1) Heraldo do Monte é um guitarrista pernambucano reconhecido por seu talento no jazz e na mistura de ritmos nordestinos com jazz.
2) Ele cresceu em um bairro musical no Recife e aprendeu vários instrumentos.
3) Sua carreira decolou quando tocou com o pianista Walter Wanderley e depois se juntou ao Quarteto Novo, que misturava estilos de forma pioneira.
1. ERSONAGEM
HERALDO DO
MONTE
B, > arney Kessel, um dos monstros
sagrados da guitarra, preferiu evitar
a comparação com ele. O encontro
fora marcado com meses de antece-
dência. Num dia de abril de 1980,
no Parque Anhembi, em São Pau-
lo, o instrumentista norte-americano
tocaria alguns números com seu
maior admirador entre os brasileiros,
o pernambucano Heraldo do Monte.
Na hora de entrar no palco, Kes-
sel desistiu. Heraldo já estava em ce-
na, aquecendo o ambiente com seu
toque macio e emocionado. A pla-
teia, hipnotizada, aplaudia e pedia
mais. Por detrás das coxias, Barney
também vibrava, embriagado de co-
moção. Compor a dupla? Nada dis-
so. Ele simplesmente achou melhor
encostar seu instrumento e deixar
que o brasileiro ganhasse, sozinho,
aquela noite maravilhosa.
O músico capaz de encantar com
seu talento o grande jazzista norte- Heraldo: a arte do improviso jazzístico aplicada a temas brasileiros.
americano nasceu no Recife, em
maio de 1936. Heraldo do Monte fé. E, aos vinte anos, resolveu ga- co atracado no rio Capibaribe. A
cresceu no folclórico bairro da Mus- nhar a vida com a música. convite do pianista, Heraldo embre-
tardinha, ponto de encontro de mú- Heraldo, todavia, já guardava na nhou-se na vida noturna. "Talvez fi-
sicos e boémios do Recife: "Lá não cabeça um conceito fundamental: casse por lá, brincando de macaco,
havia lei do silêncio", recorda-se o "A gente precisa, sempre, se aper- de fazer jazz na madrugada pernam-
músico. "Mesmo depois das dez ho- feiçoar no ofício que abraça. Sem bucana, não aparecesse na minha
ras, os microfones continuavam trans- parar". Por isso, decidiu enfronhar- vida um sanfoneiro incrível, meio
mitindo os sons do forró, da gafiei- se na teoria musical. Ao mesmo louco, de cabelos louros, quase bran-
ra, a música do Jacó do Bandolim tempo, não deixava de perpetrar fa- cos." O nome? Hermeto Paschoal.
e do Waldir Azevedo." çanhas inesperadas, como exibir-se Ficaram amigos. Idealizaram até um
O músico rapidamente aperfei- com um banjo nos blocos de frevo conjunto em que pudessem mostrar
çoou-se em um batalhão de instru- do carnaval recifense. aquilo que mais os empolgava — a
mentos diferentes, do banjo ao vio- Brilhante instrumentista, Heraldo tal da mistura da raiz nordestina com
lão, do bandolim à guitarra, das não encontrou nenhuma dificulda- a técnica ligada ao jazz. Como con-
violas caipiras aos acústicos de doze de para transpor os obstáculos que ta Heraldo, a dupla durou pouco
cordas. Frequentador constante das costumam sufocar, prematuramen- tempo: "Deu problema porque o
festas públicas da região, adolescen- te, muitas carreiras promissoras. O Hermeto não queria, de jeito ne-
te ainda passou a se apresentar en- pianista Walter Wanderley, astro das nhum, aprender a tocar piano. Só
tre fre vistas e forrozeiros. Tocava até noites pernambucanas, descobriu o tinha a mão direita, só desfiava a
clarineta nas bandas que trafega- guitarrista quando este tocava numa melodia. Eu propus cobrir a sua mão
vam, boémias, pelas ruas do Reci- boate, a Cassino Flutuante, um bar- esquerda, fazendo as harmonias na
2. guitarra. O sem-vergonha aprendeu rava a ideia de largar a chance que Heraldo um convite para, finalmen-
o serviço em três dias, e me dis- o jazz me dava e trocá-la pela velha te, gravar um álbum capaz de retra-
pensou". viola. Eu pensava que um guitarris- tar a magia de seu dedilhar. Ele, a
De qualquer modo, o músico per- ta devia seguir a trilha do Barney princípio, se mostrou reticente: "Eu
nambucano não se aborreceu. Mu- Kessel, do Wes Montgomery. O res- vinha de uma dezena de experiên-
dou-se para São Paulo, empregou- to era lixo". cias diferentes. Não podia dizer que
se na boate Oásis, passou a partici- A convivência no Quarteto Novo, possuía um estilo. Mas resolvi peitar
par de gravações de cantores famo- em todo caso, libertou Heraldo de o trabalho assim mesmo, fazendo
sos — afinal, era uma figura rara na seus temores. Em 1967, o grupo um disco em que cada faixa refletis-
época: sabia ler partituras. "O pes- acompanhou Edu Lobo e Marília se um clima diferente, através de rit-
soal ficava admirado comigo", diz o Medalha em "Ponteio", de Edu Lo- mos muito peculiares".
