1. PERSONAGEM
grande oportunidade veio quando
CANHOTO
Iara o casal de imigrantes napoli- noite, percorria os cafés do centro de
conheceu numa serenata, em 1907,
no bairro da Moóca, o cantor Roque
Ricciardi, o Paraguaçu. Trabalhan-
do com esse artista nos cinemas da
cidade, passou a ganhar em média
5 mil réis por apresentação. Em
1912, participou na Odeon da sua
tanos Crescendo Jacomino e Vicen- São Paulo. Era capaz de tocar com primeira gravação, a valsa "Lem-
za Gargiula, violão era sinónimo de o violão às costas, dentro de sacos branças de mim", de Luiz Argento.
farra e bebida. Afinal, era assim que ie pano, debaixo de mesas — toca- Fred Figner, o dono das Casas Edi-
a maioria das famílias da época en- va até dois violões ao mesmo tem- son, impressionado com a perfor-
carava o instrumento. Ernesto, o fi- po, um deitado sobre uma prancha mance do violonista, contratou-o pa-
lho mais velho, já estava definitiva- de madeira, outro nos braços. Sua ra gravar exclusivamente pelo selo
mente "perdido" na vida, tocando
bandolim e violão nas rodas boé-
mias. Mas o casal ainda tinha a es-
perança de impedir que o feitiço das
serestas "corrompesse" também o
caçula da família, o pequeno Amé-
rico Jacomino, nascido em 1889.
Uma carreira de médico, acredita-
vam eles, poderia garantir-lhe um fu-
turo mais feliz.
O ambiente doméstico era, sem
dúvida, pouco favorável para que o
garoto seguisse sua vocação de mú-
sico, despertada pelo som que o ma-
no tirava daquele instrumento proi-
bido. Para agravar ainda mais a si-
tuação, Américo era canhoto, quan-
do todas as técnicas de aprendiza-
gem violonísticas levavam em conta
apenas as pessoas destras. Assim,
para poder tocar sua paixão, ele te-
ve de virar tudo pelo avesso.
Primeiro, o próprio instrumento.
Sem inverter a posição das cordas,
criou uma técnica de execução pró-
pria, em que a mão direita deslizava
agilmente pelos trastes do violão, en-
quanto a esquerda fazia soar as cor-
das. Com isso, acabou também vi-
rando a cabeça de seus pais que, im-
pressionados pelo imenso talento
natural que ele demonstrava, acaba-
ram aceitando que seguisse a carrei-
ra de músico. Finalmente, Américo
também deixou de ponta-cabeça os
preconceitos da tradicional burgue-
sia paulistana: tocando um instru-
mento malvisto como o violão, cati-
vou a todos com suas valsas, mar-
chas, tangos e choros.
Durante o dia, Canhoto — apeli-
do ganho pelo modo de tocar — tra-
balhava como pintor de painéis. À Solista inspirado, Canhoto destacou-se também como compositor.
2. PERSONAGEM
Odeon. Nele, Canhoto registrou em
1913 outra valsa, com o nome de
"Acordes do violão", fonograma ho-
je raríssimo, em acetato de 11 pole-
gadas, rótulo amarelo, número
121.249. Essa mesma música viria
a ser regravada em 1926, com o no-
me de "Abismo de rosas". Foi a pri-
meira música registrada no sistema
elétrico de gravações, tornando-se a
composição mais conhecida de Ca-
nhoto, obrigatória em todas as suas
apresentações.
Muito importante para sua carrei-
ra foi a vitória de Américo no con-
curso "O que é nosso", promovido
pelo Correio da Manhã, jornal do
Rio de Janeiro, em 1927. Naquela
ocasião, Canhoto superou cobras da
época, como João Pernambuco e
Ivonne Rabello, executando três
composições suas: "Abismo de ro-
sas", "Marcha triunfal brasileira" e
"Viola, minha viola". O toque espe-
cial que ele dava aessas músicas era
o efeito de vibrato que arrancava do
violão, apertando a caixa de resso-
nância do instrumento no peito e vi-
brando o.corpo todo juntamente
com as cordas. Sucesso estrondoso.
Nesse evento, Canhoto recebeu o tí-
tulo de "Rei do Violão Brasileiro".
Antes de se consagrar como so-
lista do instrumento, Canhoto acom-
panhou com seu violão diversos ar-
tistas, e fez parte de alguns grupos.
O mais pitoresco deles foi o trio cai-
pira que montou com Abgail Ales- Com amigos, de chapéu de palha, pérola na gravata e violão em punho.
sio — uma garota de dez anos — e
Viterbo Azevedo. Percorriam o inte- no cavaquinho. A saúde, porém, to, o coração de Canhoto não resis-
rior de São Paulo, mesclando à sua não acompanhava bem esse ritmo, tiu. Agonizando, recusou-se a ver os
música toques teatrais. Viterbo en- e o músico queixava-se com fre- filhos, mas pediu à mulher que lhe
carnava o Jeca Tatu, um persona- quência de falta de ar. Procurou o trouxesse seu fiel companheiro, o
gem de Monteiro Lobato muito po- amigo Joubert de Carvalho, compo- violão Giannini. Deixou mais de cem
pular no final da década de 10. No sitor e médico, que lhe pediu para músicas escritas, das quais cerca de
entanto, a excursão do trio acabou tirar algumas chapas de raios X nu- trinta foram registradas em disco.
tragicamente na cidade mineira de ma clínica. Constatação: dilatação Cinquenta anos após sua morte,
Poços de Caldas onde, após uma da aorta, insuficiência cardíaca agu- a gravadora Continental lançou um
briga, Viterbo foi assassinado. da. Os médicos recomendaram que álbum comemorativo, com compo-
Em São Paulo, por volta de Américo não fizesse mais nenhum ti- sições suas interpretadas por músi-
1927, Canhoto montou o grupo Tu- po de esforço. Nomeado funcioná- cos como Dilermando Reis, Pauli-
runas Paulistas, com quatro violões, rio da Prefeitura de São Paulo, pas- nho Nogueira e Sebastião Tapajós.
dois cavaquinhos, flauta, saxofone, sou seus últimos anos levando uma Nesse disco, coube ao filho de Ca-
reco-reco, maracaxá e pandeiro. Foi vida pacata, ao lado da esposa Ma- nhoto, Luiz Américo Jacomino, a
um período de intensa produção, ria, com a qual era casado desde 7 maior honra: executar no violão
em que Canhoto compôs e gravou de setembro de 1922. Em 1928, po- Giannini do pai a belíssima valsa
grande número de solos no violão e rém, no aniversário de seu casamen- "Abismo de rosas".