, mas sim no homem, enquanto criatura cindida” (NOVAES, 2002, p. 53.) 21 www.institutodefilosofia.com.br
  • 9. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 “uma vez que descobrira que a fragmentação da vontade era a mesma tanto para a má quanto para a boa vontade; é um tanto difícil imaginar a graça de Deus decidindo se devo ir ao teatro ou cometer adultério...” (ARENDT, apud CUNHA, 2002, p. 59). A vontade encontra sua cura ao transformar-se em amor, isto é, ao interromper o conflito entre quer e não querer, começando a agir. O problema é que essa interpretação conduz ao pelagianismo. Agostinho não aceita que a cura da vontade ocorra independentemente da graça: “Fostes algum tempo trevas, mas agora sois luz no Senhor (Ef. 5, 8). Por que eles, querendo ser luz não no Senhor, senão em si mesmos, ao julgar que a natureza da alma é a mesma que de Deus, tornam-se trevas cada vez mais densas. Em sua espantosa arrogância, afastam-se cada vez mais de ti, que és luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo (Jo 1, 9)” (Conf. VIII, x, 22). Vale notar que amor, para Agostinho, é “vontade intensa” (De Trinitate XV, xxi, 41), o que não significa necessariamente que ele seja sempre unificador, pois pode separar. A vontade não é tampouco causa dos males. O mal é priuatio boni (ausência de bem). Como o mal é privação do bem, não há causa eficiente para o mal, somente “causa deficiente” (Ibid., xii, 7). A vontade não é causa dos males; a vontade corrompida é que se derrama ao transitório. 22 www.institutodefilosofia.com.br
  • 10. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 CONSIDERAÇÕES FINAIS “Havia, perto da nossa vinha, uma pereira carregada de frutos nada atraentes, nem pela beleza nem pelo sabor. Certa noite, depois de prolongados divertimentos pelas praças até altas horas, como de costume, fomos, jovens malvados que éramos, sacudir a árvore para lhe roubarmos os frutos. Colhemos quantidade considerável, não para nos banquetearmos, se bem que provamos algumas, mas para jogá-las aos porcos. Nosso prazer era apenas praticar o que era proibido. Eis o meu coração, Senhor, o coração que olhaste com misericórdia no fundo do abismo (...) Gostava de arruinar-me, de destruir-me; amava, não o objeto que me arrastava ao nada, mas o aniquilamento em si. Pobre alma embrutecida, que se apartava do teu firme apoio para auto-destruir-se...” (Confissões II, iv, 9). “Quid erat ille affectus animi (Que afeto da alma era aquele?)” (Ibid., ix, 17). De onde vinha o movimento da vontade, afastando-se do sumo bem e se derramando nas coisas mortais? Se o homem é a magna questio, não é voltando seu olhar para a regio egestatis que ele se compreenderá. “Cognoscam te, cognitor meus, cognoscam sicut et cognitus sum (Conheça-te a ti, conhecedor meu, conheça-te a ti como sou por ti conhecido)” (Conf. X, i,1). Eis a rota apontada por Agostinho! BIBLIOGRAFIA: AGOSTINHO, SANTO. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. 2ª ed. Coleção Patrística – 10. São Paulo: Paulus, 1997. ___________________. A Trindade. Trad. Agustinho Belmonte. 2ª ed. Coleção Patrística – 7. São Paulo: Paulus, 1994. ___________________. O livre-arbítrio. Trad. Nair de Assis Oliveira. 3ª ed. Coleção Patrística – 8. São Paulo: Paulus, 1995. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Trad. Vera Ribeiro. 2ª ed. SP/RJ: Record, 2005. 23 www.institutodefilosofia.com.br
  • 11. REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO DE FILOSOFIA – I.F SCIENCE INSTITUTE ISSN 1984-5804 CUNHA, Mariana Palozzi Sérvulo da. O Movimento da Alma: a invenção por Agostinho do conceito de vontade. Coleção Filosofia – 123. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. GILSON, Étienne. Introduction a L’Étude de Saint Augustin. Paris: Vrin, 1987. MARROU, H.-I. Saint Augustin et la fin de la culture antique. Paris: De Boccard, 1938. NOVAES, Moacyr. Linguagem e Verdade nas Confissões. In: PALACIOS, Pelayo M. (org.). Tempo e Razão: 1600 anos das Confissões de Agostinho. Leituras Filosóficas. São Paulo: Loyola, 2002. PLATÃO. República. Trad. Enrico Corvisieri. SP: Nova Cultural. Col. Os Pensadores, 2000. TAYLOR, C. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral & Dinah de Abreu Azevedo. SP: Edições Loyola, 1997. 24 www.institutodefilosofia.com.br