guitarrista. "Eu tinha o lastro, a ba- bo e José Carlos Capinam, a músi- Nas raras outras oportunidades
gagem, o aprendizado essencial. ca ganhadora do Festival da TV que teve para gravar discos solo, ele
Mas não era um músico duro, qua- Record daquele ano. O estilo do demonstrou a mesma competência.
dradão, como os que saíam das es- grupo, enfim, sem dúvida se consa- Os excelentes LPs do guitarrista con-
colas e não possuíam jogo de cin- graria se, pouco tempo depois, Air- têm a essência de seu talento, um ta-
tura." to e Hermeto não decidissem ten- lento capaz de fazer frevos e forrós
Pena que todo esse prestígio ficas- tar um rumo diferente nos Estados conviverem em harmonia com um
se, sempre, circunscrito ao próprio Unidos. clima de improvisação jazzístico,
universo da noite, das orquestras, O conjunto desfez-se nas véspe- dentro de uma técnica que nada fi-
dos estúdios de gravação. Fama ras de 1969. Mas o único disco que ca devendo ao mais competente in-
além desses circuitos Heraldo do gravou, do selo Odeon, datado de térprete de música erudita. "E quem
Monte apenas principiou a ter por 1967, é um documento admirável diz que a molecada de hoje, treina-
volta de 1966, quando despontou da tentativa de seus integrantes. da na barulheira do rock, não gosta
na praça um conjunto precioso: o Só em outubro de 1979 fariam a do meu trabalho?", desafia Heraldo.
Quarteto Novo, composto por ele e
mais Théo de Barros (viola, violão,
baixo), Airto Moreira (na percussão)
e Hermeto Paschoal (em vários ins-
trumentos) .
A proposta do grupo era vigoro-
sa, radical. Em primeiro lugar, o
Quarteto Novo se utilizava somente
de instrumentos acústicos, apesar
das pressões do tropicalismo, géne-
ro que implicava uma pressão em di-
reção à adoção do som eletrifiçado.
Heraldo lembra: "Nós nos patrulhá-
vamos. Queríamos colocar na nos-
sa música o que tínhamos assimilado
individualmente. Mas temíamos que
a coisa pudesse ficar com cara de
norte-americana. Inúmeras vezes jo-
gamos fora composições prontas e
acabadas, que consideramos estran-
geiras demais. Eu vivia tomando
porrada. Tinha trabalhado muito
tempo no conjunto do Dick Farney
— e isso me transformava no alvo
predileto dos outros três companhei-
ros. Confesso que cheguei a sentir
vergonha de ter perdido o pé das mi-
nhas raízes. Na época, porém, um
músico como eu não recebia ofertas
todos os dias. O Luiz Gonzaga fora
amaldiçoado pela crítica. O baião era
música de terceira classe. Me apavo- Numa sessão de gravação (1982), acompanhado pelo baixo de Cláudio Bertrami.